Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
737/13.4TBMDL.G1
Relator: HEITOR GONÇALVES
Descritores: ACÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
PRAZO
ÓNUS DA PROVA
INVERSÃO DO ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/20/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: 1. Não obstante o decurso do prazo geral de 10 anos previsto no nº1 do artigo 1817º do Código Civil, a acção de investigação de paternidade ainda pode ser proposta dentro dos 3 anos posteriores ao conhecimento dum dos enunciados fundamentos da al. b, do nº3 do artigo 1817º, cabendo-lhe a ele, demandante, o correspondente ónus de prova - excepto se o fundamento invocado for a cessação voluntária do tratamento, caso em que, nos termos do nº4, do aludido preceito legal, impende sobre o réu o ónus de demonstrar que a cessação dessa posse de estado ocorreu nos três anos anteriores à propositura da acção.
2. Não se tendo feito prova de que o autor apenas teve conhecimento no verão de 2013 da circunstância justificativa da investigação e uma vez que a acção foi intentada quando estavam excedidos os 10 anos posteriores à maioridade do autor, procede a caducidade.
3. O despacho interlocutório que determinou a inversão do ónus de prova nos termos do artigo 344º, nº2, do Código Civil, não vincula o tribunal a quem cabe apreciar o mérito da causa. Esse despacho serve apenas de alerta/sanção ao réu por mor do seu comportamento de falta de colaboração, valorando-a no momento da decisão da matéria de facto.
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES


I.RELATÓRIO.
1. B., pede nesta acção de investigação de paternidade que se declare que é filho do réu C., alegando em síntese que nasceu da gravidez sobrevinda das relações sexuais de cópula havidas entre este e sua mãe D., tendo tomado conhecimento dessa filiação biológica apenas no Verão de 2013.

O réu contestou por excepção, invocando a caducidade da acção nos termos do artigo 1817º, nº1, do Cód. Civil, e impugna os factos alusivos à alegada procriação, bem como à data em que o autor diz ter tomado conhecimento da filiação biológica paterna.



Na audiência prévia, depois do autor ter suprido a insuficiência da matéria de facto da petição inicial (foi então alegado que “nos primeiros 120 dias dos 300 que antecederam o nascimento do autor, o réu teve relações sexuais com sua mãe”), foram enunciados os temas de prova.



Na fase de instrução, perante a recusa do réu em submeter-se ao exame hematológico oficiosamente ordenado pelo tribunal, o Sr. Juiz do processo proferiu o despacho de 144 a 146 onde conclui: “determino a inversão do ónus da prova nos termos do disposto no artigo 344º, nº2, do Código Civil, cabendo ao réu provar que não é pai do autor”.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença final a julgar improcedente a excepção de caducidade, e a declarar que o autor B. é filho do réu, e orde-nando o respectivo averbamento no assento de nascimento da Conservatória de registo Civil de Bragança.
2. O réu interpôs recurso da sentença, pedindo a revogação da sentença, enquanto o autor pugna nas contra-alegações pela manutenção do julgado, tendo suscitado ad questões prévias da inadmissibilidade do recurso por falta de formulação de conclusões e da inadmissibilidade da junção dos do-cumentos apresentados pelo recorrente.

II. Questões prévias.
a) O recurso deve ser rejeitado por falta de conclusões?
O normativo do artigo 639º, nº1, do CPC, impõe ao recorrente o ónus de, no final das alegações, indicar de forma sintética os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.

É usual identificar-se as conclusões no final do corpo das alegações através de itens ou artigos precedidos da expressão «conclusões», mas como alerta Abrantes Geraldes, podemos confrontar-nos com situações da vida real em que só na aparência se verifica falta de conclusões ou “quando a motivação, pelo modo como se encontra estruturada, acaba por conter, em termos substantivos, as referidas conclusões” (Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina 2013, nota de rodapé 184, pág. 116).

Refere o Prof. A. dos Reis que «as conclusões são proposições sintéticas que emanam naturalmente do que se expôs ao longo da alegação», mas que não há palavras sacramentais, isto é, o importante é que os termos da peça recursiva permitam ao tribunal a quo e ao recorrido apreender as concretas razões por que o recorrente pede a revogação da sentença.

Neste recurso, não obstante a ausência da demarcação nítida e formal entre os dois segmentos (alegações e conclusões) os termos e conteúdo do arrazoado dizem que o recorrente impugna a decisão sobre a matéria de facto provada constante dos pontos 3, 4, 5 e 6, e que pretende obter por via dessa alteração a procedência da caducidade da acção e a revogação da sentença que deu por verificada a filiação biológica. Com efeito, no decurso da motivação, refere o recorrente que “de tudo quanto acaba de ser exposto…antolha-se-nos que o tribunal “a quo” não fez uma correcta análise e interpretação da matéria submetida a prova, no que concerne aos pontos 3) e 4) da alínea a) dos factos Provados, da Fundamentação de factos já que os pontos 4), 5) e 6) já nos pronunciamos em matéria de caducidade” e nos últimos parágrafos da peça fez constar o seguinte:
-Ao valorar, como valorou o Tribunal “a quo”, a prova produzida não dando como provada a excepção de caducidade levantada, e dando como provado que a mãe do Autor teve relações sexuais nos primeiros cento e vinte dias dos trezentos que precederam o seu nascimento, e que o Autor é fruto das relações sexuais tidas entre o Réu e a mãe do Autor, julgando, como tal, a acção procedente e declarando que o Autor é filho do Réu, por deficiente apreensão e interpretação do que as testemunhas disseram, conjugado, com a data e local da obtenção das cartas, violou por erro de aplicação o disposto no artigo 1817; n.º 3, alínea b) do C. Civil.
-Devendo, contrariamente, dar como provado que o Autor não encontrou as cartas juntas à petição, no Verão de 2013, e como tal o direito de propor a acção caducou, bem como não deve ser provado que a mãe do Autor e o Réu tiveram relações sexuais, no período legal da concepção, seja entre 8 de Junho e 10 de Outubro de 1969, bem como não deve ser dado como provado que o Autor nasceu de relações sexuais havidas entre a mãe daquele e o Réu, porquanto a presunção a que se refere o n.º 2 do artigo 1871 do C. Civil, fora ilidida.

Em face do exposto, não havendo razões para rejeitar o recurso, importará apreciar se o tribunal a quo julgou incorrectamente a matéria de facto dos pontos 3, 4, 5 e 6, devendo depois retirar-se daí as necessárias ilações sobre o mérito da causa, centrada na verificação da caducidade da acção e no reconhecimento da reclamada paternidade com base na procriação.

b) Da inadmissibilidade da junção de documentos.
O recorrente oferece com a peça recursiva duas certidões de nascimento cuja junção havia sido indeferida no decurso da audiência de julgamento, e do respectivo despacho não foi interposto recurso. Ora, não é admissível contornar em sede de recurso o caso julgado formal formado com o exarado despacho de indeferimento (artigo 620º, do CPC).
Ainda que assim não fosse, sempre seria de considerar não estar verificado o condicionalismo do artigo 651º, n.º 1, do N.C.P.C. segundo o qual «as partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o artigo 425.º (1) ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância».
Ordena-se, por conseguinte, o desentranhamento dos documentos e a sua restituição ao apresentante.

III. Da impugnação da decisão da matéria de facto provada.
Ponto 3: «Nos primeiros 120 dias dos 300 que antecederam o nascimento do autor, o réu teve relações sexuais com a sua mãe»; Ponto 4: «O autor foi concebido fruto de relações sexuais havidas entre o réu e a mãe do autor»; Ponto 5: «No verão de 2013, o autor encontrou três cartas escritas pelo réu à sua mãe, que revelam que havia uma relação amorosa entre o réu e a mãe do autor, e que ambos mantinham relações sexuais entre si», e Ponto 6: «Então o autor falou com a sua mãe, que lhe confirmou que o réu era seu pai».

O réu não questiona que namorou com a mãe do autor, e que as cartas juntas aos autos se reportam a um período em que essa relação existiu, mas existem dúvidas sérias de que tenham sido encontradas apenas no verão de 2013. Com efeito, é provável que a verdade dos factos seja a relatada em julgamento pela testemunha José – refere de forma pormenorizada que, há cerca de 20 anos, o réu se deslocou ao seu café por aí parar o réu, dizendo que queria conhecer o pai, o qual teria escrito cartas à sua mãe quando namoravam.

Assim, impõe-se a alteração dos pontos 5 e 6, devendo passar a constar apenas o seguinte: O autor encontrou as três cartas juntas de fls. 193 a 196, escritas pelo réu à sua mãe (uma datada de 22.08.1966, outra de 05.10.1966 e outra de 12.12.1966), que revelam uma relação amorosa e sexual entre ambos, falando então com a sua mãe, que lhe confirmou que o réu era seu pai.

O teor dessas cartas são reveladoras dum namoro com relacionamento sexual – “tenho andado com vontade de passar uma noite contido até me parece que não me há-de chegar o sono pois agora até já acordo de noite e farto-me de pensar em ti se me apanhasse ao pé de ti é que passaria uma noite em beleza” (carta datada de 12.12.1966); “Conceição então já à um mês que te não veio a menstruação isso é que é mau mas ade ser o que deus quiser” (carta datada de 05.10.1966), mas à excepção do depoimento da testemunha Berta da Conceição Vara, nada nos diz que essa relação tivesse perdurado durante os 120 dias dos 300 que precederam o nascimento do autor ou, pelo menos, que o autor seja fruto dessas relações.

É certo que se trata dum depoimento com uma forte razão de ciência e que está afastado do nosso ordenamento o princípio probatório testis unum testis nullum, mas o quadro pintado à medida dos interesses do filho fica mancha-do pelos depoimentos de diversas pessoas da terra que afirmam que a Berta da Conceição Vara não era “mulher de um homem só”, indicando o nome daqueles a quem se atribuía a paternidade do autor (cfr. depoimentos das testemunhas Cândida, Armindo, António, José e Maria).

Só o autor e o réu poderiam oferecer a melhor contribuição para a superação das dúvidas, contudo nenhum deles se mostrou amigo da verdade, e cremos que a explicação é simples: o receio do autor em ver excluída a paternidade quiçá por estar informado da falta de exclusividade das relações sexuais de sua mãe com o réu no período legal da concepção; por banda do réu, o receio de resultar dos exames ser o pai, sabendo ter mantido relações sexuais com a mãe do autor.
O tribunal considerou mais censurável a falta de colaboração por parte do réu, determinado por despacho a inversão do ónus da prova nos termos do artº 344º, nº2, do Código Civil, depois de ter notificado o réu com essa cominação, mas os factos justificam uma igual repartição de culpas:
-Notificado o autor para comparecer no IML, a fim de serem colhidas amostras biológicas ao mesmo, para possibilitar realização de exame pericial ao ADN, o mesmo, em 08/06/2014, juntou aos autos atestado médico, justificando a sua não comparência - fls. 85;
- Notificado o autor para comparecer no IML, a fim de serem colhidas amostras biológicas ao mesmo, para possibilitar realização de exame pericial ao ADN, o mesmo, em 06/08/2014, não compareceu, nem justificou a falta de comparência – cft. fls. 90.
- Notificado o autor para comparecer no IML, a fim de serem colhidas amostras biológicas ao mesmo, para possibilitar realização de exame pericial ao ADN, o mesmo, em 13/11/2014, não compareceu, nem justificou a falta de comparência – cft. fls. 109.
-Notificado o autor para comparecer no IML, a fim de serem colhidas amostras biológicas ao mesmo, para possibilitar realização de exame pericial ao ADN, o mesmo, em 05/03/2015, não compareceu, nem justificou a falta de comparência – cft. fls. 140.
-Notificado o autor para comparecer no IML, a fim de serem colhidas amostras biológicas ao mesmo, para possibilitar realização de exame pericial ao ADN, o mesmo, em 14/05/2015, não compareceu, nem justificou a falta de comparência – cft. fls. 143.
- Em 22/09/2014, foi proferido despacho a instar o réu a efectuar o exame, sob pena de, não o fazendo, ser condenado em multa por falta de colaboração com o tribunal, nos termos do disposto no art. 417.º, n.º2, do CPC – cft. fls. 91;
- Em 10/09/2014, o réu juntou aos autos requerimento com o teor de fls. 99 e 100, dando conta de que não efectuaria o exame em causa.
- Em 23/10/2014, foi proferido despacho a instar o réu a efectuar o exame, sob pena de, não o fazendo, ser condenado em multa por falta de colaboração com o tribunal, nos termos do disposto no art. 417.º, n.º2, do CPC – cft. fls. 102;
- Em 25/11/2014, foi proferido despacho a condenar o réu em multa….nos termos do disposto no art. 417.º, n.º2, do CPC, e…. instado a efectuar o exame, sob pena de, não o fazendo, ser condenado em multa mais gravosa, por falta de colaboração com o tribunal, nos termos do disposto no art. 417.º, n.º2, do CPC – cft. fls. 110. Em 03/12/2014, o réu reiterou que “não se sente motivado” para efectuar o exame – cft. fls. 114.
- Em 26/01/2015, foi proferido despacho a condenar o réu em multa, que se fixou em 3 UC, por falta de colaboração com o tribunal, nos termos do disposto no art. 417.º, n.º2, do CPC, tendo no mesmo despacho, sido instado a efectuar o exame, sob pena de, não o fazendo, ser condenado em multa mais gravosa, por falta de colaboração com o tribunal, nos termos do disposto no art. 417.º, n.º2, do CPC – cft. fls. 125.
Em 24/03/2015, foi proferido despacho a instar o réu a efectuar o exame, sob pena de, não o fazendo, operar a inversão do ónus da prova nos termos do disposto no art. 344.º, n.º2 do Código Civil – cft. fls. 141.

Pelas razões expostas, considera-se estabilizada a matéria de facto provada nos termos seguintes:

1. O autor nasceu no dia 8 de Abril de 1970, na freguesia de …, concelho de Bragança, conforme assento de nascimento junto a fls. 51 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
2. Do assento de nascimento do autor apenas consta a menção da sua maternidade.
3. O autor encontrou as três cartas juntas de fls. 193 a 196, escritas pelo réu à sua mãe (uma datada de 22.08.1966, outra de 05.10.1966 e outra de 12.12.1966), que revelam uma relação amorosa e sexual entre ambos.
4. Falou então com a sua mãe, que lhe confirmou que o réu era seu pai.
5. Notificado o autor para comparecer no IML, a fim de serem colhidas amostras biológicas ao mesmo, para possibilitar realização de exame pericial ao ADN, o mesmo, em 08/06/2014, juntou aos autos atestado médico, justificando a sua não comparência - cft. fls. 85.
6. Notificado o autor para comparecer no IML, a fim de serem colhidas amostras biológicas ao mesmo, para possibilitar realização de exame pericial ao ADN, o mesmo, em 06/08/2014, não compareceu, nem justificou a falta de comparência.
7. Em 22/09/2014, foi proferido despacho a instar o réu a efectuar o exame, sob pena de, não o fazendo, ser condenado em multa por falta de colaboração com o tribunal, nos termos do disposto no art. 417.º, n.º2, do CPC – cft. fls. 91.
8. Em 10/09/2014, o réu juntou aos autos requerimento com o teor de fls. 99 e 100, dando conta de que não efectuaria o exame em causa.
9. Em 23/10/2014, foi proferido despacho a instar o réu a efectuar o exame, sob pena de, não o fazendo, ser condenado em multa por falta de colaboração com o tribunal, nos termos do disposto no art. 417.º, n.º2, do CPC – cft. fls. 102.
10. Notificado o autor para comparecer no IML, a fim de serem colhidas amostras biológicas ao mesmo, para possibilitar realização de exame pericial ao ADN, o mesmo, em 13/11/2014, não compareceu, nem justificou a falta de comparência.
11. Em 25/11/2014, foi proferido despacho a condenar o réu em multa, que se fixou em 1 UC, por falta de colaboração com o tribunal, nos termos do disposto no art. 417.º, n.º2, do CPC, tendo no mesmo despacho, sido instado a efectuar o exame, sob pena de, não o fazendo, ser condenado em multa mais gravosa, por falta de colaboração com o tribunal, nos termos do disposto no art. 417.º, n.º2, do CPC.
12. Em 03.12.2014, o réu reiterou que “não se sente motivado” para efectuar o exame.
13. Liquidou o valor da multa em que foi condenado – fls. 119.
14. Em 26/01/2015, foi proferido despacho a condenar o réu em multa, que se fixou em 3 UC, por falta de colaboração com o tribunal, nos termos do disposto no art. 417.º, n.º2, do CPC, tendo no mesmo despacho, sido instado a efectuar o exame, sob pena de, não o fazendo, ser condenado em multa mais gravosa, por falta de colaboração com o tribunal, nos termos do disposto no art. 417.º, n.º2, do CPC.
15. Liquidou o valor da multa em que foi condenado – fls. 137.
16. Notificado o autor para comparecer no IML, a fim de serem colhidas amostras biológicas ao mesmo, para possibilitar realização de exame pericial ao ADN, o mesmo, em 05/03/2015, não compareceu, nem justificou a falta de comparência.
17. Em 24/03/2015, foi proferido despacho a instar o réu a efectuar o exame, sob pena de, não o fazendo, operar a inversão do ónus da prova nos termos do disposto no art. 344.º, n.º2 do Código Civil – cft. fls. 141.
18. Notificado o autor para comparecer no IML, a fim de serem colhidas amostras biológicas ao mesmo, para possibilitar realização de exame pericial ao ADN, o mesmo, em 14/05/2015, não compareceu, nem justificou a falta de comparência.
19. A presente acção foi intentada em 13/13/2013.

III. Do mérito da causa.
O reconhecimento por via da sentença judicial proferida na correspondente acção de investigação (2) é uma das formas legalmente previstas para o estabelecimento da filiação fora do casamento (artigos 1796º, nº2, e 1847º, do C. Civil), tem eficácia retroactiva e produz efeitos entre os sujeitos desde a data do nascimento do filho (artigo 1797º, nº2, do Código Civil).

O critério biológico no estabelecimento da paternidade funda-se no direito à identidade pessoal do filho consagrado no artigo 26º, nº1, da Constituição da República Portuguesa, mas tem-se discutido tanto na doutrina como na jurisprudência a natureza desse direito, a propósito da aplicação do prazo para a propositura da acção de investigação previsto no artº 1817º, nº1, do Código Civil.

A presente acção foi intentada em 13.Março.2013, em plena vigência desse normativo na redacção dada pela Lei 14/2009, de 01.04, aplicável às acções de investigação de paternidade por força do artigo 1873º, deles resultando que “a acção de investigação de paternidade só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dez anos posteriores à sua maioridade ou emancipação” (sublinhado nosso), ou ainda nos três anos posteriores à ocorrência de algum dos factos elencados nas alíneas a), b, e c) do nº3, alu-dindo a alínea b) ao caso do investigante ter tomado conhecimento, após o decurso do prazo previsto no nº1, de factos ou circunstâncias que justifiquem a investigação, designadamente quando cesse o tratamento como filho pelo pretenso pai (3).

Nos fundamentos previstos nessa alínea b) cabem não apenas as causas de presunção de paternidade, como a cessação forçada ou voluntária da posse de estado (tratamento do filho pelo pretenso pai), mas outros factos ou circunstâncias que objectiva e fundadamente justifiquem a investigação com vista ao estabelecimento da paternidade pela verdade biológica. Isto é, não obstante o decurso do prazo geral de 10 anos previsto no nº1 do artigo 1817º, a acção ainda pode ser proposta destro dos 3 anos posteriores ao conhecimento dum dos enunciados fundamentos da al. b, do nº3 do artigo 1817º, cabendo-lhe a ele, demandante, o correspondente ónus de prova - excepto se o fundamento invocado for a cessação voluntária do tratamento, caso em que, nos termos do nº4, do aludido preceito legal, impende sobre o réu o ónus de demonstrar que a cessação dessa posse de estado ocorreu nos três anos anteriores à propositura da acção.
No caso em apreço, o autor não logrou provar que apenas teve conhecimento no verão de 2013 da circunstância justificativa da investigação. Assim, e uma vez que a acção foi intentada quando estavam excedidos os 10 anos posteriores à maioridade do autor, procede a caducidade.
Mesmo que se entenda que o nº4 do artigo 1817º do Código Civil se aplica a outras situações que se enquadrem na previsão da alínea b) do nº1, e que por isso impendia sobre o réu o ónus de prova de que o autor tomou conhe-cimento das referidas cartas de namoro em data anterior aos três anos que precederam a propositura da acção, sempre deve ser negado o direito peti-cionado pelo autor por não se ter provado que é fruto das relações sexuais que o réu manteve com sua mãe nos 120 dias dos 300 que precederam o seu nascimento.
Nesse capítulo, confrontamo-nos com uma situação de non liquet em sede de matéria de facto relativa aos fundamentos da acção, pelo que o sentido da decisão deve buscar-se à regra da repartição do ónus da prova dos factos. Como refere Manuel de Andrade o ónus da prova «incumbe à parte cuja pretensão processual só pode obter êxito mediante a aplicação da norma de que ele é pressuposto» (in Noções Elementares de Processo Civil, 1976, pág. 200), e nas palavras de Anselmo de Castro, “o problema da distribuição do ónus da prova traduz-se em determinar quais são os elementos verdadeiramente constituti-vos da norma fundamentadora do direito invocado em juízo e os que fora dela cons-tituem elemento duma norma que se lhe oponha (impeditiva ou extintiva) decidindo contra a parte a quem interesse no processo a aplicação da norma constitutiva do direito ou da contra-norma” (Direito Processual Civil Declaratório, ed. 1982, Vo-lume III-pág. 352), e a parte onerada com o ónus da prova dos funda-mentos da acção é o autor.

O despacho interlocutório que determinou a inversão do ónus de prova nos termos do artigo 344º, nº2, do Código Civil, não vincula o tribunal a quem cabe apreciar o mérito da causa. Esse despacho serve apenas de alerta/sanção ao réu por mor do seu comportamento de falta de colaboração, valorando-a no momento da decisão da matéria de facto. Já referimos que a culpa do inêxito do apuramento da verdade biológica mediante a realização de exames periciais se deve aos comportamentos do autor e do réu, e se culpa existe ela deve ser repartida, e também não temos como legalmente admissível considerar outras presunções de paternidade além das elencadas no artigo 1871º do Código Civil, em que se traduziria o decretamento da inversão do ónus da prova nos termos do artigo 344º, nº2, do Código Civil.

IV. Pelos fundamentos enunciados, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e consequentemente, revogando-se a sentença recorrida, absolvem o réu do pedido.

Custas pelo apelado.

TRG, 20.Outubro.2016

Heitor Gonçalves
Amílcar Andrade
Carlos Carvalho Guerra
(1) Nos termos dessa disposição legal, "Depois do encerramento da discussão, só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento". Com efeito, como decorre do disposto no novo artigo 423º do CPC, "Os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da ação ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se alegam os factos correspondentes" (n.º 1) e, "Se não forem juntos com o articulado respetivo, os documentos podem ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, mas a parte é condenada em multa, exceto se provar que os não pode oferecer com o articulado" (n. º2). É que, "Após o limite temporal previsto no número anterior, só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior" (n.º 3).
(2) Continua a entender-se que a causa petendi nas acções de investigação de paternidade é o facto jurídico da procriação (Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de 21-06-83, disponível em www.dgsi.pt).
(3) Propendemos para a constitucionalidade do estabelecimento dos prazos pelo legislador ordinário no tocante ao exercício de quaisquer direitos, e os dos nºs 1 e 3 do artigo 1817º (aplicáveis às investigações de paternidade por força do artigo 1873º do mesmo código), são proporcionais e razoáveis para o investigante pugnar pelo direito à sua identidade. Como se refere no seu acórdão 247/2012, o Tribunal Constitucional «tem mantido a linha central de fundamentação das suas decisões, que assenta na consideração de que a fixação de prazos de caducidade para as acções de investigação da filiação não é, em si, inconstitucional (…), e que «deverá continuar a entender-se que o legislador ordinário goza de liberdade para determinar, desde que acautelado o conteúdo essencial dos direitos fundamentais em causa, se pretende submeter as acções de investigação de paternidade a um prazo preclusivo ou não, cabendo-lhe ainda fixar, dentro dos limites constitucionais admitidos pelo princípio da proporcionalidade, o concreto limite temporal de duração desse prazo».