Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
6461/17.1T8GMR.G1
Relator: MARIA DA CONCEIÇÃO SAMPAIO
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
VALOR DA ACÇÃO
TRANSACÇÃO JUDICIAL EM PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
EFEITOS DA SENTENÇA HOMOLOGATÓRIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/17/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
SUMÁRIO (DA RELATORA)

I – Na ação de impugnação pauliana é o valor do ato jurídico impugnado que exprime a utilidade económica imediata do pedido e não o do crédito cuja garantia patrimonial o autor pretende ver conservada.

II Transitada a sentença homologatória de uma transação, a relação jurídica substancial ficou tendo, em consequência da transação, a mesma estabilidade e certeza que uma relação jurídica definida por sentença transitada em julgado.

III - Porque assim, não é consentido à parte voltar a discutir aspetos de uma relação jurídica já estabilizada, pelo que, não podendo propriamente falar-se de caso julgado, não poderá deixar de considerar-se precludida a possibilidade de repristinar tal controvérsia, posta a homologação, também por sentença, da transação efetuada.

IV - Os efeitos do ato jurídico consubstanciado pela transação terão de ser considerados pelos termos do acordo e o contexto negocial e processual em que o mesmo foi celebrado.

V Celebrada a transação no âmbito de um processo de insolvência, não é indiferente a natureza e escopo próprios deste processo, intentando-se que todos os credores do mesmo devedor exerçam os seus direitos no âmbito de um mesmo processo e o façam em condições de igualdade (art. 90.º do CIRE).

VI - Estando previsto um regime especial para a resolução dos atos em benefício de todos os credores, que foi acionado, fica precludida a possibilidade de cada credor individualmente requerer a nulidade de tais negócios em seu benefício.

VII - Na parte respeitante aos negócios que tiveram por objeto os bens implicados na transação, tendo a sentença homologatória transitado em julgado, a ação não poderá prosseguir por verificada a exceção de transação.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I- Relatório

Nos presentes autos de impugnação pauliana, onde é autor J. C. e são réus A. M., M. J. (1ºs réus), A. C. (2ª ré), T. P. (3º réu), “X, Ld.ª” (4ª ré), Massa Insolvente de A. M. (5ª ré) e “Banco A, S.A.” (6º réu), veio o autor requerer:

i. A título principal, a condenação dos 1ºs réus no pagamento da quantia de € 12.419,66, acrescida de juros vencidos e vincendos;
ii. A procedência da impugnação pauliana da transmissão, por doação, do “Prédio R.” dos 1ºs réus para os 2ª e 3º réus, declarando-se o direito do autor executar esse prédio no património dos segundos e, caso estes o transmitam a terceiro, o direito de o autor executar o património dos 2º e 3º réus até ao montante que se apurar corresponder ao valor do prédio;
iii. A procedência da impugnação pauliana da transmissão, por “compra e venda”, do “Prédio J.”, da 1ª ré para os 2º e 3º réus, declarando-se o direito do autor executar esse prédio no seu património e, caso estes o transmitam a terceiro, o direito de o autor executar o património dos 2º e 3º réus;
iv. A procedência da impugnação pauliana da transmissão do veículo automóvel, de marca Citröen, com a matrícula nº CR, dos 1ºs réus para o 3º réu, declarando-se o direito do autor executar esse veículo no património do 3º réu e, caso este o transmita a terceiro, o direito de o autor executar o património daquele;
v. A procedência da impugnação pauliana da transmissão dos veículos automóveis, de marca Volkswagen e BMW, com as matrículas nº TI e LH, respectivamente, dos 1ºs réus para a 2ª ré, declarando-se o direito do autor executar esses veículos no património da 2ª ré e, caso esta os transmita a terceiro, o direito de o autor executar o património daquela;
vi. A procedência da impugnação pauliana da transmissão dos veículos automóveis, de marca Mitsubishi e Mazda, com as matrículas nº TF e BV, respectivamente, bem dos equipamentos enumerados nos artigos 47.º e 108.º da p.i., dos 1ºs réus para a 4ª ré, declarando-se o direito do autor executar esses veículos e equipamentos no património da 4ª ré e, caso esta os transmita a terceiro, o direito de o autor executar o património daquela;
vii. A título subsidiário, a mais do reconhecimento do crédito já referido, a declaração de nulidade de todos os negócios acima referidos, com o consequente cancelamento de todas as inscrições, quer no Registo Predial, quer no Registo Automóvel, efectuadas com base naqueles.
No despacho saneador foi fixado o valor de € 12.419,66, por ser esse o valor do crédito, considerando-se que a utilidade económica da ação se traduz no crédito que poderá, por via dela, ser executado no património dos réus, fazendo-se referência ao disposto no nº 3 do art. 297º e nº 1 do art. 296º do CPC.

Nesse despacho foi ainda conhecida a exceção de caso julgado/transação, decidindo-se pela sua verificação relativamente aos bens visados na transação celebrada no processo de impugnação de resolução em benefício da massa (por apenso ao processo de insolvência) ou seja, quanto à impugnação pauliana ou nulidade da doação do prédio “Prédio R.”; impugnação pauliana ou nulidade da compra e venda do “Prédio J.”; impugnação pauliana ou nulidade da transmissão do veículo automóvel, de marca Citröen, com a matrícula nº CR; impugnação pauliana ou nulidade da transmissão do veículo automóvel de marca BMW, com a matrícula nº LH; e impugnação pauliana ou nulidade da transmissão do veículo automóvel, de marca Mitsubishi, com a matrícula nº TF.

Consequentemente, considerando que o Banco A S.A. foi demandado exclusivamente por força do pedido de invalidade do negócio de transmissão do Prédio J., foi declarada a absolvição da instância deste réu, o mesmo sucede quanto ao 4º réu, por se considerar não ter qualquer intervenção nos negócios relativamente aos quais os autos prosseguiam.
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Inconformado com esta decisão, o Autor interpôs recurso, finalizando com as seguintes conclusões:

Quanto ao valor da acção

1.ª “Numa acção de impugnação pauliana a primeira e verdadeira pretensão (em primeira linha) deduzida pela autora consiste em tornar ineficazes os negócios que enuncia. A satisfação do seu crédito é posterior a ter alcançado a procedência desta acção e daí que o valor da acção não deva ser o da utilidade económica do pedido formulado em função do crédito alegado, mas sim aquele que resulta do valor atribuído aos direitos constantes do acto impugnado.” – conclusão retirada do sumário do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 28 de Janeiro de 2016 – publicado no portal [www.dgsi.pt], com a referência Processo 64/15.2T8MLG-A.G1
2.ª Estando impugnados negócios de bens cujos valores perfazem a soma de EUR 183´639.00 (cento e oitenta e três mil seiscentos e trinta e nove euros), este deve ser o valor da acção, nos termos do disposto no n.º 1, do artigo 301.º, do Código de Processo Civil.

A excepção da transacção quanto aos factos seleccionados

3.ª Numa acção de impugnação pauliana, em que se acham impugnados vários negócios, uns realizados pelo cônjuge de um insolvente, outros realizados pela comunhão conjugal do insolvente e seu cônjuge não insolvente, para a verificação dos efeitos de uma transacção celebrada entre a massa insolvente do devedor e os adquirentes de bens, importa selecionar os factos relativos à propriedade dos bens alienados nos negócios impugnados, na exacta medida em que a eventual resolução feita pelo administrador de uma insolvência apenas pode operar sobre negócios realizados pelo insolvente e nunca sobre os negócios realizados por outrem que não o insolvente.
4.ª Assim e estando aqueles factos alegados pelas partes, não pode tal questão decidir-se sem se selecionar os factos, alegados pelas partes e indicados na motivação deste recurso, relativos à data e regime de bens do casamento do insolvente e seu cônjuge, à data e regime da aquisição de cada um dos bens, tudo por forma a verificar se se trata de bens próprios do insolvente ou até do cônjuge não insolvente, ou se se trata de bens comuns do casal, pois que o administrador do insolvente apenas pode resolver os negócios celebrados pelo insolvente e não já os celebrados pelo seu cônjuge, nem os celebrados pelo casal, para além, claro, dos factos relativos à dívida e sua comunicabilidade ao cônjuge.
5.ª Ao decidir a questão das implicações da resolução pelo administrador da insolvência na impugnação pauliana ou da transacção por ele celebrada com os adquirentes sem selecionar aqueles factos, o tribunal violou o disposto na alínea b), do n.º 1, do artigo 595.º, para além do que parece mesmo ter cometido a nulidade da omissão de pronúncia sobre factos essenciais alegados pelas partes, nos termos do disposto na alínea d), do n.º 1, do artigo 615.º, em conjugação com o n.º 4, do artigo 607.º, e o n.º 1, do artigo 5.º, todos do Código de Processo Civil, a qual, no entanto e no caso, uma vez que se trata de um saneador-sentença, sempre deverá resultar na sua revogação e consequente prosseguimento do processo para os apurar – nos termos sugeridos, em caso semelhante, pelo Tribunal da Relação de Guimarães, em acórdão de 16 de Fevereiro de 2017, onde se sumariou que

“II. O conhecimento imediato do mérito da causa no despacho saneador, permitido na alínea b) do n.º 1 do artigo 595º do CPC, só poderá acontecer (i) quando toda a matéria de facto se encontre provada por confissão expressa ou tácita, por acordo ou por documentos, (ii) quando seja indiferente, para qualquer das soluções plausíveis, a prova dos factos que permanecem controvertidos, e (iii) quando todos os factos controvertidos careçam de prova documental.
III. Nessa medida, mostrando-se ainda controvertidos factos alegados pelo Autor que, com relevância, contendem com a causa de pedir subjacente aos pedidos sobre os quais o Tribunal decidiu pronunciar-se no despacho saneador, estava vedado àquele Tribunal conhecer imediatamente, nessa fase processual, do mérito desses pedidos.”

A excepção da transacção as implicações dela

6.ª Estando em causa a impugnação pauliana de negócios celebrados pelo cônjuge do insolvente (e não pelo insolvente), no qual transmitiu um bem próprio seu, bem como de negócios celebrados pelo casal (o insolvente e o seu cônjuge), de bens comuns, não há que analisar sequer as implicações da resolução pelo administrador ou da transacção por ele celebrada a respeito disso, por se tratar de um acto irrelevante, na medida em que os poderes conferidos, pelo artigo 120.º, do CIRE, ao administrador de uma insolvência para resolver os negócios prejudiciais à massa, se limitam aos negócios celebrados pelo insolvente, únicos que podem ser prejudiciais à massa insolvente.
7.ª E isso mesmo que a resolução do administrador seja dada sem efeito numa transacção assinada pelo administrador da insolvência, em representação da massa insolvente, e os adquirentes dos bens, por se tratar de rés inter alios relativamente aos credores, sobretudo aos credores que a não aprovaram, antes a ela se tenham oposto.
8.ª A isso não obsta a circunstância de a transacção ter sido homologada por sentença, se esta se limitou a verificar se a transacção é valida atenta a qualidade das partes (se nela intervieram as partes naqueles autos, o administrador da insolvência e os adquirentes dos bens), bem como o objecto da lide (se nela estão em causa direitos disponíveis, como era o caso, uma vez que o administrador, da mesma forma que tem poderes para resolver negócios celebrados pelo insolvente, também tem poderes para não os resolver ou desistir das resoluções que tenha feito) e nela não intervieram os credores do insolvente, nem e com muito relevo, os credores do cônjuge do insolvente.
9.ª É que a transacção é um negócio, tipificado no artigo 1248.º, do Código Civil, que, como qualquer outro, só vincula as partes que nele se obrigam, como determina o n.º 1, do artigo 405.º, do mesmo Código. E a circunstância de ter sido homologada por sentença em nada altera o que vem de dizer-se, sobretudo se na sentença se refere, como é habitual, que se condena as partes (e só as partes) no seu cumprimento.
10.ª A resolução, feita pelo administrador da insolvência do cônjuge marido, de negócios celebrados pela cônjuge mulher e pela comunhão conjugal, não tem a virtude de “tampar” a possibilidade da impugnação destes negócios, pois que são de terceiros e o artigo 120.º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas ao estabelecer que “podem ser resolvidos em benefício da massa insolvente os atos prejudiciais à massa praticados dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência”, refere-se, evidentemente, aos negócios celebrados pelo insolvente, únicos que podem ser prejudiciais à massa insolvente.
11.ª Uma sentença que, num processo de impugnação da resolução feita pelo administrador da insolvência, de negócios celebrados por terceiros, que não o insolvente, homologou a transacção celebrada entre os impugnantes da resolução e a massa insolvente, na qual, entre o mais, acordam em “dar sem efeito a resolução”, não tem o condão de impedir que os credores impugnem os mesmos negócios, pois que ela não só não faz caso julgado, como também não alarga os efeitos negociais da transacção a terceiros (os credores não outorgantes).
12.ª É que a transacção, sendo um contrato, está sujeita à eficácia inter partes, a que se refere o artigo 405.º, do Código Civil, o que distingue lapidarmente as obrigações relativas das absolutas, não podendo daquele contrato resultar efeitos para terceiros, porque “as partes, ao celebrarem uma transação […] põem termo à lide segundo o seu interesse ou a sua conveniência” – Professor Alberto dos Reis, in Comentário ao Código de Processo Civil, Volume 1, página 464-465 –, e não, claro, no interesse de terceiros, sobretudo quando os interesses são opostos, como dos autos resulta.
13.ª É que a transacção a que se refere a sentença recorrida, como dela consta, condena as partes no cumprimento do acordado, e só as partes.
14.ª Ainda que a respeito de caso diferente, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 7 de Fevereiro de 1991 – disponível no portal [www.dgsi.pt] com a referência Processo 0015846 – em cujo sumário se lê que “Apenas constitui caso julgado inter partes uma sentença homologatória de transacção proferida em acção declarativa proposta pelo promitente comprador de imóvel contra o promitente vendedor, não podendo por isso ser oponível a terceiro credor hipotecário, com hipoteca registada sobre o referido imóvel.”
15.ª Também os Senhores Juízes Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão de 4 de Julho de 2002 – disponível no portal [www.dgsi.pt] com a referência Processo 02A1847 –, fundamentaram, ainda que a respeito doutro caso, que: “Dir-se-á ainda que não há que colocar o problema do caso julgado da sentença de homologação do acordo; ela faz caso julgado nos termos em que julga (art.º 673 do Código de Processo Civil) e dela não consta que os seus efeitos se estendessem a quem não foi parte no acordo.”

Sobre as absolvições da instância

16.ª Estando impugnados em acção de impugnação pauliana em que se pede, para lá disso e subsidiariamente, a declaração de nulidade de negócios, os respectivos adquirentes tem de ser demandados, como foram, não podendo, quanto a eles, extinguir-se a instância.

Por fim,
17.ª A decisão recorrida violou ou não fez a melhor interpretação e aplicação do disposto na alínea b), do n.º 1, do artigo 595.º, ocasião em que parece mesmo ter cometido a nulidade apontada na alínea d), do n.º 1, do artigo 615.º, em conjugação com o n.º 4, do artigo 607.º, e o n.º 1, do artigo 5.º, todos do Código de Processo Civil;
18.ª A decisão recorrida violou ou não fez a melhor interpretação e aplicação do disposto no n.º 1, do artigo 301.º, do Código de Processo Civil, nos artigos 120.º e 127.º, do CIRE, no artigo 1717.º, alínea a), do n.º 1, do artigo 1722.º, alínea b), do artigo 1724.º, alíneas a), b), c) e d), do n.º 1, do artigo 1691.º, artigos 1248.º, 405.º, 605.º e 610.º, todos do Código Civil, para além do disposto no artigo 290.º, do Código de Processo Civil.

Pugna o Recorrente pela integral procedência do recurso com a consequente revogação da decisão recorrida, que deve ser substituída por outra que fixe à ação o valor de EUR 183.639,00 (cento e oitenta e três mil seiscentos e trinta e nove euros); que determine o prosseguimento dos autos, também quanto aos negócios do Prédio R., ao Prédio J., aos veículos Citroen, BMW e Mitsubishi, e que determine o prosseguimento da instância contra o sexto réu BANCO A, S.A., e a quarta ré, X.
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Foram apresentadas contra-alegações defendendo a Recorrida a improcedência do recurso e a manutenção do decidido.
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Foram colhidos os vistos legais.

Cumpre apreciar e decidir.
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II - Delimitação do objeto do recurso

As questões decidendas a apreciar, delimitadas pelas conclusões dos recursos, consistem em:

- saber qual é o critério a atender para a fixação do valor da causa numa ação de impugnação pauliana;
- apreciar da suficiência dos factos provados para conhecimento do mérito do pedido;
- verificar da existência da exceção da transação e seus efeitos na ação de impugnação pauliana.
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III – Fundamentação

3.1. Os factos

Na 1ª instância, com relevância para a apreciação da exceção de transação, com base nos documentos, foram considerados como assentes os seguintes factos:

1) No âmbito do processo de insolvência de A. M., foi enviada à ré A. C. uma carta datada de 5 de Junho de 2015 com o seguinte teor: “(…), na qualidade de Administrador da Insolvência (…) vou proceder à resolução dos seguintes negócios:

a. Contrato de compra e venda do seguinte imóvel: Prédio Urbano, casa de habitação de rés-do-chão, andar e quintal, sito no Lugar (...), na freguesia de (...), Vila Nova de Famalicão, sob o nº (…);
b. Doação do seguinte imóvel: prédio urbano composto de duas casas, sito em (...), descrito na CRP sob o nº (...), inscrito na respectiva matriz predial sob os artigos nº … e … R/Ch. (…);
c. Venda de bens móveis: BMW Série 5, matrícula LH;

2) No âmbito desse mesmo processo de insolvência de A. M., foi enviada ao réu T. P. uma carta datada de 5 de Junho de 2015 com o seguinte teor: “(…), na qualidade de Administrador da Insolvência (…) vou proceder à resolução dos seguintes negócios:

a. Contrato de compra e venda do seguinte imóvel: Prédio Urbano, casa de habitação de rés-do-chão, andar e quintal, sito no Lugar (...), na freguesia de (...), Vila Nova de Famalicão, sob o nº (…);
b. Doação do seguinte imóvel: prédio urbano composto de duas casas, sito em (...), descrito na CRP sob o nº (...), inscrito na respectiva matriz predial sob os artigos nº …Cave e … R/Ch. (…);
c. Venda de bens móveis: Citröen C4, matrícula CR;

3) No âmbito desse processo foi enviada à ré “X, Ld.ª” uma carta datada de 5 de Junho de 2015 com o seguinte teor: “(…), na qualidade de Administrador da Insolvência (…) vou proceder à resolução do seguinte negócio: venda de bens móveis - Mitsubishi matrícula EF, 200 escoras metálicas, máquina de cortar ferro, central eléctrica de betão, autobetoneira, grua, máquina grua (telescópio), 2 betoneiras e diversa ferramenta de mão.
4) As “resoluções” referidas em 1) a 3) foram objecto de impugnação judicial, tendo corrido termos sob o nº 537/14.4 TJVNF-E.
5) No referido processo de impugnação das resoluções em benefício da massa, foi efectuada transacção nos termos que constam 186 ss., tendo as partes [X, A. C., T. P. e Massa Insolvente de A. M.] declarado que “acordam em dar sem efeito as resoluções dos negócios em benefício da massa insolvente efectuadas pelas cartas resolutivas (…); Os autores comprometem-se, solidariamente, a pagar à massa insolvente a quantia de € 7.000,00 (…)”.
6) Foi consignado na acta de fls. 187 que “(…) a transacção ficará sujeita à prévia ratificação pelos credores da insolvência (…)”.
7) No dia 04.02.2017 foi proferida a sentença homologatória da transacção (vd. fls. 189, verso)
8) A sentença referida em 7) transitou em julgado no dia 02.01.2018 (cfr. fls. 257).
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3.2. O Direito

3.2.1. Do valor da causa

No despacho recorrido foi fixado à presente ação o valor de € 12.419,66. Tal valor corresponde ao valor do crédito do autor, considerando-se, por isso, que a utilidade económica da ação se traduz no crédito que poderá, por via dela, ser executado no património dos réus.

Insurge-se o Recorrente quanto ao valor fixado, com o fundamento de que estando impugnados negócios de bens cujos valores perfazem a soma de EUR 183.639,00 (cento e oitenta e três mil seiscentos e trinta e nove euros), este deve ser o valor da ação, nos termos do disposto no n.º 1, do artigo 301.º, do Código de Processo Civil.

Assiste razão ao Recorrente.

O Recorrente, enquanto credor, visa em primeiro lugar com a ação pauliana impugnar um acto praticado pelo devedor que envolva uma diminuição da garantia patrimonial do seu crédito. A finalidade imediata da ação pauliana não é o reconhecimento da existência do crédito, ou a condenação do devedor no cumprimento deste, mas sim a conservação da garantia patrimonial do mesmo crédito. Para alcançar tal desiderato, o credor ataca judicialmente determinado acto jurídico, visando destruir, os efeitos deste. Daí que, e em decorrência, julgada procedente a impugnação, o credor tem direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los no património do obrigado à restituição e praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei (art. 616º, nº1, do Código Civil).
O critério de fixação do valor da causa deverá ser o estatuído no artigo 301.º, n.º 1, do C.P.C., de acordo com o qual, quando a ação tiver por objeto a apreciação da existência, validade, cumprimento, modificação ou resolução de um acto jurídico, atende-se ao valor do acto determinado pelo preço ou estipulado pelas partes.
É, como vimos, o caso da ação pauliana, através da qual se impugna um concreto ato jurídico, com vista a tornar ineficaz o seu efeito.
Em suma, é o valor do ato jurídico impugnado que exprime a utilidade económica imediata do pedido (de acordo com o principio geral consagrado no art. 296º, nº1, do C.P.C.), não o do crédito cuja garantia patrimonial o autor pretende ver conservada.
Estando impugnados negócios de bens cujos valores perfazem a soma de € 183.639,00 (cento e oitenta e três mil seiscentos e trinta e nove euros), este deve ser o valor da ação, nos termos do disposto no n.º 1, do artigo 301.º, do C.P.C..

Procede, nesta parte, a apelação.
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3.2.2. Da modificabilidade da decisão sobre a matéria de facto

Nos termos do artigo 662º, do Código de Processo Civil, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.

O Recorrente considera que mostrando-se ainda controvertidos factos alegados que, com relevância, contendem com a causa de pedir subjacente aos pedidos sobre os quais o Tribunal decidiu pronunciar-se no despacho saneador, não deveria o Tribunal a quo ter conhecido imediatamente, nessa fase processual, do mérito desses pedidos.

Assim não pode a questão decidir-se sem se selecionar os factos, alegados pelas partes, e relativos à data e regime de bens do casamento do insolvente e seu cônjuge, à data e regime da aquisição de cada um dos bens, tudo por forma a verificar se se trata de bens próprios do insolvente ou até do cônjuge não insolvente, ou se se trata de bens comuns do casal, pois que o administrador do insolvente apenas pode resolver os negócios celebrados pelo insolvente e não já os celebrados pelo seu cônjuge, nem os celebrados pelo casal, e dos factos relativos à dívida e sua comunicabilidade ao cônjuge.

Vejamos se assim é.

A impugnação da decisão de facto não se justifica a se, de forma independente e autónoma da decisão de mérito proferida, assumindo antes um carácter instrumental face à mesma (1). Tanto significa que a alteração dos factos pretendida pela parte tem de conformar um enquadramento jurídico tal que conduz a decisão diferente da anteriormente alcançada. Ou seja, a modificabilidade da decisão de facto só alcança justificação válida se, por essa via, se obtiver um efeito juridicamente útil ou relevante.

No caso concreto, tal não ocorre.

Os factos elencados pelo Recorrente em nada contendem com a solução jurídica consagrada na decisão.

Para a apreciação e decisão da concreta questão que se prende com a exceção de transação, nos termos em que a mesma se configura na ação, não importa selecionar os factos relativos à propriedade dos bens alienados nos negócios impugnados. Com efeito, os factos concretos objeto da impugnação são insusceptíveis de, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter relevância jurídica.

Pelo exposto, sabendo-se de antemão do efeito inconsequente da modificabilidade pretendida, caso viesse a obter procedência, ao abrigo do disposto nos arts. 2º, nº 1, 6º e 130º, do Código de Processo Civil, decide-se não conhecer da impugnação.
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3.2.3. Da subsunção jurídica dos factos ao direito

O Tribunal a quo considerou verificada a exceção de transação relativamente a determinados bens e, em consequência, declarou extinta a instância relativamente aos Réus Banco A S.A e X, Ld.ª.

O Recorrente não concorda com os efeitos decorrentes da transação celebrada no processo de insolvência que foram aplicados nesta ação.

Sustenta que estando em causa a impugnação pauliana de negócios celebrados pelo cônjuge do insolvente (e não pelo insolvente), no qual transmitiu um bem próprio seu, bem como de negócios celebrados pelo casal (o insolvente e o seu cônjuge), de bens comuns, não há que analisar sequer as implicações da resolução pelo administrador ou da transacção por ele celebrada a respeito disso, por se tratar de um acto irrelevante, na medida em que os poderes conferidos, pelo artigo 120.º, do CIRE, ao administrador de uma insolvência para resolver os negócios prejudiciais à massa, se limitam aos negócios celebrados pelo insolvente, únicos que podem ser prejudiciais à massa insolvente. Acrescenta que, além do mais, a transação como qualquer outro negócio jurídico, só vincula as partes que nele se obrigam, não tendo o Recorrente nela intervindo.

Vejamos se lhe assiste razão.

Os negócios aqui impugnados e que têm por objeto os bens imóveis (Prédio J. e (...)) e os veículos automóveis BMW, Citröen e Mitsubishi foram objeto de resolução em benefício da massa no processo de insolvência, tendo, no âmbito da impugnação dessa resolução, sido celebrada uma transação, já homologada por sentença, no sentido do pagamento de um determinado valor pelos visados, contra a não restituição dos bens à massa.

Nessa ação de impugnação de resolução em benefício da massa, os Autores eram os aqui Réus A. C. (2ª ré), T. P. (3º réu) e “X, Ld.ª” (4ª ré).

Como resulta do documento junto pelo Recorrente a fls. 132 ss., ficou consignado que a transação ficaria sujeita à prévia ratificação pelos credores da insolvência, sendo um deles o aqui Recorrente, tendo, após, sido proferida a sentença homologatória da transação, a qual transitou em julgado.

A relação jurídica substancial ficou tendo, em consequência da transação, a mesma estabilidade e certeza que uma relação jurídica definida por sentença transitada em julgado.

Porque assim, na parte respeitante aos negócios que tiveram por objeto os bens implicados na transação, não é consentido ao Autor discutir nesta ação aspetos de uma relação jurídica substancial já estabilizada, pelo que, não podendo propriamente falar-se de caso julgado - uma vez que a referida ação terminou por acordo das partes sem que a controvérsia substancial houvesse sido versada na decisão final -, o certo é que, como bem se evidenciou na sentença recorrida, não poderá deixar de considerar-se precludida a possibilidade de repristinar tal controvérsia, posta a homologação, também por sentença, da transação efetuada pelas próprias partes (2).

Neste sentido é o ensinamento de Alberto dos Reis (3), quando afirma que «desde que o conflito não foi decidido por sentença, não tem cabimento a excepção do caso julgado. As partes estão perante uma situação que tem o mesmo valor e a mesma eficácia que o caso julgado; mas não estão, de verdade, perante um caso julgado. Em vez de opor a excepção do caso julgado, o que o réu deve opor é a excepção de transacção, sem embargo de não se achar mencionada no art. 500º do C.P.C. de 39 (correspondente ao actual art. 494º do C.P.C.), visto ser exemplificativa a menção deste artigo». E acrescenta: «[o]pondo a excepção de transacção, o réu alega essencialmente o seguinte: a questão, objecto da acção, foi arrumada e resolvida pela transacção efectuada entre as partes; essa transacção tem, entre as partes, o valor de caso julgado; portanto não pode o tribunal conhecer do mérito da acção».

A questão posta pelo Recorrente assenta em dois fundamentos: o primeiro é que a transação celebrada no âmbito do processo de insolvência abrangeu bens que não pertenciam ao insolvente em violação de norma legal expressa, o segundo é que tal transação não é oponível ao aqui Autor, que nela não interveio.

Quanto ao primeiro fundamento, um aspeto importa assinalar e que ressalta da documentação junta aos autos.

O Recorrente, no processo de insolvência e na sua qualidade de credor, instou o Administrador da Insolvência a proceder à resolução dos negócios em benefício da massa, descrevendo os atos de transmissão realizados pelo insolvente, imputando-lhe a titularidade dos bens. Foi aí e nessa altura que a mulher do insolvente a aqui ré M. J. se insurgiu quanto à pretensão de resolução afirmando tratar-se de bens próprios seus.

Não deixa de ser curioso, que agora o aqui Autor se valha dessa alegação para atacar a transação, ao passo que a ré M. J. relativamente à qual se poderia colocar a hipótese de não oponibilidade da transação, na medida em que abarcasse bens que apenas à própria pertencessem, sem que nela houvesse intervindo, se apresentou, nestes autos, a defender essa transação - vd. contestação de fls. 197 ss.
Isto dito.

Os meios de reação postos ao alcance do Recorrente caso entendesse que a homologação da transação violara norma legal, era o recurso dessa decisão ou a propositura de ação própria para o efeito.

Não foi nem uma nem outra a opção tomada pelo Recorrente.

Se é verdade que, no âmbito da auscultação dos credores com vista à ratificação da transação, o Recorrente manifestou-se contra, a verdade é que por aí se quedou a sua reação.
Por conseguinte, a transação foi homologada e a sentença homologatória transitou em julgado.

O segundo fundamento prende-se com a oponibilidade da transação.

Na conformação jurídica dos efeitos do ato jurídico consubstanciado pela transação importa ter presente os termos do acordo e o contexto negocial e processual em que o mesmo foi celebrado.

A resolução em benefício da massa insolvente é a forma especial prevista no artigo 120.º do CIRE para a obtenção da reintegração na massa insolvente dos bens que da mesma não constem por terem sido antecipadamente retirados da esfera patrimonial do devedor mercê da prática pelo mesmo de atos prejudiciais à massa, considerando-se como tais os que diminuam, frustrem, dificultem, ponham em perigo ou retardem a satisfação dos credores da insolvência. Impugnada aquela resolução, as partes alcançaram um acordo, em que em vez de restituírem os bens entregaram determinada quantia em dinheiro. Este acordo veio a ser ratificado pelos credores (pelo menos pela maioria) e judicialmente homologado.

O Recorrente figurava como credor naquele processo insolvencial.

Ora, como é sabido, a razão de ser do processo de insolvência é a de fazer com que todos os credores do mesmo devedor exerçam os seus direitos no âmbito de um mesmo processo e o façam em condições de igualdade (art. 90.º do CIRE).

O Recorrente exerceu o seu direito de votar contra a ratificação da transação, não tendo sido esse o sentido da maioria (aqui incluídos os que nada disseram, tendo valido o seu silencio como consentimento, em face do teor expresso da comunicação nesse sentido), com ela tem de se conformar. A regra, no processo de insolvência, é que as decisões tomadas pela maioria (qualificada) dos credores impõem-se a todos. A manifestação dos credores em processo de insolvência exprime uma declaração de vontade normativa, pautada pela maioria dos votos conformes exigida por lei.

A transação votada pela maioria dos credores é pois oponível ao Recorrente.

Em suma, estando previsto um regime especial para a resolução dos atos em benefício de todos os credores, que foi acionado, fica precludida a possibilidade de cada credor individualmente requerer a nulidade de tais negócios em seu benefício. Por isso que, na parte respeitante aos negócios que tiveram por objeto os bens implicados na transação, tendo a sentença homologatória transitado em julgado, a ação não poderá prosseguir por verificada a exceção de transação.

Finalmente, no que respeita à extinção da instância, quanto ao Réu Banco A S.A. considerando que foi demandado exclusivamente por força do pedido de invalidade do negócio de transmissão do Prédio J., tendo em conta a decisão de exceção de transação, a absolvição da instância determina a cessação da sua intervenção nestes autos. Já o mesmo não sucede quanto à Ré X, Ldª, pois que, contrariamente ao que vem afirmado na decisão recorrida, a mesma tem intervenção nos negócios relativamente aos quais os autos prosseguem.

Com efeito, determinando-se o prosseguimento dos autos quanto aos negócios referentes ao veículo Mazda e aos equipamentos, que de acordo com a alegação e enunciação dos temas de prova foram transmitidos àquela Ré, não pode a instância extinguir-se quanto a si.
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IV – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação, assim revogando em parte a decisão recorrida, fixando o valor da causa em € 183.639,00 e determinando o prosseguimento da instância quanto à Ré X, Ldª,
Custas por Recorrente e Recorridos, na proporção de 3/4 para o primeiro e 1/4 para os segundos.
Guimarães, 17 de Dezembro de 2018

Assinado digitalmente por:
Conceição Sampaio
Elisabete Coelho de Moura Alves
Fernanda Proença Fernandes

1. Neste sentido o Acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães, de 1.3.2018, acessível em www.dgsi.pt
2. Acórdão da Relação de Guimarães de 03.04.2014, Rel. Heitor Gonçalves, Processo nº 4328/12.9 TBGMR-A.G1, cujo teor, na parte que agora interessa, se encontra transcrito na sentença recorrida.
3. In Comentário do Código do Processo Civil, Vol. 3º, pág. 499.