Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4561/22.5T8GMR.G1
Relator: ANA CRISTINA DUARTE
Descritores: RESPONSABILIDADE PRÉ-CONTRATUAL
DOLO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/20/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1 – A responsabilidade civil decorrente do alegado dolo do réu nas negociações que levaram à celebração do contrato (responsabilidade pré-contratual), o qual teria sido causa da errada representação que a autora fez do património da sociedade da qual adquiriu participações, tem a sua origem, tal como sucede no caso de erro sobre os motivos, num vício da vontade, mas que exige, não só que o declarante esteja em erro, mas que o erro tenha sido provocado ou dissimulado pelo declaratário, recorrendo, para o efeito, a qualquer artifício, sugestão ou embuste.
2 - O instituto da litigância de má fé constitui sanção civil para o inadimplemento gravemente culposo ou doloso dos deveres de cooperação e de boa fé (ou probidade) processual.
3 - A afirmação da litigância de má fé depende da análise da situação concreta, devendo o processo fornecer elementos seguros para por ela se concluir, exigindo-se no juízo a realizar uma particular prudência, necessária não só perante o natural conflito de interesses, contrário, normalmente, a uma ponderação objetiva, e por vezes serena, da respetiva intervenção processual, mas também face ao desvalor ético-jurídico em que se traduz a condenação por litigância de má fé.
4 - Para se imputar a uma pessoa a qualidade de litigante de má fé, imperioso se torna que se evidencie, com suficiente nitidez, que a mesma tem um comportamento processualmente reprovável.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

AA deduziu ação declarativa contra BB e mulher CC pedindo que os réus sejam condenados a pagar-lhe a quantia de € 54.000,00, acrescida dos juros que se vencerem à taxa de 4% ao ano, contados desde a citação até integral e efetivo pagamento.
Alegou que foi enganada pelos réus, tendo estes omitido elementos essenciais do negócio, que conheciam e que que foram determinantes para a sua decisão de comprar duas participações no capital social da sociedade Construções O..., Lda., o que fez na convicção de que o património da sociedade abrangia dois prédios. Não existindo tais imóveis, apenas restaram as dívidas, pelo que, tendo adquirido 50% das quotas da sociedade deve ser indemnizada em metade do valor daqueles imóveis.
Contestaram os réus excecionando a ineptidão da petição inicial por contradição entre a causa de pedir e o pedido. Contestaram, também, por impugnação, alegando que o negócio de aquisição das quotas não foi procedido de quaisquer negociações e que a autora, através de um seu representante, teve acesso a todos os documentos que retratavam a situação financeira da sociedade e, com base neles, propôs o preço de € 1,00 para a quota, o que veio a ser aceite. Pediram a condenação da autora como litigante de má-fé, por alegar factos desconformes à verdade e deduzir pretensão que sabe ser carecida de fundamento, em multa e indemnização a arbitrar a favor dos réus em montante não inferior a € 3.000,00.
A autora respondeu à matéria de exceção e ao pedido de condenação como litigante de má-fé no sentido da respetiva improcedência.
Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador que julgou improcedente a arguida exceção dilatória de ineptidão da petição inicial. Foi definido o objeto do litígio e elencados os temas da prova.

Teve lugar a audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença, cujo teor decisório é o seguinte:

“Nestes termos, decide-se:
1) Julgar a presente ação improcedente, absolvendo os Réus, BB e CC, do pedido formulado pela Autora, AA;
2) Julgar procedente o pedido de condenação da Autora, AA, como litigante de má-fé e, em consequência,
a) Condenar a Autora, AA, no pagamento de multa processual que se fixa em quatro unidades de conta;
b) Condenar a Autora, AA, a reembolsar os Réus, BB e CC, das despesas que tiveram com a sua defesa na presente ação, incluindo os honorários ao ilustre advogado que os representa, absolvendo-a do demais peticionado a este título.
Sem custas, uma vez que a Autora está dispensada de taxa de justiça e encargos.
Registe e notifique, sendo os Réus para, nos dez dias subsequentes ao trânsito em julgado, discriminarem as despesas que tiveram com a sua defesa, nos termos e para os efeitos indicados em V.2)b), seguindo-se contraditório da Autora, por igual prazo”.

A autora interpôs recurso, tendo finalizado a sua alegação com as seguintes
Conclusões:

1. Não pretende a recorrente, nas conclusões que se seguem reduzir o objeto do presente recurso.
2. Vem o presente recurso interposto da sentença proferida, a final, nos autos que julgou a ação improcedente, absolvendo os RR. dos pedidos e ainda condenou a A. como litigante de má-fé no pagamento de multa fixada em quatro unidades de conta e a reembolsar os RR. nas despesas que tiveram com a presente ação, incluindo os honorários ao ilustre advogado que os representou.
3. Com o presente recurso, visa a recorrente a revogação da douta sentença ora em crise e, em consequência, a condenação dos RR. nos pedidos formulados na petição inicial e a sua absolvição como litigante e má-fé.
4. Salvo o devido respeito, que é muito, por diferente e melhor opinião, entende a apelante que atentos os factos dados como provados e não provados justificariam que outra tivesse sido a decisão.
5. Com relevância para o que aqui se discute, foi dado como provado:
a) A sociedade Construções O..., Lda., foi constituída a 6 de fevereiro de 1991, tendo como sócios DD, EE e o Réu FF.
b) À data da sua constituição, tinha como gerentes os seus identificados sócios, obrigando-se com a assinatura de dois deles.
c) Em abril de 2007, o Réu renunciou ao cargo de gerente, passando este a ser exercido apenas pelo sócio EE, tudo conforme certidão permanente com o código de acesso ...19, apresentada como documento ... com a contestação, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
d) Em setembro de 2018, o referido EE comunicou ao Réu a existência de uma pessoa interessada em adquirir as quotas da sociedade, a qual era representada por GG.
e) Por escrito particular, com assinaturas reconhecidas por ilustre advogado, no dia 6 de novembro de 2018, os Autores, como primeiros outorgantes, e a Ré, como segunda outorgante, declararam que: “1.ª: Os 1.ºs outorgantes são donos e legítimos possuidores de uma quota com o valor nomina de € 2 500,00 inscrita em nome dele, cônjuge marido na sociedade comercial por quotas denominada Construções O..., Lda. (…) 2.ª: Pelo presente contrato, os 1.ºs outorgantes, cedem esta sua identificada quota à 2.ª outorgante, pelo valor de € 1,00. 3.ª O preço de compra da quota foi pago no ato da assinatura do presente contrato dando os 1.ºs outorgantes inteira quitação (…)”.
f) Encontrava-se registada a favor da Autora uma parcela de terreno destinada a construção, com a área de 340m2, sita no Lugar ..., freguesia ..., concelho ... que confronta a nascente com o prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo ...38 e descrito na Conservatória do Registo Predial no número ...30 da freguesia ..., a norte com o caminho público, a sul com a Rua ... e a Poente com HH e que se encontra inscrito na matriz urbana sob o artigo ...36, descrito na Conservatória do Registo Predial ... no número ...05, conforme documento ... apresentado com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
g) Desde o ano de 2003, está inscrito, na matriz rústica, sob o art. ...26, em nome da sociedade Construções O..., Lda., um prédio sito no lugar ..., freguesia ..., concelho ..., com a área de 0,78000 ha, a confrontar do norte com II, do sul com caminho público, do nascente com JJ e do poente como caminho público, conforme documento ... apresentado com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
h) A Autora decidiu-se a adquirir as quotas dos Réus por estar convencida, a partir da análise dos balancetes que foram facultados ao seu representante pelo gerente EE, que a sociedade Construções O..., Lda., era proprietária dos prédios identificados em 23. e 24.
i) A sociedade Construções O..., Lda., intentou contra KK, LL, MM, NN, ... e OO a ação declarativa que correu termos por este Juízo Central Cível ... sob o n.º 3335/10...., a pedir o reconhecimento da sua qualidade de proprietária do prédio identificado em 23.
j) Os referidos Réus formularam, em sede de reconvenção, o mesmo pedido.
k) Por sentença proferida no dia 28 de janeiro de 2021, transitada em julgado, foi decidido julgar: a ação improcedente e, consequentemente, absolver os RR. dos pedidos; a reconvenção parcialmente procedente, e, consequentemente, a) condenar-se a A./Reconvinda a reconhecer que a parcela de terreno a que alude na alínea A) dos factos provados faz parte integrante, em toda a sua extensão, da área comum do logradouro e/ou área descoberta do prédio urbano sito na Rua ..., ..., ... Guimarães, e que os Reconvintes são donos e legítimos comproprietários da mesma com os demais proprietários das restantes frações autónomas do edifício constituído em propriedade horizontal.
l) Nessa sentença foi dado como provado que: “Quando a A. adquiriu o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... no número ...19, a EE e mulher PP, este tinha a área de 800m2 e confrontava do Norte e Nascente com o caminho público, do sul com a Rua ... e do poente com HH. C) Em 30 de setembro de 1992, dele foi desanexada uma parcela de terreno, com a área de 460m2, que passou a constituir o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial no n.º ...92, inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...38, que confronta do norte e nascente com o caminho público, do sul com a Rua ... e do poente com a Autora.”
m) Na fundamentação dessa sentença foi escrito que: “A testemunha BB, construtor civil reformado, foi sócio e gerente da A. até vender as suas quotas há 3 ou 4 anos; disse que o terreno onde foi construído o prédio foi comprado a EE e mulher; a parte sobrante e o barraco ficaram para os moradores; o barraco tinha sido construído pelo Sr. EE e ficou tudo para os moradores; não sabe de destaque nenhum. Esclareceu que quando andavam a construir o prédio passavam pelo limite norte do terreno para trás para o barraco onde tinha o estaleiro, caminho de cerca de 3 metros de largura; a sociedade não tinha bens quando vendeu a sua quota; estava sem atividade há anos. Referiu que tinham deixado uma abertura num prédio que estavam a construir e que dava para aquele terreno; um dos moradores disse-lhes que não podiam fazer aquilo e eles taparam. Confrontado com o doc. ...9, disse que o desconhece; a sociedade acabou a obra e foi-se embora nunca mais quis saber daquilo; as condutas para os esgotos atravessavam o terreno e iam ter a uma fossa e poço sumidouro que ficavam num quintal dum familiar do Sr. EE; pensa que o EE não continuou a ir lá porque não tinha nada para fazer lá”, tudo, conforme documento ...7 apresentado com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
n) No dia 6 de novembro de 2018, a sociedade Construções O..., Lda., tinha dívidas à Autoridade Tributária que, depois de estabelecidos acordos de pagamento, totalizavam € 5 439,62 e € 2 142,00, cf. documentos ... e ... apresentados com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
o) Para além das dívidas atrás referidas, era ainda a sociedade Construções O..., Lda. devedora à Autoridade Tributária da quantia de € 131,80, conforme documentos ...0 a ...2 apresentados com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
p) A sociedade Construções O..., Lda., tinha ainda, perante a Autoridade Tributária, uma coima do montante de € 388,60, conforme documento ...3 apresentado com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
q) Essas dívidas continuaram a vencer-se nos seguintes termos: IMI de 2018, € 95,58€; IMI de 2019, € 191,16; IMI de 2020, € 180,24; IMI de 2021, € 90,12; AIMI de 2017, € 113,92; AIMI de 2018, € 113,92; AIMI de 2019, € 109,24; AIMI de 2020, € 109,24; AIMI de 2021, € 109,24; AIMI de 2022, € 109,24, tudo conforme documentos ... a ...9 apresentados com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
6. Com interesse, foram dados como não provados os seguintes factos:
a) O prédio referido no ponto 24. não tem existência física.
b) O prédio identificado no ponto 23. valia € 69 000,00.
c) O prédio identificado no ponto 24. valia € 39 000,00.
7. A A. intentou a presente ação, contra os RR., pedindo que estes fossem condenados a pagar-lhe a quantia de 54.000,00€, pelo facto de ter sido enganada, ou pelo menos não ter sido esclarecida quanto à existência dos imóveis de que a sociedade Construções O..., Lda era proprietária.
8. Conforme consta dos factos dados como provados, por escrito particular, com assinaturas reconhecidas por ilustre advogado, no dia 6 de novembro de 2018, os RR., como primeiros outorgantes, e a A., como segunda outorgante, declararam que: “1.ª: Os 1.ºs outorgantes são donos e legítimos possuidores de uma quota com o valor nominal de € 2 500,00 inscrita em nome dele, cônjuge marido na sociedade comercial por quotas denominada Construções O..., Lda. (…) 2.ª: Pelo presente contrato, os 1.ºs outorgantes, cedem esta sua identificada quota à 2.ª outorgante, pelo valor de € 1,00. 3.ª O preço de compra da quota foi pago no ato da assinatura do presente contrato dando os 1.ºs outorgantes inteira quitação (…)” (facto 1.22 da matéria provada, doravante designada por “mp”.
9. Quando a A. e RR, celebraram o contrato atrás aludido, a sociedade Construções O..., Lda tinha registada a favor da atrás aludida sociedade uma parcela de terreno destinada a construção, com a área de 340m2, sita no Lugar ..., freguesia ..., concelho ... que confronta a nascente com o prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo ...38 e descrito na Conservatória do Registo Predial no número ...30 da freguesia ..., a norte com o caminho público, a sul com a Rua ... e a Poente com HH e que se encontra inscrito na matriz urbana sob o artigo ...36, descrito na Conservatória do Registo Predial ... no número ...05 e ainda, desde o ano de 2003, que está inscrito, na matriz rústica, sob o art. ...26, em nome da sociedade Construções O..., Lda., um prédio sito no lugar ..., freguesia ..., concelho ..., com a área de 0,78000 ha, a confrontar do norte com II, do sul com caminho público, do nascente com JJ e do poente como caminho público, conforme documento ... apresentado com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido (factos 23 e 24 da mp).
10. A A., dado que as parcelas de terreno atrás referido, estavam inscritas em registos oficiais não tinha qualquer motivo para duvidar de que estes registos não correspondessem à verdade.
11. Ou seja, a A. confiou plenamente nos registos oficiais, como é normal nestas circunstâncias e nem tinha motivo algum para deles duvidar.
12. E foi nesse convencimento que a Autora decidiu-se a adquirir as quotas dos Réus por estar convencida, por constar dos registos oficiais (...), bem como dos balancetes que foram facultados ao seu representante pelo gerente EE, que a sociedade Construções O..., Lda., era proprietária dos prédios identificados em 23. e 24 (facto 25 da mp).
13. Não era exigível à A. outro comportamento que não fosse acreditar nas certidões emitidas pelos Serviços Oficiais do Estado Português ou até ir indagar se as certidões que possuía correspondiam à verdade ou não. O normal do cidadão é confiar no conteúdo das certidões que são emitidas pelas Conservatórias do Registo Predial e pelos Serviços de Finanças.
14. Na nossa modesta opinião, quem tinha a obrigação de informar a A. eram os RR., caso os prédios que se encontravam inscritos em nome da sociedade O..., Lda já não lhe pertencessem.
15. Nos termos do n.º 1, do artigo 227.º do Código Civil, “Quem negoceia com outrem, para a conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares como formação dele, proceder segundo as regras da boa fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte”.
16. Pelo menos, o R. marido tinha pleno conhecimento de que os prédios que se encontravam registados e inscritos em nome da sociedade Construções O..., Lda, já não lhe pertenciam, conforme o declarou, em audiência de julgamento “Na fundamentação dessa sentença foi escrito que: “A testemunha BB, construtor civil reformado, foi sócio e gerente da A. até vender as suas quotas há 3 ou 4 anos; disse que o terreno onde foi construído o prédio foi comprado a EE e mulher; a parte sobrante e o barraco ficaram para os moradores; o barraco tinha sido construído pelo Sr. EE e ficou tudo para os moradores; não sabe de destaque nenhum. Esclareceu que quando andavam a construir o prédio passavam pelo limite norte do terreno para trás para o barraco onde tinha o estaleiro, caminho de cerca de 3 metros de largura; a sociedade não tinha bens quando vendeu a sua quota…” (facto 30 da mp) – o sublinhado é nosso.
17. É por demais evidente que, pelo menos, o R. marido estava a vender as quotas de uma sociedade – Construções O..., Lda – que tinha registados a seu favor ou inscrito na matriz prédios urbanos de que já não era titular.
18. Os RR., nos termos do princípio da boa fé contratual, antes da celebração da cessão de quotas, estavam obrigados a comunicar à A. que os imóveis constantes como ativo da sociedade Construções O..., Lda já lhe não pertenciam e que apenas estavam a transmitir as quotas de uma sociedade que apenas tinha dívidas.
19. A A. atuou com a diligência de um “bonus pater famílias” e apenas ficou a saber que o imóvel identificado no número 23 dos factos dados como provados não pertencia à sociedade Construções O..., Lda, após a trânsito em julgado da sentença proferida no processo que correu no Juízo Central Cível ... sob o n.º 3335/10...., do Tribunal Judicial da Comarca ..., pelo que devem ser responsabilizados por tal.
20. Nos termos do n.º 2 do art.º 243.º do Código Civil, “A boa fé consiste na ignorância da simulação ao tempo em que foram constituídos os respetivos direitos”.
21.Ora, conforme acima se disse, pelo menos o R. marido, à data em que celebrou o negócio com a A., sabia muito bem que a sociedade Construções O..., Lda, apesar de ter bens imóveis registados em seu nome, já não era proprietária dos mesmos e omitiu – pelo menos não comunicou – tal facto à A., pelo que – a contrario – agiu com má-fé.
22. Por outro lado, a sociedade Construções O..., Lda tinha dívidas que foram comunicadas à A., nomeadamente:
e) “No dia 6 de novembro de 2018, a sociedade Construções O..., Lda., tinha dívidas à Autoridade Tributária que, depois de estabelecidos acordos de pagamento, totalizavam € 5 439,62 e € 2 142,00, cf. documentos ... e ... apresentados com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido (facto 31 da mp);
f) “Para além das dívidas atrás referidas, era ainda a sociedade Construções O..., Lda. devedora à Autoridade Tributária da quantia de € 131,80, conforme documentos ...0 a ...2 apresentados com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido” (facto 32 da mp);
g) A sociedade Construções O..., Lda., tinha ainda, perante a Autoridade Tributária, uma coima do montante de € 388,60” (facto 33 da mp);
h) “Essas dívidas continuaram a vencer-se nos seguintes termos: IMI de 2018, € 95,58€; IMI de 2019, € 191,16; IMI de 2020, € 180,24; IMI de 2021, € 90,12; AIMI de 2017, € 113,92; AIMI de 2018, € 113,92; AIMI de 2019, € 109,24; AIMI de 2020, € 109,24; AIMI de 2021, € 109,24; AIMI de 2022, € 109,24” (facto 34 da mp).
23. Assim, a A., quando se determinou a comprar, aos RR., as quotas da sociedade Construções O..., Lda estava plenamente convencida de que estava a compra as quotas de uma sociedade que tinha dívidas e que também era proprietária de bens e que, na sua modesta opinião, estes suplantavam o valor das dívidas.
24. É normal que alguém, quando faz um negócio, pretenda obter lucro – como diz o nosso povo, “ninguém anda para perder”.
25 .É inconcebível que alguém se determine a comprar as quotas de uma sociedade que só tem dívidas, bem sabendo que poderá ser responsabilizado por elas perante à Autoridade Tributária.
26. E é aqui que reside a nossa grande discordância com a douta sentença em crise.
27. A A., pensando estar a fazer um bom negócio, verificou, mais tarde, que as quotas da sociedade que tinha comprado aos RR. apenas tinha dividas e a douta sentença considerou esta situação perfeitamente normal e que quem está errada é a A., por reclamar aquilo a que se acha com direito.
28. É também certo que, em sede audiência de discussão e julgamento não ficou provado o valor dos prédios de que a sociedade C..., Lda era titular, à data da transmissão das quotas para a A., mas isso deveria ter determinado, mesmo assim, a condenação dos RR., ficando a liquidação do valor dos bens – que até poderá ser inferior -, para liquidação posterior (factos 37 e 38 da matéria não provada).
29.Todavia ainda diremos – sem ter ficado como provado – que o valor de um dos prédios, tendo em consideração que seria possível nele construir um prédio de 4 andares e valendo o terreno 25% do prédio, sempre teria um valor nunca inferior a 200.000,00€ - valor do apartamento – pelo que o pedido da A. até pecará por defeito.
30 .Assim, e com todo o respeito que é muito, entendemos que o Tribunal a quo, tendo em consideração a matéria de facto dada como provada e não provada, deveria ter declarado a ação como procedente.
31. Com todo o respeito, tendo em consideração a matéria de facto dada como provada e não provada e acima referida, entendemos que a condenação da A. como litigante de má-fé, não tem qualquer suporte factual.
32. Na verdade, e conforme consta da matéria dada como provada, “facto 25), “A Autora decidiu-se a adquirir as quotas dos Réus por estar convencida, a partir da análise dos balancetes que foram facultados ao seu representante pelo gerente EE, que a sociedade Construções O..., Lda., era proprietária dos prédios identificados em 23. e 24”.
33. Pelo menos o R. marido sabia que esses prédios já não pertenciam, à sociedade, mas não o comunica à A..
34. Mais tarde, quando a A. se apercebe que comprou as quotas de uma sociedade que não tem bens, mas apenas tem dívidas, tenta chamar os RR. à responsabilidade, pelos meios que – com todo o respeito – achou mais adequados e pelo exercício desse direito – consagrado no artigo 20.º da CRP -, vem a ser condenada como litigante de má-fé.
35. No presente caso, entendemos que quem é a vítima é a A. e não os RR., pois comprou as quotas de uma sociedade e que, segundo os registos oficiais era proprietária de dois imóveis e veio a apurar-se que apenas tinha dívidas, pelo que não existe razão para que a A. seja condenada como litigante de má-fé.
36. Diremos ainda que, se alguém esteve de má-fé no negócio, foi o R. marido que, bem sabendo a real situação dos bens que a sociedade tinha registados em seu nome, não comunicou à A.: que já não era proprietária dos mesmos, conforme o declarou em audiência de julgamento, vendendo-lhe as quotas de uma sociedade que só tinha dívidas.
37. Com todo o respeito, a douta sentença ora em crise não fundamenta minimamente os factos da matéria dada como provada que justificaram a condenação da A. como litigante de má-fé, pelo que viola as alíneas b) e c) do artigo 615.º do CPC e o artigo 20.º da CRP:
38. A sentença recorrida viola, entre outras, as disposições dos artigos 227.º n.º 2, do artigo 243.º do Código Civil e artigos 542.º, as alíneas b) e c), do n.º 1, do artigo 615.º do Código de Processo Civil e o artigo 20.º da CRP.
Termos em que, com o vosso douto suprimento, deve a sentença ser revogada, substituindo-se por outra que decida nos moldes apontados, ou seja, condenar os réus nos pedidos da petição inicial e absolver a autora como litigante de má-fé, com o que se fará oportuna e, acima de tudo, equitativa JUSTIÇA.

Os réus contra-alegaram, pugnando pela confirmação da sentença recorrida.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos autos e efeito devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.

As questões a resolver prendem-se com o apuramento da responsabilidade pré-contratual dos réus e com a litigância de má-fé por parte da autora.

II. FUNDAMENTAÇÃO

Na sentença foram considerados os seguintes factos:

Factos provados:

1. A sociedade Construções O..., Lda., foi constituída a 6 de fevereiro de 1991, tendo como sócios DD, EE e o Réu FF.
2. Tem como objeto social a construção de edifícios e a compra e venda de imóveis.
3. À data da sua constituição, tinha como gerentes os seus identificados sócios, obrigando-se com a assinatura de dois deles.
4. O capital social, após aumento, inscrito a 29 de março de 2006, passou a ser de € 5 000,00, dividido em três quotas de igual valor (€ 1 666,67), pertencendo uma a cada um dos sócios.
5. Na referida data, o sócio DD renunciou ao cargo de gerente e dividiu a sua quota em duas novas quotas, cada uma delas no valor de € 833,33, que cedeu aos sócios EE e Réu.
6. A sociedade foi a responsável pela construção de edifícios nos seguintes prédios: prédio urbano situado no Lugar ..., freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz sob o art. ...38; prédio urbano situado na Rua ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na CRP sob o n.º ...45 e inscrito na matriz sob o art. ...78.
7. Em abril de 2007, o Réu renunciou ao cargo de gerente, passando este a ser exercido apenas pelo sócio EE, tudo conforme certidão permanente com o código de acesso ...19, apresentada como documento ... com a contestação, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
8. Desde então, o Réu manteve-se afastado da atividade da sociedade.
9. Em setembro de 2018, o referido EE comunicou ao Réu a existência de uma pessoa interessada em adquirir as quotas da sociedade, a qual era representada por GG.
10. O Réu respondeu que o assunto deveria ser tratado junto do seu ilustre advogado.
11. Com data de 17 de setembro de 2018, o referido GG remeteu ao ilustre advogado do Réu um email do seguinte teor: “GG, vem no seguimento das conversas tidas com os sócios das Construções O..., Lda., (…) enviar a minuta para a cedência da quota do Sr. BB (…) e apresente duas soluções: 1.ª Ou o Sr. BB e mulher cede a sua quota a custo de € 1,00, por contrato assinado pelos dois com assinatura reconhecida com termo de autenticação; ou 2.1 O Sr. EE cede pelo mesmo preço a sua quota, mas como é gerente o Sr. BB e mulher, assumem por contrato assinado e reconhecido, nas mesmas condições, todas as responsabilidades da empresa (ativo e passivo) já existente e as que vier a aparecer até à data da cedência da quota, escusa do cargo de gerente e registo destes atos (dívidas fiscais, registo de contas desde 2010, custos com a contabilidade e todos os outros). Porque quem compra a quota está em ..., vem tratar de assuntos na próxima quarta-feira, agradecia que tomasse uma posição sobre esta proposta para fazer o registo ou não antes de regressar”, conforme documento ... apresentado com a contestação, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
12. Com esse email foi enviada uma minuta de contrato de cessão de quotas em que figurava como cessionária a Autora, conforme documento ... apresentado com a contestação, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
13. O ilustre advogado do Réu, seguindo indicações deste, respondeu por email datado de 18 de setembro de 2018, do seguinte teor: “O meu constituinte (…) não tem qualquer interesse em adquirir a quota ao Sr. QQ. Também não tem interesse em ceder a quota que lhe pertence ao Sr. QQ pelo valor de € 1,00. Uma vez que há um interessado na aquisição das quotas, o meu constituinte admite a possibilidade de ceder a sua quota ao terceiro interessado pelo valor de € 2 500,00”, tudo conforme documento ... apresentado com a contestação, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
14. O referido GG enviou novo email ao ilustre advogado do Réu, datado de 17 de setembro de 2018, dizendo que, “[d]a parte do interessado não há negociação possível. Se mantiver essa posição não vale continuar a perder tempo”, conforme documento ... com a contestação, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
15. O Réu foi convocado, por carta datada de 11 de outubro de 2018, assinada por EE, na qualidade de gerente da sociedade Construções O..., Lda., para uma assembleia de sócios, a realizar no dia 27 de outubro de 2018, pelas 12 horas, com a seguinte ordem de trabalhos: “1. Discutir situação financeira da empresa. 2. Solução para o pagamento das dívidas às Finanças, TOC, registo de conta e outras (…)”, conforme documento ... apresentado com a contestação, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
16. Naquela assembleia, realizada na data indicada, estiveram presentes, para além dos sócios da sociedade, o Réu e EE, os respetivos filhos, RR e EE, e ainda o referido GG.
17. Este começou por dizer que a sociedade tinha várias dívidas, que teriam de ser suportadas pelos sócios, reiterando a intenção da sua representada adquirir as quotas do Réu pelo valor de € 1,00.
18. O Réu disse que aceitava essa proposta, dando indicações ao referido GG para contactar com o seu advogado para formalização do contrato.
19. O GG enviou ao ilustre advogado do Réu um email datado de 29 de outubro de 2018, do seguinte teor: “Conforme combinado envio os contratos. (…) Como lhe disse, tenho o problema da assinatura da D. AA, posso precisar de mais uns dias para o registo.”
20. Esse email tinha, em anexo, um escrito denominado contrato de cessão de quotas em que figurava como cedente EE e como cessionária a Autora, cujos nomes estavam manuscritos no final, declarando o primeiro ceder à segunda a quota de que era titular na sociedade Construções O..., Lda., pelo preço de € 1,00, conforme documento ... com a contestação, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
21. Tinha, também em anexo, uma minuta de um contrato de cessão de quotas em que eram indicados como cedentes os Réus e como cessionária a Autora, conforme documento ...0 com a contestação, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
22. Por escrito particular, com assinaturas reconhecidas por ilustre advogado, no dia 6 de novembro de 2018, os Autores, como primeiros outorgantes, e a Ré, como segunda outorgante, declararam que: “1.ª: Os 1.ºs outorgantes são donos e legítimos possuidores de uma quota com o valor nomina de € 2 500,00 inscrita em nome dele, cônjuge marido na sociedade comercial por quotas denominada Construções O..., Lda. (…) 2.ª: Pelo presente contrato, os 1.ºs outorgantes, cedem esta sua identificada quota à 2.ª outorgante, pelo valor de € 1,00. 3.ª O preço de compra da quota foi pago no ato da assinatura do presente contrato dando os 1.ºs outorgantes inteira quitação (…)”, conforme documento ... apresentado com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
23. Encontrava-se registada a favor da Autora (pensamos tratar-se de um lapso, uma vez que o documento ... cujo conteúdo se reproduz, mostra que o registo está em nome de Construções O..., Lda.) uma parcela de terreno destinada a construção, com a área de 340m2, sita no Lugar ..., freguesia ..., concelho ... que confronta a nascente com o prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo ...38 e descrito na Conservatória do Registo Predial no número ...30 da freguesia ..., a norte com o caminho público, a sul com a Rua ... e a Poente com HH e que se encontra inscrito na matriz urbana sob o artigo ...36, descrito na Conservatória do Registo Predial ... no número ...05, conforme documento ... apresentado com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
24. Desde o ano de 2003, está inscrito, na matriz rústica, sob o art. ...26, em nome da sociedade Construções O..., Lda., um prédio sito no lugar ..., freguesia ..., concelho ..., com a área de 0,78000 ha, a confrontar do norte com II, do sul com caminho público, do nascente com JJ e do poente como caminho público, conforme documento ... apresentado com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
25. A Autora decidiu-se a adquirir as quotas dos Réus por estar convencida, a partir da análise dos balancetes que foram facultados ao seu representante pelo gerente EE, que a sociedade Construções O..., Lda., era proprietária dos prédios identificados em 23. e 24.
26. A sociedade Construções O..., Lda., intentou contra KK, LL, MM, NN, ... e OO a ação declarativa que correu termos por este Juízo Central Cível ... sob        o n.º 3335/10...., a pedir o reconhecimento da sua qualidade de proprietária do prédio identificado em 23.
27. Os referidos Réus formularam, em sede de reconvenção, o mesmo pedido.
28. Por sentença proferida no dia 28 de janeiro de 2021, transitada em julgado, foi decidido julgar: a ação improcedente e, consequentemente, absolver os RR. dos pedidos; a reconvenção parcialmente procedente, e, consequentemente, a) condenar-se a A./Reconvinda a reconhecer que a parcela de terreno a que alude na alínea A) dos factos provados faz parte integrante, em toda a sua extensão, da área comum do logradouro e/ou área descoberta do prédio urbano sito na Rua ..., ..., ... Guimarães, e que os Reconvintes são donos e legítimos comproprietários da mesma com os demais proprietários das restantes frações autónomas            do edifício constituído em propriedade horizontal.
29. Nessa sentença foi dado como provado que: “Quando a A. adquiriu o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... no número ...19, a EE e mulher PP, este tinha a área de 800m2 e confrontava do Norte e Nascente com o caminho público, do sul com a Rua ... e do poente com HH. C) Em 30 de setembro de 1992, dele foi desanexada uma parcela de terreno, com a área de 460m2, que passou a constituir o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial no n.º ...92, inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...38, que confronta do norte e nascente com o caminho público, do sul com a Rua ... e do poente com a Autora.”
30. Na fundamentação dessa sentença foi escrito que: “A testemunha BB, construtor civil reformado, foi sócio e gerente da A. até vender as suas quotas há 3 ou 4 anos; disse que o terreno onde foi construído o prédio foi comprado a EE e mulher; a parte sobrante e o barraco ficaram para os moradores; o barraco tinha sido construído pelo Sr. EE e ficou tudo para os moradores; não sabe de destaque nenhum. Esclareceu que quando andavam a construir o prédio passavam pelo limite norte do terreno para trás para o barraco onde tinha o estaleiro, caminho de cerca de 3 metros de largura; a sociedade não tinha bens quando vendeu a sua quota; estava sem atividade há anos. Referiu que tinham deixado uma abertura num prédio que estavam a construir e que dava para aquele terreno; um dos moradores disse-lhes que não podiam fazer aquilo e eles taparam. Confrontado com o doc. ...9, disse que o desconhece; a sociedade acabou a obra e foi-se embora nunca mais quis saber daquilo; as condutas para os esgotos atravessavam o terreno e iam ter a uma fossa e poço sumidouro que ficavam num quintal dum familiar do Sr. EE; pensa que o EE não continuou a ir lá porque não tinha nada para fazer lá”, tudo, conforme documento ...7 apresentado com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
31. No dia 6 de novembro de 2018, a sociedade Construções O..., Lda., tinha dívidas à Autoridade Tributária que, depois de estabelecidos acordos de pagamento, totalizavam € 5 439,62 e € 2 142,00, cf. documentos ... e ... apresentados com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
32. Para além das dívidas atrás referidas, era ainda a sociedade Construções O..., Lda. devedora à Autoridade Tributária da quantia de € 131,80, conforme documentos ...0 a ...2 apresentados com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
33. A sociedade Construções O..., Lda., tinha ainda, perante a Autoridade Tributária, uma coima do montante de € 388,60, conforme documento ...3 apresentado com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
34. Essas dívidas continuaram a vencer-se nos seguintes termos: IMI de 2018, € 95,58€; IMI de 2019, € 191,16; IMI de 2020, € 180,24; IMI de 2021, € 90,12; AIMI de 2017, € 113,92; AIMI de 2018, € 113,92; AIMI de 2019, € 109,24; AIMI de 2020, € 109,24; AIMI de 2021, € 109,24; AIMI de 2022, € 109,24, tudo conforme documentos ... a ...9 apresentados com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
35. Com a citação para a presente ação, os Autores (pensamos existir lapso, pois quer-se referir os réus e não os autores) sentiram preocupação.

Não resultou provado que:
36. O prédio referido no ponto 24. não tem existência física.
37. O prédio identificado no ponto 23. valia € 69 000,00.
38. O prédio identificado no ponto 24. valia € 39 000,00.
39. O facto referido em 25. foi-lhe transmitido pelo Réu previamente à assinatura do escrito do ponto 22.
40. Os Réus sabiam que a Autora estava a adquirir as quotas sociais por estar convencida que a Construções O..., Lda., era proprietária dos identificados prédios.
41. A Autora tem conhecimento que os Réus são pessoas idosas e que estão reformados.

A apelante não questiona a matéria de facto, pelo que é a partir da mesma que teremos que enquadrar juridicamente a questão.

Entende a apelante que o réu tinha a obrigação de informar a autora que os prédios que se encontravam inscritos em nome da sociedade O..., Lda., já não lhe pertenciam, como ele bem sabia, e que estava a transmitir as quotas de uma sociedade que apenas tinha dívidas, sendo que a autora estava convencida que a sociedade tinha património imobiliário que suplantava o valor das dívidas.
Como bem se refere na sentença sob recurso, estamos perante uma ação destinada à efetivação da responsabilidade civil decorrente do alegado dolo do réu nas negociações que levaram à celebração do contrato, o qual teria sido causa da errada representação que a autora fez do património da sociedade da qual adquiriu participações.
Convoca-se, portanto, o disposto no artigo 227.º do Código Civil que estabelece que “Quem negoceia com outrem para conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte”.
Daqui resulta que “o vendedor responde para com o comprador, se lhe ocultou, dolosa ou culposamente, um vício da coisa vendida” – Vaz Serra, Culpa do devedor ou do agente, BMJ n.º 68, citado em Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, vol. I, 4.ª edição revista e atualizada, pág. 216.
Prosseguem os mesmos autores, afirmando que a responsabilidade em que incorre o faltoso obrigá-lo-á, em regra, a indemnizar o interesse contratual negativo (ou de confiança) da outra parte, por modo a colocar esta na situação em que ela se encontraria, se o negócio não se tivesse efetuado.
Conforme dispõe o artigo 253.º, n.º 1 do Código Civil “Entende-se por dolo qualquer sugestão ou artifício que alguém empregue com a intenção ou consciência de induzir ou manter em erro o autor da declaração”.
Tal como sucede no caso de erro sobre os motivos, também no caso de dolo estamos perante um vício da vontade, mas que exige, não só que o declarante esteja em erro, mas que o erro tenha sido provocado ou dissimulado pelo declaratário, recorrendo, para o efeito, a qualquer artifício, sugestão, embuste. Ou seja, enquanto o erro sobre os motivos é o resultado de uma vontade mal esclarecida, a deformação da vontade em caso de dolo provém de uma atuação exterior que impede a livre formação da vontade do declarante.

Ora, no caso dos autos, não ficou provado que o erro tenha sido provocado por dolo dos vendedores.
Quem tomou a iniciativa do negócio foi a apelante que, através do seu representante, fez chegar aos réus a sua vontade de adquirir as quotas que eles detinham na sociedade pelo valor de € 1,00.
Como resulta dos factos provados, os réus, num primeiro momento, disponibilizaram-se para vender as quotas pelo seu valor nominal de € 2.500,00, ao que a apelante terá respondido que não havia negociação possível e que só compraria por € 1,00. Na assembleia geral realizada a 27 de outubro de 2018, o representante da apelante fez ver que a sociedade tinha várias dívidas, pelo que a sua representada apenas adquiriria as quotas dos réus pelo valor de € 1,00, o que veio a suceder, após a aceitação da referida proposta pelos réus. Ou seja, o que esteve em cima da mesa sempre foi, só, a existência das dívidas da sociedade, motivo pelo qual o preço das quotas seria simbólico.
É certo que ficou provado que a apelante se decidiu a adquirir as quotas por estar convencida, a partir da análise dos balancetes que foram facultados ao seu representante pelo gerente EE, que a sociedade era proprietária de dois prédios, não se provando, no entanto, que tal facto lhe foi transmitido pelo réu nem que os réus sabiam que a autora estava a adquirir as quotas por estar convencida que a sociedade era proprietária dos ditos prédios – factos não provados n.ºs 39 e 40.
Acresce que está também provado que o réu, desde 2007, que se manteve afastado da atividade da sociedade e que apenas aceitou vender as suas quotas face à existência das dívidas, não lhe tendo sido conferida qualquer margem negocial.
Deve, até, dizer-se que o facto de o réu ter aceitado ceder as quotas pelo preço simbólico de € 1,00, indicia claramente que estava convicto do conhecimento, por parte do seu interlocutor, da real situação patrimonial da sociedade, pois, caso contrário, teria negociado o valor das mesmas.
Ou seja, o erro em que a apelante incorreu de forma nenhuma foi determinado intencionalmente pelos réus, que não tiveram qualquer intervenção na fixação dos termos do negócio, nem adotaram qualquer comportamento apto a induzir a autora em erro. Como bem se refere na sentença recorrida, atentas as particularidades do processo negocial, supra referidas, não resultou qualquer prova de que os réus se tivessem sequer apercebido do erro em que incorreu a autora, contribuindo, pela omissão de esclarecimentos, para a sua manutenção.
Pelo que se pode concluir que não houve, por parte dos réus, a adoção de qualquer comportamento contrário à boa-fé, sendo de confirmar a sentença nesta parte.

Insurge-se, também, a apelante, contra a sua condenação como litigante de má-fé.
Entendeu o tribunal recorrido condenar a autora como litigante de má-fé nos termos do disposto no artigo 542.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a) e b) do CPC, ou seja, por ter deduzido, com dolo ou negligência grave, pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar e por ter alterado, com o mesmo dolo ou negligência grave, a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa.
Na sentença recorrida considerou-se que a autora não podia deixar de conhecer o modo como decorreu o processo negocial, designadamente a reduzida intervenção dos réus, pelo que deveria ter concluído que, afinal, não houve qualquer engano provocado ou mantido pelo réu e, consequentemente, deveria ter-se abstido de propor a ação. Por outro lado, ainda que a tivesse proposto, devia ter tido o cuidado de calcular a indemnização de acordo com os ditames legais.
Discordamos do entendimento aí sufragado.
Apesar das extensas considerações doutrinais e jurisprudenciais que a sentença encerra (seguindo, aliás, de perto um Acórdão da Relação de Lisboa de 16/12/2021, também ele repleto das mesmas considerações), cremos que a decisão deverá ser a oposta.
Vejamos.

O instituto da litigância de má fé, previsto nos artigos 542º e seguintes do C.P.C., constitui sanção civil para o inadimplemento gravemente culposo ou doloso dos deveres de cooperação e de boa fé (ou probidade) processual (arts. 266º e 266º-A do C.P.C., atuais artigos 7.º e 8.º do CPC) – cfr Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil Vol. I (2ª edição revista e ampliada), pag. 97.
A condenação de uma parte como litigante de má fé consubstancia um verdadeiro juízo de censura sobre a sua atitude processual, com o marcado intuito de moralizar a atividade judiciária.
O instituto em causa acautela um interesse público de respeito pelo processo, pelo tribunal e pela justiça, destinando-se a assegurar a moralidade e eficácia processual, com reforço da soberania dos tribunais, respeito pelas suas decisões e prestígio da justiça – destina-se a combater a específica virtualidade da má fé processual, que transforma a irregularidade processual em erro ou irregularidade judicial – cfr. Pedro de Albuquerque, Responsabilidade Processual Por Litigância de Má Fé, Abuso de Direito e Responsabilidade Civil em Virtude de Actos Praticados No Processo, Almedina, pp. 55 e 56.
Com efeito, a tendência atual é para valorizar os princípios da boa fé e da cooperação processuais para que o processo realize a sua função em prazo razoável, ou seja, usando a terminologia da norma, “para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio” (artigo 7.º, n.º 1, do Código de Processo Civil). Princípios que apontam para a cooperação dos intervenientes no processo no sentido de nele se apurar a verdade sobre a matéria de facto e, com base nela, se obter a adequada decisão de direito de modo a que, sem dilações inúteis, proporcionem condições para que a decisão seja proferida no menor tempo possível.
A condenação como litigante de má fé há-de afirmar a reprovação e censura dos comportamentos da parte que, de forma dolosa ou, pelo menos, gravemente negligente (situações resultantes da inobservância das mais elementares regras de prudência, diligência e sensatez, aconselhadas pelas mais elementares regras do proceder corrente e normal da vida), pretendeu convencer o tribunal de pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar, alterou a versão dos factos relativos ao litígio ou que fez do processo ou meios processuais uso manifestamente reprovável.
A simples proposição de uma ação, que venha a ser julgada sem fundamento, não constitui, de per si, atuação dolosa ou gravemente negligente da parte. O mesmo acontece com a contestação deduzida a pedido que venha a ser julgado procedente.
A afirmação da litigância de má fé depende da análise da situação concreta, devendo o processo fornecer elementos seguros para por ela se concluir, exigindo-se no juízo a realizar uma particular prudência, necessária não só perante o natural conflito de interesses, contrário, normalmente, a uma ponderação objetiva, e por vezes serena, da respetiva intervenção processual, mas também face ao desvalor ético-jurídico em que se traduz a condenação por litigância de má fé - cfr., entre outros, os Ac. do STJ de 14/03/2002 e 15/10/2002, in www.dgsi.pt.
Como se refere no Ac. S.T.J. de 28/05/2009, in www.dgsi.pt, “já no ano de 1975 o Supremo havia decidido, por unanimidade, «a falta de razão com que uma das partes litiga não basta para justificar a má fé, apenas podendo provocar a improcedência de pedido». Assim sendo, a simples circunstância de se dar como provada uma versão factual contrária à alegada pela outra parte, sobretudo quando tal prova se alicerça em depoimentos testemunhais que se confrontam com outros de sentido contrário, não é suficiente para fundar e fundamentar a condenação da parte que viu triunfar a versão da parte contrária, como litigante de má fé. Para se imputar a uma pessoa a qualidade de litigante de má fé, imperioso se torna que se evidencie, com suficiente nitidez, que a mesma tem um comportamento processualmente reprovável, isto é, que com dolo ou negligência grave, deduza pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar ou que altere a verdade dos factos ou omita factos relevantes ou, ainda, que tenha praticado omissão grave do dever de cooperação, nas expressões literais do nº 2 do artº 456º do CPC”.
No acórdão do S.T.J de 11/12/2003, in www.dgsi.pt, argumentou-se dever entender-se que “a garantia de um amplo acesso aos tribunais e do exercício do contraditório, próprias do Estado de Direito, são incompatíveis com interpretações apertadas do art. 456º do CPC, nomeadamente no que respeita às regras das alíneas a) e b) do nº 2”, pelo que não é por “se não ter provado a versão dos factos alegada pela parte e se ter provado a versão inversa, apresentada pela parte contrária, que se justifica, sem mais, a condenação da primeira como litigante de má fé”, pois a verdade revelada no processo não é mais que a verdade do convencimento do juiz, uma verdade judicial e relativa, “não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assente em provas, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico”.
Exige-se, pois, particular prudência e fundada segurança para se afirmar a litigância de má fé, a qual depende sempre de uma apreciação casuística onde deverá caber a natureza dos factos e a forma como a negação ou omissão são feitas – Ac. STJ de 15/10/2002, já citado.
Exige-se para a condenação como litigante de má-fé que se esteja perante uma situação donde não possam surgir dúvidas sobre a atuação dolosa ou gravemente negligente da parte

Ora, da análise do comportamento processual da autora não pode concluir-se pela sua litigância de má fé.
É certo que a autora não logrou provar o engano a que teria sido sujeita por parte dos réus (veja-se que a autora alega mais do que uma ação, uma omissão dos réus que não a teriam alertado para o facto de a sociedade já não ser proprietária dos imóveis que foram determinantes para a sua vontade de celebrar o contrato), mas provou que se decidiu a adquirir as quotas por estar convencida de que a sociedade era proprietária dos prédios em causa e provou, ainda, que o réu, pouco tempo depois prestou depoimento como testemunha num processo em que referiu que um dos imóveis não era da sociedade. Entende a autora que, nas negociações existentes, o réu estaria obrigado a alertá-la para o facto de os imóveis não serem propriedade da sociedade. Já vimos que a pequena intervenção do réu se limitou a aceitar o valor proposto para o negócio, sendo até normal considerar que o réu, face ao valor em causa, estaria convencido que a compradora estava a par da situação patrimonial da sociedade e que desconhecia a motivação da autora para efetuar o negócio.
Isto foi o que se provou, mas daqui não decorre que a autora tenha litigado com má-fé, no sentido supra definido, ou seja, inobservando as mais elementares regras de prudência, diligência e sensatez, de forma a ser censurável ou reprovável o seu comportamento.
Tal não decorre, também, do facto de ter peticionado a indemnização que peticionou, pois se é certo que apenas pagou € 1,00 pelas quotas, a verdade é que a sociedade tinha muitas dívidas e, caso o negócio incluísse os imóveis, a sua situação patrimonial seria completamente diversa (concorde-se, ou não, com a forma de cálculo utilizada para se chegar à indemnização pretendida).
Não podemos, aliás, esquecer-nos, como já supra salientámos, que a verdade revelada no processo não é mais que uma verdade judicial e relativa, “não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assente em provas, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico. Por outro lado, a ousadia de uma construção jurídica julgada manifestamente errada não revela, por si só, que o seu autor a apresentou como simples cortina de fumo da inanidade da sua posição processual, de autor ou réu.” – Acórdão do STJ de 11/12/2003, processo n.º 03B3893, in www.dgsi.pt.
Já vimos, assim, que tal não basta para que se possa concluir pela litigância de má fé, no sentido de uma conduta desrespeitosa perante o tribunal ou perante a parte contrária, não derivando do seu comportamento uma vontade consciente e reprovável com vista a impedir ou entorpecer a ação da justiça.

Do que fica dito resulta a parcial procedência do recurso da apelante, com a necessária revogação da sentença recorrida, no que toca à condenação desta como litigante de má fé.

III. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se julgar parcialmente procedente a apelação, revogando-se a sentença recorrida apenas no que concerne à condenação da autora como litigante de má-fé e confirmando-se quanto ao mais.
Custas por apelante e apelados, na proporção de 2/3 e 1/3, respetivamente.
***
Guimarães, 20 de abril de 2023

Ana Cristina Duarte
Alexandra Rolim Mendes
Maria dos Anjos Melo Nogueira