Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1229/18.0T8VVD.G1
Relator: RAMOS LOPES
Descritores: AUTORIDADE DE CASO JULGADO
CONSTRUÇÃO DE VARANDAS E TERRAÇOS
RESERVA DA VIDA PRIVADA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/10/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- Os fundamentos de facto duma decisão não adquirem valor de caso julgado quando autonomizados da respectiva decisão, não valendo por si mesmo (não são vinculativos quando desligados da respectiva decisão, valendo apenas enquanto seu fundamento e em conjunto com esta), salvo excepções justificadas pela necessidade de respeitar e observar certas conexões entre o objecto decidido e um outro objecto (designadamente relações de prejudicialidade e relações sinalagmáticas entre prestações)
II- Ainda que houvesse a matéria de facto de ser tida por controvertida porque impugnada nos articulados (não podendo ser tida por assente por não estar isoladamente coberta pelo caso julgado), terá a mesma de ser tida por provada em razão da valorização que importa efectuar da concordância que, quanto a ela, manifestam os apelantes no presente recurso - tal posição dos apelantes no recurso, admitindo a veracidade da factualidade em questão, tem de ser valorizada e ponderada pelo tribunal.
III- A construção de varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes, sem o intervalo de metro e meio em relação ao prédio vizinho, só é proibida quando servidos de parapeito (de muro que, pela sua altura, permita qualificá-lo como parapeito).
IV- Se inexistir parapeito, a lei permite que a construção avance até à estrema do terreno, uma vez que presume existir obstáculo ao devassamento na medida em que é, pelo menos, mais difícil desfrutar das vistas junto à linha divisória, debruçar-se, ocupar o espaço aéreo ou arremessar objectos para ele.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães (1)

RELATÓRIO

Apelantes: A. C. e mulher, M. C. (réus)
Apelados: D. P. e mulher, A. M. (autores)

Juízo local cível de Vila Verde - T. J. Comarca de Braga
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Intentaram D. P. e mulher, A. M., a presente acção comum, pedindo a condenação dos réus A. C. e mulher, M. C., a procederem à construção de um parapeito com altura igual ou superior a 1,5 metros, na área [de terraço] que confronta directamente com prédio de sua (autores) propriedade.

Alegam, em resumo, ser titulares do direito de propriedade sobre o prédio que identificam e que confronta com prédio dos réus, tendo no contexto de tal relação de contiguidade intentado acção judicial contra os também aqui réus por terem edificado um terraço na sua propriedade, em desrespeito das regras do Código Civil, nela tendo peticionado, além do mais, a condenação dos réus a procederem à demolição do terraço que edificaram na estrema do seu prédio e a menos de 1,5 m do seu (autores) prédio, acção que (tendo corrido os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga - Juízo Local Cível de Vila Verde, com o número 191/15.6T8VVD), já julgada com trânsito, decidiu declarar o autor como proprietário do referido imóvel, absolvendo os réus dos demais pedidos. Invocando os factos naquela acção tidos por assentes (designadamente que foi edificada pelos réus uma plataforma de cimento situada em cima de um anexo ao nível do piso do primeiro andar, com cerca de 78 m2 de área de implantação, utlizado para manutenção e que não dispõe de qualquer parapeito, existindo entre tal terraço e o prédio dos autores uma distância de 57 centímetros), alteram nesta acção o pedido face ao decidido naquela causa, peticionando agora os autores a condenação dos réus à construção de parapeito (naquela primeira acção pediram a condenação dos réus na demolição da construção), conformando a situação à disciplina estabelecida no artigo 1360º do CC.
Contestaram os réus, invocando a excepção do caso julgado e impugnando a factualidade alegada, concluindo pela sua absolvição da instância ou, entendendo-se não proceder a excepção dilatória invocada, do pedido.
Cumprido o contraditório, foi proferido saneador sentença que julgou improcedente a invocada excepção dilatória do caso julgado e, considerando que os fundamentos de facto daquela primeira acção tinham força de caso julgado (autoridade de caso julgado) e devia, por isso, manter-se neste processo como intocada, julgou procedente a acção.

Inconformados, apelam os réus, terminando as suas alegações com a formulação das conclusões que se trasncrevem:

A. Pese embora o mui labor da Sentença ora recorrida, os Réus não podem concordar com o seu teor, por duas ordens de razões:
B. Em primeiro lugar consideram que o Senhor Juiz a quo ao proferir Sentença com base em factos provados numa outra, sem verificar os seus fundamentos, as razões subjacentes àquelas considerações daqueles factos provados e daquela decisão, manietou e restringiu a Autoridade de Caso Julgado;
C. Pois o Tribunal a quo justifica a matéria de facto dada como provada, dizendo que o tribunal atendeu à força da autoridade de caso julgado decorrente da decisão já transitada proferida no processo n.º 191/15.6T8VVD (sublinhado nosso!), do Juízo Local Cível de Vila Verde, do Tribunal Judicial de Braga (traduzida na certidão de fls. 54 a 110), nos termos melhor explanados no despacho supra, que aludiu a esta matéria, que aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais.
D. O Tribunal a quo pegou apenas e só nos factos provados na primeira ação mas já não nos seus fundamentos. Na primeira ação foi realizada inspeção judicial ao local, fez-se um registo fotográfico do local e das suas condicionantes e na sua fundamentação o Juiz que presidiu ao julgamento da primeira ação apresentou os seus fundamentos para considerar este ou aquele facto provado ou não provado, tendo inclusive debruçado sobre a questão da edificação de um parapeito.
E. Mas se os factos dados como provados foram taxativamente copiados para a presente ação e o tribunal atendeu à força da autoridade de caso julgado decorrente da decisão já transitada proferida no processo n.º 191/15.6T8VVD, servindo de fundamentação quanto à fixação da matéria de facto, já não atendeu aos fundamentos da mesma.
F. A autoridade de caso Julgado só com descritivo de factos provados numa ação anterior sem os fundamentos que lhe são subjacentes é vazia de sentido e a Autoridade de Caso Julgado fica manietada a simples factos sem contexto, fica profundamente restrita e sem sentido.
G. O efeito positivo da Autoridade de Caso Julgado emanado da decisão proferida no Processo n.º 191/15.6T8VVD, isto é, a definição dada pela sentença à situação ou relação material sub-judice deveria ser respeitada para todos os efeitos em qualquer novo processo e isso não aconteceu!
H. Por outro lado, entendem os Réus que o Tribunal a quo fez uma errada interpretação e aplicação do disposto no artigo 1360º n.º 1 e 2 dos Código Civil.
I. Podemos aceitar como assente que o prédio urbano dos AA. (identificado no Ponto 1 dos factos provados) confronta com o prédio urbano dos Réus.
J. Na inspeção judicial realizada e que faz parte integrante do primeiro processo, é possível verificar que as casas dos AA. e Réus se encontram em pontos opostos, isto é, a casa dos AA. tem saída para a via pública na Rua …, freguesia da ..., e a casa dos Réus tem saída para a via pública na Rua …, freguesia da .... A confrontação dá-se nas traseiras de ambas as moradias, isto é, só os logradouros é que tocam na parte interior de cada um dos prédios.
K. O acesso ao terraço existente, que mais não é, que o telhado de um anexo, é utilizado pelo Réu apenas para manutenção e não dispõe de qualquer parapeito (factos provados 9 e 10).
L. Importa, pois, ter em atenção que as varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes só estão sujeitos à restrição estabelecida pelo artigo 1360.º, n.º 2, do Código Civil, quando sejam servidos de parapeitos de altura inferior a metro e meio em toda a sua extensão ou parte dela.
M. Isto é, a disposição legal em causa, artigo 1360º n.º 1 e 2 refere que não podem, por razões de boa vizinhança, os proprietários de prédios urbanos, edificar terraços a menos de um metro e meio de distância do limite de propriedade quando sejam servidos de parapeitos de altura inferior a metro e meio em toda a extensão ou parte dela.
N. À contrário, os proprietários de prédios urbanos confinantes já podem edificar terraços sem o intervalo de metro e meio, desde que não sejam dotados de parapeito, o que acontece no caso em apreço.
O. Parece então, que a aplicação dada pelo Tribunal a quo está incorreta, porquanto ordena que se edifique um parapeito em cima de um terraço que tem cerca de 57 cm de distância do limite da propriedade vizinha.
P. A premissa que serviu de base à limitação dos direitos de propriedade, em especial no caso do artigo 1360º C.C. é a salvaguarda da privacidade dos vizinhos, evitando que o prédio seja objeto da indiscrição de estranhos e por outro lado, impedir que o prédio seja arremessado com objetos.
Q. Transcrevemos as palavras de Pires de Lima e Antunes Varela – op. cit., pág. 215 –, por elucidativas: “Traduz esta disposição uma nova orientação, que é a de facilitar as relações de vizinhança, não impedindo aqueles atos que não afetam gravemente os interesses do vizinho e que, pelo seu exercício continuado, poderiam conduzir à constituição de servidões.
R. Não pode dizer-se que a existência de um simples terraço ou eirado, a um nível superior ao do prédio vizinho, afete mais gravemente este do que a simples contiguidade à superfície. Praticamente, a devassa é a mesma. Tanto vale estar no terraço como no solo, para poder ver o que se passa no terreno vizinho, ou nas suas traseiras.
S. Começam somente os prejuízos a ser atendíveis, se existir um parapeito, porque, neste caso, tal como numa janela, a pessoa pode debruçar - se, ocupando parcialmente o prédio alheio, e arremessar com facilidade objetos para dentro deste. A devassa começa a tomar aspetos mais graves”.
T. E Juiz da primeira instância termina referindo que, no caso dos presentes autos, encontra-se demonstrado que o terraço construído pelos Réus não é dotado de qualquer parapeito com as características previstas no art.º 1360.º, n.º 2, do Código Civil.
Deste modo, a sua edificação não comporta qualquer violação deste normativo legal.
U. Pelo que a decisão ora em recurso interpretou erradamente o dispositivo e fundamento do artigo 1360º, nº 1 e 2 do C.C.
V. Face ao exposto, a sentença proferida ao decidir como decidiu violou o disposto nos artigos 628º, 577 alínea i), 580º e 581º todos do C.P.C. e 1360, nº 1 e 2 do C.C.
Contra-alegaram os autores em defesa da decisão recorrida e pela improcedência do recurso.
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Objecto do recurso

As questões suscitadas pelos apelantes nas conclusões formuladas podem sintetizar-se nos seguintes termos:

- da autoridade de caso julgado formado por anterior acção – circunscrição feita pela decisão apelada aos fundamentos de facto,
- da não violação da regra estabelecida no artigo 1360º do CC na edificação levada a efeito pelos réus e referida no facto provado número 4.
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FUNDAMENTAÇÃO
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Fundamentação de facto

Na sentença recorrida consideraram-se provados os seguintes factos:

1. Os autores têm inscrita em seu nome no registo predial a aquisição da propriedade do prédio urbano sito em ..., freguesia de ..., Concelho de Vila Verde, composto de casa rés-do-chão e andar, com logradouro, com área coberta de 115 m2 e a área descoberta de 730 m2, a confrontar de Norte com A. C., de Sul com Estrada Municipal de Nascente com J. S. e M. G. e de Poente com F. R., inscrito na matriz predial urbana sob o art.º … e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ….
2. Os réus têm inscrita em seu nome no registo predial a aquisição da propriedade do prédio urbano sito em ..., freguesia de ..., Conselho de Vila Verde, composto morada de casas com dois pavimentos e quintal, com a área coberta de 120 m2 e a área descoberta de 979 m2, a confrontar de Norte com caminho público, de Sul com M. A., de Nascente com A. F. e de Poente com A. V., inscrito na matriz predial urbana sob o art.º … e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ….
3. O prédio referido em 1 confronta com o prédio referido em 2.
4. O réu iniciou a edificação de uma plataforma de cimento situada em cima de um anexo e ao nível do piso do primeiro andar do prédio referido em 2, em finais da década de 90.
5. O terraço referido em 4 tem cerca de 78.00 m2 de área de implantação.
6. Os réus emigraram para a Alemanha, deixando o pai do réu a cargo da construção da sua actual casa de morada de família no prédio identificado em 2.
7. Os réus estiveram emigrados na Alemanha até ao ano de 2000, altura em que, regressados definitivamente a Portugal, ocuparam e passaram a residir no referido prédio.
8. O terraço referido em 4, anexo à casa, existe há mais de 15 anos.
9. O acesso ao terraço em apreço é utilizado pelo Réu apenas para manutenção.
10. Não dispõe de qualquer parapeito.
11. Entre o terraço referido em 4 e o prédio referido em 1 existe uma distância de cerca de 57 centímetros.
12. Os réus encontram-se, desde a época referida em 4, em poder do terraço aludido, à vista de toda a gente e sem oposição, pelo menos até 27.12.2013, data em que o autor se opôs à existência do mesmo junto da extrema da sua propriedade, tendo voltado a fazê-lo em Maio de 2014, em ambos os casos junto do Município de ….
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Fundamentação de direito

A. Da autoridade do caso julgado da decisão proferida na acção que com o nº 191/15.6T8VVD correu entre as partes – circunscrição do efeito material do caso julgado aos fundamentos de facto
Sem que retirem daí consequências práticas ou relevantes para a apreciação da apelação, sustentam os apelantes não poderem os fundamentos de facto da decisão proferida na acção nº 191/15.6T8VVD valer na presente acção, por não estarem cobertos pela força de caso julgado.
Que não retiram de tal argumentação qualquer consequência relevante, mormente ao nível da factualidade a considerar na presente acção para apreciação da pretensão agora formulada, resulta da constatação que admitem na apelação a veracidade da matéria alegada pelos autores apelados e considerada provada na decisão apelada – vejam-se as conclusões I, J, K e O –, ou seja, que edificaram plataforma de cimento situada em cima de anexo e ao nível do primeiro do seu prédio (facto 4), utilizada apenas para manutenção (facto 9), não dispondo de qualquer parapeito (facto 10), existindo entre essa edificação e o prédio dos autores distância de 57 centímetros (facto 11).
Tal posição dos apelantes no recurso (admitindo a veracidade de tal matéria) tem de ser valorizada e ponderada por este tribunal – havendo tal matéria de ser tida por controvertida por impugnada nos articulados (não podendo ser tida por assente por não estar isoladamente coberta pelo caso julgado), teria agora de ser tida por provada em razão da valorização que importa efectuar da concordância que, quanto a ela, manifestam os apelantes no presente recurso (2).
Por isso (e descurando a possibilidade prevista no nº 2 do art. 91º do CPC, que ao caso não interessa), reconhecendo que os fundamentos de facto duma decisão não adquirem valor de caso julgado quando autonomizados da respectiva decisão (3), não valendo por si mesmo (não são vinculativos quando desligados da respectiva decisão, valendo apenas enquanto seu fundamento e em conjunto com esta), salvo excepções justificadas pela necessidade de respeitar e observar certas conexões entre o objecto decidido e um outro objecto (designadamente relações de prejudicialidade e relações sinalagmáticas entre prestações) (4) – é a parte dispositiva que vincula destinatários e tribunal; o caso julgado não tem por objecto os fundamentos, de facto ou de direito (para o ter, a parte terá de o pedir, nos termos do art. 91º, nº 2 do CPC) (5 –, sem esquecer também que a autoridade do caso julgado, enquanto efeito positivo externo duma decisão [a vinculação de uma qualquer decisão posterior a uma decisão anterior ‘já transitada em razão de relação de prejudicialidade ou de concurso entre os respetivos objetos processuais, ou, em termos mais simples, em razão de objectos processuais conexos (6) - ‘a autoridade de caso julgado tem a ver com a existência de relações entre acções, já não de identidade jurídica (própria da excepção de caso julgado), mas de prejudicialidade entre acções, de tal ordem que julgada, em termos definitivos, uma certa questão que correu entre determinadas partes, a decisão sobre essa questão ou objecto da primeira causa, se impõe necessariamente em todas as acções que venham a correr termos, ainda que incidindo sobre objecto diverso, mas cuja apreciação dependa exclusivamente do objecto previamente julgado, perspectivado como relação condicionante ou prejudicial da relação material controvertida na acção posterior’ (7)] é próprio da sentença que julga procedente o pedido do autor (o valor de título recognitivo ou constitutivo de efeitos jurídicos é próprio da sentença que julga procedente o pedido do autor, não se verificando já quanto à sentença que julga improcedente a pretensão do autor – a improcedência do pedido não equivale a um reconhecimento da situação material oposta à alegada) (8), sempre a factualidade considerada provada na sentença recorrida há-de ser considerada – os apelantes manifestam no recurso concordância quanto à mesma.
Noutra perspectiva, também se conclui (facilmente) que a decisão proferida na anterior acção que correu entre as partes (e que julgou improcedente a pretensão aí deduzida de condenação dos aqui réus apelantes a demolir a construção edificada) não se projecta na presente com autoridade de caso julgado – apesar de sustentarem que a decisão recorrida não respeitou o efeito positivo da autoridade do caso julgado (conclusão G), certo é que os apelantes não identificam o que na anterior acção foi decidido que se imponha, na presente, com autoridade de caso julgado.
No âmbito da autoridade do caso julgado o instituto representa ‘o comando de acção ou a proibição de omissão respeitante à vinculação subjectiva à repetição no processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição no processo posterior do conteúdo da decisão antecedente’ (9) – os efeitos do caso julgado material projectam-se como autoridade de caso julgado material, quando o conteúdo da decisão anterior constitui uma vinculação à decisão do distinto objecto posterior (10).
O caso julgado da decisão anterior releva como autoridade de caso julgado no processo subsequente quando o objecto processual daquela primeira é condição para a apreciação desta – a força ou autoridade de caso julgado desenvolve uma função positiva, tornando a solução do julgado vinculativa para outros casos que venham a ser decididos, inserindo-se a decisão tomada, como questão prejudicial, no objecto da segunda acção (assentando tal função positiva na dependência do objecto da segunda acção ao objecto da primeira); pressupondo diversidade de objectos entre as causas e surgindo o objecto da primeira como pressuposto da apreciação do objecto da segunda, é dispensada a verificação da tríplice identidade pressuposta pela excepção do caso julgado (arts. 580º e 581º do CPC), requerendo-se apenas, para lá da identidade subjectiva, uma relação de prejudicialidade ou dependência entre as causas (11).
A ‘autoridade do caso julgado implica o acatamento de uma decisão proferida em ação anterior cujo objeto se inscreva, como pressuposto indiscutível, no objeto de uma ação posterior, ainda que não integralmente idêntico, de modo a obstar a que a relação jurídica ali definida venha a ser contemplada, de novo, de forma diversa’ (12).
Na situação em análise, não se descortina que a anterior decisão (de improcedência, salvo quanto ao pedido de reconhecimento do direito de propriedade dos autores sobre o imóvel) se projecte na presente acção como pressuposto da presente acção – a improcedência do pedido de demolição da construção edificada pelos réus a menos de 1,5 metros do prédio dos autores não resolveu, definitivamente, qualquer questão que se revele no âmbito da relação material da presente acção como questão previamente julgada: aí não foi decidido, definitivamente, que a construção edificada pelos réus apelantes desrespeitava ou não desrespeitava o disposto no art. 1360º do CC.
B. Da não violação da regra estabelecida no artigo 1360º do CC na edificação levada a efeito pelos réus apelantes referida no facto provado número 4.
Considerou a decisão apelada constituir contravenção ao disposto no art. 1360º, nº 1 e 2 do CC a construção edificada pelos réus apelantes a menos de metro e meio da linha divisória entre o seu prédio e o prédio dos autores apelados, por não estar o terraço provido de qualquer parapeito, ponderando que o mesmo permite a devassa da vista e da privacidade do prédio vizinho (dos autores apelados) – ainda que usado para manutenção, nada impede que a qualquer momento o mesmo seja usado por forma a colocar em causa o direito dos autores à reserva da sua vida privada.
Solução que não merece acolhimento pois que a limitação/restrição do preceito (à edificação de varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes a deitar directamente para o prédio vizinho a menos de metro e meio deste) só se verifica quanto a varanda, terraço, eirado ou construção semelhante seja servido por parapeito de altura inferior a metro e meio em toda a sua extensão ou parte dela – o preceito refere-o expressamente.
A disposição do artigo 1360º, nº 1 e 2 do CC está orientada no sentido de ‘facilitar as relações de vizinhança, não impedindo aqueles actos que não afectam gravemente os interesses do vizinho e que, pelo seu exercício continuado, poderiam conduzir à constituição de servidões’ (13).
Tendo por orientação hermenêutica a finalidade do preceito – a restrição tem por escopo evitar o devassamento do prédio vizinho, seja pela indiscrição de estranhos, seja pelo arremesso de objectos (14), ou seja, evitar que sobre os prédios vizinhos se façam despejos e, sobretudo, que sejam devassados com a vista (15) –, não pode deixar de considerar-se que a existência de um terraço ou eirado, a um nível superior ao do prédio vizinho, não afecta ‘mais gravemente este que a simples contiguidade à superfície’, sendo a devassa praticamente a mesma, pois para poder ver o que se passa no terreno vizinho tanto vale estar no terraço como no solo, começando ‘somente os prejuízos a ser atendíveis, se existir um parapeito, porque, neste caso, tal como uma janela, a pessoa pode debruçar-se, ocupando parcialmente o prédio alheio, e arremessar com facilidade objectos para dentro deste’, começando a devassa a tomar aspectos mais graves – não são as ‘vistas que interessam, mas o devassamento, ou melhor, a possível ocupação do terreno vizinho’ e por isso a nossa lei exige, para a verificação da restrição, a existência de um parapeito, que deve ter dimensões suficientes para que possa servir de apoio à pessoa, para que esta possa debruçar-se, apoiando-se nele, sobre o terreno do vizinho (16).
A construção de varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes, sem o intervalo de metro e meio em relação ao prédio vizinho, só é proibida quando são servidos de parapeito (de muro que, pela sua altura, permita qualificá-lo como parapeito) (17) – a existência de parapeito é determinante para a verificação da proibição, pois não basta a ‘existência de um espaço de onde se possa olhar para o prédio contíguo: o que a lei pretende é evitar a intromissão abusiva, o devassamento, e que objectos possam ser atirados para o prédio vizinho’, sendo a intromissão na reserva privada do vizinho propiciada (nas obras elencadas no nº 2 do art. 1360º do CC) pela existência de parapeitos, pois estes ‘emprestam comodidade e segurança, permitindo que alguém se debruce e apoie os braços’ (normalmente os parapeitos têm a altura duma pessoa adulta de estatura normal) e, assim, ‘possa devassar «comodamente» pela vista o que se passa no prédio contíguo’ (18).
Por isso se pode considerar que, se inexistir parapeito, a lei permite que a construção avance até à estrema do terreno, uma vez que presume existir obstáculo ao devassamento na medida em que é, pelo menos, mais difícil desfrutar das vistas junto à linha divisória, debruçar-se, ocupar o espaço aéreo ou arremessar objectos para ele (19).
Considerando o exposto, demonstrado que a construção edificada pelos réus apelantes não dispõe de qualquer parapeito, tem de concluir-se não existir violação ao disposto no art. 1360º do CC, pelo que procede a apelação.

C. Procede, pois, a apelação, com a consequente improcedência da acção, podendo sintetizar-se a argumentação, em jeito de sumário:

I- Os fundamentos de facto duma decisão não adquirem valor de caso julgado quando autonomizados da respectiva decisão, não valendo por si mesmo (não são vinculativos quando desligados da respectiva decisão, valendo apenas enquanto seu fundamento e em conjunto com esta), salvo excepções justificadas pela necessidade de respeitar e observar certas conexões entre o objecto decidido e um outro objecto (designadamente relações de prejudicialidade e relações sinalagmáticas entre prestações)
II- Ainda que houvesse a matéria de facto de ser tida por controvertida porque impugnada nos articulados (não podendo ser tida por assente por não estar isoladamente coberta pelo caso julgado), terá a mesma de ser tida por provada em razão da valorização que importa efectuar da concordância que, quanto a ela, manifestam os apelantes no presente recurso - tal posição dos apelantes no recurso, admitindo a veracidade da factualidade em questão, tem de ser valorizada e ponderada pelo tribunal.
III- A construção de varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes, sem o intervalo de metro e meio em relação ao prédio vizinho, só é proibida quando servidos de parapeito (de muro que, pela sua altura, permita qualificá-lo como parapeito).
IV- Se inexistir parapeito, a lei permite que a construção avance até à estrema do terreno, uma vez que presume existir obstáculo ao devassamento na medida em que é, pelo menos, mais difícil desfrutar das vistas junto à linha divisória, debruçar-se, ocupar o espaço aéreo ou arremessar objectos para ele.
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DECISÃO
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Pelo exposto, acordam os juízes desta secção cível, em julgar procedente a apelação e em consequência, julgando improcedente a acção, absolver os réus apelantes do pedido.
Custas da apelação (tal qual as da acção) pelos autores apelados.
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Guimarães, 10/09/2020
(por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)



1. Apelação nº 1229/18.0T8VVD.G1; Relator: João Ramos Lopes; Adjuntos: Jorge Teixeira; José Fernando Cardoso Amaral
2. A propósito do relevo a atribuir à concordância das partes sobre matéria de facto na fase do recurso, Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, Almedina, pp.177/178.
3. ‘Os factos objecto de julgamento e declarados provados numa sentença não podem ser reconhecidos e declarados provados numa outra sentença distinta’ – acórdão STJ de 20/11/2019 (Oliveira Abreu), no sítio www.dgsi.pt (citando doutrina e jurisprudência do STJ no mesmo sentido).
4. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 2ª edição, pp. 579/580.
5. Rui Pinto, ‘Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias’, Julgar Online, Novembro de 2018, p. 18.
6. Rui Pinto, Exceção e autoridade de caso julgado (…), p. 25.
7. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21/11/2016 (Jorge Seabra), no sítio www.dgsi.pt.
8. Rui Pinto, Exceção e autoridade de caso julgado (…), p. 36.
9. Miguel Teixeira de Sousa, O objecto da sentença e o caso julgado material (O estudo sobre a funcionalidade processual), in BMJ, nº 325, p. 179.
10. Autor e obra citados, p. 168 (itálicos da nossa responsabilidade).
11. P. ex., o acórdão do STJ de 6/11/2018 (Maria João Vaz Tomé), no sítio www.dgsi.pt.
12. Acórdão do STJ de 8/11/2018 (Tomé Gomes), no sítio www.dgsi.pt.
13. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume III, 2ª edição revista e actualizada, p. 215.
14. Pires de Lima e Antunes Varela, obra citada, p. 212.
15. Manuel Henrique Mesquita, Direitos Reais, Coimbra, Sumários das Lições ao Curso de 1966-1967, p.149.
16. Pires de Lima e Antunes Varela, obra citada, p. 215.
17. Acórdão da Relação do Porto de 17/12/1987 (Lopes Furtado), cujo sumário pode ser consultado no sítio www.dgsi.pt.
18. Acórdão do STJ de 14/07/2016 (Fonseca Ramos), no sítio www.dgsi.pt; no mesmo sentido (citando-o), o acórdão desta Relação de 10/07/2018 (Margarida Sousa), no sítio www.dgsi.pt.
19. Acórdão do STJ de 11/03/1999 (Francisco Lourenço), no sítio www.dgsi.pt.