Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3894/17.7T8BRG-B.G1
Relator: CONCEIÇÃO SAMPAIO
Descritores: LEILÃO ELETRÓNICO
REPRESENTAÇÃO DE TERCEIROS
PAGAMENTO DO PREÇO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/27/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – Na venda através de leilão eletrónico, os poderes de representação do utente que apresenta a proposta em nome de terceiro não são verificados pela plataforma, baseando-se o sistema na responsabilidade do apresentante que, caso se venha a verificar que não tem os poderes de representação invocados, é considerado pessoalmente responsável pela apresentação da proposta.
II - À falta de pagamento do preço no prazo legal é aplicável o disposto no artigo 825.º do Código de Processo Civil: ficar a venda sem efeito e aceitar a proposta de valor imediatamente inferior, perdendo o proponente o valor da caução; efetuar nova venda não podendo ser admitido o proponente remisso a adquirir novamente os mesmos bens e perdendo o valor da caução; ou liquidar a responsabilidade do proponente remisso, devendo ser promovido perante o juiz o arresto em bens suficientes para garantir o valor em falta, acrescido das custas e despesas, sem prejuízo de procedimento criminal e sendo aquele, simultaneamente, executado no próprio processo para pagamento daquele valor e acréscimos.
III - Fora da ação executiva, as consequências previstas no art. 825º, CPC necessitam de ser devidamente adaptadas já que, como é o caso da ação de divisão de coisa comum, não há aqui a prestação de caução, que possa ser declarada perdida e também não há processo de execução em que o licitante relapso possa ser executado para pagamento do valor em falta e acréscimos, ou em que se possa requerer arresto em bens suficientes para garantir o valor em falta, acrescido das custas e despesas.
IV - As possibilidades em aberto circunscrevem-se em (i) determinar que a venda fique sem efeito e aceitar a proposta de valor imediatamente inferior ou (ii) determinar que a venda fique sem efeito e efetuar nova venda, não podendo ser admitido o proponente remisso a adquirir novamente os mesmos bens.
V – Pretendendo-se a responsabilização do proponente relapso, nesta situação, sem prejuízo da responsabilidade criminal, a solução restringe-se à possibilidade de liquidar a responsabilidade deste, em ação própria e, depois de reconhecida e eventualmente não cumprida, executá-la coercivamente, novamente em sede própria.
VI - Considerando a importância que no leilão eletrónico deve assumir a transparência do ato e a sua eficácia, a utilização abusiva e indevida da plataforma deve ser sancionada e, para além da eventual responsabilidade criminal do utilizador, deve ser comunicado ao administrador da plataforma e-leilões, do comportamento do utilizador para eventual revogação das credenciais de acesso (artigo 3º, nº 10, das regras de funcionamento da plataforma, aprovadas por Despacho da Ministra da Justiça nº 12624/2015, de 9 de Novembro.
Decisão Texto Integral:
I - RELATÓRIO

Nos presentes autos de divisão de coisa comum, foi determinada a venda de um bem imóvel por meio de leilão eletrónico.
A proposta mais alta apresentada no leilão eletrónico realizado foi a apresentada em nome de T..., Imobiliária, S.A., no montante de € 4.545.000,00 (quatro milhões, quatrocentos e cinquenta euros), apresentada pelo utente AA, na sequência do que foi notificada a identificada sociedade para proceder ao depósito do valor em causa.
A mesma veio declarar, expressamente, «não realizámos qualquer licitação nem autorizámos qualquer terceiro a licitar em qualquer leilão em nosso nome ou representação, muito menos nos autos assinalados».
O utente BB veio confirmar que não lhe haviam, de facto, sido conferidos poderes de representação por banda da mencionada T....
Neste contexto vieram os requeridos apresentar requerimento em que sustentam que em «face do confessado espontaneamente pelo interveniente, o acionamento do disposto no artº 825º, CPC, por certo que não permitirá alcançar o propósito da ação e da venda, sendo de facto melhor opção a colocação em venda mediante novo leilão eletrónico, sem prejuízo da alternativa venda mediante negociação particular», ao que a requerente se veio a opor pretendendo antes que fosse obtida certidão da totalidade das propostas».
Junta a certidão (referência Citius ...28) constata-se que foram apresentadas 72 propostas; sendo as 46 primeiras apresentadas pelo utente BB, por si ou em representação de terceiros (a 1ª, 44ª, 45ª e 46ª); a 47ª a 54ª pela requerente; a 55ª por AA; a 56ª pela requerente; a 57ª por AA e as seguintes (58ª a 72ª) pela requerente.
Em face do resultado do leilão, a requerente pronunciou-se no sentido de, «considerando que todas as propostas haviam sido apresentadas por dois utentes (a saber: Utente com o NIF ... – AA; e Utente com o NIF ... – gerente da requerente C..., Lda.) e atendendo ao já declarado pelo primeiro utente, se deveriam desconsiderar todas as propostas apresentadas pelo primeiro utente o que implicaria que deveria ser tomada em conta a 47.ª proposta feita na plataforma eletrónica, apresentada pelo utente com o NIF ..., em representação e na qualidade de gerente da requerente C..., Lda., pelo valor de € 1.244.529,07 – um milhão duzentos e quarenta e quatro mil, quinhentos e vinte e nove euros e sete cêntimos, razão pela qual pretende a requerente que lhe seja adjudicado o «imóvel em causa nos presentes autos á requerente/proponente pelo valor proposto», dispensando-se a requerente «do depósito de 50% do valor do preço, em virtude de ser proprietária de 50% do imóvel em questão, nos termos do disposto no artigo 815º do CPC».
Responderam os requeridos dando nota de que desconheciam os elementos de identificação das propostas apresentadas na plataforma, «nomeadamente e também os utentes, os representados, data e respetivos valores». Devendo tal ser esclarecido para posterior emissão de pronúncia sobre o requerimento de adjudicação.
Foi, então, proferido despacho no qual se considerou e determinou: «Analisadas a totalidade das propostas apresentadas verifica-se que as mesmas foram apresentadas por dois únicos utentes: um com o NIF ..., e sempre em representação do contribuinte fiscal n.º ...; outro com o NIF ..., umas vezes por si, outras vezes em representação dos contribuintes fiscais n.ºs ...60 e ...29.
O contribuinte fiscal n.º ... já veio afirmar que não atribuiu ao utente detentor do NIF ... quaisquer poderes para, em sua representação, licitar.
Também o titular do NIF ... veio a juízo reconhecer que a dita T... não lhe conferira quaisquer poderes de representação e que se por acaso tal licitação foi apresentada a mesma apenas poderá ter-se ficado a dever a lapso, decorrente da abertura da aplicação da plataforma E - Leilões que instalara no seu telemóvel.
Porque a comunicação de 19.01.2022 não é clara sobre se o dito AA apresentou qualquer licitação no e-leilões relativamente ao imóvel em causa, notifique-o para em 10 dias, sob pena de multa não inferior a 2 UC, informar os autos sobre se apresentou qualquer proposta» (itálico e sublinhados ora acrescentados).»
Em sequência veio o mencionado AA informar que havia apresentado «duas propostas, respetivamente no dia 15/10/2021, às 18:40h, no valor de € 1.256.974,36 e no mesmo dia 15/10/2021, às 18:58h, no valor de € 1.282.239,54» e que as «propostas foram apresentas por solicitação da sociedade J... — Sociedade Imobiliária, SA, com o NIPC ...».
Os requeridos apresentaram requerimento em que sustentam que atendendo ao teor da certidão de encerramento do leilão existe uma proposta de valor superior à da Requerente, correspondente à 44.ª posição, pelo valor de € 1.282.239,45, apresentada em representação da pessoa coletiva com o NIF ..., pelo que se opõem a que o bem seja adjudicado à Requerente pelo valor inferior que é de € 1.244.529,07, sem que a licitante subscritora da proposta por valor superior seja ouvida sobre se o seu interesse na adjudicação ainda persiste sendo que, caso essa licitante venha a declinar o interesse e considerando que o leilão eletrónico não decorreu com a necessária normalidade, através da qual se poderia ter obtido um valor de venda do bem superior ao que está em causa, requerem que se proceda a novo leilão através a plataforma eletrónica.
Por sua vez, o requerente defende que, em face do que ocorreu com a proposta de maior valor – apresentada em nome de terceiro pelo utente BB e que o terceiro veio renegar, invocando representação sem poderes (artº 268.º, do C.C.) – deverão ser recusadas todas as propostas por este apresentadas (incluindo, portanto, a proposta de maior valor apresentada pela J... — Sociedade Imobiliária, SA, com o NIPC ...), devendo considerar-se apenas as propostas apresentadas pela requerente, devendo-lhe ser adjudicado o prédio conforme o que já havia requerido.
Foi então proferido despacho que considerou que liquidar a responsabilidade do proponente remisso não apresentava vantagem para os interesses das partes, pelo que determinou que fosse aceite a proposta de valor imediatamente inferior, no caso a apresentada pelo utente BB por solicitação da sociedade J... — Sociedade Imobiliária, SA, com o NIPC ..., no valor de € 1.282.239,54.
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Não se conformando com a decisão proferida, dela veio a requerente/habilitada interpor recurso, apresentando alegações e formulando as seguintes conclusões:

1º - A recorrente não se pode conformar com o despacho proferido a fls. e ss. dos presentes autos e que aqui damos por reproduzido, pois nem todas as questões colocadas foram devidamente apreciadas e porque há errónea interpretação dos factos e inadequada aplicação do direito.
2º - Salvo melhor opinião, o presente recurso é admissível, pois não estamos na presença de um despacho de mero expediente ou de uso de poder legal discricionário, para além de que, a impugnação deste despacho com a sentença final será absolutamente inútil – cfr. artigos 630º n.º 1 e 644º n.º 2 al. h), ambos do do C.P.C.
3º - Assim, resulta do despacho agora colocado em crise inexistir motivo para desconsiderar a proposta apresentada às 18:58.11, por solicitação da sociedade J... – Sociedade Imobiliária, S.A., isto apesar de reconhecer que nesta venda operada pela plataforma eletrónica e-leilões o utente que apresentou propostas em nome desta sociedade não tinha poderes de representação!?.
4º - E para obviar a existência de motivos para aceitação da proposta, o despacho agora em crise lança mão do critério do benefício económico para as partes, mencionando expressamente que não se podem impor os efeitos da venda irregular decorrentes do artigo 825º, n.º 1 al. c) do C.P.C.
5º - Face ao mencionado na conclusão anterior, o fundamento de recorribilidade prende-se com a aceitação de propostas em representação de terceiros e as suas consequências pela falta de representação de poderes, nos termos do disposto do artigo 825º do C.P.C.
6º - Após a indicação do fundamento de recorribilidade, aproveitamos o momento para dar aqui como reproduzido o circunstancialismo fáctico exposto no corpo das alegações, sendo certo que, o douto tribunal recorrido considerou que o critério que deve nortear a validade deste leilão é o critério do benefício económico, apesar das irregularidades e das propostas apresentadas sem representação de poderes nos autos.
7º - Tudo em claro prejuízo dos princípios da justiça e da boa administração da mesma, apenas e só para se obter a compensação financeira que uma perícia colegial fixou.
8º - A resposta do utilizador AA, não pode ser considerada nos presentes autos, pois, quem alega, como este utilizador, que todas as outras propostas que apresentou em nome da empresa T... foram feitas por lapso –“Lapso derivado da permanência de abertura da aplicação, talvez acionada pelos movimentos do telemóvel em transporte nos bolsos das peças de vestuário”- só para mencionar que as únicas propostas válidas são as da empresa J... – Sociedade Imobiliária, S.A., encontrou a forma de ludibriar o principio da máxima transparência do ato da venda e da manutenção das propostas serem desconsideradas, podendo-se brincar na plataforma “E-Leilões” e de validar a proposta que se entender conveniente.
9º - E temos este entendimento, porque, não existe nenhuma APP da plataforma “E-leilões” que permita abertura direta no telemóvel, sendo certo que, o utilizador/utente tem de correr diversos passos na internet, sendo o primeiro entrar no endereço www.e-leiloes.pt. e de seguida percorrer todos estes passos:
- fazer a autenticação introduzindo endereço de email ou NIF e password;
- procurar o imóvel/referência do Leilão sobre o qual pretende apresentar uma licitação;
- premir o botão “licitar”
- escolher a opção “ licitar em nome próprio” ou “licitar em representação de …” - Introduzir o valor da licitação;
- premir o botão “licitar”;
- introduzir novamente a password; - por último, CONFIRMAR.
10º - Face ao exposto, é nossa humilde opinião que é impossível apresentar, pelo menos, 10 ou mais propostas, seguidas, de valor crescente, como aconteceu neste leilão, pelo mesmo utente, por mero lapso!
11º - Pelo que, nos presentes autos o utilizador em questão falta à verdade, pois teve o claro intuito de obstar à apresentação de propostas por outras sociedades, privilegiando ou assegurando que a proposta efectuada a solicitação de empresa terceira que deseja favorecer seja a vencedora, ou até invalidar este leilão.
12º - Aliás, para se verificar a falsidade do alegado pelo referido utilizador, basta atentar que no meio de ambas as propostas que agora diz ter apresentado em nome da J..., o mesmo utilizador apresentou uma proposta em nome duma sociedade com o NIF ..., pelo valor de € 1.269.544,10 euros, para além, de antes e depois destas propostas em representação de sociedades, o mesmo utilizador apresentou inúmeras propostas em nome pessoal.
13º - Por isso, o utilizador em causa encontra-se devidamente familiarizado com a utilização da plataforma eletrónica e todas as propostas foram deliberadas, sabendo muito bem que as licitações não podem ser retiradas e que pode vir a ser responsabilizado pelos prejuízos que der causa. E após a notificação para o depósito, se não depositar o preço proposto, será responsabilizado por tal falta, podendo ser determinado o arresto dos seus bens que sejam suficientes para garantir o valor não pago, acrescido de custas e despesas, sem prejuízo de eventual procedimento criminal e, sendo ainda, simultaneamente, executado no próprio processo para pagamento daquele valor e acréscimo. – cfr. artigo 825º n.º 1 al. c) do C.P.C.
14º - O que não sucedeu nos presentes autos, com a prolação do despacho agora colocado em crise, uma vez que, apesar do supra descrito, o tribunal recorrido não desqualificou todas as demais propostas apresentadas pelo Utente BB, mormente, as duas propostas a solicitação da firma J..., a primeira no valor de € 1 256 974,36 e a segunda no valor de € 1 282 239,54 e aplicou de forma conveniente o regime previsto no artigo 825º do C.P.C.
15º - Mas mesmo que se tenha em consideração o critério do beneficio económico para as partes, se o douto tribunal não pretender anular o leilão, por causa de existência de propostas válidas e eficazes, o comportamento e conduta do utente BB no presente leilão têm que ser responsabilizados, perante as irregularidades com o claro intuito de favorecer uma empresa determinada em claro prejuízo dos demais interessados e licitantes, brincando com a plataforma e manipulando o conceito de máxima transparência.
16º - Perante o supra exposto, e dada a falta de fundamento das respostas apresentadas, devem ser desconsideradas todas as propostas apresentadas pelo utilizador AA, incluindo a proposta da sociedade J..., e deve o tribunal recorrido, perante a existência de propostas válidas e eficazes, como a apresentada pelo utente com o NIF ..., em representação e na qualidade de gerente da requerente C..., Lda., pelo valor de € 1.244.529,07 – um milhão duzentos e quarenta e quatro mil, quinhentos e vinte e nove euros e sete cêntimos, aceitar esta proposta por cumprir todos os requisitos exigidos pela lei.
Caso assim não se entenda, o que não se aceita, mas se concebe como mera hipótese de raciocínio,
17º - Deve o utilizador AA, utente com o NIF ..., ser notificado para proceder ao depósito do preço da proposta mais elevada que apresentou no valor de € 4.545.000,00 euros, no estrito cumprimento do citado despacho normativo que define as regras de utilização da plataforma E leiloes.
18º - Caso no prazo fixado para o depósito do preço, o utilizador identificada não o faça, deve ser dado cumprimento ao disposto no artigo 825º do CPC, com arresto de bens do identificado utilizador, extração de certidão dos autos, para averiguar a eventual responsabilidade criminal do utilizador e comunicação ao administrador da plataforma e-leilões, com envio de certidão, do comportamento do utilizador em causa, a fim de ser revogada a credenciais de acesso por suspeita de utilização abusiva e indevida da plataforma, nos termos do artigo 3º, nº 10, das regras de funcionamento da plataforma, aprovadas por Despacho da Ministra da Justiça nº 12624/2015, publicado no Diário da Republica, 2ª série – nº 219 - 9 de novembro de 2015.
19º - Caso assim não se entenda, e perante o supra exposto, considerando o requerimento de fls. e ss. dos requeridos, que solicitaram que a venda ficasse sem efeito e nova venda dos bens na modalidade mais adequada, opção normativa prevista no artigo 825º n.º 1 al. b) do C.P.C., deve a venda ser anulada e determinar-se a realização de novo leilão eletrónico para venda do bem imóvel em discussão nos autos, pelo que, deve o despacho colocada em crise ser revogado e alterado nos termos supra exposto.
20º - Foram violadas as disposições legais constantes dos seguintes artigos: Artigo 824º, 825º n.º 1, als. a), b) e c), n.º 2 do C.P.C. e despacho nº 12624/2015 de 9 de Novembro, artigo 7º nº 3 e 4 (regras de regulamentam a utilização da plataforma e leilões).
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Os Recorridos CC e DD apresentaram contra alegações, pugnando pela manutenção do decidido.
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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II - OBJETO DO RECURSO

A questão jurídica a apreciar prende-se com a aceitação em leilão eletrónico de propostas em representação de terceiros e as suas consequências pela falta de representação de poderes e não depósito do preço, nos termos do disposto no artigo 825º do C.P.C.
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III - FUNDAMENTAÇÃO

As incidências fático-processuais são as que constam do relatório.
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A aceitação em leilão eletrónico de propostas em representação de terceiros e as suas consequências pela falta de representação de poderes e de depósito do preço, nos termos do disposto do artigo 825º do C.P.C.
A questão posta em recurso insere-se no âmbito da venda por leilão eletrónico, modalidade de venda que tem a sua disciplina jurídica repartida pelo artigo 837.º, do CPC, pela Portaria n.º 282/2013, de 29 de Agosto que regulamenta vários aspetos das ações executivas cíveis e pelo Despacho n.º 12624/15, de 09 de Novembro, da Ministra da Justiça que define a entidade gestora da plataforma de leilão eletrónico e as regras de funcionamento da respetiva plataforma.

As regras gerais da venda em leilão eletrónico vêm definidas no art. 21º da Portaria n.º 282/2013, de 29 de Agosto, nos seguintes termos:          

1 - A entidade gestora da plataforma eletrónica, a qual é definida por despacho do membro do Governo responsável pela área da justiça, disponibiliza a todos os interessados, em sítio da Internet de acesso público definido nas regras do sistema, a consulta dos anúncios de venda de bens que decorra através de leilão eletrónico bem como as regras do sistema.
2 - A plataforma eletrónica mencionada no artigo anterior dispõe de um módulo de acesso restrito a utilizadores registados no sistema, no qual se processa a negociação dos bens a vender em leilão eletrónico, estando permanente e publicamente visível em cada leilão o preço base dos bens a vender, o valor da última oferta e o valor de venda efetiva dos bens leiloados.
3 - Só podem efetuar ofertas de licitação no leilão eletrónico regulado na presente portaria utilizadores que se encontrem registados, após autenticação efetuada de acordo com as regras do sistema.
4 - As regras do sistema regulam o processo de registo referido no número anterior, devendo assegurar a completa, inequívoca e verdadeira identificação de cada uma das pessoas registadas como utilizadores da plataforma a que alude o artigo anterior.
5 - A cada utilizador registado são fornecidas credenciais de acesso constituídas por um nome de utilizador e uma palavra-chave pessoais e intransmissíveis, que permitam a sua autenticação na plataforma referida no artigo anterior.

Os termos do acesso à plataforma estão regulados no art. 3º do Despacho n.º 12624/15, de 09 de Novembro, da Ministra da Justiça daí decorrendo que apenas o podem fazer os utilizadores registados e credenciados para o efeito, garantindo-se a completa, inequívoca e verdadeira identificação de cada uma das pessoas registadas como utilizadores da plataforma.
Na primeira licitação que o utente apresente na plataforma, surge o aviso constante do Anexo I, só podendo formular a proposta depois de escolher a opção “compreendi e quero licitar”, valendo esta declaração como aceitação das condições para o leilão em causa e para todos os leilões posteriores em que licite (art. 7.º, n.º 15, do mesmo diploma).
Vem prevista a possibilidade de apresentação de propostas em representação de terceiro, devendo neste caso ser indicado, em campo específico, a identificação completa de quem representa (nome ou designação social, número de identificação fiscal e morada ou sede) – art. 7.º, nº2 do Despacho n.º 12624/2015, de 09 de Novembro.
São da exclusiva responsabilidade do utente as declarações que presta, designadamente quanto à identificação do seu ou seus representados, qualidade e poderes e caso se venha a verificar que o utente não tem os poderes de representação invocados, este é considerado pessoalmente responsável pela apresentação da proposta, nomeadamente a que resulta da falta do depósito do preço, nos termos do artigo 825.º do CPC – art. 7.º nº3 e 4, do Despacho n.º 12624/2015, de 09 de Novembro.
Resulta deste normativo que os poderes de representação do utente que apresenta a proposta em nome de terceiro não são verificados pela plataforma, baseando-se o sistema na responsabilidade do apresentante que, caso se venha a verificar que não tem os poderes de representação invocados, é considerado pessoalmente responsável pela apresentação da proposta.
As ofertas de licitação para aquisição dos bens em leilão são introduzidas na plataforma entre o momento de abertura do leilão e o dia e hora designados na plataforma eletrónica para o seu termo. Só podem ser aceites ofertas de valor igual ou superior ao valor base da licitação de cada bem a vender; e, de entre estas, é escolhida a proposta cuja oferta corresponda ao maior dos valores de qualquer das ofertas anteriormente inseridas no sistema para essa venda (art. 23.° n.º1 e 2, da Portaria n.º 282/13, de 29 de Agosto).
As propostas, uma vez introduzidas no sistema, não podem ser retiradas.
O encerramento do leilão é validado eletronicamente pelo agente de execução que a ele presidiu, indicando o número da proposta de valor mais elevado e o respetivo valor (art. 8.º, n.º 8, do Despacho n.º 12624/15, de 09 de Novembro); O resultado do leilão eletrónico é disponibilizado no sítio da Internet de acesso público: www.e-leiloes.pt (art. 24.º, da Portaria n.º 282/13, de 29 de Agosto).
Uma vez terminado o leilão eletrónico e tendo sido apresentada licitação superior a 85% do valor base, o agente de execução deverá realizar, de imediato, as diligências necessárias a concretizar a adjudicação do bem ao melhor proponente.
Deverá então ser notificado o licitante da proposta mais elevada para depositar o preço oferecido, seguindo-se os termos previstos para a venda por proposta em carta fechada (art. 8.º, n.º 10, do Despacho n.º 12624/15).
À falta de pagamento do preço no prazo legal é aplicável o disposto no artigo 825.º do Código de Processo Civil, como prescreve de forma expressa e clara o art. 25.º Portaria n.º 282/13, de 29 de Agosto.
No caso presente, a proposta mais elevada apresentada no leilão eletrónico realizado foi a apresentada em nome de T..., Imobiliária, S.A., no montante de € 4.545.000,00 (quatro milhões, quatrocentos e cinquenta euros), apresentada pelo utente AA.
Notificada para o depósito do preço, veio esta informar não ter conferido poderes de representação ao utente para a apresentação de qualquer proposta, o que veio a ser confirmado pelo respetivo utente.
É a partir deste quadro factual que, à luz da norma do artigo 825º, do CPC, se terá de encontrar a solução jurídica.


Estabelece o art. 825.º, nº1, do CPC que:

1 - Findo o prazo referido no n.º 2 do artigo anterior, se o proponente ou preferente não tiver depositado o preço, o agente de execução, ouvidos os interessados na venda, pode:
a) Determinar que a venda fique sem efeito e aceitar a proposta de valor imediatamente inferior, perdendo o proponente o valor da caução constituída nos termos do n.º 1 do artigo anterior; ou
b) Determinar que a venda fique sem efeito e efetuar a venda dos bens através da modalidade mais adequada, não podendo ser admitido o proponente ou preferente remisso a adquirir novamente os mesmos bens e perdendo o valor da caução constituída nos termos do n.º 1 do artigo anterior; ou
c) Liquidar a responsabilidade do proponente ou preferente remisso, devendo ser promovido perante o juiz o arresto em bens suficientes para garantir o valor em falta, acrescido das custas e despesas, sem prejuízo de procedimento criminal e sendo aquele, simultaneamente, executado no próprio processo para pagamento daquele valor e acréscimos.     

Da exegese deste dispositivo legal impõe-se considerar que estando perante uma venda em ação de divisão de coisa comum, na modalidade de venda em leilão eletrónico, com regulamentação própria, necessita o art. 825.º, n.º 1, do CPC, que ser devidamente adaptado já que: não há aqui a prestação de qualquer caução, que possa ser declarada perdida; e também não há aqui processo de execução em que o licitante relapso possa ser executado para pagamento do valor em falta e acréscimos, ou em que se possa requerer arresto em bens suficientes para garantir o valor em falta, acrescido das custas e despesas.
Nesta situação, sem prejuízo da responsabilidade criminal, a solução restringe-se à possibilidade de liquidar a responsabilidade do proponente relapso, em sede própria e, depois de reconhecida e eventualmente não cumprida, executá-la coercivamente, novamente em sede própria[1].
Assim, por razões diferentes, concluímos que a solução prevista na alínea c) do art. 825º, não é de aplicar ao caso.
As possibilidades em aberto circunscrevem-se em (i) determinar que a venda fique sem efeito e aceitar a proposta de valor imediatamente inferior ou (ii) determinar que a venda fique sem efeito e efetuar nova venda, não podendo ser admitido o proponente remisso a adquirir novamente os mesmos bens.
A primeira das possibilidades aventada deve ser afastada.
É que, de acordo com a certidão de encerramento de leilão, a proposta de valor imediatamente inferior foi apresentada pelo mesmo utente (AA), que alegou não a ter apresentado, atribuindo a apresentação a lapso (derivado da permanência de abertura da aplicação, talvez acionada pelos movimentos do telemóvel em transporte nos bolsos das peças de vestuário).
O mesmo sucedendo com as mais de quarenta propostas que lhe sucederam.
Este utilizador veio afirmar ter apresentado apenas duas propostas a saber: no dia 15/10/2021, às 18:40h, no valor de € 1.256.974,36 e no mesmo dia 15/10/2021, às 18:58h, no valor de € 1.282.239,54, por solicitação da sociedade J... — Sociedade Imobiliária, SA, com o NIPC ....
Não é verdade.
E a justificação apresentada pelo utente, não colhe.
O utilizador tem de percorrer diversas etapas: (i) entrar no endereço www.e-leiloes.pt.; (ii) fazer a autenticação introduzindo endereço de email ou NIF e password; (iii) procurar o imóvel sobre o qual pretende apresentar uma licitação; (iv) premir o botão “licitar”; (v) escolher a opção “licitar em nome próprio” ou “licitar em representação de …”; (vi) introduzir o valor da licitação; (vii) voltar a premir o botão “licitar”; (viii) introduzir novamente a password e (ix) CONFIRMAR.
Identificados todos os passos necessários para a apresentação de propostas quer em nome próprio quer a solicitação de terceiros, compreendemos que não é possível apresentar, como no caso, mais de 40 propostas, seguidas, e de valor crescente, por mero lapso.
Em desabono da justificação apresentada surge ainda a circunstância de no meio de ambas as propostas que diz ter apresentado em nome da J..., o mesmo utilizador ter apresentado uma proposta em nome de uma sociedade com o NIF ..., e antes e depois destas propostas em representação de sociedades, o mesmo utilizador ter apresentado inúmeras propostas em nome pessoal.
Uma das maiores vantagens do leilão eletrónico é, precisamente, obter a máxima transparência do ato de venda e criar as condições para a valorização máxima dos bens.
Na verdade, as regras que presidem à venda por leilão eletrónico estão intimamente ligadas à promoção da transparência de todo o processo pelo que a adoção de posturas não éticas não deve ser tolerada.
Tudo isto nos conduz à não aceitação da proposta imediatamente inferior porquanto apresentada por utente que ao negar a sua apresentação, atuou de forma censurável.
Consequentemente, impõe-se a única solução legalmente ajustável ao caso: determinar que a venda fique sem efeito e efetuar nova venda, não podendo ser admitido o proponente remisso a adquirir novamente os mesmos bens.
Considerando a importância que nesta modalidade de venda deve assumir a transparência do ato e sua eficácia,  a atuação censurável com a utilização indevida da plataforma por parte do utente AA não deve passar incólume, e porque de conhecimento oficioso, deve ser ordenada a extração de certidão para averiguar a eventual responsabilidade criminal do utilizador e comunicar ao administrador da plataforma e-leilões, do comportamento do utilizador em causa, para eventual revogação das credenciais de acesso por suspeita de utilização abusiva e indevida da plataforma, nos termos do artigo 3º, nº 10, das regras de funcionamento da plataforma, aprovadas por Despacho da Ministra da Justiça nº 12624/2015, de 9 de Novembro.
Por tudo o que se deixa exposto, procede a apelação.
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Sumário

I – Na venda através de leilão eletrónico, os poderes de representação do utente que apresenta a proposta em nome de terceiro não são verificados pela plataforma, baseando-se o sistema na responsabilidade do apresentante que, caso se venha a verificar que não tem os poderes de representação invocados, é considerado pessoalmente responsável pela apresentação da proposta.
II - À falta de pagamento do preço no prazo legal é aplicável o disposto no artigo 825.º do Código de Processo Civil: ficar a venda sem efeito e aceitar a proposta de valor imediatamente inferior, perdendo o proponente o valor da caução; efetuar nova venda não podendo ser admitido o proponente remisso a adquirir novamente os mesmos bens e perdendo o valor da caução; ou liquidar a responsabilidade do proponente remisso, devendo ser promovido perante o juiz o arresto em bens suficientes para garantir o valor em falta, acrescido das custas e despesas, sem prejuízo de procedimento criminal e sendo aquele, simultaneamente, executado no próprio processo para pagamento daquele valor e acréscimos.          
III - Fora da ação executiva, as consequências previstas no art. 825º, CPC necessitam de ser devidamente adaptadas já que, como é o caso da ação de divisão de coisa comum, não há aqui a prestação de caução, que possa ser declarada perdida e também não há processo de execução em que o licitante relapso possa ser executado para pagamento do valor em falta e acréscimos, ou em que se possa requerer arresto em bens suficientes para garantir o valor em falta, acrescido das custas e despesas.
IV - As possibilidades em aberto circunscrevem-se em (i) determinar que a venda fique sem efeito e aceitar a proposta de valor imediatamente inferior ou (ii) determinar que a venda fique sem efeito e efetuar nova venda, não podendo ser admitido o proponente remisso a adquirir novamente os mesmos bens.
V – Pretendendo-se a responsabilização do proponente relapso, nesta situação, sem prejuízo da responsabilidade criminal, a solução restringe-se à possibilidade de liquidar a responsabilidade deste, em ação própria e, depois de reconhecida e eventualmente não cumprida, executá-la coercivamente, novamente em sede própria.
VI - Considerando a importância que no leilão eletrónico deve assumir a transparência do ato e a sua eficácia,  a utilização abusiva e indevida da plataforma deve ser sancionada e, para além da eventual responsabilidade criminal do utilizador, deve ser comunicado ao administrador da plataforma e-leilões, do comportamento do utilizador para eventual revogação das credenciais de acesso (artigo 3º, nº 10, das regras de funcionamento da plataforma, aprovadas por Despacho da Ministra da Justiça nº 12624/2015, de 9 de Novembro.
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V - DECISÃO

Pelo exposto, decide-se julgar o recurso procedente e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, determinando-se que a venda fique sem efeito e seja efetuada nova venda, não podendo ser admitido o proponente remisso a adquirir novamente os mesmos bens.
Mais deve ser determinada a extração de certidão e remessa ao Ministério Público para averiguar a eventual responsabilidade criminal do utilizador e comunicação ao administrador da plataforma e-leilões do comportamento do utilizador em causa, para eventual revogação das credenciais de acesso por suspeita de utilização abusiva e indevida da plataforma, nos termos do artigo 3º, nº 10, das regras de funcionamento da plataforma, aprovadas por Despacho da Ministra da Justiça nº 12624/2015, de 9 de Novembro.
Custas da apelação pela parte vencida a final.
Guimarães, 27 de Abril de 2023

Assinado digitalmente por:
Rel. – Des. Conceição Sampaio
1º Adj. - Des. Fernanda Proença Fernandes
2º Adj. - Des. Anizabel de Sousa Pereira


[1] Neste sentido, Acórdão da Relação de Guimarães de 17.02 2022, disponível em www.dgsi.pt.