Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
801/21.6T8FAF.G1
Relator: RAQUEL BAPTISTA TAVARES
Descritores: CONTRATO DE SEGURO RISCOS MÚLTIPLOS HABITAÇÃO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS
INTERPRETAÇÃO
TEMPESTADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Para aferição do conteúdo do contrato importa atender ao objeto do seguro e aos riscos cobertos na apólice, mas também às estipulações negociais que visam delimitar ou excluir certo tipo de riscos, passando o âmbito deste tipo contratual pela definição das garantias, dos riscos cobertos e dos riscos excluídos
II - O sentido das cláusulas do contrato de seguro é determinado em função de um aderente (tomador de seguro) normal colocado na posição do aderente real, sendo que, em caso de dúvida sobre o sentido da declaração, prevalecerá o sentido mais favorável ao aderente.
III - As expressões “temporal” e “tempestade”, num sentido vulgar ou corrente devem ser entendidas como significando vento anormais, ou que fogem dos cânones da habitualidade, normalmente acompanhados de chuva intensa.
IV - Enquadra-se na cobertura “Tempestade” o sinistro que ocorreu de madrugada na sequência de ventos e chuvas fortes, tendo ainda ocorrido ventos muito fortes na tarde anterior, e que provocaram o levantamento dos cumes do telhado e telhas da casa do Autor e a entrada de água no seu interior, danificando tetos e paredes.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I. Relatório

A. L., casado, residente na Rua ..., n.º …, freguesia de ..., do concelho de Fafe intentou a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra X – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., com sede na Rua …, …, Porto, pedindo que seja a Ré condenada:

a) a pagar ao Autor a quantia de €4.944,60, acrescida dos juros à taxa legal de 4% ao ano contados desde a citação até efetivo e integral pagamento;
b) a pagar ao Autor, a título de danos não patrimoniais, a quantia de €2.500,00, acrescida dos juros de mora à taxa legal desde a data da citação até efetivo pagamento.
Alega para tanto e em síntese que é “dono e legítimo possuidor” de um prédio urbano, casa de habitação, sito na Rua ..., n.º .., freguesia de ..., do concelho de Fafe.
Que celebrou com a Ré um contrato de seguro do ramo riscos múltiplos habitação titulado pela apólice n.º .........32, tendo por objeto garantir o pagamento das indemnizações devidas por responsabilidade civil resultante de acidentes ocorridos sobre a referida casa de habitação, em particular na cobertura de tempestades, pagando o respetivo prémio.
Mais alega que em meados de janeiro de 2021, a partir, sobretudo, do dia 20 deste mês, devido às fortes chuvas e ventos que se fizeram sentir, o Autor verificou que aquela tempestade levantou os cumes do telhado e telhas da casa, alguma das quais até foram projetadas para o solo.
Uma vez que chovia torrencialmente e não havia qualquer possibilidade de proteção, a água da chuva entrou e infiltrou-se nas divisões da casa, designadamente quartos, sala, cozinha, casas de banho, despensa, inundando os tetos, paredes e chão.
Alega ainda que para reparação dos danos provocados na casa foi necessário proceder a obras urgentes, no valor de €2.770, mais IVA, tendo ainda o Autor de despender a quantia de €1.250 para reparação e pintura das paredes e tetos no interior da habitação, quantia à qual acresce IVA à taxa legal em vigor.
Mais diz ter ficado desgostoso e triste com os danos no imóvel, para além das obras de reparação terem provocado transtornos, chatices e incómodos ao Autor e seu agregado familiar, o que o leva a peticionar a quantia de €2.500 a título de danos não patrimoniais.
Regularmente citada a Ré veio contestar confirmando a celebração do contrato de seguro, mas refutando a versão dos factos do Autor.
Afirma que, na sequência da participação do sinistro, enviou ao local um perito, que verificou os danos no telhado, teto e paredes das divisões da moradia, vindo a concluir, terminada a peritagem, que o sinistro não tinha enquadramento nas garantias contratuais acordadas.
Reproduz a definição de “tempestades” e “inundações” para efeitos do contrato de seguro celebrado com o Autor, sustentando que este não fez prova dos pressupostos das aludidas coberturas, porquanto à data e no local dos factos verificou-se a ocorrência de vento moderado (15 a 35km/h) do quadrante oeste, “tornando-se fraco a moderado (<25km/h) a partir da madrugada” e não houve registo, que tivesse ocorrido precipitação atmosférica com intensidade superior a 10 milímetros em 10 minutos.
Impugna ainda os valores pedidos pelo Autor, dizendo que este não junta qualquer fatura da alegada reparação.
Quanto aos danos não patrimoniais, contrapõe que o seguro não prevê qualquer compensação a esse título e que, de todo o modo, o Autor não teria direito a tal valor, que entende exagerado e desproporcionado.
O Autor veio exercer o contraditório quanto à matéria de exceção invocada pela Ré, afiançando que esta nunca lhe comunicou os pressupostos descritos no artigo 16.º e 17.º da contestação, nem previamente, nem posteriormente à celebração do contrato de seguro.
No seu entender, sendo um consumidor, devem ser consideradas excluídas da relação material controvertida, por omissão de comunicação e informação, as normas constantes das condições especiais da apólice, na parte referente a Tempestades e Inundações.
Foi dispensada a realização de audiência prévia e foi proferido despacho saneador, o qual, nos termos do artigo 597.º do Código de Processo Civil (de ora em diante designado apenas por CPC), entendeu desnecessária a fixação dos temas da prova e objeto do litígio, tendo igualmente sido designada data para audiência final.

Veio a efetivar-se a audiência de discussão e julgamento com a prolação de sentença nos seguintes termos, no que concerne à parte dispositiva:

“Nestes termos e pelo exposto, decide-se julgar parcialmente procedente, por parcialmente provada, a presente ação e em consequência:
a) Condena-se a Ré X – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., a indemnizar o Autor A. L. pelos danos referidos nos pontos 7 a 10, 14 e 15 da factualidade provada, cujo quantitativo deverá ser apurado em incidente de liquidação, até ao limite do valor peticionado na presente ação, de €4.944,60 (artigos 358.º a 361.º e 609.º, n.º 2, do CPC), acrescido de juros, à taxa legal em vigor para as operações civis, contados desde a data da liquidação até efetivo e integral pagamento;
b) Absolve-se a Ré do demais peticionado pelo A.
Custas na proporção do respetivo decaimento, que se fixa em 65% para a Ré e 35% para o A. (artigo 527.º, n.º 1 e 2 do CPC);
Registe e notifique.”

Inconformada, apelou a Ré da sentença concluindo as suas alegações da seguinte forma:

“1. O Tribunal a quo considerou que se encontravam preenchidos os pressupostos para a responsabilização da recorrente no quadro das coberturas contratuais “tempestades” e “inundações”, tendo proferido Sentença que julgou a ação parcialmente procedente nos seguintes termos:
2. O Tribunal a quo fez na Sentença uma incorreta interpretação e aplicação das normas legais aplicáveis e incorreu em erro de julgamento quanto à apreciação e valoração da prova produzida e carreada, o que, se assim não fosse, imporia a prolação de sentença que julgasse a ação totalmente improcedente, pelo que a Sentença não se poderá manter quer ao nível da decisão proferida acerca da matéria de facto quer ao nível da decisão proferida acerca da matéria de Direito.

DA DECISÃO ACERCA DA MATÉRIA DE DIREITO

3. Não obstante a pronúncia de Direito (exclusão e nulidade) do Tribunal a quo quanto ao teor das cláusulas do Contrato definidoras de tempestades” e “inundações” para estes efeitos, entende a recorrente que, in casu, a factualidade verificada não permite, de todo o modo, o seu enquadramento no Contrato, ao abrigo destas coberturas.
4. “Fortes chuvas e ventos” (cfr. art. 4º da Petição Inicial) não são reconduzem e/ou são inequivocamente o mesmo que tempestades e inundações, sendo que um declaratário normal - como sucede com o recorrido – não faz univocamente corresponder “fortes chuvas e ventos” a tempestades e inundações.
5. Leigamente, as tempestades e inundações são eventos meteorológicos adversos, que podendo também envolver chuva e vento, são anómalos, súbitos, não previstos, e mais intensos e violentos.
6. É facto notório que o IPMA e as Autoridades de Proteção Civil distinguem claramente entre uma mera situação de “fortes ventos e chuva” de tempestades e inundações, distinção esta que é a que perpassa para a comunicação social e para a população em geral.
7. Quando se está perante uma tempestade, estas entidades autonomizam e empregam efetivamente o termo tempestade junto da população e comunidade civil e inclusive emitem avisos e eventuais alertas.
8. Neste caso, não sucedeu nada disso, não tendo o IPMA atestado a verificação de qualquer tempestade nem constatado nenhuma situação de risco e emitido quaisquer avisos e/ou alertas para o local e tempo em questão.
9. Situações de “fortes chuvas e ventos”, ainda que com intensidade variável e em certos momentos mais forte, verificam-se esporadicamente e são normais no Inverno e extrapolam, claro está, situações de tempestades e inundações, sendo menos intensas.
10. A consideração de “fortes ventos e chuvas” como tempestades e inundações – se, de acordo com a Sentença, não pode ser acervada no Contrato - tem de, em todo o caso, ser apoiada em critérios objetivos e técnicos.
11. De outro modo, a verificação de “tempestades” passa a ficar reduzida a considerações e perceções relativas e subjetivas e conformes a opiniões – o que não pode ser admissível de um ponto de vista de certeza e segurança jurídicas.
12. Neste caso, não se pode considerar ter-se estado em face de uma tempestade pelo simples facto de a palavra “tempestade” ter sido utilizada no discurso dos depoimentos das testemunhas arroladas pelo recorrido ou por os mesmos assim terem classificados o vento e chuva – depoimentos esses que melhor se infra apreciarão criticamente.
13. Conforme, aliás, refere a Sentença recorrida (cfr. pág. 17), basta a mera consulta do site do IPMA para verificar a classificação técnica da intensidade do vento e chuva.
14. As “fortes chuvas e ventos” verificadas in casu ficam aquém da intensidade dos ventos e chuvas constatados em tempestades e inundações (e isto atendendo ao território Português), não sendo situações adversas.
15. Isto mesmo foi confirmado pelo depoimento da testemunha J. M., professor universitário e Presidente do Conselho Diretivo do …, com conhecimento na matéria, que auxiliou o Tribunal a interpretar a certidão do IPMA constante dos autos (Ref.ª citius n.º 12881433) e confirmou o seu teor (indicando-se e transcrevendo-se acima nas alegações as passagens da gravação).
16. O depoimento da testemunha J. M. foi pautado por total imparcialidade, assertividade, segurança e conhecimento científico, merecendo, pois, total e inteira credibilidade para efeitos de integral valoração probatória positiva do mesmo.
17. Atente-se, por outro lado, que na factualidade do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26/1/2021, Proc. n.º 296/19.4YRPRT.S1, Relatora Maria Clara Sottomayor, referenciado pela Sentença recorrida, estavam em causa ventos na ordem dos 83,2 km/h – portanto, estavam aí em causa ventos com intensidade muito superior à verificada no presente caso.
18. O facto de o vento e chuva ocorridos poderem ter levantado algumas telhas do telhado do recorrido (e, consequentemente, as arrastado e partido) não permite caraterizar o vento e chuva ocorridos como sendo uma tempestade e/ou inundação.
19. Isto porque tal tem que ver com outros fatores, como o estado de conservação do telhado, a impermeabilização, deficiências e/ou insuficiências construtivas, sendo que resultou da prova produzida que a casa do recorrido era antiga e composta por telhas muito antigas (indicando-se e transcrevendo-se acima nas alegações as passagens das gravações pertinentes).
20. As testemunhas ouvidas arroladas pelo recorrido prestaram, a respeito da questão de obras de renovação, depoimentos dissonantes e contraditórios (indicando-se e transcrevendo-se acima nas alegações as passagens das gravações pertinentes), não podendo a recorrente deixar de criticar o relevo probatório atribuído na Sentença aos depoimentos destas testemunhas para efeitos de fundamentação da procedência na ação.
21. Os depoimentos destas testemunhas não foram, conforme supra se demonstrou, imparciais e congruentes e foram vagos, redundantes, evasivos, pouco explicativos ou descritivos e manifestamente exacerbados e exagerados a favor do recorrido, maxime quanto aos danos – o que se constata mormente em confronto com as fotografias constantes dos autos sob as Ref.ª citius 178647495 e 178647511, através das quais se conclui que, ao contrário do referido, os danos foram bastante inferiores ao levado a crer e isto pese embora o facto de alegadamente terem presenciados os danos e vivenciado os “fortes ventos e chuvas” alegados.
22. Não se duvida do rigor e isenção dos meios e métodos de recolha e obtenção dos resultados dos dados meteorológicos obtidos pelo IPMA e sendo que também a testemunha J. M. asseverou que ainda que não seja possível excluir com 100% de certeza a existência de ventos e chuvas mais intensos, tal é extremamente improvável e mais assegurou que a intensidade do vento aponta para ventos “fortes”, mas não “tempestuosos” (cfr. pág.10 da Sentença).
23. Assim sendo, tendo em conta a factualidade provada in casu, concretamente a (a não anormal) intensidade do vento e chuva verificada (cfr. certidão do IPMA com a Ref.ª citius n.º 12881433 e o depoimento da testemunha J. M.) - não se pode decidir ter a mesma enquadramento nas coberturas de tempestade e inundações do Contrato.
24. A cobertura do Contrato de tempestades nunca se destinou nem se destina a situações como a verificada, mas situações de vento e chuva adversas, mais intensas e gravosas.
25. De outra forma, estar-se-á a permitir eventuais e frequentes acionamentos descriteriosos e materialmente infundados das coberturas tempestades e inundações do Contrato, sobretudo nas estações de Outono e Inverno.

SEM CONCEDER, DA DECISÃO ACERCA DA MATÉRIA DE FACTO

26. Sem prejuízo do facto de, na Sentença, não ter sido julgado como provado que a água da chuva se tenha infiltrado na despensa da casa (facto enunciado como alínea b) dos factos não julgados); a recorrente discorda da decisão sobre matéria de facto proferida quanto aos acima referenciados factos 8, 9 e 10 julgados como provados.
27. Isto porque, no entender da recorrente, não resultou provada a verificação e causalidade de danos por água nesses termos.
28. Relembrem-se as fotografias constantes dos autos sob as Ref.ª citius 178647495 e 178647511, das quais resulta que o telhado não está de tal modo destapado.
29. Por outro lado, resguardando-nos nas regras da lógica e experiência, não é crível que, pelos mencionados danos visíveis naquelas fotografias que resultaram do telhado, a água da chuva se tenha infiltrado e causados os danos alegados em todo o interior da casa.
30. Além disso, não é verosímil que tenha ocasionado que imediata e automaticamente que os tetos, paredes e chão ficassem manchados, as pinturas enrugadas e estragadas e se tornasse necessária reparação de todo o interior (e ressalve-se que o recorrido realizou obras no telhado prontamente, cfr. facto 14 julgado como provado) (indicando-se e transcrevendo-se acima nas alegações as passagens das gravações pertinentes).
31. O recorrido não apresentou qualquer fotografia do interior da casa, sobretudo posteriormente, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 342º do CC.
32. Não foi feita, por conseguinte, prova, para além dos depoimentos das testemunhas ouvidas arroladas pelo recorrido dos alegados danos por água consequentes no interior da casa – já acima criticados quanto à sua isenção e credibilidade e que, por este motivo, não devem ser atendidos.
33. Isto pese embora ser possível produzir tal prova, sendo os alegados danos por água passíveis de serem provados por documento, nomeadamente mediante simples fotografia(s) - à semelhança da fotografia que o recorrido juntou quanto aos danos no telhado (bastava às paredes e teto, não sendo necessária a exposição de todo o interior).
34. O ónus da prova da verificação, causalidade e extensão dos danos por água, enquanto um dos factos constitutivos do seu arrogado direito, cabe ao recorrido.
35. Uma vez que tal prova não resultou da instrução, é forçoso considerarem-se como não provados os alegados danos por água no interior da casa e, por consequência, os factos julgados 8, 9 e 10 devem ter-se como não provados.
36. Sem prescindir – o que não se concede e apenas se equaciona à cautela – nenhum dos depoimentos das testemunhas refere danos no chão necessários de reparação (indicando-se e transcrevendo-se acima nas alegações as passagens das gravações pertinentes).
37. Assim, da redação do facto 8 julgado como provado, deve retirar-se a menção ao chão.
38. Por outro lado, conforme consta do facto b) julgado como não provado, não se provou que a água pluvial tenha entrado na despensa da casa.
39. Deste modo, deve-se retificar a redação do facto 10 julgado como provado na parte em que o mesmo refere “todo o interior da casa”, concretizando-se que não está incluída a despensa da casa, em conformidade, aliás, com o que referiu a testemunha A. F. (indicando-se e transcrevendo-se acima nas alegações as passagens das gravações pertinentes).
40. Por tudo o quanto exposto, a Sentença recorrida violou, deste modo, as normas e princípios jurídicos aplicáveis, nomeadamente o disposto nos arts. 236º, 341º, 342º, do CC e arts. 414º, 607º, nº 5 do CPC.”
Pugna a Recorrente pela procedência do recurso e pela revogação da sentença recorrida.
O Autor contra-alegou pugnando pela improcedência do recurso e pela confirmação da sentença recorrida.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (artigo 639º do CPC).

As questões a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pelo Recorrente, são as seguintes:
1 - Determinar se houve erro no julgamento quanto aos pontos 8), 9) e 10) dos factos provados;
2 - Saber se houve erro na subsunção jurídica dos factos.
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III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

3.1. Factos considerados provados em Primeira Instância:

1. O A. celebrou com a Ré um “contrato de seguro Multirriscos Habitação”, ao qual corresponde a apólice n.º .........32, com início em 18/10/2020, válido à data dos factos.
2. O local de risco seguro pelo mesmo é a moradia sita na Rua ..., n.º .., …, Fafe.
3. Tendo o A. subscrito, designadamente, as coberturas de “inundações” e “tempestades”.
4. As quais abrangiam o edifício mencionado anteriormente e o respetivo recheio.
5. De harmonia com as “condições especiais” associadas ao “contrato” referido em 1., “A cobertura de tempestades integra os riscos a seguir definidos: a) Tufões, ciclones, tornados e toda a ação direta de ventos fortes, bem como o choque de objetos arremessados ou projetados pelos mesmos desde que a sua violência destrua ou danifique instalações, objetos ou árvores sãs num raio de 5km, tendo como centro a localização dos bens seguros, devidamente identificados nas Condições Particulares (em caso de dúvida, poderá o Segurado fazer prova, mediante documento da estação meteorológica mais próxima, que, no momento do sinistro, os ventos atingiram intensidade excecional – velocidade superior a 100 km/hora); b) Alagamento pela queda de chuva, neve ou granizo, desde que se verifiquem conjuntamente as seguintes condições: - que estes agentes atmosféricos penetrem no interior do edifício seguro em consequência de danos causados pelos riscos referidos na alínea anterior; - que os danos se verifiquem nas 72 horas seguintes ao momento em que ocorreu a danificação ou a destruição parcial do edifício.”
6. Diz-se ainda nas mesmas, na parte relativa à cobertura de “inundações”, que “A cobertura de inundações cobre os danos provocados pelos riscos a seguir definidos: a. tromba-d’água ou queda de chuvas torrenciais, isto é, quando a «precipitação atmosférica for de intensidade superior a 10 milímetro em 10 minutos, no pluviómetro»; b. rebentamento de adutores, coletores, drenos, diques ou barragens; c. enxurrada ou transbordamento do leito de cursos de águas naturais ou artificiais”.
7. Na madrugada de 23 para 24 de janeiro de 2021, as chuvas e ventos que se fizeram sentir no sobredito local levantaram os cumes do telhado e telhas da casa, algumas das quais foram projetadas para o solo e se partiram.
8. Uma vez que chovia e não havia qualquer possibilidade de proteção, a água da chuva entrou e infiltrou-se nas divisões da casa, designadamente quartos, sala, cozinha, casas de banho, inundando os tetos, paredes e chão.
9. Que ficaram molhados, manchados, as pinturas enrugadas e estragadas.
10. Pelo que é necessário proceder à reparação não só do telhado, como também de todo o interior da casa.
11. O A. participou a ocorrência supra descrita à Ré.
12. A Ré enviou um perito para proceder à averiguação do sinistro participado e avaliação dos respetivos danos, tendo verificado os danos no telhado, teto e paredes das divisões da moradia.
13. Na sequência da participação do sinistro e da peritagem efetuada, a Ré remeteu ao A. carta datada de 8/2/2021, na qual diz que “após a necessária e cuidada apreciação, fundamentalmente com base no relatório de peritagem, constatámos que os danos ocorridos e verificados não têm enquadramento nas garantias da apólice, nem nas coberturas de Tempestades, Inundações ou Danos por Água, porque resultam de infiltrações de águas pluviais devido à deficiente impermeabilização por falta de manutenção do imóvel, consequentemente sem carácter súbito e imprevisto. Neste contexto vamos proceder ao encerramento do processo sem pagamento de indemnização.”
14. Para a reparação dos danos provocados no exterior da casa, foi necessário proceder a obras de carácter urgente, designadamente retirar as telhas danificadas e colocar novas, bem como rematar os cumes e as beiradas, tendo o A. despendido valor não concretamente apurado.
15. Por sua vez, para a reparação e pintura das paredes e tetos no interior da habitação, o A. terá ainda de despender quantia não concretamente apurada.
16. Até ao momento, a R. ainda não indemnizou o A.
17. O A. ficou desgostoso e triste com os danos que o imóvel sofreu e com a conduta da R., de não os eliminar.
18. No local dos factos, no dia 23 de janeiro de 2021, o vento soprou fraco (< 15 Km/h)) do quadrante oeste, tornando-se moderado (15 a 35 Km/h) a partir da manhã, tendo a intensidade máxima instantânea do vento atingido valores na ordem dos 60 Km/h na tarde.
19. No mesmo dia e local, a quantidade de precipitação atingiu valores da ordem dos 30 a 35 milímetros e a intensidade máxima de precipitação atingiu um valor de 2 a 3 milímetros em 10 minutos, na tarde.
20. No local dos factos, no dia 24 de janeiro de 2021, o vento soprou moderado (15 a 35 Km/h) do quadrante oeste, tornando-se fraco a moderado (< 25 Km/h)) a partir da madrugada e a intensidade máxima instantânea do vento foi da ordem dos 50 Km/h na madrugada.
21. No mesmo dia e local, a quantidade de precipitação atingiu valores da ordem dos 5 milímetros e a intensidade máxima de precipitação atingiu um valor não superior a 1 milímetro em 10 minutos, no final do dia.
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3.2. Factos considerados não provados em Primeira Instância:

a) Tenha sido comunicado ao A. o teor das “condições especiais” associadas ao “contrato”, nomeadamente o referido em 5. e 6.
b) A água da chuva se tinha infiltrado na despensa.
c) A casa tinha sido objeto de obras de reparação há cerca de cinco anos, encontrando-se em bom estado de conservação e segurança.
d) O A. tenha, por diversas vezes, instado a Ré a efetuar o pagamento da indemnização.
e) A não assunção pela Ré da responsabilidade pela reparação dos danos causados tenha impedido a normal utilização e ocupação da habitação por parte do A. e do seu agregado familiar.
f) A conduta da R. determinou que o A. perdesse o gosto e afeição pela casa que muito lhe custou a adquirir.
g) O valor referido em 14. foi de € 2.770, acrescido de IVA à taxa legal em vigor.
h) O pagamento do preço referido em 14. exigiu ao A. um custo e esforço elevado.
i) A quantia referida em 15. seja de € 1.250, a que acresce IVA à taxa legal em vigor.
j) Não tendo o A. possibilidades financeiras de proceder à reparação dos danos no interior da habitação.
k) As infiltrações de água e humidade nos tetos e paredes deixaram o interior da habitação em estado deplorável, com cheiro a mofo, o que tornava desagradável e insuportável viver naquela casa, causando desconforto e irritação ao A. e à sua família.
l) As obras de reparação do telhado causaram também ao A. e seu agregado familiar transtornos, chatices e incómodos.
m) Perturbando a utilização da casa por parte do A. para o fim a que se destina (habitação).
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3.2. Da modificabilidade da decisão de facto

Nos termos do disposto no artigo 662º n.º 1 do CPC “[A] Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
E a impugnação da decisão sobre a matéria de facto é expressamente admitida pelo artigo 640º, n.º 1 do CPC, segundo o qual o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os pontos de facto que considera incorretamente julgados, os concretos meios de prova, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre essas questões de facto.
O legislador impõe por isso ao recorrente que impugna a decisão relativa à matéria de facto tal ónus de especificar, sob pena de rejeição do recurso.
No caso concreto, a Ré/Recorrente cumpriu satisfatoriamente o ónus de impugnação da matéria de facto, indicando os pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados, o sentido da decisão que em seu entender se impõe e os elementos de prova em que fundamentam o seu dissenso.
Sustenta a Recorrente que houve erro no julgamento da matéria de facto quanto aos pontos 8), 9) e 10) dos factos julgados provados.

Os factos em causa têm a seguinte redação:
“8. Uma vez que chovia e não havia qualquer possibilidade de proteção, a água da chuva entrou e infiltrou-se nas divisões da casa, designadamente quartos, sala, cozinha, casas de banho, inundando os tetos, paredes e chão.
9. Que ficaram molhados, manchados, as pinturas enrugadas e estragadas.
10. Pelo que é necessário proceder à reparação não só do telhado, como também de todo o interior da casa”.
Analisemos então os motivos de discordância da Recorrente que sustenta não ter resultado provada a verificação e causalidade de danos de água, invocando as fotografias juntas aos autos das quais resulta que o telhado não está de tal modo destapado, não sendo crível pelas regras da experiencia que a chuva se tenha infiltrado e causado os danos alegados no interior da casa, e que tenha causado que imediata e automaticamente ao tetos, paredes e chão ficassem manchados, as pinturas enrugadas e estragadas.
Invoca a Recorrente os depoimentos das testemunhas M. L. e A. F. e J. A. e pretende que se considerem como não provados os alegados danos por água no interior da casa.
Sustenta ainda que, a não se entender assim, o depoimento das testemunhas M. L. e A. F. não refere danos no chão necessários de reparação pelo que sempre se deverá retirar do ponto 8) a menção ao chão e, considerando que não se provou que a água pluvial tenha entrado na despensa da casa, deve retificar-se a redação do ponto 10) concretizando-se que não está incluída a despensa.
Vejamos.

O tribunal a quo na motivação da sentença recorrida refere, na parte que aqui releva, o seguinte:
“Quanto ao sinistro ocorrido, todas as testemunhas foram-no situando temporalmente na madrugada de 23 para 24 de janeiro de 2021 (neste sentido, também a participação de sinistro junta com a p.i., que chega a apontar as 2h da madrugada).
De forma coincidente, as testemunhas J. A. (vizinho do A.), P. L. (sobrinho e vizinho do A.), M. L. e A. F. (estes dois, um casal de amigos do A. que pernoitava em casa deste aquando do sucedido) foram referindo que no momento dos factos, se fazia sentir um temporal, com chuva e vento fortes, que fazia estremecer as janelas e que provocou igualmente estragos à testemunha J. A. (entortou as caleiras de sua casa), relatando as testemunhas que constataram o levantamento de telhas no cume do telhado de casa do A., algumas das quais se mostravam partidas no chão, tendo o A., na manhã seguinte e na companhia da testemunha P. L., tentado tapar o buraco deixado pelas mesmas com recurso a um plástico.
Mais verificaram as testemunhas os danos existentes no interior da habitação, verbalizando as testemunhas P. L., M. L. e A. F. que a água entrou e danificou as paredes e tetos dos quartos, sala, cozinha e casas de banho, carecendo tudo de nova pintura.
Neste ponto, também o “relatório de regularização” junto como doc. 3 reconhece a existência de danos, pelo menos no interior da residência (“De acordo com os elementos constantes em processo, após visita da nossa unidade de reparação, foram constatados danos por água em tetos de diversos compartimentos e algumas paredes que terão de ser lavadas e pintadas”) e as fotografias juntas já no decurso da audiência documentam a queda e quebra de telhas do telhado”.
Dos depoimentos prestados pelas testemunhas referidas pela Recorrente, a cuja audição integral procedemos e que demonstraram conhecimento direto dos factos, resulta de forma inequívoca e coincidente a ocorrência de um temporal, com chuva e vento fortes, que determinou o levantamento de telhas no cume do telhado de casa do Autor que ficaram partidas, algumas das quais no chão.
Tal facto é também evidenciado nas fotografias juntas aos autos no decurso da audiência.
A testemunha J. A., vizinho do Autor que reside na casa em frente, assim o relatou, esclarecendo que o temporal também provocou estragos na sua casa (os caleiros dobraram) e confirmando ter visto o telhado sem as telhas e o Autor com o sobrinho a colocar plásticos.
A testemunha P. L. é o sobrinho que ajudou o Autor a colocar os plásticos; as testemunhas M. L. e A. F., casal amigo do Autor, encontravam-se na casa a passar o fim de semana (o que fazem por diversas vezes, há já vários anos) e esclareceram que se encontravam a dormir quando acordaram com o barulho, confirmando o levantamento de telhas no cume do telhado de casa do Autor e a entrada de água para o interior da casa.
O facto de o telhado não ter levantado na sua totalidade não é por si só motivo para não se considerar que a água tenha entrado no interior da casa e se tenha espalhado por diversas divisões, fazendo com que as paredes e tetos ficassem manchados e estragados, o que também não é contrariado pelas regras da experiencia comum.
Aliás, do Relatório de Regularização junto pela Recorrente consta que após visita foram constatados danos por água em tetos de diversos compartimentos e algumas paredes que terão de ser lavadas e pintadas, sem que aí seja questionada qualquer causalidade desses danos com o sinistro, mas apenas o não enquadramento no contrato de seguro.
Do referido relatório consta ainda como data de requisição o dia 27/01/2021, e da peritagem o dia 01/02/2021.
Assim, da análise conjugada da prova documental com as declarações prestadas pelas testemunhas decorre não resultar fundamento para julgar não provada a matéria de facto dos pontos 8), 9) e 10).
Entendemos, contudo, que já assiste razão à Recorrente quando sustenta que deve ser alterada a redação do ponto 8) dos factos provados para que deixe de constar a menção ao chão e a redação do ponto 10) para que se concretize que não está em causa todo o interior da casa por não estar incluída a despensa, uma vez que não se provou que a água pluvial aí tenha entrado.
De facto, ouvidos os depoimentos das testemunhas P. L., M. L. e A. F. concluímos que as mesmas nada referem quanto ao chão, mas apenas os tetos e as paredes.
Neste sentido, aliás, se pronunciou também o tribunal a quo na motivação onde refere expressamente que “verificaram as testemunhas os danos existentes no interior da habitação, verbalizando as testemunhas P. L., M. L. e A. F. que a água entrou e danificou as paredes e tetos dos quartos, sala, cozinha e casas de banho, carecendo tudo de nova pintura”, tendo ainda julgado não provado que a água se tenha infiltrado na despensa (ponto b).
Do Relatório de Regularização junto pela Recorrente, conforme já referimos, constam também danos por água em tetos e paredes.
Acresce que o próprio Autor na petição inicial, ainda que no artigo 6º faça menção ao chão, refere apenas no artigo 17º, quanto ao valor necessário para a reparação dos danos, “a reparação das paredes e tetos no interior da habitação”.

Daqui decorre, que deve efetivamente alterar-se a redação dos pontos 8) e 10) para que fiquem em conformidade com a prova produzida nos autos:

“8. Uma vez que chovia e não havia qualquer possibilidade de proteção, a água da chuva entrou e infiltrou-se nas divisões da casa, designadamente quartos, sala, cozinha, casas de banho, inundando os tetos e paredes.
10. Pelo que é necessário proceder à reparação não só do telhado, como também dos tetos e paredes das divisões referidas em 8.”.
***
3.4. Reapreciação da decisão de mérito da ação

Tendo procedido, em parte, a pretensão da Recorrente quanto à reapreciação da matéria de facto, importa agora apreciar se deve manter-se a decisão jurídica da causa, apreciando os demais fundamentos invocados pela Recorrente.
Na decisão recorrida o tribunal a quo condenou a Ré a X – Companhia de Seguros, S.A., a indemnizar o Autor pelos danos referidos nos pontos 7 a 10, 14 e 15 da factualidade provada, cujo quantitativo deverá ser apurado em incidente de liquidação, até ao limite do valor peticionado na presente ação, de €4.944,60 (artigos 358.º a 361.º e 609.º, n.º 2, do CPC), acrescido de juros, à taxa legal em vigor para as operações civis, contados desde a data da liquidação até efetivo e integral pagamento, e absolvendo a Ré do demais peticionado pelo Autor.
Entendeu ainda o tribunal a quo que devem considerar-se excluídas do contrato, por força do disposto no artigo 8º, alínea a) do DL 446/85, de 25/10, as cláusulas das Condições Especiais a que se alude nos factos 5 e 6, quanto à cobertura de “Tempestades” e “Inundações”, uma vez que a Ré, onerada com a prova da efetiva comunicação, não provou, sequer, que a mesma tenha ocorrido e, muito menos, que tenha ocorrido com o grau de exigência que lhe é imposto pelo artigo 5º daquele diploma legal.
Entendeu ainda que, mesmo que assim não fosse, sempre haveria que apontar dois aspetos às mencionadas cláusulas: por um lado, a interpretação correta a dar à cláusula, que usa a palavra “poderá” em vez de “deverá”, é a de que se trata de um “elemento a considerar em caso de dúvida, e que deverá, sempre, ser conjugado com as demais circunstâncias e caraterísticas do fenómeno meteorológico lesivo do bem jurídico segurado”; por outro lado, sempre seria de ponderar e de declarar a nulidade das cláusulas, na parte em que exigem a destruição ou danificação de “instalações, objetos ou árvores sãs num raio de 5km, tendo como centro a localização dos bens seguros” e a comprovação de ventos superiores a 100 Km/h, bem como a exigência de que a pluviosidade seja “de intensidade superior a 10 milímetro em 10 minutos, no pluviómetro”, uma vez que limitam, de forma desrazoável, a obrigação assumida pela seguradora, impondo ao segurado exigências acrescidas que não são equilibradas ou proporcionais em relação ao risco prevenido, conduzindo a resultados manifestamente iníquos e a um desequilíbrio das prestações das partes, claramente em favor da seguradora.
Importa referir que concordamos na integra com o entendimento do tribunal a quo quanto à exclusão das referidas cláusulas.
E, na verdade, a Recorrente não coloca em causa tal interpretação.
A questão que a Recorrente verdadeiramente suscita é a de saber se, mesmo excluídas as referidas clausulas, que no contrato de seguro aparecem como definidoras de “Tempestades” e de “inundações”, a factualidade provada não permite, ainda assim, o enquadramento do sinistro no contrato de seguro por não estarmos perante tempestades e inundações, uma vez que a cobertura de tempestades não se destina a situações como a ocorrida no caso concreto, mas a situações de vento e chuva adversas, mais intensas e gravosas.
Não foi esse o entendimento vertido na sentença recorrida e é contra esse entendimento que se insurge a Recorrente no presente recurso.
Vejamos se lhe assiste razão.
Não tendo o legislador consagrado uma noção de contrato de seguro, estabeleceu no artigo 1º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de abril, e de ora em diante designado apenas por RJCS) que “[P]or efeito do contrato de seguro, o segurador cobre um risco determinado do tomador do seguro ou de outrem, obrigando-se a realizar a prestação convencionada em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato, e o tomador do seguro obriga-se a pagar o prémio correspondente”.
Segundo José Vasques (Contrato de Seguro, Coimbra Editora, p. 94) o contrato de seguro é aquele pelo qual a seguradora, mediante retribuição pelo tomador de seguro, se obriga, a favor do segurado ou de terceiro, à indemnização de prejuízos resultantes, ou ao pagamento de valor pré-definido, no caso de se realizar um determinado evento futuro e incerto.
Sobre o tomador do seguro recai a obrigação de pagamento do prémio convencionado e sobre a seguradora a obrigação de, verificado o risco, proceder ao pagamento de uma indemnização ou de capital.
O risco, sendo um elemento essencial do contrato de seguro, pode ser definido como o evento futuro e incerto cuja materialização constitui o sinistro (v. José Vasques (ob. cit., p. 127).
O segurador é obrigado a formalizar o contrato num instrumento escrito, que se designa por apólice de seguro, e a entregá-lo ao tomador do seguro (n.º 2 do artigo 32º do RJCS), devendo constar da apólice todo o conteúdo do acordado pelas partes, nomeadamente as condições gerais, especiais e particulares aplicáveis, e no mínimo os elementos elencados no n.º 2 do artigo 37º do RJCS, onde se encontram os riscos cobertos (alínea d), devendo ainda incluir, escritas em caracteres destacados e de maior dimensão do que os restantes: a) As cláusulas que estabeleçam causas de invalidade, de prorrogação, de suspensão ou de cessação do contrato por iniciativa de qualquer das partes; b) As cláusulas que estabeleçam o âmbito das coberturas, designadamente a sua exclusão ou limitação; c) As cláusulas que imponham ao tomador do seguro ou ao beneficiário deveres de aviso dependentes de prazo (n.º 3 do referido preceito).
Para aferição do conteúdo do contrato importa atender ao objeto do seguro e aos riscos cobertos na apólice, mas também às estipulações negociais que visam delimitar ou excluir certo tipo de riscos, passando o âmbito deste tipo contratual pela definição das garantias, dos riscos cobertos e dos riscos excluídos (v. Romano Martinez, Direito dos Seguros, p. 91 e seguintes).
Podemos, por isso, dizer que os concretos riscos cobertos serão os que constam indicados da apólice, integrada por condições gerais, especiais e particulares, atendendo-se ainda aos riscos que ali se mostrem excluídos.
Não vem questionado no presente recurso ter sido celebrado entre o Autor e a Ré um “contrato de seguro Multirriscos Habitação”, ao qual corresponde a apólice n.º .........32, com início em 18/10/2020, válido à data dos factos, sendo o local de risco seguro pelo mesmo a moradia sita na Rua ..., n.º .., …, Fafe e tendo o Autor subscrito, designadamente, as coberturas de “inundações” e “tempestades”, as quais abrangiam o edifício e o respetivo recheio.
Contudo, como já referimos, no caso concreto, devem considerar-se excluídas do contrato as cláusulas das Condições Especiais a que se alude nos pontos 5 e 6 dos factos provados, quanto à cobertura de “Tempestades” e “Inundações”.
No caso em apreço, o Autor pretende responsabilizar a Ré na sequência do sinistro ocorrido na sua casa, causado por chuva e vento que se fizeram sentir na madrugada de 23 para 24 de janeiro de 2021, ao abrigo de uma cobertura facultativa de danos próprios.
Está em causa, por isso, a responsabilidade civil da Ré seguradora, perante o seu segurado, face à obrigação por ela assumida de o indemnizar pelos danos no imóvel, designadamente por “tempestades” e “inundações”.
Conforme decorre da matéria de facto provada na madrugada de 23 para 24 de janeiro de 2021, as chuvas e ventos que se fizeram sentir levantaram os cumes do telhado e telhas da casa, algumas das quais foram projetadas para o solo e se partiram.
Uma vez que chovia e não havia qualquer possibilidade de proteção, a água da chuva entrou e infiltrou-se nas divisões da casa, designadamente quartos, sala, cozinha, casas de banho, inundando os tetos e paredes, que ficaram molhados, manchados, as pinturas enrugadas e estragadas, sendo necessário proceder à sua reparação e do telhado.
Mais se apurou que no local dos factos, no dia 23 de janeiro de 2021, o vento soprou fraco (< 15 Km/h)) do quadrante oeste, tornando-se moderado (15 a 35 Km/h) a partir da manhã, tendo a intensidade máxima instantânea do vento atingido valores na ordem dos 60 Km/h na tarde; no mesmo dia e local, a quantidade de precipitação atingiu valores da ordem dos 30 a 35 milímetros e a intensidade máxima de precipitação atingiu um valor de 2 a 3 milímetros em 10 minutos, na tarde.
E no dia 24 de janeiro de 2021, o vento soprou moderado (15 a 35 Km/h) do quadrante oeste, tornando-se fraco a moderado (< 25 Km/h)) a partir da madrugada e a intensidade máxima instantânea do vento foi da ordem dos 50 Km/h na madrugada; no mesmo dia e local, a quantidade de precipitação atingiu valores da ordem dos 5 milímetros e a intensidade máxima de precipitação atingiu um valor não superior a 1 milímetro em 10 minutos, no final do dia.
A questão que se coloca é, por isso, se o sinistro ocorrido na madrugada de 23 para 24 de janeiro de 2021, em que as chuvas e ventos que se fizeram sentir levantaram os cumes do telhado e telhas da casa, algumas das quais foram projetadas para o solo e se partiram, provocando danos no telhado e no interior da casa, se encontra coberto pelo contrato de seguro celebrado entre as partes.
Ora, adiantando desde já a nossa posição, entendemos que a resposta tem de ser afirmativa, sufragando o mesmo entendimento da 1ª Instância.
Vejamos.
Segundo o Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) a chuva “é a precipitação de partículas de água no estado líquido, que caem sob a forma de gotas de diâmetro geralmente superior a 0,5 mm, com velocidade em geral superior a 3 m/s e em regra de forma bastante uniforme. O aguaceiro, que é afinal um período de chuva, é caracterizado por começar e terminar de forma brusca, frequentemente com variações rápidas de intensidade e pela alternância rápida do aspeto do céu. Quando os meteorologistas estão a prever que a precipitação se estenda de forma uniforme numa determinada região e caia de forma regular e até contínua durante determinado período de tempo, então a previsão é de "chuva". Quando se prevê que haja grande alternância, quer do ponto de vista espacial de local para local, quer do ponto de vista temporal para um mesmo local, entre o céu muito nublado ou encoberto com precipitação com períodos de céu pouco nublado ou mesmo limpo, então os meteorologistas utilizam o termo "aguaceiro" (consulta disponível em https://www.ipma.pt/pt/educativa/faq/meteorologia/previsao/faq_0028.html).

E, segundo aquele Instituto, a classificação da intensidade da precipitação faz-se nos seguintes termos:
a) chuva
1. fraca, para valores menores de 0,5mm/h
2. moderada, para valores compreendidos entre 0,5 mm/h e 4mm/h
3. forte, para valores acima de 4 mm/h
b) aguaceiros de chuva
1. fracos, para valores menores 2 mm/h
2. moderados, para valores compreendidos entre 2 mm/h e 10 mm/h
3. fortes, para valores compreendidos entre 10 mm/h e 50 mm/h
4. violentos, para valores acima de 50 mm/h.
(https://www.ipma.pt/pt/educativa/faq/meteorologia/previsao/faq_0033.html.)
E quanto ao vento, ainda segundo o IPMA, é considerado muito forte o vento cuja intensidade varia entre 31 a 42 nós (56 a 75 km/h), sendo relevante saber que:
1) a direção do vento é indicada apenas nos seguintes oito rumos: N, NE, E, SE, S, SW, W, NW.
2) intensidade do vento, para fins gerais, será expressa (em termos de intensidade média em 10 min) por:
a) Vento fraco < 8 nós < 15 km/h
b) Vento moderado 8 a 19 nós 15 a 35 km/h
c) Vento forte 20 a 30 nós 36 a 55 km/h
d) Vento muito forte 31 a 42 nós 56 a 75 km/h
e) Vento excecionalmente forte > 42 nós > 75 km/h
(https://www.ipma.pt/pt/educativa/faq/meteorologia/previsao/faq_0032.html).
Conforme decorre da matéria de facto provada o vento chegou a atingir, no dia 24 (mais concretamente, na madrugada quando os cumes do telhado e telhas da casa foram levantados), uma intensidade máxima de 50 km/h, o que na referida classificação do IPMA se traduz em ventos fortes, e no dia 23, concretamente à tarde, a intensidade máxima instantânea do vento atingiu valores na ordem dos 60 Km/h, isto é, ventos considerados já “muito fortes”, segundo a mesma classificação.
Tal como se refere na sentença recorrida, se efetuarmos um cálculo proporcional de milímetros por 10 minutos para milímetros por hora, a pluviosidade, em ambos os dias, chegou a níveis considerados de chuva “forte”, pois que segundo a referida classificação para as chuvas serem consideradas fortes pelo IPMA, basta atingirem valores acima de 4 mm/hora.
Do exposto decorre a seguinte conclusão: o sinistro em discussão nos presentes autos ocorreu numa madrugada de ventos e chuvas considerados fortes, quando na tarde do dia anterior, se tinham feito sentir ventos considerados já “muito fortes”, e isto segundo a classificação do o Instituto Português do Mar e da Atmosfera que considera uma tempestade ou um temporal acontecimentos meteorológicos de grau severo ou adverso, marcados por ventos fortes e com rajadas muito fortes, trovoadas e precipitação forte (geralmente de chuva, ou granizo ou de neve) (https://www.ipma.pt/pt/educativa/faq/meteorologia/previsao/faq_0027.html).
Para além deste sentido técnico apresentado pelo IPMA, julgamos que as expressões “temporal” e “tempestade”, num sentido vulgar ou corrente devem ser entendidas como significando vento anormais, ou que fogem dos cânones da habitualidade, normalmente acompanhados de chuva intensa.
Será este o sentido que um declaratário normal teria compreendido o termo “tempestade” na outorga do contrato de seguro: grande agitação atmosférica com ventos e chuvas fortes.
A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele, conforme previsto no artigo 236º n.º 1 do Código Civil.
A regra estabelecida neste preceito é a de que o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um declaratário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante, excetuando-se apenas os casos de não poder ser imputado ao declarante, razoavelmente, aquele sentido, ou o de o declaratário conhecer a vontade real do declarante (v. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, Coimbra Editora, p. 223). Consagrou-se uma “doutrina objetivista da interpretação, em que o objetivismo é temperado por uma salutar restrição de inspiração subjetivista” tendo em vista a proteção das legitimas expetativas do declaratário e a não perturbação da segurança do tráfico, conferindo-se à declaração o sentido que seria razoável presumir em face do comportamento do declarante, e não o sentido que este lhe quis efetivamente atribuir, sendo que a normalidade que a lei toma como padrão, “exprime-se não só na capacidade para entender o texto ou conteúdo da declaração, mas também na diligência para recolher todos os elementos que, coadjuvando a declaração, auxiliem a descoberta da vontade real do declarante”.
Não podemos também esquecer que o artigo 10º do Decreto-Lei nº 446/85 estabelece que “[A]s cláusulas contratuais gerais são interpretadas e integradas de harmonia com as regras relativas à interpretação e integração dos negócios jurídicos, mas sempre dentro do contexto de cada contrato singular em que se incluam”, explicitando o artigo 11º deste diploma que “[A]s cláusulas contratuais gerais ambíguas têm o sentido que lhes daria o contratante indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-las ou a aceitá-las, quando colocado na posição de aderente real” (n.º 1), prevalecendo na dúvida o sentido mais favorável ao aderente (n.º 2).
Ora, no caso dos autos, não só estamos perante ventos e chuvas tecnicamente classificados como fortes pelo IPMA, sendo certo que na tarde anterior a intensidade atingida pelo vento permite classifica-lo como muito forte, como estamos perante a ocorrência de chuvas e ventos de tal modo fortes que, fugindo efetivamente dos cânones da habitualidade, foram determinantes para levantar os cumes do telhado e as telhas da casa do Autor (e que, segundo relatou a testemunha J. A., seu vizinho, também “dobraram os caleiros de sua casa”).
Acresce dizer que o ora alegado pela Recorrente nas conclusões 18ª e 19ª no sentido de que o facto de o vento e chuva ocorridos poderem ter levantado telhas do telhado (e, consequentemente, as arrastado e partido) não permite caraterizar o vento e chuva ocorridos como sendo uma tempestade e/ou inundação porque tal tem que ver com outros fatores, como o estado de conservação do telhado, a impermeabilização, deficiências e/ou insuficiências construtivas, não tem qualquer sustentação na matéria de facto provada e nem resultou da prova produzida (as testemunhas referiram as telhas serem das antigas para salientarem o facto de serem mais pesadas e ainda assim terem levantado e partido, não se concluindo das suas declarações por qualquer problema de impermeabilização ou deficiências e/ou insuficiências construtivas).
Aliás, a Ré nem sequer alegou que o prédio do Autor estivesse concretamente nessas condições, e tal não resulta da averiguação que mandou realizar pois no relatório que da mesma juntou aos autos nada consta sobre qualquer problema de impermeabilização, deficiências/insuficiências construtivas ou falta de manutenção do edifício, em particular do telhado.
E, não tendo a Ré alegado e nem provado qualquer outro fator, designadamente deficiências construtivas ou falta de manutenção do edifício e do telhado, que tenham tido influência no sinistro, para além da demonstrada ocorrência de chuvas e ventos fortes (e até ventos muito fortes na tarde anterior aos factos) entendemos que a conclusão que se impõe é aquela que consta da sentença recorrida: “circunstância que, por si só, é suficiente para que o A., como qualquer declaratário normal, tenha concluído estar perante uma “tempestade”, de acordo com o seu significado normal (agitação violenta do ar; temporal), gerando a expectativa de que, como tal, o sinistro teria cobertura e seria ressarcido pela R.”.
Não merece, por isso, a sentença recorrida, ao considerar que os factos são enquadráveis nas coberturas subscritas pelo Autor, a censura que lhe dirige a Recorrente.
Contudo, atendendo à alteração introduzida na redação dos pontos 8) e 10) dos factos provados, importa clarificar que a Ré deve indemnizar o Autor pelos danos ocorridos no telhado e, no interior da casa, apenas nos tetos e paredes dos quartos, sala, cozinha e casas de banho, onde se infiltrou a água da chuva, e que ficaram molhados, manchados, com as pinturas enrugadas e estragadas.
Em face do exposto, deve julgar-se parcialmente procedente a presente apelação, alterando-se, em conformidade com o exposto, a sentença recorrida.
As custas do presente recurso, bem como as custas da ação são da responsabilidade da Ré e do Autor na proporção do seu decaimento, que se fixa em 60% para a Ré e 40% para o Autor (artigo 527º do Código de Processo Civil).
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SUMÁRIO (artigo 663º n º7 do Código do Processo Civil)

I - Para aferição do conteúdo do contrato importa atender ao objeto do seguro e aos riscos cobertos na apólice, mas também às estipulações negociais que visam delimitar ou excluir certo tipo de riscos, passando o âmbito deste tipo contratual pela definição das garantias, dos riscos cobertos e dos riscos excluídos
II - O sentido das cláusulas do contrato de seguro é determinado em função de um aderente (tomador de seguro) normal colocado na posição do aderente real, sendo que, em caso de dúvida sobre o sentido da declaração, prevalecerá o sentido mais favorável ao aderente.
III - As expressões “temporal” e “tempestade”, num sentido vulgar ou corrente devem ser entendidas como significando vento anormais, ou que fogem dos cânones da habitualidade, normalmente acompanhados de chuva intensa.
IV - Enquadra-se na cobertura “Tempestade” o sinistro que ocorreu de madrugada na sequência de ventos e chuvas fortes, tendo ainda ocorrido ventos muito fortes na tarde anterior, e que provocaram o levantamento dos cumes do telhado e telhas da casa do Autor e a entrada de água no seu interior, danificando tetos e paredes.
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IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente o recurso e, em consequência, alterar a sentença recorrida na parte respeitante aos danos provocados no interior da casa, condenando a Ré X – Companhia de Seguros, S.A., a indemnizar o Autor A. L. pelos danos nos tetos e paredes dos quartos, sala, cozinha e casas de banho da casa, provocados pela entrada da água da chuva, mantendo no mais a sentença recorrida.
Custas do presente recurso e da ação pela Ré e pelo Autor na proporção do seu decaimento, que se fixa em 60% para a Ré e 40% para o Autor.
Guimarães, 10 de novembro de 2022
Texto elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária

Raquel Baptista Tavares (Relatora)
Margarida Almeida Fernandes (1ª Adjunta)
Afonso Cabral Andrade (2º Adjunto)