Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
319/14.3GDGMR.G1
Relator: FILIPE MELO
Descritores: PROCESSO ABREVIADO
INOBSERVÂNCIA
PRAZO
IRREGULARIDADE
REPETIÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/07/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO IMPROCEDENTE
Sumário: I) A dedução de acusação pelo Ministério Público após os 90 dias previstos no artº 391º-D/2, consubstancia a prática de um acto irregular, implicando, desde logo, a sua inadmissibilidade, impondo-se a sua repetição.
II) De todo o modo, a repetição apenas é possível no âmbito da forma de processo comum e já não mais no âmbito da forma de processo abreviado.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães:

Neste processo, a fls. 64, foi proferido o seguinte despacho:
«--- Questão Prévia: ----
--- O arguido Mário D. veio arguir a irregularidade porquanto a acusação proferida no âmbito do presente processo abreviado mostra-se extemporânea, considerando o prazo de 90 dias a contar da aquisição da notícia do crime, previsto no art.º 391.º B n.º 2 alínea a) do CPP. ---
--- Para tanto, refere que o Ministério Público adquiriu a notícia do crime a 29.12.2014, pelo que, o último dia para dedução da acusação seria o dia 30.03.2015, o que não sucedeu, pelo que devem os presentes autos serem arquivados, pois padecem de manifesta irregularidade de acordo com o art.º 123.º do CPP. ---
--- O Digno Magistrado do Ministério Público pugnou pelo não reenvio dos autos sob outra forma processual, atento o facto do prazo dos 90 dias não ser condição de admissibilidade da forma abreviada. ---
--- Cumpre apreciar e decidir. ---
--- Compulsados os autos constata-se que a acusação pública proferida pelo Digno Magistrado do Ministério Público, constante de fls. 27 e ss., foi deduzida em 14.04.2015, sendo a notícia do crime de 29.12.2014. ---
--- Dispõe o art.º 391.º-B n.º 2 alínea a) do CPP que “Sem prejuízo do disposto no n.º 4 do artigo 384.º, a acusação é deduzida no prazo de 90 dias a contar da aquisição da notícia do crime, nos termos do disposto no artigo 241.º, tratando-se de crime público;”. ---
--- Ora, tal prazo não foi de facto cumprido, tendo o Ministério Público deduzido acusação nos autos após 90 dias da notícia do crime. Importa, por isso, aferir das consequências de tal falta/omissão. ---
--- É pacífico na doutrina que o prazo de 90 dias para deduzir acusação não é requisito essencial da forma de processo abreviado, sendo que a consequência prática desta é a de que a utilização da forma de processo abreviado em violação dos prazos dos artigos 391.º-B, n.º 2 e 391.º-D constituiu uma irregularidade e não uma nulidade insanável. ---

--- Assim, de acordo com o art.º 123.º do CPP, “qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado.”. – cfr. n.º 1 do referido preceito legal. ---
--- No caso, o arguido veio arguir a irregularidade no terceiro dia seguinte a contar da notificação da acusação, pelo que, cumpriu o prazo legal previsto para tal. ---
--- Destarte, tendo o arguido invocado a irregularidade em tempo e constatando-se que a mesma ocorreu, resta declará-la e determinar os seus efeitos. ---
--- A declaração da irregularidade tem os seguintes efeitos: a invalidade de todos os efeitos substantivos, processuais e materiais do acto irregular; a invalidade dos actos subsequentes que tenham um nexo de dependência logica e histórica com o acto irregular; a repetição do acto irregular, quando possível e necessário. ---
--- A dedução da acusação pelo Ministério Público após os 90 dias da notícia do crime consubstancia a prática de um acto irregular, implicando desde logo que a acusação não possa ser admitida, impondo-se a sua repetição. De todo o modo, a repetição apenas é possível no âmbito da forma de processo comum e já não mais no âmbito da forma de processo abreviado. ---
--- Pelo exposto, verificada a irregularidade, por incumprimento do disposto no art.ºs 391.º-B n.º 2 alínea a) do CPP, rejeita-se a acusação proferida pelo Digno Magistrado do Ministério Público, constante de fls. fls. 27 e 28. ---
--- Remeta os autos ao Ministério Público para tramitação sob outra forma processual. --- »

Inconformado, recorre o Ministério Público, formulando as seguintes conclusões:
« Tendo o Ministério Público deduzido acusação em processo abreviado, o Tribunal a quo determinou o reenvio do processo para a forma comum, com base no facto da acusação ter ultrapassado o prazo previsto no art.º 391º-B/2 do Código de Processo Penal, na irregularidade processual ter sido arguida tempestivamente e em respeito pelo disposto no art.º 123º/1 do Código de Processo Penal.
O prazo de 90 dias para deduzir acusação previsto no art.º 391º-B/2 tem um valor meramente ordenador, pelo que a sua inobservância não constitui qualquer irregularidade, implicando apenas “se for caso disso, responsabilidade disciplinar, não obstando à prática dos actos processuais em falta, que não deixarão de ter plena validade, se por outros vícios não estiverem inquinados.”
De qualquer forma, o art.º 391º-D/1 “ admite um fundamento de reenvio do processo abreviado”, que não inclui a violação do prazo para a dedução de acusação.
Assim, mesmo que tivesse sido cometida uma irregularidade com a dedução de acusação após os 90 dias, o art.º 391º-D/1 proíbe claramente, a contrario, o reenvio determinado pela douta decisão recorrida, constituindo uma norma excepcional que derroga o regime geral das consequências das irregularidades, tal como se encontra previsto no art.º 123º/1 do Código de Processo Penal.
Deste modo, o entendimento perfilhado na douta decisão recorrida viola o disposto no art.º 391º-B/2 e 391º-D/1 do Código de Processo Penal.»

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O arguido não respondeu.
Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto, Vítor Guimarães, defende a improcedência do recurso, nos termos do parecer que desde logo se vai inserir.
*
Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre decidir.

É o seguinte o citado parecer:
«(…)
1. A única questão que o recurso coloca é a de saber se, tendo previsto o legislador prazos relativamente curtos e de natureza urgente para o processo abreviado, que como a designação indica, se pretende breve – cfr. arts. 391.º-B, n.º 2, 391.º - C, n.º 2, 391.º - D, n.º 2, e 103.º, n.º 2, al. c) –, a inobservância de tais prazos não integra irregularidade e se, mormente no caso da prolação da acusação para além do dito prazo isso impede, ou não, a manutenção da forma abreviada, aspeto central do dissenso.
2. Para uma apreciação mais esclarecida do enquadramento da questão, importa ter bem presente o iter processual que, de seguida, se resenhará em traços largos:
2.1. No dia 28 de dezembro de 2014, um domingo, às 16h3m, em Moreira de Cónegos, por ocasião de um jogo de futebol entre o Moreirense e o Arouca, durante a revista aos espetadores que se preparavam para assistir ao encontro, no recinto desportivo, o arguido Mário D. possuía, na mala que trazia à tiracolo, uma designada «faca de borboleta», arma imediatamente subsumível à Classe A, nos termos do arts. 2.º, n.º 1, al. av), e 3.º do RJAM, sendo a sua posse enquadrável no tipo – detenção de arma proibida e crime cometido com arma – previsto no art. 86.º, n.º 1, al. d), eventualmente 89.º - detenção de armas e outros dispositivos, produtos ou substâncias em locais proibidos – 90.º e 92.º, todos da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro;
2.2. O arguido foi detido, pois, em flagrante delito e, em seguida, solto e mandado comparecer no DIAP de Guimarães, no dia 29 de dezembro, pelas 10h00m;
2.3. Nesse dia, após interrogatório, o Senhor Procurador-Adjunto exarou despacho em que, para além do mais, e em justificação da não sujeição do arguido a julgamento sumário, considerou o seguinte:
“Atentemos que a prova até agora produzida, sobretudo a que tange com a actividade do arguido quanto ao mencionado crime ainda não se encontra devidamente consubstanciada em ordem a integrar os seus elementos essenciais, sendo de prever que a mesma e a restante ficará consistente com investigação mais pormenorizada a levar a cabo pelo OPC, sobretudo com a inquirição de possíveis ofendidos e de possíveis testemunhas, bem como dos depoimentos dos guardas.”
2.4. Quando conclusos os autos de Inquérito, já em 14 de abril de 2015 e sem que qualquer outra prova tenha sido recolhida, o Senhor Procurador-Adjunto, na mesma data, deduziu acusação em processo abreviado; forma a que o arguido se opôs, invocando a irregularidade decorrente da ultrapassagem do prazo para a dedução da acusação.
2.5. Apurado que o arguido não chegou a ser notificado da acusação pela via postal, com prova de depósito, mas apenas por via simples – cfr. fls. 60 –, os autos foram remetidos a juízo, onde foi proferido o despacho recorrido.
3. Vista a decisão recorrida, a Senhora Juíza, embora sem o dizer – e até recusando-o – reconduz a questão da pretensa irregularidade, que tem por subjacente à prolação da acusação em processo abreviado para além dos 90 dias, ao problema essencial, afinal o de saber se o questionado prazo é efetivamente um dos requisitos da opção pela forma de processo em causa, ou, em caso de resposta negativa, se manterá algum sentido, juridicamente compreensível e útil, ter o legislador postulado, ressalvando um outro caso em que assim pode não ser – art. 384.º, n.º 4 –, que a acusação é deduzida em 90 dias, a contar da notícia do crime e da apresentação da queixa.
A constelação normativa que ilumina o processo abreviado é, toda ela, portadora de uma encandeante projeção de celeridade sobre uma dinâmica processual em que, no geral, tem sido endémico o incumprimento de prazos.
Para além da influência que sobre o figurino processual em apreço projeta, em geral, a determinante do art. 103.º, nºs 1 e 2, al. c), ditando caráter urgente para os prazos, pelo menos até à sentença; o legislador obliterou-lhe a fase processual da instrução – art. 286.º, n.º 3; e, num gesto de suprema obsessão na senda da celeridade, até reduziu o tempo de alegações orais, sensivelmente para metade – art. 391.º-E; além de que impôs, por princípio, a imediata prolação da sentença.
Ora, o estabelecimento de um prazo perentório, de 90 dias, para a acusação – que nada tem de dramático no plano do procedimento criminal, uma vez que o processo comum está sempre disponível – representa uma exigência mínima, e tolerável, como contrapartida necessária para a inclemente compressão processual a que o legislador submeteu todos os outros segmentos do figurino em questão.
Ligando a aludida disciplina com a da duração do inquérito, prevista no art. 276.º, em que se outorga, para o de natureza mais urgente, prazo que se fica pelos seis meses, qualquer generosidade incontida com o prazo de dedução da acusação em processo abreviado envolveria uma descaraterização do processo abreviado, criando a caricatura, que, de alguma forma, exibem estes autos, com a acusação a ser submetida a julgamento, mais de um ano e meio sobre a data da prática dos factos; não se esquecendo que ficou evidente a desnecessidade das diligências de que tratou ou despacho de fls. 26, que não propiciou, salvo o devido respeito indevidamente, a submissão do arguido a julgamento sumário; ou então não haveria também provas simples e evidentes do crime, como é exigível para o processo abreviado, o parece subjacente ao dito despacho.
Parece-nos, pois, salvo melhor opinião, que o prazo para a dedução da acusação, primeiro sintoma e sinal de celeridade, é, retius, tem que ser, por assim dizer, a marca de água do processo abreviado.
Outorgar ao dito prazo caráter meramente ordenador traveste o processo abreviado de processo comum, sem instrução e com alegações orais, em audiência, de via reduzida, sem esquecer a exigência de imediata prolação de sentença.
Embora tenhamos a sensação de que uma boa parte da jurisprudência, malgrado com o enfoque do julgamento no prazo de 90 dias, que vinha da anterior redação, se orientará pela dita natureza meramente ordenadora, o que, na perspetiva do agendamento do julgamento, até se poderá compreender, identifica-se o acórdão desta Relação, de 17-01-2005, tirado no Proc. n.º 2053/04-1, de que foi relator o Exmo. Desembargador Miguez Garcia, em que, pese embora tenha versado sobre uma outra redação dos normativos em causa, se adotou entendimento aconchegador da posição assumida neste parecer, que poderá, reconhece-se, envolver alguma iconoclastia jurídica, todavia sempre muito respeitosa.
Nesse acórdão, a reflexão jurídica incidia sobre um outro modo de, a nosso ver, o legislador dizer a mesma coisa, que nos parecer afirmar hoje.
O legislador de 98 estabeleceu no art. 391.º- A e no que para aqui interessa que (…) o Ministério Público…..pode deduzir acusação para julgamento em processo abreviado, se não tiverem decorrido mais de 90 dias desde a data em que o crime foi cometido.”
Em 2007 o legislador, agora já no art. 391.º-B, disse-o, mas doutra forma: “(…) a acusação é deduzida no prazo de 90 dias”, mas agora, até já mais generosamente, não sobre a data do crime mas a contar da notícia do crime ou da apresentação da queixa, o que já constitui fator de alargamento do âmbito de admissibilidade.
Tendo-se alterado os parâmetros de contagem do prazo, ainda quererá o legislador, mesmo assim, levar o processo abreviado até onde for uma investigação porventura menos zelosa?
Salvo melhor opinião, parece-nos que não!
Na economia das formas de processo, o Ministério Público dispõe de uma, de natureza célere, em que o arguido até nem pode requerer a abertura da instrução, apesar de estarem em causa crimes puníveis com prisão até cinco anos, para o que a lei lhe impõe, em jeito de exigência mínima, que deduza acusação no prazo de 90 dias.
Se não consegue atingir esse target, está ao seu alcance o processo comum o que não tem qualquer efeito dramático no plano da perseguição criminal.
Nada de mais equilibrado e de potenciador da celeridade e, porque não dizê-lo, de responsabilizante.
Não se pode aceitar a ampliação do prazo para a acusação, por tempo que a conceção que defende a natureza meramente ordenadora do questionado prazo nem sequer consegue determinar, e, depois, não só impedir a fase de instrução, mas também pretender que se alegue durante menos tempo em audiência e que se profira a sentença no imediato.
A solução, por assim dizer, maleabilizadora do questionado prazo, porventura “ad libitum”, traz consigo alguma quebra do processo equitativo e volta a impulsionar – o que sucede em número, quiçá exagerado de hipóteses do nosso processo penal – alguma indiferença perante os prazos.
Parece-nos, por isso, que o impedimento da utilização do processo abreviado quando não for possível deduzir a acusação em 90 dias após os ditos parâmetros, não envolve restrição excessiva e deixa, sem inconvenientes desproporcionais, a forma comum para a perseguição criminal.
A formulação atual é apenas uma nova forma de arrumar a mesma intenção de celeridade e não uma retirada, pura e simples, do dito prazo do elenco dos pressupostos de processo abreviado.
Parece-nos, pois, de manter o decidido, assim improcedendo o recurso.»
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Este parecer, por si só, responde cabalmente à questão suscitada pelo Digno recorrente, pelo que bastaria a simples adesão ao mesmo para demonstrar a sem razão deste recurso.
Ainda assim, sempre se sublinharão alguns dos argumentos aduzidos neste parecer.
Desde logo, somos sensíveis à literalidade da forma de processo – abreviado -, que intrinsecamente tem a ideia de brevidade.
Tal brevidade justifica-se quando de modo breve se sujeita o arguido a julgamento, mas torna-se contra natura, quando pelo decurso do tempo, por razões meramente formais se insiste em manter a forma, oca do conteúdo de rapidez, passados anos, longe dos propósitos explícitos do legislador.
Como consequência, e em abstracto, as naturais diminuições das garantias da defesa, inibida do direito de, passados anos, desde logo não poder requerer a abertura de instrução e por tal via poder impedir a sua sujeição a julgamento.
Aliás, e na mesma linha, cabe questionar o porquê de, quando mesmo após várias alterações legislativas neste item, manter uma coisa que não tem utilidade ou efeito prático? Se a própria lei proíbe a prática de actos inúteis, porquê manter normas inúteis, já que o efeito meramente ordenador não tem, consabidamente, dado resultados e, mais que isso, tem esquecido alguns os direitos de defesa dos arguidos?
Assim, se este prazo encurtado, que o legislador teve por razoável, não for cumprido pela acusação, é de elementar justiça que a defesa, se assim pretender e invocar atempadamente, como foi o caso, tenha também o prazo normal para o exercício dos seus direitos.
E por estas razões, e por todas as demais tão brilhantemente expostas pelo Exmº Procurador-Geral Adjunto, é de manter o despacho recorrido.
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Decisão:
Pelo acima exposto, acorda-se em julgar o recurso improcedente.
Sem custas, por isenção legal.
Guimarães, 7 de Novembro de 2016