Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
833/14.0T8VNF.G1
Relator: MARIA DOS ANJOS NOGUEIRA
Descritores: DANO DA PRIVAÇÃO DO USO
INDEMNIZAÇÃO
PRINCÍPIO DA EQUIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/11/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
- No dano de privação de uso ocorre a frustração de um ou mais fins, resultante de se haver colocado o bem, por meio do qual era possível atingi-los, em situação de não poder ser utilizado para esse efeito, sendo, como tal, indemnizável.

- A falta de reparação ou quando esta não seja viável pela sua grande onerosidade, não retiram ao lesado o prejuízo que sofreu pela privação do veículo, pelo menos até à data em que receba da seguradora a indemnização correspondente, na medida em que, só nesse momento, é que o lesado ficará habilitado a adquirir um veículo que substitua o que foi danificado.

- A atribuição de uma compensação deverá ser determinada por juízos de equidade que corresponda, no fundo, ao custo da substituição da viatura que deveria ter sido proporcionada e não foi.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES


I. Relatório

M. Silva e J. Silva interpuseram a presente acção de condenação com processo comum contra “Seguradora, SA”, pedindo, a A. M. Silva, que a R. seja condenada a pagar-lhe 12 437,33 €, referente ao custo de reparação do veículo “OQ”, e 22 975 €, referentes aos danos decorrentes da privação do uso daquele veículo.
Por seu turno, o A. J. Silva pediu a condenação da R. a pagar-lhe 59,59 € despendidos em tratamentos médicos e medicamentosos por força das lesões sofridas na sequência do acidente, 10 000 € a título de danos não patrimoniais sofridos em virtude das lesões de que padeceu e ainda padece, e quantia a liquidar em incidente pós-sentencial por força da incapacidade permanente de que ficou a padecer por força das sequelas que lhe advieram do acidente.
Alegaram, para tanto, em síntese, que a aludida ré celebrou com “Car..., Lda.”, proprietária do veículo de matrícula “JS”, um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel.
Mais alegaram que o A. J. Silva, seguindo ao volante do veículo de matrícula “OQ”, propriedade da A. M. Silva, foi intervenientes em acidente de viação cuja responsabilidade na produção do mesmo deverá ser imputada ao condutor do referido “JS”.
Contestou a ré, impugnando, essencialmente, a dinâmica do acidente, mais imputando a responsabilidade na sua eclosão ao A. J. Silva.
Mais impugnou os danos que advieram aos AA. por força do acidente em causa, afirmando ainda que ao custo de reparação do veículo “JS” é superior ao valor venal do mesmo, motivo pelo qual sempre estaria em causa uma situação de “perda total”.
No decurso da acção, veio o “Instituto de Segurança Social”, em 3-11-2014, deduzir pedido de reembolso dos subsídios de doença pagos ao A. J. Silva, por virtude da incapacidade temporária para o trabalho que lhe adveio do acidente, no valor de 1 265,07 €.
Respondeu a R. a este pedido, rejeitando a responsabilidade do condutor do veículo segurado na eclosão do acidente. Mais defendeu que, ainda assim, caso seja condenada a pagar tal quantia à Segurança Social, a mesma deverá ser descontada no valor a atribuir ao A. J. Silva a título de danos patrimoniais.
Proferiu-se despacho saneador, tendo sido indicado o objecto do litígio e seleccionados os temas da prova.
Procedeu-se a julgamento, vindo a ser proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência, condenou a ré “Seguradora, SA” a pagar, à A. M. Silva, a quantia de 1 950 € (mil novecentos e cinquenta euros), acrescida de juros de mora vencidos desde a citação até integral pagamento, bem como a quantia de 8000 € (oito mil euros), acrescida de juros de mora a contar da presente data, mais tendo condenado a ré “Seguradora, SA” a pagar, ao A. J. Silva, a quantia que se vier a liquidar em incidente ulterior, a título de dano decorrente da perda de capacidade de ganho e da incapacidade parcial permanente de que o mesmo ficou a padecer, bem como a quantia de 52, 59 (cinquenta e dois euros e cinquenta e nove cêntimos) €, acrescida de juros de mora vencidos desde a citação até integral pagamento, e a quantia de 4 000 € (quatro mil euros), acrescida de juros de mora a contar da presente data.
Condenou, ainda, a ré “Seguradora, SA” a pagar ao “Instituto de Segurança Social – Centro Distrital de Braga” a quantia de 1 265,07 € (mil duzentos e sessenta e cinco euros e sete cêntimos), acrescida de juros de mora a contar da citação.

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II- Objecto do recurso
Não se conformando com a decisão proferida veio a Ré instaurar o presente recurso, nele formulando as seguintes conclusões:
Face aos factos provados, a Recorrente não se conforma com a fixação da indemnização respeitante à privação do uso do veículo da Autora no montante de 8 mil euros.
Tendo o bem de que a Autora ficou privada em consequência do acidente dos autos o valor comercial de 1950€, entende a Ré que o dano pela privação do uso não pode ser computado em valor superior ao valor desse de que se está privado sob pena de um enriquecimento ilegítimo.
Na acção, não foram dados por provados quaisquer factos donde resulte qualquer prejuízo pela privação de uso, desconhecendo-se que utilização era feita, quem utilizava o veículo, e com que finalidade.
Acresce que a Autora somente propôs a acção cerca de dois anos e meio após a ocorrência do acidente pelo que, se por um lado, será um indício de que o veículo afinal não fazia tanta falta à Autora como esta alegou na petição inicial, por outro, a Ré não pode ser penalizada por tal atraso.
A indemnização que se destine a compensar a Autora pela privação de uso do veículo “OQ” não pode, por isso exceder os 1950 € correspondentes ao valor do veículo.
Ao decidir da forma que o fez, a sentença recorrida fez, com todo o respeito que é devido, uma errada interpretação e aplicação do disposto nos arts. 483º nº 1, 562º, 563º e 564º do Código Civil pelo que deve ser alterada nos termos aqui propostos.
Assim se fazendo Justiça.
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A A. veio apresentar as suas contra-alegações, formulando as seguintes conclusões:
A) A douta sentença recorrida não merece qualquer reparo ou censura: o julgamento da matéria de facto dada como provada foi feito com observância das imposições legais na matéria em litígio, e a decisão de mérito foi proferida em conformidade com os factos dados como provados.
B) Aliás, da decisão proferida resulta indubitavelmente que foi feita uma criteriosa apreciação da prova produzida em julgamento, mostrando-se esta absolutamente suficiente para fundamentar a condenação da Ré no pagamento da quantia de €8.000,00 (oito mil euros) referente ao dano decorrente da privação do uso da viatura.
C) No entanto, pretende a Ré Recorrente, aqui Apelante, sem qualquer fundamento, fazer crer que, em face dos factos provados, não deveria ter sido fixada qualquer indemnização pelo dano de privação do uso do veículo da Autora, aqui Recorrida Apelada;
D) Sendo que, a não se entender assim, o montante indemnizatório não poderia exceder o valor de €1.950,00 correspondente ao valor comercial da viatura, sob pena de alegado enriquecimento sem causa.
E) O que, com o devido respeito, não merece provimento.
F) Pois, como resulta da factualidade como provada, mormente dos factos insertos nos pontos 17., 18. e 34., dos Factos Provados da Sentença recorrida, outra decisão não se impunha que não fosse a de condenação da Ré Recorrente no pagamento de indemnização pelo dano de privação do uso do veículo automóvel, à Autora Recorrida.
G) Como ficou absolutamente fundamentado na decisão recorrida, o ressarcimento previsto no nº1, do artigo 564.º, do Código Civil não se esgota no ressarcimento dos lucros cessantes, incluindo-se a “mera privação do uso” neste segmento normativo, na parte em que refere, logo em primeira linha, "o dano emergente" correspondente ao “prejuízo causado”.
H) Sendo que, na esteira da Jurisprudência maioritária, entre a qual várias decisões deste Tribunal da Relação de Guimarães, “a simples privação da viatura corresponde a um dano indemnizável, na medida em que impedirá o seu titular de retirar as correspondentes vantagens (patrimoniais e até imateriais) que a viatura poderia proporcionar”.
I) Não merecendo qualquer reparo os fundamentos insertos, na parte da “Fundamentação de Direito”, onde se pode ler que: “considerando que o direito de propriedade integra, como um dos seus elementos fundamentais, o poder de exclusiva fruição (e que isso envolve até o direito de não usar), a privação do uso reflectirá o corte definitivo e irrecuperável de uma “fatia” desses poderes/direitos, justificando-se, assim, o ressarcimento que supra a modificação negativa que a privação ilícita do uso determina na relação entre o lesado e o seu património. (…) É que, neste caso, bastará que resulte dos autos que o seu proprietário o usaria normalmente (o que na generalidade das situações concretas constituirá facto notório ou poderá resultar das presunções naturais a retirar da factualidade provada) para que possa exigir-se do lesante uma indemnização a esse titulo, sem necessidade de provar directa e concretamente prejuízos efectivos (…)” – vide Sentença Recorrida.
J) Ou seja, tendo resultado provado que a Autora M. Silva esteve privada da sua viatura sem que a Ré tivesse providenciado pela entrega de veículo de substituição, desde a data do acidente e até à data da prolação da Sentença aqui recorrida, sendo que se tratava de viatura que utilizava no seu dia a dia, como sucedeu no dia em que ocorreu o acidente, estando impedida, por força do acidente, de utilizar e assim retirar de tal bem as vantagens que o mesmo lhe podia proporcionar, estamos perante um dano de privação de uso da viatura em causa, o qual importa indemnizar.
K) Andando bem o Tribunal “a quo” quando decidiu pela existência do dano de privação de uso, o qual, por si só, é indemnizável.
L) Sendo que, não merece provimento a tese da Ré Recorrente no sentido da inexistência de tal dano, e muito menos, quando pretende fazer valer a “presunção” de que, uma vez que a Autora Recorrida apenas propôs a acção dois anos e seis meses depois da data do acidente, tal privação não lhe causava prejuízo.
M) Presunção absolutamente ilegal e desconforme com a realidade e com a factualidade dada como provada.
N) De igual modo, não merece qualquer censura o “quantum indemnizatório” pelo dano de privação do uso do veículo, fixado na quantia de €8.000,00, encontrando-se, também nesta parte, a decisão recorrida devidamente fundamentada, quer de facto, quer de direito.
O) Na verdade, no caso dos autos, o Tribunal “a quo”, no âmbito do disposto no nº3, do artigo 566.º, do Código Civil, à luz do juízo de equidade, e assim, de uma forma equilibrada e razoável, e sempre dentro dos limites que a factualidade dada como provada proporciona, fixou o valor da indemnização nos indicados €8.000,00.
P) Tendo, para o efeito, em consideração, não apenas o valor venal da viatura mas também, e como se impunha, o valor da reparação no valor de €6.621,53 – vide ponto 17., dos factos provados da Sentença recorrida.
Q) Não pode a Recorrente Apelante lançar mão apenas e isoladamente do valor comercial da viatura de €1.950,00, para assim atacar a decisão proferida, uma vez que, reitere-se, há que considerar, como efectivamente foi considerado na decisão recorrida, a demais factualidade dada como provada, como seja o custo da reparação no montante de €6.621,53 e o período de tempo decorrido desde a data do acidente até à data da prolação da sentença, computado em cerca de quatro anos e seis meses, ainda sopesando, equitativamente, o lapso de tempo entre a data do acidente e a data da propositura da acção.
R) Juízo de equidade, cuja observância é legalmente imposta (artigo 566.º, do Código Civil), que determinou, na Sentença recorrida, que o valor a fixar não ascendesse aos peticionados €22.975,00, correspondente a um custo diário de €25,00, mas apenas aos €8.000,00 ali fixados, tendo em conta o período de tempo decorrido desde o acidente até à data da prolação da sentença, de cerca de quatro anos e dois meses, o custo da reparação e o valor comercial da viatura “OQ”.
S) Não merecendo provimento a pretensão da Recorrente Apelante, de ver alterado o valor fundamentada e equitativamente fixado pelo Tribunal “a quo”, tendo apenas por referência parte da factualidade como provada, como seja o valor comercial da viatura, em preterição dos demais factos dados como provados, de extrema relevância e que se impunham considerados, como efectivamente foram na Sentença recorrida, como são o valor da reparação e o lapso de tempo decorrido entre a data do acidente e a prolação da decisão.
T) A Sentença recorrida consubstancia uma decisão devidamente fundamentada e que, não apenas na parte ora recorrida, mas antes na sua totalidade é inatacável, uma vez que foi proferida em obediência à Lei e aos Princípios Fundamentais do Direito.
U) Pelo que, por respeito a tais princípios, devem V. Exas. Juízes Desembargadores manter a decisão do Tribunal “a quo”, dado que esta se mostra devidamente fundamentada na livre convicção do Julgador e é uma das possíveis soluções segundo a Lei e as regras da experiência comum, sob pena de violação do disposto nos artigos 483.º, 562.º, 563.º, 566.º, 570.º, todos do Código Civil.
V) Destarte, negando provimento ao recurso de Apelação interposto pela Ré Recorrente farão V. Exas. Inteira Justiça.
Nestes termos e nos demais de Direito, negando provimento ao recurso, V. Exas. Venerandos Juízes Desembargadores farão SÁ E INTEIRA JUSTIÇA.
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O recurso foi recebido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.
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Foram colhidos os vistos legais.

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III- O Direito

Como resulta do disposto nos arts.º 608.º, n.º 2, ex vi do art.º 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 639.º, n.os 1 a 3, 641.º, n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil, sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem das conclusões que definem, assim, o âmbito e objecto do recurso.

Deste modo, e tendo em consideração as conclusões acima transcritas cumpre apurar se a decisão proferida deve ser revogada quanto à indemnização fixada pela privação do uso do veículo que ficou imobilizado em consequência do acidente causado pelo segurado da Ré.


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IV – Fundamentação de facto
– Factos provados:
1 - A Autora M. Silva era, em 7-4-2012, e ainda é, actualmente, proprietária do veículo automóvel ligeiro de passageiros, de serviço particular, de marca “BMW”, modelo “318 I”, com o número de matrícula “OQ”.
2 – “Car... - Comércio de Automóveis, Lda” é proprietária do veículo automóvel, ligeiro de passageiros, de serviço particular, da marca “Mercedes Benz”, modelo “245”, com o número de matrícula “JS”.
3 – Entre “Car...” e a Ré “Seguradora, SA” foi celebrado um contrato de seguro, titulado pela Apólice nº 004510497MNB, vigente em 7-4-2012, mediante o qual, a proprietária do referenciado veículo havia transferido para aquela, a respectiva responsabilidade civil pelos danos causados a terceiros pelo identificado veículo.
4 - No dia 7-4-2012, cerca das 10:40 horas, na Avenida de TB, concelho de Vila Nova de Famalicão, ocorreu um acidente de viação no qual intervieram os mencionados veículos “OQ” e “JS”, sendo o primeiro conduzido pelo A. J. Silva e o segundo por António F..
5 - O veículo automóvel “OQ” circulava pela referida Avenida de TB, no sentido São Cosme - Vila Nova de Famalicão.
6 - Pela sua mão de trânsito, a direita, considerando o seu sentido de marcha.
7 - Quando, chegado ao Talho SC, sito junto à Avenida de TB, do lado esquerdo atento o sentido de marcha dos veículos, o veículo “OQ” abrandou a sua marcha, assinalou a sua pretensão de virar à esquerda ligando o pisca do lado esquerdo e parou.
8 - Quando o veículo automóvel que seguia em sentido contrário passou, e não circulando ninguém nem em sentido contrário, nem a realizar qualquer outra manobra, designadamente de ultrapassagem da sua viatura, o condutor do veículo “OQ” preparou-se para efectuar a referida manobra e iniciar a marcha.
9 – Nessa ocasião, foi embatido, na parte traseira, pelo veículo “JS”.
10 - O veículo “JS” circulava na mesma faixa de rodagem e no mesmo sentido que o veículo “OQ”.
11 - Por força do embate, o veículo “OQ” foi projectado contra um tanque de água existente na entrada com o nº ABC.
12 - Após o embate, o veiculo “JS” ficou na faixa de rodagem de sentido contrário, voltado no sentido oposto, ou seja, no sentido contrário ao que seguia, “Vale de São Cosme – Braga”.
13 - O embate entre os referidos veículos ocorreu na hemi-faixa da direita, atento o sentido de trânsito “Vale de São Cosme - Vila Nova de Famalicão”, por onde circulavam ambos os veículos, na referida Avenida de TB.
14 - No local onde ocorreu o acidente, a Avenida de TB desenha uma recta, com dois sentidos, é em asfalto, com a largura de cerca de 6,30 metros de faixa de rodagem.
15 - Nessa altura, o piso encontrava-se seco.
16 - Como consequência necessária e directa do violento embate, o veículo “OQ” sofreu danos na parte traseira.
17 – Para reparação do veículo “OQ”, com substituição de peças e mão-de-obra, será necessário o dispêndio de € 6 621,53 €.
18 – A R. não disponibilizou à A. M. Silva veículo de substituição.
19 – Após o embate, nesse mesmo dia, o A. J. Silva foi conduzido ao serviço de urgências do Centro Hospitalar, na cidade de Vila Nova de Famalicão, tendo-lhe sido diagnosticada, após submissão a exames, uma cervicalgia.
20 - Tendo-lhe sido dada alta com medicação, mais concretamente Ciclobenzaprina/Flexiban (10mg)/Comprimido/Blister.
21 – Por força das dores que continuava a sentir, o Autor voltou ao serviço de urgências do Centro Hospitalar, em Vila Nova de Famalicão, o que sucedeu em 12-5-2012.
22 – Nessa ocasião, e após lhe ter sido ministrada medicação para as dores, foi-lhe diagnosticada lombalgia.
23 – O A., foi submetido a exames, mais concretamente a Tomografia da coluna lombar e Estudo Radiológico da coluna lombar.
24 - Como consequência do acidente de viação, o Autor J. Silva sofreu um traumatismo na coluna cervical e lombalgias, com um episódio de irradiação para um dos membros inferiores, que lhe causaram dificuldades de movimentação dos membros superiores e de um dos membros inferiores.
25 – As dores sentidas pelo A. são fixáveis em grau 3 numa escala crescente de 7.
26 – Por força das dores sentidas em consequência do embate, o A. esteve totalmente impedido de exercer as suas funções laborais entre 7-4-2012 e 16-7-2012 e entre 24-7-2012 e 21-8-2012.
27 – Tais dores incapacitaram-no ainda, entre os referidos dias 7-4-2012 e 21-8-2012, para a prática de outras actividades que envolvessem esforço físico.
28 – Actualmente, o A. sente dores esporádicas na região lombar, exacerbadas nas mudanças de tempo e aquando da realização de esforços.
29 – Actualmente, o A. muito raramente sente dores na região cervical.
30 – Por força das lesões e sequelas acima descritas, o A. padece de uma Incapacidade Permanente Geral para o Trabalho de 1 ponto percentual, sendo que tais sequelas são compatíveis com o exercício da actividade habitual mas implicam esforços complementares.
31 – O A. J. Silva nasceu em 28-7-1983.
32 – Por força do acidente e das lesões sofridas, o A. despendeu 52,59 € em tratamentos médicos e medicamentosos.
33 – O A. J. Silva, à data do acidente, exercia funções como serralheiro e auferia 485 € mensais a título de remuneração.
34 – À data do embate, o veículo “OQ” tinha o valor comercial de 1 950 €.
35 – O “Instituto de Segurança Social – Centro Distrital de Braga”, por força do período de incapacidade temporária para o trabalho a que o A. J. Silva esteve sujeito, pagou-lhe, a título de subsídio de doença, a quantia de 1 265,07 €.
– Factos não provados:
1- Antes do embate, o veículo “JS” seguia a mais de 120Km/hora.
2- Antes do embate descrito nos “factos provados”, o condutor do “JS” ligou o “pisca” da esquerda, buzinou e passou a ocupar a metade esquerda da faixa de rodagem com o objectivo de efectuar a ultrapassagem ao veículo “OQ”.
3- Quando iniciava a ultrapassagem ao “OQ” e se encontrava a cerca de 5 metros da sua traseira, o condutor deste veículo, sem accionar qualquer sinal indicativo da manobra, virou de forma repentina a direcção para a esquerda e passou a ocupar a metade esquerda da faixa de rodagem, com intenção de entrar no parque de um prédio particular situado no lado esquerdo da faixa de rodagem, atento o sentido seguido pelos dois veículos.
4- Cortando completamente a linha de trânsito ao “JS”, vindo, nessa sequência, o veículo “JS” a embater na traseira do “OQ”.
5- Por força das sequelas que lhe advieram do acidente, o A. deixou de conduzir veículos automóveis e de conviver com amigos.
6- O A. sente-se triste, angustiado, deprimido e envergonhado com o facto de não conseguir movimentar-se correctamente, sempre com dores.
7- Não consegue conviver com os seus familiares e amigos, refugiando-se quando possível.
8- Por força do acidente, o A. tornou-se uma pessoa triste, e por vezes dependente do auxílio e colaboração dos familiares.
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Delimitada a questão que cumpre apreciar e decidir, há que ter em conta os factos apurados que lhe dizem respeito, concretamente que a R. não disponibilizou à A. M. Silva veículo de substituição, ficando esta consequentemente impossibilitada de utilizar a sua viatura, vindo a ser, então, proferida decisão, nessa parte já transitada em julgado, que condenou a Ré a pagar-lhe a quantia de 1.950,00€, correspondente ao seu valor venal, contra entrega dos salvados.
A este respeito, conforme enuncia Abrantes Geraldes (Indemnização do Dano da Privação do Uso, p. 39], a privação do uso, desacompanhada da sua substituição por um outro ou do pagamento de uma quantia bastante para alcançar o mesmo efeito, reflecte o corte definitivo e irrecuperável de uma "fatia" dos poderes inerentes ao proprietário. Deste modo, a simples privação do uso é causa adequada de uma modificação negativa na relação entre o lesado e o seu património que pode servir de base à determinação da indemnização. Alias, o simples uso do veículo constitui uma vantagem susceptível de avaliação pecuniária, pelo que a sua privação constitui naturalmente um dano.
Assim, o dano de privação de uso de veículo consubstancia-se na impossibilidade da utilização do mesmo para os fins a que habitualmente era afecto, quaisquer que seja a sua natureza, pelo que se perante a nova circunstância de não ter veículo para a prática dos actos que outrora eram efectuados com o mesmo, o lesado ficar onerado com alteração da sua rotina diária para atingir os mesmos resultados.
Ainda neste sentido o Prof. Gomes da Silva, citado no acórdão do Supremo Tribunal e Justiça, datado de 5-7-2007, disponível in www.dgsi.pt, refere que “O bem só interessa, quer económica quer juridicamente (...) pela utilidade, isto é, pela aptidão para realizar fins humanos”; e, nos casos de perda ou deterioração de um bem, o dano consiste “no malogro dos fins realizáveis por meio do bem perdido ou deteriorado, isto é, consiste menos na perda do próprio bem do que em ser-se privado da utilidade que ele proporcionava”. “No dano há sempre, portanto, a frustração de um ou mais fins, resultante de se haver colocado o bem, por meio do qual era possível atingi-los, em situação de não poder ser utilizado para esse efeito.”
Quanto a esta questão, como se sabe, a autonomização do dano da privação do uso de veículo tem vindo a ganhar importância nos últimos anos, com os indispensáveis contributos da referida doutrina e um aceso debate na jurisprudência que deu origem, tal como referido na decisão proferida, a duas correntes opostas: a tradicional, que considera essencial a alegação e prova da frustração de um propósito real, concreto e efectivo, de proceder à utilização do veículo e termos desta (entre muitos outros, entre eles, o Ac. do STJ de 13-01-2009, na revista n.º 3575/08 — 1.ª Secção); e uma outra, mais moderna, que reconhece que a mera privação do uso de um veículo gera obrigação de indemnizar, independentemente de alegação e prova de (outros) danos específicos que sejam consequência dessa privação (entre outros o Ac. do STJ de 17-04-2008, na revista n.º 478/08 — 2.ª Secção).
A esta controvérsia não foi alheio o legislador ao prever, no art. 42.º, n.º 1, do DL n.º 291/200715, que “verificando-se a imobilização do veículo sinistrado, o lesado tem direito a um veículo de substituição de características semelhantes a partir da data em que a empresa de seguros assuma a responsabilidade exclusiva pelo ressarcimento dos danos resultantes do acidente” e no seu n.º 5, na medida em que ressalva “o direito de o lesado ser indemnizado, nos termos gerais, no excesso de despesas em que incorreu com transporte em consequência da imobilização do veículo durante o período em que não dispôs do veículo de substituição”.
Perante o exposto e posicionando-nos sobre o assunto, defendemos claramente, tal como apontado na sentença recorrida, o entendimento que maioritariamente vem sendo seguido no sentido de que a privação é geradora de dano ou prejuízo e que a privação do uso de uma coisa pode constituir um ilícito gerador da obrigação de indemnizar - uma vez que impede o seu dono do exercício dos direitos inerentes à propriedade, isto é, de usar, fruir e dispor do bem nos termos genericamente consentidos pelo art.º 1305º, do CC.
Assim o defendi enquanto adjunta no processo 474/13.0TBFAF.G1, de 4-4-2017, publicado da dgsi, tal como o aqui Desembargador António Figueiredo de Almeida, num caso que mais se assemelha ao aqui em apreço, o fez, muito antes, em 12-04-2011, também em Acórdão publicado na dgsi, com o n.º 40/09.4BEPS.G1.
E, isto é assim, independentemente de só se verificar uma situação decorrente da paralização de privação do uso do seu veículo ou de perda total do mesmo.
Pois, a falta de reparação ou quando esta não seja viável pela sua grande onerosidade, não retiram ao lesado o prejuízo que sofreu pela privação do veículo, pelo menos até à data em que receba da seguradora a indemnização correspondente, na medida em que, só nesse momento, é que o lesado ficará habilitado a adquirir um veículo que substitua o que foi danificado.
Nessa medida, há que ter em conta que se está perante um dano sujeito a evolução expansiva que vai aumentando com o tempo até à entrega do veículo reparado ou do seu valor, podendo, como tal, ser mesmo superior a este.
À luz da teoria da causalidade adequada, os danos posteriores que se verificarem eventualmente até à resolução do litígio (com o pagamento da indemnização relativa à perda total ou ao custo da reparação) não deixam de ter como causa adequada o facto/evento determinante do acidente, pelo que, há que ter em conta que é ao lesante (ou à sua seguradora) que compete repará-los o mais depressa possível, de modo a que estes se não agravem, sem prejuízo de poder alegar e provar que a demora, com a maior extensão temporal daquele período, se ficou a dever à recusa - injustificada - do lesado em aceitar o veículo de substituição disponibilizado, a indemnização em dinheiro oferecida ou a reparação proposta, o que, manifestamente, não se verifica no caso em apreço, pelo que não pode a Ré, como o pretende, por via do presente recurso, vir valer-se do facto da acção só ter sido proposta decorridos mais de 2 anos sobre o acidente, para daí retirar um benefício para si, quando é ela própria que, atempadamente, não procede à reparação do dano, ficando comodamente a aguardar uma eventual prescrição do direito.
Acresce que, não se pode considerar, tendo em conta exclusiva e isoladamente tal dilação, que a A. tenha contribuído para o agravamento dos danos da privação do uso, à luz do art. 570º, nº 1, do CC.
Por outro lado, tal como se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28-11-2013, in www.dgsi.pt, ao considerar-se, sem mais, que o pedido de indemnização deduzido algum tempo depois do sinistro constitui facto culposo do lesado, estaríamos a introduzir uma presunção de culpa que a lei não admite.
Por outro lado, o Ac. do STJ de 06-05-2008, na revista n.º 1279/08 — 1.ª Secção (Processo: 08A1279), tendo igualmente por base que a simples privação do uso de veículo constitui uma ofensa ao direito de propriedade na medida em que o seu dono fica dele privado, considerou que dificilmente se poderá, na maior parte dos casos, encontrar o valor exacto de tal prejuízo, daí que se deva falar antes de atribuição de uma compensação, que deverá ser determinada por juízos de equidade e tendo em conta as circunstâncias concretas do caso, por referência ao que se dispõe no n.º 3 do art. 566.º do CC.
Assim, quanto à avaliação do dano, deve procurar-se a efectivação de uma reconstituição efectiva, por equivalente valor em dinheiro, que corresponda ao montante dos danos, por apelo aos mais variados factores concretos que for possível atender-se no caso, tendo-se em consideração, enquanto elemento objectivo, o valor médio que as empresas de aluguer de automóveis cobram pela disponibilização de um veículo com idênticas características, por ser o critério que corresponde, no fundo, ao custo da substituição da viatura que deveria ter sido proporcionada e não foi.
Nestes casos, a equidade será o critério que presidirá à valoração dos prejuízos, isto é, a uma ponderação de razoabilidade com recurso ao senso comum dos homens e justa medida das coisas.
Fixou o tribunal a quo, a título de indemnização pela privação do uso da viatura “OQ”, a quantia de 8 000 € a pagar à A., cuja quantificação a Ré põe em causa, ao defender que esse valor, a ser devido, não deve ser superior ao do valor venal do veículo.
Ora, o montante diário que têm vindo a ser fixado em casos como o dos autos, mencionando-se a título de exemplo o Ac. do STJ de 09.03.2010 e o desta Relação de 27/10/16, disponíveis em www.dgsi.pt ronda os €10,00 euros diários.
Como tal, facilmente se constata, assim, que o valor fixado é de quase metade daquele que resultaria da multiplicação daquele valor pelo número de dias que decorreu desde a privação da viatura até ao momento da suposta entrega do valor que possibilitaria a aquisição de um veículo idêntico, dado que nessa parte a sentença não foi impugnada e seria exigível a sua prestação ainda que coercivamente e acrescida de juros.
Nesta medida, a Recorrente acaba por ficar beneficiada ao ver restringida a sua obrigação de indemnizar, a esse título, a um valor que até peca por defeito.

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V – Decisão

Pelo exposto, nos termos supra referidos, os Juízes da 2.ª Secção Cível, deste Tribunal da Relação de Guimarães acordam em julgar a apelação interposta improcedente.
Custas pela recorrente.
Notifique.
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TRG, 11.07.2017


(O presente acórdão foi elaborado em processador de texto pela primeira signatária)

Maria dos Anjos S. Melo Nogueira
Desembargador José Carlos Dias Cravo
Desembargador António Manuel A. Figueiredo de Almeida