Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
116/08.5DBRG-A.G1
Relator: MARIA LUÍSA ARANTES
Descritores: FRAUDE FISCAL
CRIMINALIDADE
LIMITE QUANTITATIVO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/03/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONCEDIDO PARCIAL PROVIMENTO
Sumário: O limite de € 15.000 é sempre exigível para a criminalização da fraude fiscal, tanto no tipo base como no tipo qualificado.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – RELATÓRIO
Nos autos de instrução n.º116/08.5IDBRG do 2ºJuízo do Tribunal Judicial de Fafe, o Ministério Público interpôs recurso do segmento da decisão instrutória, proferida em 17/1/2012, que não pronunciou o arguido Jorge C... pela prática de um crime de fraude qualificada, p. e p. pelos arts.103.º n.º1 al.a) e c) e n.º3 e 104.º n.º1 al.a), d), e) e g) e n.º2, ambos do RGIT, aprovado pela Lei n.º15/2001, de 5/6, na redação dada pela Lei n.º53-A/2006, de 29-12 e Lei n.º64-A/2008, de 31-12.
O recorrente formulou as seguintes conclusões [transcrição]:
1.Para que o crime de fraude fiscal se considere consumado não se exige que o agente represente, com exactidão, o montante da vantagem ou benefício patrimonial indevido. Será bastante a representação genérica da consequência da diminuição da receita fiscal e do benefício indevido correspectivo que visa alcançar.
2.Este crime é classificado doutrinalmente “.....como um crime de resultado cortado ou de tendência interna transcendente, o mesmo consuma-se ainda que nenhum dano ou vantagem patrimonial indevida venha a ocorrer efectivamente, bastando-se a lei com a circunstância de as condutas ilegítimas tipificadas visem ou sejam preordenadas à obtenção de vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias. Isto é, será suficiente que a conduta seja preordenada a tal fim, sendo a eventual verificação do resultado lesivo apenas relevante em sede de aplicação concreta e medida da pena” - vide in Regime Geral das Infracções Tributárias, pág. 313, de Tolda Pinto e Reis Bravo.
3.Assim sendo, uma vez o crime de fraude fiscal se consuma ainda que nenhum dano ou vantagem patrimonial indevida venha a ocorrer efectivamente, como, aliás, resulta da redacção do preceito, “…que visem a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação …”, então o limite quantitativo estabelecido no art. 103°, nº 2 do RGIT, não é um elemento do tipo mas uma condição objectiva de punibilidade, um elemento externo ao crime que cumpre uma função de selecção das condutas penalmente puníveis.
4.E como tal a punição da fraude fiscal qualificada não depende da vantagem patrimonial ilegítima ser de valor igual ou superior ao limite quantitativo previsto no nº 2 do artº103º do RGIT.
5.Por outro, de acordo com a redacção do nº 2, artº 103º, do RGIT, desde que a vantagem patrimonial ilegítima seja inferior a 15.000€ não são puníveis os factos previstos nos números anteriores, referindo-se, naturalmente, aos factos previstos nas alíneas do nº
6.Não havendo argumentos de ordem literal ou interpretativa que permitam concluir que tal limite deve abranger, também, os factos previstos nos artigos seguintes.
7.Tal como foi o entendimento desse Venerando Tribunal no Processo nº 352/02.8IDBRG.G1, de 18/05/2009, in www.dgsi.pt: “ O limite de € 15.000,00 do art. 103 nº 3 do RGIT, abaixo do qual os factos que integram o crime de fraude fiscal não são puníveis, não é aplicável à fraude fiscal qualificada, prevista no art. 104 do mesmo RGIT, nomeadamente quando o agente utiliza facturas ou documentos equivalentes na execução do crime”.
8.“Uma coisa é a fraude consistir unicamente na comunicação da existência de um negócio simulado. Outra, bem mais grave, é forjar documentos para convencer que o negócio efectivamente existiu, tornando mais difícil a descoberta do crime. Foi apenas o primeiro comportamento que o legislador pretendeu beneficiar com a norma do art. 103 nº 2 do RGIT”.
9.A punição da fraude fiscal qualificada – artigo 104º, nº 2 do RGIT, não depende, como na fraude fiscal simples, da verificação de vantagem patrimonial ilegítima de valor igual ou superior ao limite quantitativo previsto no nº 2 do artigo 103º do RGIT.

Termos em que deve ser revogada a decisão instrutória e substituída por outra que pronuncie o arguido Jorge C... quanto aos factos susceptíveis de integrarem a prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de fraude qualificada, previsto e punido pelos artigos 103.º, n.º 1, alíneas a) e c), e n.º 3, e 104.º, n.º 1, alíneas a), d), e) e g), e n.º 2, ambos do Regime Geral de Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, na redação dada pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro e Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro.

Não foi apresentada resposta ao recurso.
Admitido o recurso e fixado o seu efeito, foram os autos remetidos a esta Relação.
Nesta instância, o Exmo.Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer em que se pronunciou pela procedência do recurso [fls.468 a 473].
Cumprido o disposto no art.417.º n.º2 do C.P.Penal, o arguido Jorge C... exerceu o direito de resposta, defendendo a confirmação da decisão recorrida [fls.484 a 485]
Colhidos os vistos legais, realizou-se a conferência.

II – FUNDAMENTAÇÃO
Decisão recorrida
O despacho recorrido, no que releva para a questão a decidir, tem o seguinte teor:
“No que tange ao crime de fraude qualificada, alega o arguido Jorge C... que não obteve qualquer vantagem patrimonial com a conduta que lhe é imputada na acusação pública e, ainda que tivesse havido tal vantagem patrimonial, o seu valor contido em tais documentos seria sempre inferior ao mínimo legal previsto que é de 15 000 euros.
Apreciemos:
A questão que o arguido suscita é a de saber se a alteração introduzida no artigo 103.º, n.º 2, do Regime Geral de Infracções Tributárias, descriminalizando as condutas cuja vantagem patrimonial ilegítima seja inferior a 15 000 euros, se aplica (também) aos crimes de fraude qualificada ou apenas aos crimes de fraude simples.
Na acusação pública o Ministério Público parece sufragar a tese, também defendida no douto Acórdão da Tribunal da Relação de Guimarães de 18.5.2009, publicado em www.dgsi.pt, de que o valor da vantagem patrimonial previsto no n.º 2 do citado artigo 103.º, do Regime Geral de Infracções Tributárias, não é aplicável ao crime de fraude qualificado previsto no artigo 104.º, tendo sido essa a incriminação efectuada.
Porém e salvo melhor opinião, cremos tratar-se de uma posição isolada, quer na doutrina, quer na jurisprudência e, assim, nesta parte, cremos que assiste razão ao arguido Jorge C..., pelo que, também defendemos que o limite de 15 000 euros previsto no n.º 2 do artigo 103.º se aplica às situações tipificadas no artigo 104.º, do Regime Geral de Infracções Tributárias.
Com efeito, como vem sendo defendido na jurisprudência mais recente, designadamente no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 19.01.2011, publicado em www.dgsi.pt, que sobre esta matéria cita diversa e profícua doutrina, para tipificar o crime de fraude qualificada o corpo do n.º 1, do artigo 104.º remete para “os factos previstos no artigo anterior” e não apenas para os factos previstos no n.º 1 do artigo 103.º, do Regime Geral de Infracções Tributárias. Ora, os factos previstos no artigo 103.º não são apenas os elementos típicos previstos no seu n.º 1 mas, também, a condição objectiva de punibilidade prevista no n.º 2 do citado artigo.
Assim, facto punível criminalmente não é só a conduta ilegítima que vise a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias, mediante ocultação ou alteração de factos ou valores que devem constar dos livros de contabilidade ou de escrituração ou das declarações apresentadas ou prestadas a fim de que a administração fiscal especificamente fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria colectável ou mediante ocultação de factos ou valores não declarados e que devam ser revelados à administração tributária, mas, é também necessário que a vantagem patrimonial ilegítima seja de valor igual ou superior a 15 000 euros.
No mesmo sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 23.03.2011, também publicado in www.dgrs.pt, defende que “existem alguns aspectos literais a impor tal leitura, como seja a referência, no art. 104º, aos “factos previstos no artigo anterior”. Um dos factos previstos no artigo anterior é precisamente o previsto no n.º 2, segundo o qual não há punibilidade quando o montante da vantagem patrimonial ilegítima for “inferior a 15.000 €”. Se tivesse havido intenção de punir a fraude qualificada, independentemente do valor da vantagem ilegítima, a remissão deveria ter excluído o n.º 2.” Acrescentando que o n.º 2 do artigo 104.º “Ao falar em fraude, está certamente a referir-se a uma fraude punível, ou seja, que tenha causado uma diminuição de receitas de valor superior a 15.000 €, já que abaixo desse valor o comportamento é punível e qualificado apenas como contra-ordenação e não como “fraude” fiscal (art. 118º do RGIT).”
Defendendo, ainda que “A técnica legislativa de agravar a moldura penal dos crimes, através de circunstâncias qualificativas, traduz sempre uma remissão para o crime simples (género), destacando um especial modo de realização (espécie). O crime qualificado é assim, por definição, aquele que contém todos os elementos do crime simples, com a particularidade de ser cometido em determinadas circunstâncias.”
Por último, como ali se defende, “A existência de um determinado valor do prejuízo fiscal (vantagem patrimonial ilegítima), a demarcar o crime da contra-ordenação, significa que o legislador entende que os prejuízos mais pequenos não devem ser criminalizados, qualquer que seja a obrigação acessória que tenha sido frustrada e qualquer que seja o meio utilizado para tal. Atenta a finalidade da punição (visando sempre o cumprimento de obrigações pecuniárias), não faria sentido que o prejuízo fiscal fosse irrelevante para criminalizar a conduta, mas já fosse bastante para recortar o tipo de crime qualificado pelo meio utilizado. Se fosse essa a intenção do legislador, teria criminalizado com total autonomia a conduta em causa, o que não fez neste caso. Ou seja, as razões que levaram o legislador a estabelecer, no n.º 2 do art. 103º, um limiar da punibilidade como crime, tanto se verificam quando o crime seja cometido através da utilização de facturas falsas, como quando seja cometido através da celebração de um negócio jurídico simulado, pois está sempre em causa evitar comportamentos que visem obter vantagens patrimoniais fiscalmente ilícitas.”
Aplicando agora tais ensinamentos ao caso em apreço, nos autos mostra-se indiciado que a Sociedade arguida “T..., Lda.”, nos exercícios dos anos de 2004 e de 2005, utilizou na sua contabilidade faturas emitidas em nome das sociedades “F... – Indústria & Comércio de Móveis, Lda.” e “A... & S..., Lda.”, que o arguido Jorge C... forjou, conluiados com os arguidos legais representantes da sociedade arguida, já que não correspondiam a efectivas transações realizadas entre aquelas sociedades.
Mostra-se igualmente indiciado que a Sociedade arguida “T..., Lda.”, nos exercícios dos anos de 2004 e de 2005, utilizou na sua contabilidade faturas emitidas em nome das sociedades “Móveis O... & C..., Lda.”, A.... O.... – Mobiliário, Lda.,e “Mobiladora L... – Comércio de Mobiliário, Lda.”, que o arguido Manuel G... forjou, conluiados com os arguidos legais representantes da sociedade arguida, já que não correspondiam a efectivas transações realizadas entre aquelas sociedades.
Com as respetivas condutas, os arguidos actuaram em conjugação de esforços e de intentos ao longo do tempo, até 07 de Outubro de 2004, os arguidos Fernando P..., Paulo S... e Manuel A..., na qualidade de legais representantes da empresa arguida, conluiados com os arguidos Jorge C... e Manuel G..., e a partir de 07 de Outubro de 2004, o arguido Paulo S..., como legal representante da empresa arguida, conluiado com os arguidos Jorge C... e Manuel G..., forjando as referidas facturas e vendas a dinheiro, de transacções, que sabiam não se terem verificado, elementos relevantes para efeitos fiscais, comerciais e contabilísticos, com a intenção conseguida de defraudar a Fazenda Nacional, ao obterem para a Sociedade arguida “T..., Lda.” vantagem patrimonial ilícita, consubstanciada nas deduções, em sede de IVA, que a referida Sociedade deduziu nos anos de 2004 e 2005, subtraindo-se, dessa forma, ao pagamento à Fazenda Nacional do imposto devido, bem como ao permitirem que aquela sociedade contabilizasse tais operações como custos, nos exercícios de 2004 e 2005, diminuindo, dessa maneira, a matéria tributável da empresa arguida, em sede de IRC, e obtendo, com tal conduta, uma liquidação de IRC inferior àquela que seria devida.
Com as referidas condutas, os arguidos conseguiram que a empresa arguida não entregasse nos cofres do Estado, como legalmente estava obrigada a fazer, caso não tivesse urdido o plano fraudulento, que urdiram e concretizaram, o montante de 37 116,20 euros reflectido na declaração de IVA do 4.º trimestre de 2004; de 24 261,10 euros, reflectido na declaração de IVA do 3.º trimestre de 2005 e o montante de 28 739, 47 euros, reflectido na declaração de IVA do 4.º trimestre de 2005.
Os arguidos conseguiram, igualmente, com a contabilização das facturas que fraudulentamente fabricaram, como custos, que a empresa arguida tenha obtido uma vantagem ilícita no exercício de 2004, de 53 271,27 euros; sendo 48 428,84 euros de IRC a pagar e de 4 842,84 euros da competente derrama e no exercício de 2005 conseguiram, em sede de IRC, prejudicar a Fazenda Nacional no valor de 209 975,47 euros.
Todos os arguidos agiram livre, deliberada e conscientemente, sabendo serem as suas condutas proibidas.
Assim, face a tal factualidade, haverá agora de atender à conduta de cada um dos arguidos por confronto com o limite previsto no n.º 2, do artigo 103.º, do Regime Jurídico das Infracções Tributárias, na redacção introduzida pela Lei n.º 60-A/2005, de 30 de Dezembro, que refere que “os factos não são puníveis se a vantagem patrimonial ilegítima for inferior a 15 000 euros” para se apurar se a conduta de cada um dos arguidos preenche, ou não, o tipificado crime de fraude fiscal.
Ora, da factualidade indiciada resulta que todos os valores em falta (valor da vantagem patrimonial indevida), quer em sede de IRC, referentes às declarações anuais apresentadas pela arguida “T..., Lda.” nos anos de 2004 e de 2005, quer em sede de IVA, referentes às declarações apresentadas pela mesma sociedade no 4.º trimestre de 2004 e nos 3.º e 4.º trimestres de 2005, foram sempre superiores a 15 000 euros.
Donde, no que toca aos arguidos Fernando P..., Paulo S... e Manuel A... haverá que concluir que, efectivamente, todos incorreram na prática do crime de fraude qualificada, em co-autoria, já que atuaram como legais representantes da “T..., Lda.”, até 7 de Outubro de 2004, estando nesse período abrangidos os factos a que se reportam as declarações de IRC do ano de 2004 e a Declaração de IVA do 4.ºtrimestre de 2004, tendo os factos se prolongado no tempo (crime continuado) no que se refere ao arguido Paulo S... já que continuou a ser legal representante da mesma sociedade após aquela data de 7 de Outubro de 2007, assim, quanto a ele a sua factualidade típica também abrange as declarações de IRC do ano de 2005 e as Declarações de IVA do 3.º e do 4.º trimestre de 2004.
Termos em que, os arguidos Fernando P..., Paulo S... e Manuel A... serão pronunciados pela prática do crime de fraude qualificada, em co autoria, mas apenas quanto à respetiva factualidade praticada.
E quanto aos arguidos Jorge C... e Manuel G...?
Como acima deixamos referido, nenhum destes arguidos foi legal representante da sociedade arguida “T..., Lda.”, assim, não podem ser responsáveis pelos atos praticados por esta pessoa coletiva, enquanto seus legais representantes, podem apenas responder na medida em que, cada um, contribuiu para a prática da fraude cometida pela, ajudando-a a forjar as faturas que utilizou na sua contabilidade no período em causa.
Ora, essa medida é a que resulta da factualidade indiciada e que nos diz que o arguido Jorge C... forjou a emissão das faturas, com relevância fiscal para o apuramento da vantagem indevidamente obtida, em sede de IRC, pela arguida “T..., Lda.”, no ano de 2005, no valor global de 5 632,97 euros e o arguido Manuel G... forjou a emissão das faturas, com relevância fiscal para o apuramento da vantagem indevidamente obtida, em sede de IRC, pela arguida “T..., Lda.”, no ano de 2004, no valor global de 34 551,20 euros e no ano de 2005, no valor global de 16 055,00 euros.
Donde, atento o apontado limite mínimo de 15 000 euros, previsto no artigo 103.º, n.º 2, do Regime Geral de Infracções Tributárias, teremos de concluir que a conduta do arguido Jorge C... não atinge tal limite e a conduta do arguido Manuel G..., em cada um dos referidos anos de 2004 e de 2005, ultrapassa sempre tal limite. Consequentemente, o arguido Jorge C... não poderá ser pronunciado pela prática do crime de fraude qualificada que lhe é imputado na acusação pública e o arguido Manuel G... deverá ser pronunciado pela prática, em coautoria, do crime de fraude qualificada de que foi acusado.”

Apreciação do recurso
De acordo com o disposto no art.412.º n.º1 do C.P.Penal e segundo jurisprudência pacífica, o âmbito do recurso é delimitado pelo teor das suas conclusões, só podendo o tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente.
A questão controvertida no presente recurso é a da aplicabilidade ou não da norma do art. 103.º n.º 2 do RGIT - que prevê o limite de € 15.000 abaixo do qual os factos que integram o crime de fraude fiscal não são puníveis - ao crime de fraude fiscal qualificada p. e p. pelo art. 104.º do mesmo RGIT.
O art. 103.º do RGIT [Fraude], na redação introduzida pela Lei n.º60-A/2005, de 30/12, tem a seguinte redacção:
“1. Constituem fraude fiscal, punível com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias, as condutas ilegítimas tipificadas no presente artigo que visem a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias. A fraude fiscal pode ter lugar por:
a) Ocultação ou alteração de factos ou valores que devem constar dos livros de contabilidade ou de escrituração ou das declarações apresentadas ou prestadas a fim de que a administração fiscal especificamente fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria colectável;
b) Ocultação de factos ou valores não declarados e que devam ser revelados à administração tributária;
2. Os factos previstos nos números anteriores não são puníveis se a vantagem patrimonial ilegítima for inferior a € 15.000.
3 - Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária».
Por sua vez, o art. 104.º do RGIT [Fraude qualificada] dispõe:
“1. Os factos previstos no artigo anterior são puníveis com prisão de um a cinco anos para pessoas singulares e multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas quando se verificar a acumulação de mais de uma das seguintes circunstâncias:
a) O agente se tiver conluiado com terceiros que estejam sujeitos a obrigações acessórias para efeitos de fiscalização tributária;
b) O agente for funcionário público e tiver abusado gravemente das suas funções;
c) O agente se tiver socorrido do auxílio do funcionário público com grave abuso das suas funções;
d) O agente falsificar ou viciar, ocultar, destruir, inutilizar ou recusar entregar, exibir ou apresentar livros, programas ou ficheiros informáticos e quaisquer outros documentos ou elementos probatórios exigidos pela lei tributária;
e) O agente usar os livros ou quaisquer outros elementos referidos no número anterior sabendo-os falsificados ou viciados por terceiro;
f) Tiver sido utilizada a interposição de pessoas singulares ou colectivas residentes fora do território português e aí submetidas a um regime fiscal claramente mais favorável;
g) O agente se tiver conluiado com terceiros com os quais esteja em situação de relações especiais.
2 - A mesma pena é aplicável quando a fraude tiver lugar mediante a utilização de faturas ou documentos equivalentes por operações inexistentes ou por valores diferentes ou ainda com a intervenção de pessoas ou entidades diversas das da operação subjacente.
3 - Os factos previstos nas alíneas d) e e) do n.º 1 do presente preceito com o fim definido no n.º 1 do artigo 103.º não são puníveis autonomamente, salvo se pena mais grave lhes couber.”
O crime de fraude fiscal qualificada, baseado nestas circunstâncias agravantes, prende-se com o maior desvalor das condutas aí referidas para a verdade tributária e com um efeito mais nefasto para o património fiscal do que as condutas integradoras da fraude fiscal do tipo base.
No crime de fraude fiscal tutela-se diretamente os valores da verdade e da transparência para com o Estado Fisco e reflexamente o património fiscal do Estado, tendo em vista a obtenção das receitas fiscais. Tanto no seu tipo base, como no qualificado, é um crime de perigo, pois embora as condutas devam ser suscetíveis de causar diminuição das receitas tributárias não importa que essa diminuição se verifique para a consumação do crime [Ac. STJ de 27/11/2007, proc. 07P3324, relatado pelo Conselheiro Santos Carvalho, disponível em www.dgsi.pt e Germano Marques da Silva, em Direito Penal Tributário, Universidade Católica Portuguesa, pag.231/232].
O referido art.103.º n.º2 do RGIT fixa como pressuposto da criminalização da fraude fiscal, que esta não é punível se “a vantagem patrimonial ilegítima for inferior a €15.000”. Como conciliar esta exigência de um resultado mínimo (uma vantagem patrimonial não inferior a € 15.000) num crime de perigo, em que se prescinde do resultado?
Sendo um crime de perigo, “apenas será possível conceber o n.º 2 deste artigo 103.º, partindo-se do pressuposto que só é punível a conduta de defraudação fiscal se a mesma for susceptível e se mostrar idónea a causar uma diminuição de receitas tributárias cuja vantagem patrimonial ilegítima corresponda a, pelo menos, € 15.000.
Nesta conformidade, trata-se de uma circunstância que foi adicionada aos elementos do tipo do crime de fraude fiscal, que não chega a integrar a sua descrição objectiva e muito menos subjectiva do tipo base, mas que fundamenta a sua punibilidade, tratando-se, por isso, de uma condição objectiva de punibilidade.” – Ac.R.Porto de 16/3/2011, proc. n.º 65/05.9IDAVR, relatado pelo Desembargador Joaquim Gomes, disponível em wwww.dgsi.pt (no mesmo sentido, Susana Aires de Sousa, em “Os Crimes Fiscais – Análise Dogmática e Reflexão Sobre a Legitimidade do Discurso Criminalizador”, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, p. 89; em sentido contrário, entendendo que aquela vantagem patrimonial ilegítima é um elemento do tipo, embora sem dar qualquer justificação, Germano Marques da Silva, obra citada, pág.234).
Quer se entenda que corresponde a uma condição objetiva de punibilidade ou integra antes um elemento do crime de fraude fiscal, o certo é que esse limite de € 15.000, em nossa opinião, é sempre exigível para a criminalização da fraude fiscal, tanto no tipo base como no tipo qualificado (neste sentido se tem pronunciado a doutrina, Isabel Marques da Silva, em RGIT, Cadernos IDEF, 5, 2ª Edição, pág. 164, Susana Aires de Sousa, em Os crimes Fiscais, Coimbra Editora, 2009, pág.118, Nuno Pombo, em Fraude Fiscal, A norma incriminadora, A simulação e outras reflexões, Almedina, 2007, pág. 215; já a jurisprudência, encontra-se dividida: no sentido da exigência do limite de €15.000 para a fraude qualificada, v. Ac.R.Porto de 16/3/2011, supra citado, de 23/3/2011, proc. n.º70/05.5IDAVR , relatado pela Desembargadora Elia São Pedro, Ac.R.Coimbra de 19/1/2011, proc.n.º1036/06.3TAAVR, relatado pela Desembargadora Maria Pilar Oliveira e em sentido contrário, Ac.R.Guimarães de 18/5/2009, proc.n.º352/02.8IDBRG, relatado pelo Desembargador Fernando Monterroso, de 28/5/2012, proc. n.º 99/07.9TAFAF, relatado pela Desembargadora Ana Teixeira e Silva e Ac.R.Coimbra de 7/3/2012, relatado pela Desembargadora Maria José Nogueira, todos disponíveis em www.dgsi.pt)
Ponderados os argumentos da doutrina e da jurisprudência, entendemos que há várias razões que apontam no sentido da exigência do limite de €15.000 para que a fraude qualificada seja punível.
Desde logo, o art. 104.º n.º1 remete para "os factos previstos no artigo anterior" e não para os factos previstos no nº 1 do artigo anterior. E os factos previstos no artigo anterior são os do no nº 1, assim como os do nº 2, nos termos do qual não há punibilidade quando o montante da vantagem patrimonial ilegítima for “inferior a 15.000 €”. Se não fosse essa a intenção do legislador, a remissão seria feita para os números do artigo anterior que o legislador pretendia aplicáveis e não para todo o artigo.
Por outro lado, o n.º 2 do art. 104º utiliza a expressão “fraude”. “Ao falar em fraude, está certamente a referir-se a uma fraude punível, ou seja, que tenha causado uma diminuição de receitas de valor superior a 15.000 €, já que abaixo desse valor o comportamento é punível e qualificado apenas como contra-ordenação e não como “fraude” fiscal (art. 118º do RGIT).” – Ac.R.Porto de 23/3/2011, supra citado.
Há ainda uma outro argumento a sopesar: o crime qualificado é aquele que contém todos os elementos do crime simples, a que acrescem circunstâncias agravantes; a burla qualificada pressupõe a burla, o furto qualificado o furto, o homicídio qualificado o homicídio.
A jurisprudência que sustenta que o limite de €15.000 não é aplicável à fraude qualificada baseia-se na letra da lei e na maior gravidade das condutas que integram a fraude fiscal qualificada. Porém, como supra referido, entendemos que a letra da lei aponta em sentido contrário, ou seja, o limite de €15.000 ser aplicável quer à fraude simples quer à fraude qualificada. Acresce, como se pronuncia Nuno Pombo, ob.cit. pág. 215, que a “qualificação opera-se pela recepção de circunstâncias modificativas agravantes e deve traduzir-se não no alargamento das situações puníveis mas, como acontece, num endurecimento das respectivas penas”.
Revertendo ao caso concreto, resultando indiciado que o arguido Jorge C... forjou a emissão de faturas, com relevância fiscal para o apuramento da vantagem indevidamente obtida, em sede de IRC, pela arguida “T..., Lda.”, no ano de 2005, no valor global de €5 632,97, bem andou a Mma.Juíza a quo em não pronunciar este arguido pelo crime de fraude qualificada.
No entanto, a Mma. Juíza teria de tomar posição sobre a qualificação jurídica desta conduta, a qual integrará uma contraordenação de falsificação, viciação e alteração de documento fiscalmente relevante - art. 118.º do RGIT.
Aí se comina no seu n.º 1 “Quem dolosamente falsificar, viciar, ocultar, destruir ou danificar elementos fiscalmente relevantes, quando não deva ser punido pelo crime de fraude fiscal”, punindo-se esta conduta “com coima variável entre € 500 e o triplo do imposto que deixou de ser liquidado, até € 25 000”.
Pode-se suscitar a questão se o julgamento desta contraordenação cabe ao tribunal comum. Porém, o art. 53.º do RGIT dispõe que “As decisões de aplicação de coimas e sanções acessórias podem ser objecto de recurso para o tribunal tributário de 1.ª instância, salvo nos casos em que a contra-ordenação é julgada em 1.ª instância pelo tribunal comum”.
E o julgamento em 1.ª instância por tribunal comum pode ocorrer se uma infração considerada inicialmente como crime for convolada para contraordenação, como permite o disposto no art. 77.º n.º 1 do RGCOC, “ex vi” art. 3.º al. b) do RGIT, que preceitua que “O tribunal poderá apreciar como contra-ordenação uma infracção que foi acusada como crime”.
Nesta decorrência, o tribunal a quo tem de apreciar a conduta contraordenacional prevista no art.118.º do RGIT, verificando se ocorre qualquer circunstância relevante de extinção do procedimento contraordenacional ou, se não ocorrer, remetendo os autos para julgamento, uma vez cumprido o disposto no art..303.º n.º5 do C.P.Penal.

III – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães em conceder parcial provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida quanto à não pronuncia do arguido Jorge C... pelo crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelo artigo 104°, n.º 1, alíneas a), d), e) e g) e n.º 2 do RGIT, mas revogando a mesma na parte em que não apreciou a subsistência de ilícito contraordenacional, devendo ser proferido novo despacho que aprecie se ocorre qualquer circunstância relevante de extinção do procedimento contraordenacional ou, caso não ocorra, remetendo os autos para julgamento, uma vez cumprido o disposto no art..303.º n.º5 do C.P.Penal. Sem custas.
(Texto elaborado pela relatora e revisto pelos signatários).

Guimarães, 3/7/2012