Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | EVA ALMEIDA | ||
Descritores: | COMPRA E VENDA BENS DE CONSUMO | ||
Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 01/26/2017 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | 2ª SECÇÃO CÍVEL | ||
Sumário: | I - Enquanto no regime geral consagrado no Código Civil para a venda de coisa defeituosa compete ao comprador o ónus da prova da existência do defeito, no regime previsto para a venda de bens de consumo do DL n.º 67/2003, a “falta de conformidade”, nos casos elencados no nº 2 art.º 2º, presume-se (presunção legal – art.º 350º do CC).
II- Ao “comprador/consumidor” compete apenas alegar um dos factos índices aí previstos, competindo ao “vendedor/profissional” a prova da conformidade, isto é, de que a coisa não padece da alegada “falta de conformidade” ou defeito. Ou então de que o consumidor tinha conhecimento dessa falta de conformidade ou não podia razoavelmente ignorá-la. III - Este conceito de falta de conformidade não coincide com o de “vício”, “falta de qualidade” ou “defeito” definido no Código Civil, antes se inserindo numa “concepção ampla e unitária de não cumprimento” (Paulo Mota Pinto, Conformidade e Garantias, na Venda de Bens de Consumo, pag. 222). IV - Tendo-se provado que o veículo automóvel não apresentava no momento da venda a quilometragem indicada e anunciada pela vendedora (art.º 2º nº 2 al. a) – Não serem conformes com a descrição que deles é feita pelo vendedor …) tanto basta para que se presuma verificada a falta de conformidade entre o bem de consumo entregue e o contrato, presunção que não foi ilidida pela vendedora. V - Não pode a ré vendedora, aqui recorrente, no âmbito deste diploma (Dec. Lei 67/2003) e da garantia de conformidade prevista no seu art.º 3º, invocar que desconhecia sem culpa a desconformidade, pois que o regime previsto neste diploma (lei especial) prevalece sobre as disposições do Código Civil relativas à venda de coisa defeituosa, não tendo assim aplicação o disposto no art.º 914º. Por isso mesmo, tal Decreto-Lei lhe concede o direito de regresso contra o profissional a quem adquiriu a coisa (artºs 7º e 8º). VI - Para além do direito à resolução do contrato, nos termos da Lei 24/96 (Lei de Defesa do Consumidor), art.º 12º nº 1, tem o comprador direito à indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento de bens ou prestações de serviços defeituosos (não conformes). | ||
Decisão Texto Integral: | ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES
Sumário I - Enquanto no regime geral consagrado no Código Civil para a venda de coisa defeituosa compete ao comprador o ónus da prova da existência do defeito, no regime previsto para a venda de bens de consumo do DL n.º 67/2003, a “falta de conformidade”, nos casos elencados no nº 2 art.º 2º, presume-se (presunção legal – art.º 350º do CC). II- Ao “comprador/consumidor” compete apenas alegar um dos factos índices aí previstos, competindo ao “vendedor/profissional” a prova da conformidade, isto é, de que a coisa não padece da alegada “falta de conformidade” ou defeito. Ou então de que o consumidor tinha conhecimento dessa falta de conformidade ou não podia razoavelmente ignorá-la. III - Este conceito de falta de conformidade não coincide com o de “vício”, “falta de qualidade” ou “defeito” definido no Código Civil, antes se inserindo numa “concepção ampla e unitária de não cumprimento” (Paulo Mota Pinto, Conformidade e Garantias, na Venda de Bens de Consumo, pag. 222). IV - Tendo-se provado que o veículo automóvel não apresentava no momento da venda a quilometragem indicada e anunciada pela vendedora (art.º 2º nº 2 al. a) – Não serem conformes com a descrição que deles é feita pelo vendedor …) tanto basta para que se presuma verificada a falta de conformidade entre o bem de consumo entregue e o contrato, presunção que não foi ilidida pela vendedora. V - Não pode a ré vendedora, aqui recorrente, no âmbito deste diploma (Dec. Lei 67/2003) e da garantia de conformidade prevista no seu art.º 3º, invocar que desconhecia sem culpa a desconformidade, pois que o regime previsto neste diploma (lei especial) prevalece sobre as disposições do Código Civil relativas à venda de coisa defeituosa, não tendo assim aplicação o disposto no art.º 914º. Por isso mesmo, tal Decreto-Lei lhe concede o direito de regresso contra o profissional a quem adquiriu a coisa (artºs 7º e 8º). VI - Para além do direito à resolução do contrato, nos termos da Lei 24/96 (Lei de Defesa do Consumidor), art.º 12º nº 1, tem o comprador direito à indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento de bens ou prestações de serviços defeituosos (não conformes).
I – RELATÓRIO M e mulher C instauraram contra «M. Unipessoal, Lda.» a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum, pedindo seja: «A) Decretada a resolução do contrato de compra e venda do automóvel Renault Megane de matrícula… e a R. condenada a devolver o respectivo preço no valor de € 17.500,00 (dezassete mil e quinhentos euros), recebendo, por sua vez, o automóvel que lhe será entregue pelos AA. Para o efeito alegaram, que, em 23 de Janeiro de 2015, adquiriram à ré o automóvel de marca Renault, modelo Mégane, de cor castanha, com a matrícula…, em estado usado, pelo preço de €17.500. Os autores, pretendendo adquirir um automóvel maior do que aquele que tinham, mais moderno e em melhor estado de conservação, realizaram várias pesquisas na internet tendo visto anunciado pela ré, no seu site, a viatura supra identificada com a indicação de que já percorrera 64.326 km. Dirigiram-se ao Stand da ré, na cidade de Chaves, tendo, desde o primeiro momento, manifestado à ré que a sua decisão de comprar dependia do facto de esta viatura apresentar a quilometragem anunciada no site, e que, igualmente constava do conta-quilómetros do veículo. A ré entregou aos autores uma fotocópia do modelo da “Declaração Aduaneira do Veiculo – DAV” da AT – Autoridade Tributária e Aduaneira, relativo à importação do automóvel em causa, no qual consta que tinha 64.326 km. Em face de tudo isto convenceram-se os autores que a quilometragem que a viatura exibia era a real. Algum tempo depois, apercebendo-se de um ruido estranho nas rodas do automóvel levaram-no a uma oficina para verificar as suas causas, bem como para efectuar uma mudança de óleo e filtros. Os mecânicos da oficina, após inspeccionarem o veículo, aconselharam os autores a consultar a Renault por terem fortes suspeitas de que o automóvel não teria a quilometragem que constava no conta-quilómetros. A Renault Portugal S.A., em 27/03/2015, informou os autores que em 1 de Agosto de 2014 a viatura já tinha percorrido 182.745 km. A quilometragem garantida pela ré aquando da aquisição do veículo pelos autores não correspondia à quilometragem que efectivamente o mesmo tinha cerca de 5 meses antes da celebração do contrato. Os autores, em 29/04/2015, por carta registada com aviso de recepção dirigida à «M. Unipessoal, Lda.», notificaram a ré da desconformidade do bem adquirido com as qualidades por ele garantidas e também com o contrato de compra e venda, identificando com clareza a natureza da desconformidade e juntando ao documento comprovativo do que diziam. Com a notificação os autores informavam a ré de que, tratando-se de uma desconformidade insusceptível de ser reparada pretendiam exercer o direito de resolução do contrato de compra e venda, solicitando á ré a indicação de uma data para procederem à entrega do automóvel e serem restituídos dos €17.500 que liquidaram. Até à presenta data a ré nada comunicou aos autores. Em consequência da conduta da ré, que não assumiu as suas responsabilidades e porque tinham investido as suas economias na compra do automóvel, os autores passaram a viver em grande ansiedade, angústia, receio e sofrimento. Na convicção de que o automóvel tinha a quilometragem anunciada os autores deslocaram-se ao Stand da ré sito em Chaves, que dista cerca de 400 km do seu local de residência, com o que despenderam cerca de €64 em combustível e €63,40 em portagens. No próprio dia em que procederam à aquisição do automóvel os autores procederem ao registo da propriedade, despendendo €100, tendo ainda suportado uma coima no valor de €75 uma vez que a ré não requereu o registo no prazo legal para o efeito concedido, contado desde a data da importação. * A ré, entretanto transformada numa sociedade comercial por quotas, com a denominação social «I Lda.», contestou, alegando que o veículo em causa foi colocado à venda no seu Stand pela empresa «G - Comércio de Automóveis Unipessoal, Lda.», tendo o mesmo ficado à consignação e pela sua venda recebeu uma comissão de €500. Não garante, em veículos que não são da sua propriedade ou de que desconhece o seu percurso, que os quilómetros registados correspondam aos reais, o que sucedeu neste caso concreto. Aquando das negociações os autores foram informados que o veículo não era da ré, que ali estava depositado à consignação e que não podiam garantir os quilómetros que se encontravam registados no mostrador. No veículo estava aposta a informação de que era um “veículo de cliente” como é habitual a ré fazer nestas situações. Os autores celebraram o negócio de forma livre e esclarecida, com a consciência de que os quilómetros da viatura podiam não ser aqueles. Mesmo assim mantiverem o interesse em concretizar o negócio como aconteceu. Antes de celebrarem o negócio os autores tiveram a oportunidade de pedir os esclarecimentos que entenderam bem como para recolher as informações tidas por necessárias. A ré desconhece a quilometragem do veículo bem como se a mesma foi alterada e, se o foi, quando ocorreu essa alteração. O consumidor aceitou a possibilidade de os quilómetros do veículo não corresponderem à realidade e conformou-se com essa situação, tendo celebrado o negócio. O automóvel é utilizado de forma normal e dentro das suas finalidades tendo um desempenho adequado á sua função, por isso não se encontra demonstrada qualquer desconformidade. Os danos não patrimoniais não têm qualquer fundamento, já que os autores retiram do veículo em causa todas as suas utilidades. Também não têm suporte legal os danos patrimoniais que peticionam. Em todo o caso, na eventualidade do pedido dos autores proceder, designadamente a resolução do contrato, deverá ser tido em conta o período em que o automóvel se encontra na sua posse. A haver restituição do valor total do veículo haveria um enriquecimento injusto e sem causa por parte dos autores, uma vez que usaram e fruíram a viatura durante todo o tempo provocando desgaste na mesma. Requereu ainda a intervenção acessória de «G- Comércio de Automóveis, Unipessoal, Lda.». * Por despacho a fls. 80 e ss dos autos foi indeferida a intervenção acessória requerida. * Na audiência prévia delimitou-se o objecto do litígio e fixaram-se os temas de prova. Realizou-se a audiência de discussão e julgamento com observância do formalismo legal. Proferiu-se sentença em que se julgou a acção procedente e, em consequência: a) Declarou-se validamente resolvido o contrato de compre a venda outorgado em 23 de Janeiro de 2015 com referência á viatura automóvel marca Renault, modelo Megane com a matrícula… e em consequência condeno a ré a restituir aos autores o valor de 17.500 € (dezassete mil e quinhentos euros) correspondente ao preço pago, devendo, simultaneamente os autores proceder à entrega da viatura à ré; * Inconformada a ré interpôs o presente recurso, que instruiu com as pertinentes alegações, em que formula as seguintes conclusões: 1º Salvo o devido respeito pela posição sufragada na douta sentença recorrida, é nosso entendimento que a Meritíssima Juiz a quo não apreciou devidamente a prova produzida em sede de audiência de julgamento, documental e mesmo testemunhal, ao mesmo tempo que não extraiu de forma acertada as consequências jurídicas dessa mesma matéria apurada. * Foram apresentadas contra-alegações. * Os autos foram remetidos a este Tribunal da Relação, onde o recurso foi admitido nos mesmos termos em que o fora na 1ª instância. Colhidos os vistos, cumpre decidir. II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO E QUESTÕES A DECIDIR. O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente, tal como decorre das disposições legais dos artºs 635º nº4 e 639º do CPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões “salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras” (art.º 608º nº2 do CPC). As questões a apreciar são as constantes das conclusões que acima reproduzimos. III - FUNDAMENTOS DE FACTO Factos considerados provados na sentença recorrida: 1. Em 23 de Janeiro de 2015 os autores compraram à ré, ao tempo com a designação «M. Unipessoal, Lda» a viatura automóvel de marca Renault, modelo Mégane, de cor castanha com a matrícula… em estado de usado. IV - FUNDAMENTOS DE DIREITO Alega a recorrente que houve um erro de julgamento quanto à matéria de facto dada como provada e não provada, designadamente no tocante aos factos descritos nos números 6, 7 (na parte em que refere: “para comprovar”), e 8, 20 e 21 (na parte em que refere: Na convicção de que o veiculo tinha percorrido 64.326km) e 23, bem como quanto às alíneas c) d), g) e h) dos factos não provados. Sustenta que os pontos 6 e 23 dos factos provados deveriam ter sido julgados não provados, com base nas declarações do autor – que teria dito, quando ouvido em Tribunal, que o que o levou a decidir pelo veículo em causa “foram as suas características e o valor da retoma” – nos depoimentos das testemunhas V e C – o primeiro por ter referido que o que foi conversado incidiu no estado de conservação da viatura e não na quilometragem e que a ré não afiançou que os quilómetros que o veículo apontava correspondiam à verdade. A segunda por ter referido que o autor falou ao telefone com ela e lhe pediu o “número de chassis para poder verificar se os quilómetros que ali constavam eram reais” – bem como nos “emails” juntos aos autos – dos quais, segundo a recorrente, resulta que foi disponibilizada ao autor informação necessária a apurar a quilometragem da viatura – e no texto do contrato de compra e venda onde consta “não garantimos quilómetros”. Impugna também o facto nº 7 defendendo que apenas se provou: “Foi entregue pela ré ao autor a “Declaração Aduaneira do Veículo – DAV” da Autoridade Tributária e Aduaneira, relativa à importação do automóvel em causa, da qual consta que o seu número de quilómetros eram 64.326 km, além de outras características”. Em resultado da prova testemunhal, por declarações e documentos a que faz menção, pugna a apelante no sentido de que a quilometragem do veículo, embora fosse um elemento importante para os autores, não foi determinante da sua vontade de contratar e que estes, mesmo não tendo certeza sobre a veracidade dos quilómetros, quiseram fazer o negócio, face ao valor da retoma do seu veículo e às demais características do veículo adquirido e desta forma os factos 6 e 8 e por consequência os pontos 20 e 23, devem ter resposta negativa; os factos c), d), g) e h) dos factos não provados devem ser considerados provados e do facto 21 da matéria facto provada deverá ser retirada a expressão “Na convicção…”. Pretende assim que o ponto 6 (Desde o primeiro momento das negociações que os autores manifestaram à ré que a decisão de comprar a viatura dependia do facto de este ter a quilometragem referida no site e que também constava do conta-quilómetros do veículo, uma vez que evidenciava pouca utilização indiciando um bom estado de conservação), o ponto 8 (Mercê da conduta da ré, os autores convenceram-se que a viatura tinha efectivamente 64.326 km.), o ponto 20 (Quando tiveram conhecimento do número de quilómetros que a viatura apresentava e que a ré evidenciava não estar disposto a assumir as suas responsabilidades os autores passaram a viver em ansiedade, angústia, receio de alguma avaria grave no automóvel, vendo reduzida a sua qualidade de vida.) e o ponto 23 (Os autores não teriam adquirido a viatura se soubessem a real quilometragem da mesma) sejam dados por não provados. No tocante o ponto 7 (Para comprovar que a viatura tinha a quilometragem indicada a ré entregou ao autor a “Declaração Aduaneira do Veículo – DAV” da Autoridade Tributária e Aduaneira, relativa à importação do automóvel em causa, da qual consta que o seu número de quilómetros eram 64.326 km) pretende seja alterado, não se considerando provada a parte em que se refere: “Para comprovar que a viatura tinha a quilometragem indicada”. No tocante ao ponto 21 (Na convicção de que o veículo tinha percorrido 64.326 kms, os autores deslocaram-se ao stand da ré que dista a cerca de 400 km do seu local de residência, no que despenderam, 64 € em combustível e 63,40 € em portagens) pretende que se considere não provada a parte em que se refere: “Na convicção de que o veículo tinha percorrido 64.326 kms”. Concomitantemente pugna para que se considere provada a seguinte matéria: c) A ré esclareceu o autor que não garante os quilómetros da viatura, informando-o que os quilómetros exibidos no conta-quilómetros podem não corresponder à real quilometragem. d) O que fez quer durante as negociações quer no momento da celebração do contrato de compra e venda. g) Os autores celebraram o negócio com a consciência de que os quilómetros podiam não ser aqueles que mostrador exibia. h) Mantendo, mesmo assim, o interesse em concretizar o negócio. Analisada a prova produzida constatamos, que, no tocante à prova testemunhal e por declarações de parte, estamos perante versões antagónicas no que concerne à relevância da quilometragem da viatura e ao facto do autor ter os elementos necessários a conhecer a quilometragem real. Efectivamente, as testemunhas em cujos depoimentos a recorrente estriba a presente impugnação, são os seus funcionários, que se limitaram a trazer à audiência a versão da ré. Por seu turno das declarações de parte dos autores nada se pode extrair no sentido propugnado pela ré, sendo as suas declarações consonantes com o que na sentença se deu como provado e que aqui vem impugnado. Cumpre assim escalpelizar estes depoimentos e declarações, interpretando-os, face do que mais resulta dos documentos juntos aos autos e à luz das regras da experiência e da normalidade dos comportamentos humanos em circunstâncias tais. Foi o que se fez na motivação da decisão recorrida. No caso em apreço está junto aos autos o anúncio, publicado na página da autora na internet, referente ao veículo em questão. Do anúncio, impresso a fls. 73, consta: Renault Mégane Sport Tourer 1,5.DCI GT Line; carrinha/Combi/veículo importado; Preço: €16.500 (valor fixo/aceita retoma); primeiro registo: Maio 2012 (2 anos e 8 meses); Quilómetros: 64.000Km; Potência: 110 CV (1.500 cm3); Cor: outra metalizada (…). Assim, a ré anunciou para venda ou propôs a venda de um veículo automóvel usado, especificando que o mesmo tinha 64.000 Km. Em parte alguma do anúncio esclarece que não pode certificar tal informação, nem em nenhum dos “emails” que juntou refere que tal informação não é fiável. Era à vendedora que publicita as características do veículo, que competia certificar-se de tais características. Do contrato de compra e venda celebrado pelas partes não resulta que tal característica do veículo tenha sido excluída. A nota final refere-se apenas à garantia concedida por 12 meses, as peças que aí estão incluídas e as que estão excluídas, e que tal garantia não é dada por Km (é por tempo e não por uso), ao invés do que a ré pretende fazer agora crer, descontextualizando essa frase. Contrariamente ao que a recorrente alega, o pedido a 15 de Janeiro de 2015, do número de chassis do veículo e o seu envio pela ré no mesmo dia (e-mails trocados) nada acrescenta em relação ao teor da informação prestada pela vendedora aos compradores, mas apenas o cuidado destes na sua verificação, que contudo, por não serem os titulares do veículo, não puderam obter, informação essa que a recorrente, para cumprir os seus deveres de vendedora, poderia e deveria ter obtido junto de quem lhe vendeu o veículo ou, na sua tese – de que desistiu no presente recurso – de quem lho entregou para diligenciar pela venda do mesmo. Não é em vão que se anuncia, como o faz a recorrente, ser uma vendedora com casa aberta há 17 anos (fls. 84), mas sim a fim de inspirar confiança a quem a ela se dirige. Como se refere na decisão recorrida “Muito em particular no que se reporta aos quilómetros que a viatura já percorreu, quer a funcionária da ré A quer o funcionário N disseram que nos anúncios não fazem a menção de que a quilometragem que indicam pode não corresponder à quilometragem real. Porém, quando instados não conseguiram esclarecer quer a razão pela qual não fazem essa menção nem a razão pela qual anunciam os quilómetros da viatura. Note-se que, tentaram passar a ideia de que, quando alguém adquire um veículo usado, nomeadamente na ré, nunca pode saber se a quilometragem exibida corresponde à real. No entanto, é sabido que os quilómetros que a viatura percorre, designadamente porque indiciador de um bom estado de conservação da mesma é, muitas vezes preponderante na decisão de contratar, razão pela qual, é uma informação que por regra consta da oferta de venda. Acrescenta-se ainda que, a ré, mesmo quando tem conhecimento da real quilometragem da viatura indica aos seus clientes uma quilometragem que não corresponde à realidade. Assim, os autores, como resulta dos factos provados procederam a parte do pagamento do preço da Renault Mégane através da entrega de uma viatura de marca Audi, modelo A3, com a matrícula… que em 22/07/2014 tinha percorrido 316.491 km – cfr. fls. 87. Ora, em 17 de Maio de 2015 e mercê de solicitação via e-mail de informações sobre a mencionada viatura, a ré, através da funcionária e sócia A, não hesitou em dar ainformação de que a viatura tinha cerca de 120.000 km, sendo que, para que não houvesse dúvidas na identificação da viatura remeteu as respectivas fotografias conforme resulta de fls. 86 ”. As declarações de parte dos autores encontram sustentação nos documentos juntos aos autos e na normalidade dos comportamentos humanos, concretamente de quem procura adquirir um veículo automóvel, como eles, para substituir a viatura que já possuíam, por uma em melhor estado, isto é, com menos uso. Para tal é essencial a quem compra não apenas o ano de fabrico, mas também o uso que a mesma teve, isto é, a quilometragem. É consabido que as peças dos veículos se desgastam e algumas têm de ser substituídas ao fim de determinado número de quilómetros, importando uma despesa considerável. A quilometragem do veículo, isto é o uso que a mesma teve, é em geral um elemento importante para quem adquire e resulta da prova produzida que o foi também para os autores. A análise crítica das provas a que se procedeu na motivação da decisão recorrida, nomeadamente dos depoimentos das testemunhas arroladas pela recorrente, V e C, demonstrando as respectivas fragilidades, incongruências e parcialidades, é assertiva, inexistindo qualquer erro na sua apreciação. Pelo exposto a nossa convicção coincide com a do Tribunal “a quo”, mantendo-se inalterada a matéria de facto constante da sentença. * No que concerne à aplicação do direito aos factos provados insurge-se a ré contra a sua condenação no pagamento aos autores recorridos de €2.000 de indemnização a título de danos não patrimoniais e 227,40€ a título de danos patrimoniais. Alega que tal condenação foi sustentada numa responsabilidade subjectiva da recorrente, já que a responsabilidade objectiva é afastada pelo n.º2 do artigo 12º da Lei Defesa do Consumidor (a recorrente não é produtora), invocando o Tribunal “a quo” para a condenação da recorrente o n.º 1 do citado art.º 12º LDC e o artigo 496º do CC, sendo que a responsabilidade subjectiva exige sempre culpa na produção do dano e, no presente caso, não existirá dolo da parte da recorrente, nem se provou qualquer facto ilícito imputável à mesma. Cumpre apreciar. A par do regime previsto no Código Civil para a venda de coisa defeituosa surgiu, ainda no século passado, nova legislação de protecção do consumidor, que ampliou os meios de defesa do comprador/consumidor Assim, a Lei de Defesa do Consumidor (Lei 24/96 de 31/7), no seu art.º 12º, estabelecia, na versão original: “- O consumidor a quem seja fornecida a coisa com defeito, salvo se dele tivesse sido previamente informado e esclarecido antes da celebração do contrato, pode exigir, independentemente de culpa do fornecedor do bem, a reparação da coisa, a sua substituição, a redução do preço ou a resolução do contrato”. Consagrando-se em tal diploma, expressamente que “o consumidor tem direito à indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento de bens ou prestações de serviços defeituosos”, quando anteriormente se entendia que apenas teria direito à indemnização pelos danos patrimoniais, discutindo-se ainda se apenas pelo interesse contratual negativo ou também pelo positivo. Já neste século, na sequência de várias directivas europeias de protecção dos direitos do consumidor, a disciplina da compra e venda, mormente no que tange aos defeitos da coisa vendida, foi objecto de intervenção legislativa, que, a par do Código Civil, prevê e regula a questão que ora nos ocupa. Assim, o DL n.º 67/2003, de 08 de Abril (venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas) transpôs para a ordem jurídica nacional a Directiva n.º 1999/44/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio, sobre certos aspectos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas, e alterou a Lei n.º 24/96, de 31 de Julho (Lei de defesa do consumidor). Tal diploma, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 84/2008, de 21 de Maio, é aplicável aos contratos de compra e venda celebrados entre profissionais e consumidores (art.º 1º nº 1). Define-se como “consumidor” aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios, nos termos do n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho. E como “vendedor “ qualquer pessoa singular ou colectiva que, ao abrigo de um contrato, vende bens de consumo no âmbito da sua actividade profissional – [artº 1ºB, als. a) e c), já com as alterações introduzidas pelo citado Decreto-Lei n.º 84/2008]. Face aos factos provados estamos perante um contrato de compra e venda que cai na alçada de tais diplomas, visto que o comprador, aqui autor é um consumidor (o automóvel foi destinado a um uso não profissional) e a vendedora, aqui ré, é uma sociedade que que exerce a actividade de venda de veículos automóveis, Entre as principais inovações introduzidas por tal diploma face ao regime previsto no Código Civil, há que referir a adopção expressa da noção de “conformidade com o contrato”, que se presume não verificada sempre que ocorrer algum dos factos aí descritos. Assim, o art.º 2º nº2 do citado Decreto-Lei estabelece a presunção de falta de conformidade entre os bens de consumo entregues e o contrato, nos seguintes casos: a) Não serem conformes com a descrição que deles é feita pelo vendedor ou não possuírem as qualidades do bem que o vendedor tenha apresentado ao consumidor como amostra ou modelo; b) Não serem adequados ao uso específico para o qual o consumidor os destine e do qual tenha informado o vendedor quando celebrou o contrato e que o mesmo tenha aceitado; c) Não serem adequados às utilizações habitualmente dadas aos bens do mesmo tipo; d) Não apresentarem as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar, atendendo à natureza do bem e, eventualmente, às declarações públicas sobre as suas características concretas feitas pelo vendedor, pelo produtor ou pelo seu representante, nomeadamente na publicidade ou na rotulagem. Ressalvando-se aqueles em que “no momento em que for celebrado o contrato, o consumidor tiver conhecimento dessa falta de conformidade ou não puder razoavelmente ignorá-la ou se esta decorrer dos materiais fornecidos pelo consumidor”. Para a determinação da falta de conformidade com o contrato releva o momento da entrega da coisa ao consumidor, prevendo-se, porém, que as faltas de conformidade que se manifestem num prazo de dois ou cinco anos a contar da data de entrega de coisa móvel ou de coisa imóvel, respectivamente, se consideram já existentes nessa data (art.º 3º). Mantiveram-se as soluções previstas na Lei n.º 24/96, de 31 de Julho, designadamente o conjunto de direitos reconhecidos ao comprador em caso de existência de defeitos na coisa. No que diz respeito aos prazos, prevê-se um prazo de garantia, que é o lapso de tempo durante o qual, manifestando-se alguma falta de conformidade, poderá o consumidor exercer os direitos que lhe são reconhecidos. Tal prazo é fixado em dois e cinco anos a contar da recepção da coisa pelo consumidor, consoante a coisa vendida seja móvel ou imóvel (art.º 5º). Manteve-se a obrigação do consumidor de denunciar o defeito ao vendedor, alterando-se o prazo de denúncia para dois meses a contar do conhecimento, no caso de venda de coisa móvel (art.º 5º A). Consagrou-se ainda a responsabilidade directa do produtor perante o consumidor, pela reparação ou substituição de coisa defeituosa, assim se ampliando o que já resultava Decreto-Lei n.º 383/89, de 6 de Novembro. Por último, atribuiu-se ao profissional que tenha satisfeito ao consumidorum dos direitos previstos em caso de falta de conformidade da coisa com o contrato (bem como à pessoa contra quem foi exercido o direito de regresso) o direito de regresso contra o profissional que lhe vendeu a coisa, por todos os prejuízos causados pelo exercício daqueles direitos. Tal direito de regresso só poderá ser excluído ou limitado antecipadamente desde que seja atribuída ao seu titular compensação adequada. Como refere Ana Catarina Mota da Silva, in “Responsabilidade do Produtor pela Conformidade do Bem”( ), “a Directiva podia ser transposta de duas formas: através de alterações ao Código Civil e, para as relações com os consumidores, à Lei da Defesa do Consumidor, a chamada “solução grande”, ou a transposição num diploma avulso, com o âmbito subjetivo e objetivo da Diretiva, que iria conviver lado a lado com o regime civil geral, a “solução pequena”. O legislador, optou por um diploma avulso (DL 67/2003), que, constituindo lei especial, prevalece sobre a lei geral, devendo aplicar-se em primeira linha o seu regime, só nos socorrendo das regras próprias sobre a compra e venda que com aquele não conflitue e dos princípios gerais das obrigações subsidiariamente (ver também acórdãos desta Relação de 05.6.2014 (1725/12.3TBBRG.G1) e de 22.10.2015 (193/13.7TBFAF.G1). Enquanto no regime geral consagrado no Código Civil para a venda de coisa defeituosa compete ao comprador (autor) o ónus da prova da existência do defeito da coisa vendida, no regime previsto para a venda de bens de consumo do DL n.º 67/2003, a “falta de conformidade”, nos casos referidos no citado art.º 2º nº 2, esta presume-se (presunção legal – art.º 350º do CC). Assim, compete tão-somente ao comprador/autor alegar um dos factos índices aí previstos para que se presuma a falta de conformidade, invertendo-se o ónus da prova, passando a competir ao vendedor a prova da conformidade, isto é, de que a coisa não padece da alegada “falta de conformidade” ou defeito. Ou então que o consumidor tinha conhecimento dessa falta de conformidade ou não podia razoavelmente ignorá-la Presunção que vale não só para as faltas de conformidade verificadas no momento do contrato, mas também posteriormente, uma vez que o art.º 3º estabelece que “as faltas de conformidade que se manifestem num prazo de dois ou de cinco anos a contar da data de entrega de coisa móvel corpórea ou de coisa imóvel, respectivamente, presumem-se existentes já nessa data, salvo quando tal for incompatível com a natureza da coisa ou com as características da falta de conformidade”. Este conceito de falta de conformidade não coincide o de “vício”, “falta de qualidade” ou “defeito”, antes se inserindo numa “concepção ampla e unitária de não cumprimento”. Tendo-se provado que o veículo automóvel não apresentava no momento da venda a quilometragem indicada e anunciada pela vendedora (art.º 2º nº 2 al. a) – Não serem conformes com a descrição que deles é feita pelo vendedor …) tanto basta para que se presuma verificada a falta de conformidade entre o bem de consumo entregue e o contrato, presunção que não foi ilidida pela vendedora. Não pode a ré vendedora, aqui recorrente, no âmbito deste diploma (Dec. Lei 67/2003) e da garantia de conformidade prevista no seu art.º 3º, invocar que desconhecia sem culpa a desconformidade, pois, como vimos, o regime previsto neste diploma prevalece sobre as disposições do Código Civil relativas à venda de coisa defeituosa, não tendo assim aplicação o disposto no art.º 914º. Aliás, por isso mesmo, tal Dec. Lei concede-lhe o direito de regresso contra o profissional a quem adquiriu a coisa (artºs 7º e 8º). Para além do direito à resolução do contrato – justificado em face da factualidade provada, donde emerge claramente a perda de interesse do comprador naquele veículo com tal quilometragem (quase o triplo da indicada), questão bem analisada na sentença a cuja fundamentação aqui se adere – nos termos da Lei 24/96 (Lei de Defesa do Consumidor), art.º 12º nº 1, tem o comprador direito à indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento de bens ou prestações de serviços defeituosos, sendo que no tocante aos danos sofridos pelo autor e aos montantes indemnizatórios a sentença não sofreu impugnação. Pelo exposto, prevalecendo o regime especial do Dec. Lei 67/2003 e da Lei 24/96 sobre o disposto no Código Civil (v. g. artºs 914º e 915º), a obrigação de indemnizar existe, mesmo que a ré desconhecesse sem culpa a desconformidade, o que de qualquer forma nunca seria o caso, pois que tinha o dever de se certificar de que as características do veículo, constantes do anúncio que colocara e das informações que prestara ao comprador, aqui recorrido, correspondiam à verdade e podia tê-lo feito, exigindo de quem lho vendeu o histórico do veículo. * Alega ainda a apelante nas conclusões 47º a 49º que a restituição do valor total (como foi decidido), corresponde a um enriquecimento injusto e sem causa por parte dos recorridos, já que usaram e fruíram da viatura durante determinado período, retirando dele a sua utilidade Entende que deveria ser descontado o valor correspondente ao tempo em que o veículo esteve na posse daqueles, já que o veículo não será restituído exactamente nas mesmas condições em que foi vendido. A este propósito escreveu o Prof. Vaz Serra in BMJ, 102.º-168: “No caso de resolução por não cumprimento, baseada na lei, a eficácia retroactiva resulta de que, não cumprida a obrigação de uma das partes, fica sem razão de ser a obrigação da outra, devendo, por isso, ser restituído o que esta tenha já prestado e podendo também o contraente faltoso recusar a sua prestação ou o equivalente a exigir a restituição do que tenha prestado, pois, havendo, nos contratos bilaterais, reciprocidade de prestações, dar-se-ia, de contrário, um locupletamento da outra parte. Não pode, porém, exagerar-se o alcance da retroactividade. A retroactividade da resolução só tem lugar até onde a finalidade desta o justificar: as coisas não podem passar-se inteiramente como se nunca tivesse existido o contrato, pois este existiu de facto e dele podem ter surgido obrigações, direitos e situações não abrangidas pela razão de ser da resolução e que esta, portanto, não elimina, subsistindo não obstante ela”. Mais adiante (fls. 363), acrescenta que o disposto quanto à restituição deve ser entendido de harmonia com as regras do enriquecimento sem causa. Sucede que, no presente caso, no mesmo período de tempo em que os autores puderam fruir do veículo, a ré teve na sua posse e fruiu do dinheiro (e do veículo entregue a título de retoma, que vendeu certamente com lucro) correspondente ao preço do veículo adquirido pelos autores, fazendo seus os respectivos frutos. Decorre ainda dos factos provados que, logo em Abril de 2015, os autores declararam à ré pretenderem resolver o contrato, prestando-se a entregar-lhe o veículo logo que mesma se dispusesse a devolver-lhes o montante que pagaram, sendo que o veículo só não foi de imediato entregue à ré por facto a ela exclusivamente imputável. Acresce que, em virtude da ré não ter aceitado a resolução do contrato e procedido à devolução do montante pago pelos autores, estes não puderam adquirir outra viatura, justificando-se assim que continuassem a utilizar, ainda que esporadicamente, em caso de necessidade, a viatura em questão. Não ocorre assim qualquer locupletamento injustificado do património dos autores. Pelo exposto não tem fundamento a pretensão da recorrente de ver reduzido o montante que lhe compete restituir, até porque o Dec. Lei 67/2003 claramente afasta a pretensão da recorrente ao estabelecer no seu art.º 4º nº 4, que o direito de resolução do contrato pode ser exercido mesmo que a coisa tenha perecido ou se tenha deteriorado por motivo não imputável ao comprador. Ver ainda o acórdão desta Relação de 5.6.2014 (proc.1725/12.3TBBRG.G1). Improcedem assim “in totum” as conclusões da apelante, impondo-se a confirmação da sentença. V - DELIBERAÇÃO Nestes termos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida. Custas pela apelante. Guimarães, 26-01-2017 |