Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
399/14.1T8GMR-C.G2
Relator: HELENA MELO
Descritores: ANULAÇÃO DE VENDA EXECUTIVA
INDEMNIZAÇÃO AO COMPRADOR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/23/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
A anulação da venda executiva por erro sobre a coisa transmitida visa a tutela do comprador, estando por isso na sua exclusiva disponibilidade. Contempla situações de erro acerca do objecto jurídico (ónus ou limitação) ou material (identidade ou qualidade da coisa transmitida) da venda, mas quando comparado com o regime geral da anulação do negócio jurídico por erro (artº 257 CC e 251 CC) dispensa os requisitos exigidos pelo artigo 247º do CC: a essencialidade para o declarante e o seu conhecimento ou cognoscibilidade pelo declaratário, sendo apenas necessária a demonstração de que o ónus ou limitação não foi considerado ou que a identidade ou as qualidades do bem vendido não coincidem com as que foram anunciadas.
.Verifica-se erro material sobre a coisa transmitida quando no anúncio publicitando a venda foi indicada uma área do imóvel superior à real.
Não tendo havido dolo, assiste ao comprador direito a ser indemnizado dos danos emergentes sofridos por força do disposto no artº 909º e 564, nº 1, 1ª parte, ambos do CC, incluindo-se nestes danos as despesas com a escritura e as despesas feitas a título de pagamento de IMT e Imposto de Selo.
Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório

F. F., veio deduzir incidente de anulação da venda, nos termos do disposto no artigo 838º, do CPC, alegando para o efeito que no âmbito do processo de execução comum que correu termos pelo 3º Juízo do extinto Tribunal Judicial de ..., sob o n º 1562/07.7TBFAF-C, em que era exequente R. A. e executado J. C., foi penhorado, a 17 de Fevereiro de 2009, além do mais, o imóvel: “Verba DOIS – Prédio rústico, denominado “Bouça ..., com a área de 1100m2, situada no lugar da ..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº .../..., e inscrito na respectiva matriz sob o artigo ..., com o valor patrimonial de 11,43€”.
Mais alega que foi emitido, com data de 07/01/09, pela Exmª Senhora Agente de Execução nomeada naqueles autos, anúncio designando data para abertura de propostas dos bens imóveis penhorados, constando quanto à identificação do imóvel a vender o seguinte: “LOTE DOIS – Prédio rústico, denominado “Bouça ..., com a área de 1100m2, situada no Lugar da ..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº .../..., e inscrito na matriz respetiva sob o artigo .... Valor Base: 10.000,00€.
Alega ainda que na data designada para o efeito, não tendo sido apresentadas propostas, foi determinada a venda por negociação particular e designada a Exmª Senhora Agente de Execução encarregada da venda. O requerente tomou conhecimento da proposta de venda do aludido imóvel e atentas as características indicadas no anúncio, mormente localização, área e limites, apresentou uma proposta de compra, no valor de 7.000,00€ (sete mil euros) que foi aceite, tendo adquirido o referido prédio.
Mais alega que apesar da outorga da escritura pública, a Exmª Senhora Agente de Execução não procedeu à entrega do mencionado imóvel ao requerente, sendo que pelas características do terreno, suas confrontações, área e origem matricial, o requerente estava convencido que do imóvel por si adquirido fazia parte integrante a construção que ali se encontrava implantada (e só com a integração da mencionada construção no prédio adquirido pelo requerente se obtinha a área constante no anúncio de venda), quando em Abril de 2013, tomou conhecimento que nestes autos de execução estava em venda, por negociação particular, tal construção - prédio inscrito na matriz urbana da freguesia de ..., concelho de ..., sob o artigo ... - pelo que deduziu embargos de terceiro.
Os embargos de terceiro foram julgados improcedentes. Não obstante, a realidade do imóvel que o requerente adquiriu não correspondia nem corresponde ao que foi anunciado para efeitos de venda, sendo que o valor proposto pelo requerente para aquisição do mencionado imóvel sempre teve por base a área de 1.100m2 e não a de 216m2 que o imóvel tem sem a consideração do prédio inscrito sob o artº ...º do CC.
Por fim, alega que só após a prolação e notificação da decisão proferida pelo Tribunal da Relação, datada de 12/02/2016 que recaíu sobre a sentença proferida nos embargos de terceiro, é que o requerente tomou conhecimento e consciência da divergência entre a área anunciada em venda e a área real do prédio, pelo que o negócio é anulável por erro sobre o objecto, sendo que se o requerente soubesse que a área real do prédio não correspondia à área anunciada, nunca teria apresentado qualquer proposta de compra, devendo ser restituído ao requerente, tudo quanto prestou, designadamente o preço pago, despesas da escritura, IMT (Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis) e Imposto de Selo, o que tudo ascende a 7.621,25€ (sete mil seiscentos e vinte e um euros e vinte e cinco cêntimos).
Concluiu, pedindo que seja declarado nulo o negócio celebrado pelo requerente, sendo devolvida ao requerente a quantia de € 7.621,25, acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde 24.05.2012 até integral pagamento.

Notificada a exequente, o executado e credor reclamante para se pronunciarem, em 10 dias (artº 838º, nº 2 do CPC), apenas a exequente se pronunciou, alegando que se verificava erro na forma de processo e que o requerente conhecia perfeitamente as características do prédio que viria a adquirir. Mais alegou que o requerente apenas apresentou o pedido de anulação cerca de 4 anos após ter adquirido o prédio, encontrando-se, assim, extinto o direito do requerente, impugnando ainda a restante factualidade alegada.
Terminou, requerendo, que fossem julgadas procedentes as excepções invocadas e indeferido o requerido.
Notificado o requerente para, querendo, se pronunciar sobre as excepções invocadas, nada disse.
Designada data para o efeito, não foi possível a conciliação das partes.
Após foi proferida decisão que indeferiu o incidente de anulação da venda.
O requerente não se conformou e interpôs recurso de apelação, tendo, por acórdão de 17.12.2018 sido julgada procedente a apelação e revogada a decisão recorrida, tendo sido ordenado que os autos prosseguissem os seus ulteriores termos.
Regressados os autos à 1ª instância, procedeu-se à inquirição de testemunhas e após foi proferida sentença, em 09.05.2019 que julgou nula a venda e ordenou a restituição do preço ao adquirente, no valor de 7.000,00.
De novo o requerente não se conformou e interpôs o presente recurso da sentença, pugnando que lhe seja restituída a quantia paga pela escritura, IMT e Imposto de Selo, no valor de 621,25 e ainda juros de mora sobre a quantia paga, à taxa legal, desde a data da celebração da escritura – 24.05.2012 – até integral pagamento.
No recurso o apelante requereu a retificação ou reforma da sentença, pela existência em seu entender de um manifesto lapso, ao não ter sido ordenada a devolução das quantias pagas a título de IMT, Imposto de Selo e despesas com a escritura, assim como ao não ter sido considerado o pagamento de juros, à taxa legal, desde a data da escritura, até integral pagamento.
Por despacho de 29.10.2019 foi desatendido o pedido de retificação/reforma.

São as seguintes as conclusões da apelação:

1º- Da análise dos elementos constantes dos presentes autos, impunha-se decisão diversa, por parte do Tribunal a quo sobre o valor a devolver ao recorrente, mormente ordenando-se a devolução da quantia que o recorrente gastou com a aquisição do imóvel, acrescida de juros à taxa legal desde a data da escritura.
2º- No tocante aos valores peticionados, o recorrente, apenas peticionou (e comprovou documentalmente) o valor do preço pago, as despesas da escritura, o IMT e o Imposto de Selo, num total de € 7.621,25 (Sete mil seiscentos e vinte e um euros e vinte e cinco cêntimos).
3º- Não obstante o valor ter sido reconhecido, conforme resulta dos factos provados, o Tribunal a quo consignou, no tocante ao valor a devolver, apenas e só o valor do preço pago pelo recorrente.
4º- Porque a questão aqui em discussão, poderá ser facilmente resolvida por meio de Reforma, por recurso ao expediente previsto no nº1 do artigo 614º e no nº 2 do artigo 616º do CPC importará, antes de mais, formular requerimento nesse sentido, passando, num segundo momento, à apreciação das questões que levaram à interposição do presente recurso.
5º- Tratando-se, como efetivamente se trata, de evidente lapso, solicita o Recorrente que seja proferido despacho, nos termos do nº1 do artigo 614º do CPC, corrigindo o manifesto lapso existente na sentença.
6º- Caso assim não se entenda, mas sem prescindir, da fundamentação fáctica da sentença recorrida devia constar, e não consta, que o conhecimento da desconformidade entre o imóvel transmitido e o anunciado, é posterior à decisão proferida pelo Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, nos autos de embargos de terceiro deduzidos pelo recorrente, ou seja, depois de 12/02/2016 – data da prolação do douto Acórdão.
7º- Com efeito, da conjugação da prova testemunhal com a prova documental junta aos autos, impunha-se ao Tribunal que no ponto 16. dos factos provados constasse que “Em data não concretamente apurada, posterior a 12/02/2016, o requerente teve conhecimento da divergência mencionada em 15º”.
8º- Independentemente disso, dos factos provados resulta claramente que “ O requerente despendeu a quantia de € 7.621,25, a título de preço pago, despesas com a escritura, IMI e Imposto de selo” (Cfr. ponto 17 da factualidade assente).
9º- A douta sentença proferida apenas ordena a devolução ao requerente da quantia correspondente ao preço por ele pago pela aquisição do imóvel, isto é, a quantia de € 7.000,00 (Sete mil euros) deixando de fora as despesas com a escritura, IMI e Imposto de selo, bem como os juros peticionados.

Ora,

10º- Considerando que o agente de execução é um “auxiliar da justiça” do Estado tal como tem vindo a ser entendido pela Jurisprudência dos Tribunal superiores (cfr. entre outros, Acs. da Rel. de Lisboa de 20-09-09 e 17-02-11 e Ac. da Rel. do Porto de 25-10-10) e que a venda aqui em causa foi anulada por se ter demonstrado que existiu desconformidade entre no imóvel transmitido e o anunciado, isto é, que existiu erro sobre a coisa transmitida, por desconformidade com o que foi anunciado, havendo, por isso, erro na formação da vontade do adquirente, por facto imputável ao agente de execução que penhorou, anunciou e vendeu um prédio com determinadas características, que na realizada não tinha, impõe-se, a devolução ao recorrente do preço por si pago, no montante de €7.000,00, acrescida de juros de mora à taxa peticionada, a cumular com a indemnização prevista no artigo 909º do Código Civil.
11º- Cumpre referir que no pedido formulado, o recorrente atém-se apenas ao preço do imóvel, acrescido do IMT, Imposto de Selo e despesas da escritura, tudo no valor global de €7.621,25 (Sete mil seiscentos e vinte e um euros evite e cinco cêntimos), acrescido de juros de mora à taxa legal, desde a data da celebração daquela, ou seja, 24/05/2012 até integral e efetivo pagamento.
12º- Tais quantias, peticionadas pelo recorrente, e dadas como provadas, incluem-se no conceito de danos emergentes do contrato.
13º- Segundo Miguel Teixeira de Sousa, in “Acção Executiva Singular”, pág. 396 e 397. “o quantum da indemnização determina-se segundo as regras extraídas do regime sobre a venda de bens onerados. Se não houve dolo da pessoa encarregada da venda, o adquirente deve ser indemnizado apenas dos danos emergentes do contrato (art. 909º CC), ou seja, a indemnização respeita somente ao interesse contratual negativo e não abrange os lucros cessantes.
14º- Como refere Fernando Amâncio Ferreira, in Curso de Processo de Execução, 11ª ed. Almedina 2009, pág. 411, o comprador terá de ser embolsado do preço e das despesas de compra (IMT, escritura, etc.).
15º- Assim sendo, salvo o devido respeito, no caso, o recorrente tem direito às quantias por si peticionadas, isto é, à devolução do preço, no montante de € 7.000,00 e respetivos juros de mora, á taxa legal de 4% desde a data da escritura, mais as despesas por si suportadas como a referida aquisição e que se mostram dadas como provadas ( € 215,00 com a realização da escritura pública, € 350,00 referente ao IMI, e € 56,00 com Imposto de selo, num total de € 621,25).
16º- Em conformidade, ao decidir como decidiu, a douta sentença proferida fez errada interpretação e aplicação da lei, mormente do disposto no artigo 909º do Código Civil, violando-a.

Nestes termos e nos mais de direito que mui doutamente serão supridos,

a) deverá a decisão recorrida ser retificada ou reformada nos termos dos artigos 614º, nº 1 e 616º, nº 2, ambos do CPC, no sentido pugnado pelo recorrente;
b) caso assim não se entenda, deve o presente recurso ser julgado procedente, ordenando-se a devolução ao recorrente do valor global de € 7.621,25€ acrescido de juros à taxa legal desde 24/05/2012, até integral e efectivo pagamento.

Não foram apresentadas contra-alegações.

II – Objeto do recurso

Considerando que:

. o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações dos recorrentes, estando vedado a este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso; e,
. os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu acto, em princípio delimitado pelo conteúdo do acto recorrido,

as questões a decidir são as seguintes:

. se deve ser alterado o ponto 16 dos factos provados;
. se anulada a venda em processo executivo, são devidas as despesas a título de IMT, Imposto de Selo e despesas com a escritura suportadas pelo comprador; e,
. se são devidos juros de mora a partir da data da escritura.

III – Fundamentação

Na 1ª instância foram considerados provados os seguintes factos com interesse para a decisão do incidente:

1º- No âmbito do processo de execução comum que correu termos pelo 3º Juízo do extinto Tribunal Judicial de ..., sob o n º 1562/07.7TBFAF-C, em que era exequente R. A. e executado J. C., foi penhorado, a 17 de Fevereiro de 2009, além do mais, os seguintes imóveis:
2º - “Verba UM – Prédio urbano, composto por casa com logradouro, com área coberta de 42,20 m2 e descoberta de 471,80 m2, situada no Lugar da ..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº .../... e inscrito na matriz sob o artigo ..., com o valor patrimonial de € 25.512,13.
Verba DOIS – Prédio rústico, denominado “Bouça ..., com a área de 1100m2, situada no lugar da ..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº .../..., e inscrito na respectiva matriz sob o artigo ..., com o valor patrimonial de 11,43€”.
3º - Pela Ap. 2358 de 2009/02/17, o arresto anteriormente registado foi convertido em penhora e prosseguiu-se com a citação dos credores com garantia real sobre o imóvel penhorado.
4º- Foi emitido, com data de 07/01/2010, pela Exmª Senhora Agente de Execução nomeada naqueles autos, "ANUNCIO” designando data para abertura de propostas dos bens imoveis penhorados, constando o seguinte:

5º - “Lote UM - Prédio urbano, composto por casa com logradouro, com área coberta de 42,20 m2 e descoberta de 471,80 m2, situada no Lugar da ..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº .../... e inscrito na matriz sob o artigo ..., com o valor base de € 30.000,00.
6º - “LOTE DOIS – Prédio rústico, denominado “Bouça ..., com a área de 1100m2, situada no Lugar da ..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº .../..., e inscrito na matriz respectiva sob o artigo .... VALOR BASE: 10.000,00€.
7º - O requerente adquiriu, por meio de venda judicial através de escritura pública de compra e venda celebrada no Cartório Notarial do Dr. C. T., em 24 de Maio de 2012, de fls. dezoito a fls. vinte verso, do Livro de notas para escrituras diversas numero … a folhas cento e dez verso, na qual interveio como primeira outorgante e na qualidade de Agente de Execução E. M., nomeada nos autos de Execução o seguinte prédio rústico denominado Boça das …, sito no lugar da ..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número … da freguesia de ... e inscrito na matriz rústica sob o artigo ....
8º - No âmbito do apenso B- embargos de terceiro quanto ao prédio descrito na CRP de ... sob o nº ...- ..., em 25 de Novembro de 2013, o requerente apresentou uma petição inicial aperfeiçoada, constando da mesma, entre outros:
9º - “15º- Assim, o prédio adquirido pelo requerente tinha e tem a área de 1.100m2 e dele faz parte integrante uma construção, sem qualquer autonomia, tal como resulta do levantamento topográfico que serviu de suporte ao Processo de Discriminação.
10º - 16º- Ou seja, a área do prédio adquirido pelo requerente inclui a área ocupada pela construção.
11º - 17º- Só com a soma das duas áreas – parte construída e parte sem construção – se obtém a área do prédio adquirido pelo requerente e que resulta do Processo de Discriminação (…)”, conforme requerimento junto a fls. 105 a 110 do apenso B, cujo teor se dá como integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
12º - Após a compra mencionada em 6º, a Sr. agente de execução não procedeu à entrega do imóvel ao adquirente.
13º - O prédio adquirido pelo requerente tem a área de 216 m2.
14º - O valor pago pelo requerente teve por base a aquisição da área de 1.100 m2.
15º - Se o adquirente que a área real do prédio não correspondia à área anunciada não tinha apresentado qualquer proposta.
16º - Em data não concretamente apurada, o requerente teve conhecimento da divergência mencionada em 15º.
17º - O requerente despendeu a quantia de € 7621,25, a título de preço pago, despesas com a escritura, IMI e Imposto de selo.
18º - Os presentes autos deram entrada em Juízo em 05-04.2016.

Apreciando:

Da impugnação da matéria de facto

Pretende o apelante que seja alterado o ponto 16 dos factos provados, onde consta que “em data não concretamente apurada, o requerente teve conhecimento da divergência mencionada em 15”, mantendo-se o dado como provado, mas aditando-se o seguinte: “posterior a 12.02.2016”, passando, consequentemente, a considerar-se como provado que “em data não concretamente apurada, posterior a 12/02/2016, o requerente teve conhecimento da divergência mencionada em 15”.
Fundamenta-se no depoimento da testemunha M. S. e na prova documental junta aos autos – acórdão do Tribunal da Relação datado de 11.02.2016(1) - proferido nos embargos de executado e junto a este apenso a fls 27 v a 36.
A factualidade que se pretende aditar não constitui facto instrumental a considerar nos termos do artº 5º, nº 2, alínea a) do CPC, como é defendido pelo apelante, desde logo porque foi por si alegado no artº 35º do requerimento inicial, e o disposto no artº 5º, nº 2 destina-se a colmatar falhas de alegação.
A alteração pretendida nenhum relevo tem para a decisão do recurso. Tratando-se de um prazo de caducidade era à parte que invocou a caducidade que incumbia demonstrar que quando o requerente intentou a presente ação já havia decorrido mais de um ano sobre o conhecimento de tal erro (artº 287º do CC), o que não logrou demonstrar, pelo que a exceção de caducidade foi julgada improcedente e não foi interposto recurso desse segmento da decisão.
E assim, o tribunal não deve conhecer da impugnação por desnecessidade, pois o tribunal de recurso deve abster-se de o fazer “quando os factos impugnados não interfiram de modo algum na solução do caso, designadamente por não se visionar qualquer solução plausível de questão de direito que esteja dependente da modificação que o recorrente pretende operar no leque de factos provados ou não provados” (2).
Mas ainda que assim não se entendesse, sempre não seria de conhecer da alteração pretendida.
É que o apelante não deu cumprimento ao disposto no artº 640º, nº 2, alínea a) do CPC, pois não indica as passagens da gravação em que se fundamenta. O apelante limita-se a transcrever a motivação da decisão de facto constante da sentença recorrida, a propósito deste concreto ponto.
O recorrente que pretende impugnar a matéria de facto tem de cumprir diversos ónus impostos pelo artº 640º do CPC. Com o actual preceito o legislador teve em vista dois objectivos: eliminar dúvidas que o anterior preceito legal suscitava e reforçar o ónus de alegação imposto ao recorrente que deverá indicar qual a decisão que o Tribunal deveria ter tido.

Todos estes pontos têm de ser observados com rigor (cfr. se defende, entre outros, no Ac.do Tribunal da Relação de Coimbra, de 11-07-2012, proferido no proc. 781/09 que embora proferido no domínio do CPC anterior à Lei 43/2013, mantém actualidade, acessível em www.dgsi.pt, sítio onde poderão ser consultados todos os acórdãos que venham a ser citados sem indicação da fonte).

O não cumprimento destes mencionados ónus, conduz à rejeição imediata do recurso na parte afectada, não havendo sequer lugar a qualquer convite ao aperfeiçoamento), porquanto esse convite se encontra apenas consagrado no n.º 3 do artigo 639º do Código de Processo Civil para as conclusões relativas às alegações sobre matéria de direito (em sentido contrário, mas em clara minoria, o Acórdão do STJ, de 26-05-2015, processo 1426/08.7TCSNT.L1.S1,que admite também o convite ao aperfeiçoamento das conclusões relativas ao recurso de impugnação da matéria de facto).
Assim, por falta de cumprimento do disposto no artº 640º, nº 2, alínea a) do CPC, sempre a impugnação seria rejeitada.

Da indemnização reclamada

Na sentença recorrida foi reconhecida a existência de erro, declarada a anulação da venda e ordenou-se a restituição do preço pago.
Não se condenou no pagamento das demais despesas peticionadas nem no pagamento de juros, desde a data da outorga da escritura, até integral pagamento, por se ter entendido que não resultou demonstrada qualquer atuação dolosa, pelo que o requerente só teria direito à restituição do preço pago nos autos e aludiu-se aos artºs 906º, 908º e 909º do CC.

Será assim?

A venda executiva é anulável quando se verifique algum dos fundamentos mencionados nos artigos 838º e 839º do CPC.
Os fundamentos previstos no artº 838º do CPC – existência de ónus ou limitação não considerado e o erro sobre a coisa transmitida - visam a tutela do comprador, estando por isso na sua exclusiva disponibilidade. Contempla situações de erro acerca do objecto jurídico (ónus ou limitação) ou material (identidade ou qualidade da coisa transmitida) da venda, mas quando comparado com o regime geral da anulação do negócio jurídico por erro (artº 257 CC e 251 CC) dispensa os requisitos exigidos pelo artigo 247º do CC: a essencialidade para o declarante e o seu conhecimento ou cognoscibilidade pelo declaratário, sendo apenas necessária a demonstração de que o ónus ou limitação não foi considerado ou que a identidade ou as qualidades do bem vendido não coincidem com as que foram anunciadas (cfr. ensinamentos de José Lebre de Freitas, A ação executiva depois da reforma da reforma, 5ª edição, Coimbra Editora, p. 342 e 343 e no mesmo sentido, Mota Pinto, “Teoria Geral do Direito Civil”, 4ª ed., 507; M. Teixeira de Sousa, “Acção executiva Singular”, 396 e F. Amâncio Ferreira, “Curso de Processo de Execução”, 2ª ed., 285).
A anulação da venda começa por ser pedida no processo executivo, podendo o comprador reclamar uma indemnização, sem prejuízo do disposto no artº 906º do CC (artº 838º, nº 1 do CPC).
Como se referiu, na sentença recorrida entendeu-se que o apelante não tinha direito à indemnização por não se terem provado factos que permitam concluir ter havido atuação dolosa.
À indemnização é aplicável o disposto no artº 909º do CC e havendo dolo o artº 908º do CC (cfr. Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, 3º volume, Coimbra Editora, 2003, p. 611).
O artigo 908º do CC estabelece que em caso de dolo o vendedor deverá indemnizar o comprador do prejuízo que este não sofreria se a compra e venda não tivesse sido celebrada. Está em causa a indemnização do interesse contratual negativo: o prejuízo que o comprador não teria, se a compra não tivesse sido celebrada (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, anot. ao artº 908º do CC). Entre as verbas que constituem o prejuízo do comprador está a restituição do preço, as despesas feitas com o contrato e com a coisa comprada, as despesas com a ação anulatória, o lucro que ele deixou de obter numa outra operação negocial pelo facto de ter que aplicar na compra anulada a verba correspondente ao preço (Pires de Lima e Antunes Varela, obra e local citados).
No caso não se provaram factos nem foram alegados factos que provados permitissem concluir por uma atuação dolosa do vendedor.
No entanto, em caso de simples erro, o vendedor também é obrigado a indemnizar o comprador. A indemnização abrange apenas os danos emergentes do contrato, ou seja, os danos previstos na primeira parte do artº 564º, nº 1, 1ª do CC. O dano emergente corresponde aos prejuízos sofridos, ou seja à diminuição do património já existente do lesado (Pires de Lima e Antunes Varela, obra citada, anotação ao artº 909º do CC).
No conceito de dano emergente integram-se as despesas reclamadas. Assiste-lhe, consequentemente, o direito de ser indemnizado pela quantia de despendida a título de despesas de escritura (215,25 euros) e a título de IMT e imposto de Selo, no total de 621,25 (3).

Relativamente aos juros de mora:

O apelante pede juros de mora desde a data da escritura, sobre montante pago a título de preço. No entanto, apenas são devidos juros desde a data da citação (artº 805º, nº1 do CC).

IV – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal em julgar procedente a apelação e, consequentemente, revogam parcialmente a sentença recorrida, declarando nula a venda relativa ao bem imóvel identificado em 7) e ordenando a restituição ao apelante da quantia paga a título de preço - 7.000,00 - acrescida da indemnização no montante de 621,25 e de juros, à taxa legal, desde a data da citação até integral pagamento, sobre a quantia de 7.000,00.
Custas pela parte contrária.
Not.
Guimarães, 23 de abril de 2020



1. E não 12.02.2016 como, certamente, por lapso, é referido pelo apelante. 2. António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil Novo Regime , 3ª edição revista e actualizada, Almedina, 2010, p. 337.
3. No caso, não se configura a possibilidade da parte requerer através de reclamação graciosa ou impugnação judicial a anulação proporcional dos montantes pagos a título de IMT e de IS, pela verba 1.1 da Tabela Geral do Imposto de Selo, ao abrigo do disposto no artº 45º, nº 1 do Código do IMT, aplicável ao Imposto de Selo, ex vi do artº 49º, nº 2 do Código do Imposto de Selo, porquanto à data do trânsito deste acórdão já terão decorrido 8 anos sobre a data da transmissão, data limite prevista no nº 1 do artº 45º do Código do IMT para requerer a anulação proporcional.