Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | ANA TEIXEIRA | ||
Descritores: | NULIDADE SANÁVEL DEFICIÊNCIA DE GRAVAÇÃO | ||
Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 09/29/2013 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
Sumário: | I – A FALTA OU DEFICIENTE GRAVAÇÃO DA PROVA PRODUZIDA EM AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO CONSTITUI NULIDADE SANÁVEL, CUJA ARGUIÇÃO DEVERÁ SER FEITA POR MEIO DE REQUERIMENTO FORMULADO PERANTE O TRIBUNAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA E NÃO DIRETAMENTE NA MOTIVAÇÃO DE RECURSO INTERPOSTO DA SENTENÇA; II – O PRAZO PARA O EFEITO É DE 10 DIAS, APÓS A DETEÇÃO DO VÍCIO (ART. 105 Nº 1 DO CPP). | ||
Decisão Texto Integral: | I - RELATÓRIO 1. No processo comum (tribunal coletivo) n.º 100/12.4 JABRG, do Tribunal Judicial da Comarca de Guimarães, o arguido José M... foi condenado nos seguintes termos [fls. ]: «(…) IV. DECISÃO Pelo exposto, acordam e decidem os juízes que constituem este tribunal coletivo em: 4) Condenar o arguido JOSÉ M... como autor de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21º nº1 do DL 15/93 de 22 de Janeiro, enquanto reincidente nos termos dos artigos 75º e 76º do Código Penal, na pena de 6 (seis) anos e 4 (quatro) de prisão. Custas a cargo do arguido José M... fixando-se em quatro (4) U.C. a taxa de justiça. Notifique. (…)» 2. Inconformado, o arguido recorre, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões [fls. ]: 1. O presente recurso tem por objecto o acórdão condenatório, nos termos do qual vem o Arguido, ora Recorrente, condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, enquanto reincidente, na pena de 6 anos e 4 meses de prisão. 2. O Recorrente não pode conformar-se com tal decisão, que considera, para além de injusta, desproporcionada, diante da prova produzida em julgamento. 3. Antes, porém, entende o Recorrente que se verifica que a gravação dos depoimentos prestados em audiência, sobretudo no que diz respeito ao dia 24 de Abril de 2013, foi levada a cabo de forma deficiente, designadamente os depoimentos das testemunhas arroladas pela defesa (cfr., a título de exemplo, gravação áudio do depoimento da testemunha Alexandra P..., do dia 24/04/2013, 16:23:22), cujo teor é, salvo melhor opinião, inaudível. 4. Assim, o ora Recorrente vê-se impedido de, de forma cabal, reapreciar o teor dos depoimentos prestados por duas testemunhas por si arroladas, Alexandra P... e João M..., que considera úteis para a boa decisão da causa, não fazendo sentido levar a cabo o exercício teórico de passar a citar na motivação excertos de tais depoimentos que, no seu entender, impunham que se decidisse de forma diversa, relativamente a determinados pontos da matéria de facto. 5. Termos em que, e por motivos de economia processual (uma vez que não se reveste de utilidade em sede de recurso, pelo menos para o Recorrente, a reinquirição das demais testemunhas), se argúi ao abrigo do art.° 120.0 do CPP a nulidade prevista no art.° 363.0 do mesmo diploma legal, devendo em consonância ser ordenada a repetição dos depoimentos das testemunhas Alexandra P... e João M.... 6. Admitindo todavia que a referida deficiência não existe, e que é ao invés unicamente a cópia disponibilizada ao Recorrente que se mostra inaudível, cumpre pois, nos termos e para os efeitos do disposto no art.° 412.°, n." 3 do CPP, expor o motivo pelo qual, no entender do Recorrente, se mostram incorretamente julgados os pontos 9, 10, 11,28 e 29 da matéria de facto dada como provada. 7. Assim, e desde logo, se a única coisa que ficou provada é que o Recorrente recebeu uma encomenda em Outubro, não se compreende como se pode ter considerado, no caso concreto, que o dinheiro apreendido a José M... correspondia ao resultado de transações anteriores (de produtos estupefacientes), como decorre do ponto 10 dos factos provados. 8. Com efeito, que transacções anteriores terão sido essas, quando tiveram as mesmas lugar, com quem se relacionou o Recorrente e que quantias por si foram vendidas? E, mais importante, com base em que elementos teve o Tribunal a quo conhecimento que tal efetivamente ocorreu, se no objeto do processo nada se refere quanto a isso? 9. Certo sendo que nem mesmo quanto à encomenda recebida em 1 de Outubro de 2012 se pode supor, e muito menos afirmar, que o Recorrente havia já vendido parte da mesma, como forma de justificação da origem ilícita do referido dinheiro. 10. De facto, o produto foi apreendido pela Polícia Judiciária na sua totalidade, ainda no interior de duas latas, conforme se retira do auto de busca e apreensão a fls. 714 e 715. 11. Sendo que, se dúvidas houvesse, o depoimento prestado pelo inspetor Nuno Mata dissipa-as por completo (cfr. gravaçãoáudio do dia 16/0412013, 15:59:47, cfr. a partir do minuto 04:25 e ss.), ao esclarecer que as duas latas estavam "hermeticamente fechadas, Pareciam caixas que tinham vindo de fábrica, completamente fechadas. E não era um fechado de colar, era um fechado com máquina mesmo". 12. E, submetido a revista pessoal, o Recorrente não levava consigo qualquer estupefaciente (cfr. fls 717). 13. Por conseguinte, de duas, uma: ou se prova que antes de 1 de Outubro de 2012 o Recorrente esteve na posse de estupefacientes, vendendo-os a terceiros (demonstrando-se a quantidade e identificando-se os compradores), ou então não há motivo absolutamente nenhum para, à luz das regras da experiência comum, considerar provado que, encontrando-se o Recorrente com numerário, ainda que avultado, lhe adveio o mesmo de vendas anteriores, porquanto inexistentes. 14. Termos em que, ao julgar provado que o dinheiro na posse do Recorrente advinha de transacções anteriores de produtos estupefacientes, quando do próprio texto do acórdão resulta claro que não se apurou que as mesmas tivessem ocorrido, verifica-se uma insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, para além de uma contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, que se argúi para os devidos efeitos legais. 15. Sendo que, caso assim não se entenda, a prova acima enunciada impunha não obstante que, no caso concreto, se tomasse decisão diversa, devendo em face da mesma julgar-se não provado o ponto 10 dos factos provados. 16. O que significa, face ao exposto, que inexistindo prova de que a quantia em dinheiro apreendida tem alguma ligação à atividade delituosa, deve ser revogada o acórdão na parte em que declara a mesma perdida a favor do Estado, ordenando-se em resultado disso a sua restituição ao Recorrente, nos termos legais. 17. Do mesmo modo, razão alguma havia para, diante da prova, entender que o Recorrente destinaria os estupefacientes que lhe foram apreendidos para venda ou, mais concretamente, que iria ser ele próprio o vendedor dos estupefacientes que lhe foram apreendidos. 18. De resto, quanto a esta matéria, pouco mais adianta o Tribunal a quo para além de que "outro destino lhe não daria senão o da venda", aparentando pois presumi-lo. 19. A verdade, porém, é que mesmo tratando-se de presunções, é sempre exigível que o Tribunal a quo explique convenientemente em que factos concretos as alicerça, em termos que permitam ao Recorrente sindicar, em sede de recurso e, se de facto, à luz das regras da experiência, só podia mesmo ter como finalidade a distribuição da cocaína, e não a qualquer outra. 20. Ora, compreende o Recorrente que, pelo facto de estarem em causa cerca de 900 gramas de estupefacientes, se possa ter entendido que, dificilmente, poderia estar em causa uma mera finalidade de consumo. 21. No entanto, não é por se entender que os estupefacientes não teriam como destino o consumo próprio que, automaticamente, se pode concluir que a iria ser o próprio Recorrente o vendedor dos estupefacientes que lhe foram apreendidos, sobretudo quando é consabido que, no crime de tráfico de estupefacientes, se inclui não só a venda, mas também o cultivo, a produção, o fabrico, a extração, a preparação, a oferta, a distribuição, a cessão, o transporte, a importação, a exportação e, finalmente, a simples detenção. 22. O que faz com que se verifique desde logo, nesta parte, um vício de insuficiência da fundamentação de facto, porquanto olvida o comando expresso no art." 374.°, n." 2, incorrendo assim na nulidade insanável prevista no art." 379.° n." 1, a), ambos do CPP. 23. De resto, o que significa exactamente a afirmação de que o Recorrente "destinava o produto estupefaciente que lhe foi apreendido a ser introduzido, para venda, no mercado português"? Ter-se-á considerado que seria o Recorrente quem, diretamente, iria proceder à venda dos estupefacientes a terceiros? Ou fá-lo-ia indirectamente? E caso fosse ele próprio a vendê-lo, fá-la-ia em pequenas doses, ou venderia todo o produto tal qual o recebera? 24. Com efeito, a referência num caso de tráfico de estupefacientes de que o destino final da droga apreendida ao Recorrente "era a venda", para além redutora e simplista, impossibilita uma correta determinação da medida da pena, desde logo porque coloca, no mesmo saco, o importador, o armazenista, o transportador, o intermediário e, finalmente, o retalhista. 25. É que colocar a tónica naquilo que, a jusante, se acabará por fazer aos estupefacientes (isto é, se acabarão por ser vendidos mais cedo ou mais tarde), em vez de apreciar, concretamente, o grau de participação que cada um desses intervenientes tem, acaba por coartar a possibilidade de sindicância, em recurso, da qualificação jurídico-penal que dos factos é feita no acórdão. 26. Certo sendo que, caso não se entenda que tal expressão é ambivalente, e portanto suscetível de induzir em erro, existia prova produzida que impunha que, no caso concreto, se fizesse uma distinção quanto ao papel do Recorrente, no que toca à colocação à venda dos estupefacientes. 27. Em primeiro lugar, e como acima se faz referência, parece lógico que, encontrando-se as duas latas onde chegou a cocaína hermeticamente fechadas, não será pelo facto de o Recorrente levar consigo quantias que se supõe a existência de circunstâncias concretas de venda. 28. Em segundo lugar, na busca realizada ao domicílio do Recorrente não foi encontrada nenhuma balança de precisão, fármacos comummente usados como "agentes de corte" da cocaína, ou outros instrumentos que permitissem concluir que, na posse da encomenda, seria ele próprio quem procederia à sua mistura e dosagem individual, para subsequente venda a terceiros. 29. Em terceiro lugar, não foi presenciado nenhum ato concreto de venda nem intercetada nenhuma conversa telefónica entre o Recorrente e um seu potencial comprador. E, mais concretamente, não ficou provado que o Recorrente destinasse a cocaína em apreço a ser vendida ao arguido Fernando G..., para posterior venda a terceiros, ou distribuída por José M... e Ana M... na cidade de Braga, daí que, esgotados esses nomes, e na ausência de outros, nenhum outro contacto foi intercetado que permitisse concluir que estariam a ser mantidos contactos com potenciais compradores ou distribuidores. 30. Finalmente, quando inquirido o inspetor Nuno M... sobre o que foi encontrado no dia da busca ao domicílio do Recorrente, referiu o mesmo que no saco de plástico onde estavam as duas latas encontrava-se, para além das mesmas, bombons, chocolates, bolachas e uma goiabada, ao que se recorda (cfr. supra gravação áudio do dia 16/0412013, 15:59:47, cfr. a partir do minuto 12:20 e ss.). 31. Ou seja, estava tudo acondicionado dentro do mesmo saco, de forma indiferenciada, sem que o Recorrente se tivesse dado portanto ao trabalho de "separar o trigo do joio", digamos assim, ou que tivesse sequer começado já a manusear a cocaína, que permaneceu hermeticamente fechada a todo o tempo dentro das duas latas até ser apreendida pela Polícia Judiciária. 32. Por conseguinte, e pondo as coisas completamente a claro, o que de relevante para o efeito da incriminação do Recorrente foi dado como provado cingiu-se, objetivamente, a que o mesmo recebeu no seu domicílio uma encomenda contendo cocaína, tendo a mesma sido apreendida. Tudo o mais são conjeturas, suposições. 33. No entanto, quando em processo penal se impõe conjeturar, perante a parcimónia da prova produzida, manda a lei que as dúvidas existentes se volvam a favor do arguido, e não contra ele. 34. Termos em que, ao julgar provado que o produto estupefaciente se destinava a venda, quando da prova não resulta que se tenha apurado quaisquer circunstâncias concretas de cedência, verifica-se uma insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, para além de uma contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, que se argúi para os devidos efeitos legais. 35. Sendo que, à luz das provas acima elencadas, conjugadas com as regras da experiência comum e com o princípio do in dubio pro reo, se impunha uma decisão diversa da recorrida, no que diz respeito aos pontos 9 e 11 da matéria de facto, que devem ambos ser julgados como não provados. 36. Consta finalmente no acórdão, no ponto 29 da matéria de facto provada, que entendeu o Tribunal que ficou demonstrado que o Recorrente "tem um apartamento, sua propriedade, no Brasil, que colocou à venda" e que "demonstrou indiferença perante a existência das vítimas e danos, assumindo um discurso desculpabilizador" . 37. Ora, confrontados os autos, resulta que o único elemento de onde consta que o Recorrente é proprietário de um imóvel no Brasil e que, supostamente, "demonstrou indiferença perante a existência das vítimas e danos, assumindo um discurso desculpabilizador" é, apenas e tão-somente, o relatório social elaborado pela técnica Alexandra P..., e que se encontra junto a fls. 1653 e ss. 38. Sendo que, nesse mesmo relatório, nada se descreve quanto às circunstâncias que terão levado a que a técnica de reinserção social ficasse convencida de um e outro facto. 39. Vejamos, é consabido que nada impedia o Tribunal de, livremente, considerar provados factos relativos à personalidade e carácter do Recorrente tendo por base juízos que sejam feitos nessa matéria num relatório social. 40. A questão, porém, é que tratando-se comprovadamente de prova indireta, não se vê como podia o Tribunal julgar provado um facto tão gravoso, e com tantas consequências nefastas a nível de determinação da medida da pena, sem explicar porque razão aceita sem questionar as suas conclusões que no relatório se escrevem, limitando-se ao invés a transcrevê-las ipsis verbis para a matéria de facto provada, sobretudo diante da inexistência de outros indícios ou provas adicionais que as permitissem corroborar. 41. Com efeito, o relatório social não tem valor de perícia, não se presumindo de forma alguma subtraído à livre convicção do julgador. 42. De resto, lido o acórdão, constata-se que reconheceu o Tribunal a quo que "da conjugação das interceções telefónicas, e da análise das transcrições das mesmas em conjugação com as declarações prestadas pelos inspetores da polícia judiciária, não pode este coletivo concluir com segurança que o arguido José C... Matias estivesse à espera de uma encomenda que se tivesse extraviado e que tal encomenda contivesse cocaína", ou seja, acabou por decidir, e bem, que as interceções telefónicas não eram em si mesmo suficientes para considerar provados os factos que se infere do seu conteúdo. 43. No entanto, no que toca já a um relatório social, elaborado por uma técnica de reinserção social, aceita sem questionar os juízos de valor que aí se tecem sobre o Recorrente, e nem uma justificação oferece. 44. Termos em que, ao acatar os juízos de facto e de valor vertidos no relatório social, sem que no acórdão se vislumbre qualquer exame crítico dos mesmos e fundamentação que sustente tal acatamento, sobretudo tendo em conta que o Recorrente não prestou declarações em julgamento e não existem outras provas que permitissem ao Tribunal corroborá-los, verifica-se a nulidade insanável, prevista no art." 379.°, n." 1, a) do CPP, por violação do disposto no art." 374.°, n." 2, do mesmo diploma legal. 45. Aquando da qualificação jurídico-penal dos factos, entendeu o Tribunal a quo que "as circunstâncias da actuação do arguido José M... e a respetiva ilicitude (atente-se designadamente no meio utilizado e na quantidade de cocaína a que se faz referência) ultrapassa sem margem para qualquer dúvida a fronteira da ilicitude diminuída pressuposta no artigo 25° do DL 15/93, preenchendo antes a previsão do artigo Zl " n° 1 do DL 15/93". 46. Salvo o devido respeito, porém, entende o Recorrente que as circunstâncias apuradas no caso concreto apontavam em sentido diverso, não compreendendo de forma alguma como se pode apelidar o seu caso de "grande" ou até "médio tráfico", atenta a complexidade e dimensão do mesmo no mundo real. 47. Desde logo, não é pelo facto de se estar perante heroína ou cocaína (isto é, as chamadas "drogas duras"), fica automaticamente impossível excluir, num dado caso concreto, a tipificação dos factos como tráfico de menor gravidade. 48. Por seu turno, no que diz respeito à quantidade, constitui entendimento pacífico que «nada no preceituado no art. 25, do DL n. o 15/93, de 22/01, inculca que o factor "quantidade", referido como exemplo padrão na consideração da sensível diminuição da ilicitude suscetível de privilegiar o crime de tráfico, se revista de valor decisivo e preponderante, ou por si só determinante, para a formulação de tal juizo» (cfr. Ac. STJ de 23/031200, proc. n." 5412000, in www.dgsi.pt). 49. Com efeito, «para preencher o conceito vago de "menor gravidade ", na vertente da quantidade de droga relevante, importa considerar nomeadamente o período de tempo da atividade, o número de pessoas identificadas como adquirentes, a repetição de vendas ou cedências, as quantidades adquiridas e vendidas e os montantes pecuniários envolvidos, e por isso "deve atender-se não apenas às quantidades transacionadas de cada vez pelo arguido mas à totalidade do produto vendido a todos os consumidores", (cfr. Ac. TRP, de 15/03/2006, proc. n." 0517078, in www.dsgi.pt, sublinhado nosso). 50. Ora, no caso concreto, não se provou que o Recorrente assumisse, na sua atividade, funções de liderança, e muito menos que contasse, no âmbito da mesma, com a colaboração dos arguidos José M..., Ana M... e Fernando G.... Por outras palavras, e tanto quanto resulta dos autos, o Recorrente não chefiava qualquer organização ou grupo de pessoas, atuando sozinho e sem recurso a intermediários. 51. Em segundo lugar, muito embora o acórdão refira que o destino final da cocaína era a venda (o que acima se põe em causa), a verdade é que não foram apuradas quanto ao Recorrente e à sua atividade circunstâncias concretas que o demonstrassem, designadamente contactos com terceiros ou mesmo indícios de participação do Recorrente a nível de pesagem, embalagem e dosagem individual, desconhecendo-se até as quantidades que o Recorrente transmitiria a cada um dos seus consumidores, ou se lidaria com apenas um, dois ou mais clientes. 52. Em terceiro lugar, tendo ficado provado apenas que o Recorrente recebeu uma encomenda em Outubro de 2012, e tendo sido todo o produto apreendido pela Polícia Judiciária, logicamente o período de duração da sua atividade, seja ela qual for, revelou-se pontual, não se tendo repetido no tempo. 53. Em quarto lugar, desconhece-se os meios de transporte empregues na atividade do Recorrente, certo sendo que, realizada uma busca ao seu automóvel, nada foi encontrado de interesse (cfr. fls. 716). 54. Em quinto lugar, no que concerne a organização e logística, entende o Recorrente que, ao contrário do que decide o Tribunal, os meios utilizados pelo Recorrente estão longe de ser os mais elaborados. 55. Com efeito, o que se comprova é que um o Recorrente contacta um brasileiro por telemóvel, vai recebendo informações sobre o dia em que a encomenda averá de chegar e, dias depois, recebe no seu próprio domicílio uma caixa dirigida em seu nome contendo estupefacientes. 56. Em sexto lugar, ignora-se as quantidades adquiridas e vendidas e os montantes pecuniários envolvidos, bem como os proventos concretamente obtidos pelo Recorrente, sendo ilegítimo concluir (como acima se expôs) que o dinheiro encontrado na sua posse advinha já da venda do produto recebido, porquanto se comprova que o mesmo foi apreendido na sua totalidade, e em latas hermeticamente fechadas. 57. Em sétimo lugar, desconhece-se se a atividade do Recorrente era exercida ou não em área geográfica restrita, certo sendo que não foi dado como provado que os arguidos José M... e Ana M... com ele colaborassem com vista à sua distribuição na cidade de Braga, ou que o arguido Fernando G... adquirisse cocaína a José M... para posterior venda a terceiros, seja em que região fosse. 58. Por último, quanto ao grau de pureza, mostra-se provado que era de apenas 54,4%, o que significa que o produto apreendido ao Recorrente conteria, apenas, 01,279 gramas de cocaína propriamente dita (ou seja, 54,4% de 921,470). 59. Certo sendo que, como resulta do depoimento do Inspetor Sérgio S..., os estupefacientes apreendidos eram de fraca qualidade e não correspondiam, minimamente, ao que constitui a norma em redes de elevada complexidade, muito pelo contrário (cfr. gravação áudio do dia 16/04/2013, 16:35:31, cfr. a partir do minuto 26:00 e ss.). 60. Tudo isto para que se reconheça, face a tudo o exposto, que do conjunto da atividade do Recorrente não emergem, pelo menos sem margem para qualquer dúvida (como defende o Tribunal a quo), itens inculcadores de reiteração, habitualidade, intensidade, disseminação alargada ou sintomaticamente expressiva, e muito menos provas de ligação marcada ao mundo dos estupefacientes ou ao seu mercado, muito pelo contrário. 61. O que se comprova, ao invés, é que um idoso reincidente de 76 anos recebeu no seu domicílio uma caixa com cocaína de fraca qualidade, tendo sido apanhado. 62. De resto, se dúvidas restassem sobre o destino dos estupefacientes, sobre as circunstâncias concretas de venda, sobre o período de duração da atividade, sobre os meios empregue, sobre a organização e logística e, finalmente, sobre se a atividade do Recorrente era exercida em área geográfica restrita ou não, dúvidas ainda restavam. E, dúvidas restando, a única certeza que existe é que se deve, sempre, decidir em abono do Recorrente. 63. Termos em que, por não se encontrar ultrapassada a fronteira da ilicitude prevista no art.° 25.° do Decreto-Lei n." 15/93, de 22 de Janeiro (que, como decidiu o STJ, "não se limita a prever bagatelas, condutas "sem gravidade ", tendo em conta que a moldura penal, em parte coincidente com a do artigo 21.°, pode ir até aos 5 anos de prisão"), deve entender-se que a conduta imputada ao Recorrente se reveste de uma ilicitude consideravelmente diminuída, requerendo-se em consequência a respetiva requalificação, como crime de tráfico de menor gravidade. 64. A título meramente subsidiário, e por elementar cautela de patrocínio, admitindo que improcedem todos os argumentos acima invocados, ainda assim não pode o Recorrente deixar de impugnar a medida da pena que concretamente lhe aplicada, que entende ser manifestamente desproporcionada diante das circunstâncias do caso. 65. Desde logo, é desproporcionada diante das penas que, nos Tribunais Superiores, têm vindo a ser fixadas em casos relativamente análogos de crime de tráfico de estupefacientes, também com verificação de reincidência (cfr., a título de exemplo, Ac. STJ de 15/02/2007, proc. n." 06P3195, Ac. STJ de 27/04/2011, proc. n." 20110, Ac. do STJ de 27/02/2008, proc. n." 08P419, Ac. STJ de 08/06/2004, proc. n." 1128/04 e Ac. TRP de 27110/2005, proc. n." 0544197, todos in www.dgsi.pt). 66. Certo sendo que, na sua condenação anterior, em processo que correu termos sob n." 1845/03.5JAPRT, a pena aplicada foi ao Recorrente de, apenas, 6 anos de prisão, não obstante o Recorrente ser então mais jovem, ter sido provada a existência de uma pluralidade de encomendas vindas do Brasil, o prolongamento da conduta por 4 a 5 meses e a colaboração de outros indivíduos. 68. Ademais, se porventura V. Exas. entenderem que, no caso concreto, não é legítimo concluir que os factos devem ser valorados como crime de tráfico de menor gravidade, então, no mínimo, devem os seguintes argumentos contribuir para uma redução significativa da pena: m) Desconhece-se se a atividade do Recorrente era exercida em área geográfica restrita ou não; 69. Termos em que, com todo o respeito devido, forçosamente se terá de entender que a pena concretamente aplicada ao Recorrente é excessiva, e injustamente desproporcional, "sobretudo quando sabemos que para a mesma moldura penal do crime imputado ao recorrente, situações existem de quantidades apuradas de várias dezenas e mesmo centenas de quilogramas desta espécie de estupefaciente (cocaína) - ou mesmo de toneladas para outra (haxixe)", como bem se expôs no Ac. de TRP junto a fls. 1746 e ss., requerendo-se por conseguinte a sua redução nos termos legais. Termos em que deverá ser concedido provimento ao presente recurso, reconhecendo-se a nulidade prevista no arte o 363.0 do mesmo diploma legal, devendo ser ordenada a repetição dos depoimentos das testemunhas Alexandra P... e João M.... Subsidiariamente, deve o acórdão recorrido ser declarado nulo, na parte em decide julgar provado que o dinheiro na posse do Recorrente advinha de transações anteriores de produtos estupefacientes, quando do próprio texto do acórdão resulta claro que não se apurou que as mesmas tivessem ocorrido, verificando-se quanto a esse aspeto insuficiência da matéria de facto provada, para além de uma contradição insanável ntre a fundamentação e a decisão, que se argúi para os devidos efeitos legais. Subsidiariamente, em face da prova referida pelo Recorrente supra, conjugada com as regras da experiência comum e com o princípio do in dubio pro reo, impõe-se julgar não provados os pontos 9, 10 e 11 dos factos provados, alterando-se em consonância o texto da decisão e devendo, por inexistência de prova de que a quantia em dinheiro apreendida tem alguma ligação à atividade delituosa, deve ser revogada o acórdão na parte em que declara a mesma perdida a favor do Estado, ordenando-se em resultado disso a sua restituição ao Recorrente, nos termos legais. Independentemente do supra exposto, e por não se encontrar ultrapassada a fronteira da ilicitude prevista no art." 25.° do Decreto-Lei n." 15/93, de 22 de Janeiro, deve entender-se que a conduta imputada ao Recorrente se reveste de uma ilicitude consideravelmente diminuída, requerendo-se em consequência a respetiva requalificação, como crime de tráfico de menor gravidade. Na eventualidade de que assim não se entenda, deve não obstante reconhecer- se que a medida da pena concretamente aplicada ao Recorrente é desproporcionada, rogando-se a título de subsidiariedade que, atentas as circunstâncias em que os factos ocorreram, seja a duração da mesma reduzida, assim se fazendo JUSTIÇA! 3. Na resposta, o Ministério Público refuta todos os argumentos do recurso, pugnando pela manutenção do decidido. Refere que o arguido foi condenado pela prática de um crime de tráfico como reincidente sem que para o efeito tenha dado como provado qualquer facto onde se conclua pela existência dos pressupostos aludidos no artigo 75º do CP, afigurando-se-lhe que a simples alusão às condenações anteriores do arguido não será suficiente para se concluir que o arguido é reincidente. A sentença/acórdão recorrida deu como provados e não provados os seguintes factos, reportados a este arguido José M...: «(…) 1.Pelas 10 horas do dia 01 de Outubro de 2012, segunda-feira, o arguido José M... recebeu na sua residência da Avenida D..., em Loures, uma encomenda postal “ctt expresso” que lhe foi entregue em mão por funcionário dos CTT. II – FUNDAMENTAÇÃO 8. Face às conclusões apresentadas, que delimitam o objecto do recurso, importa decidir as seguintes questões: “O crime de tráfico previsto pelo artigo 21º, nº 1 do DL 15/93 é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos. Pretende o Digno Magistrado do Ministério Público a condenação do arguido como reincidente. Nos termos do disposto no artigo 75º do Código Penal é punido como reincidente quem cometer crime doloso que deva ser punido com prisão efetiva superior a seis meses, depois de ter sido condenado por sentença transitada em julgado em pena de prisão efetiva superior a seis meses por outro crime doloso, se de acordo com as circunstâncias do caso, o agente for de censurar por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime; sendo que o crime anterior por que o agente tenha sido condenado não releva para a reincidência se entre a sua prática e a do crime seguinte tiverem decorrido mais de cinco anos, mas neste prazo não é computado o tempo durante o qual o agente tenha cumprido medida processual, pena, ou medida de segurança privativas da liberdade. Resulta provado que o arguido foi condenado na pena de 6 anos de prisão que lhe foi aplicada por Acórdão proferido em 17/05/2006, transitado em julgado em 19/12/2007, no Processo Comum Coletivo nº 1845/03.5JAPRT, do 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Matosinhos, pela prática, em 14/05/2005, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punível pelo artigo 21º do DL nº 15/93, de 22 de Janeiro, pena que foi extinta pelo cumprimento em 19 de Janeiro de 2012, após ter sido convertida em liberdade definitiva a liberdade condicional. Por outro lado, o arguido esteve preso à ordem do referido processo, ininterruptamente, entre 13 de Maio de 2005, altura em que foi preso preventivamente e 23 de Setembro de 2009 data em que lhe foi concedida a liberdade condicional, convertida em liberdade definitiva em 19 de Janeiro de 2012, com efeitos a partir de 14 de Maio de 2011. Assim, entre a data da prática de tal crime de tráfico e o crime que é objeto estes autos não decorreram mais de cinco anos, se descontado o tempo de prisão cumprido pelo arguido. Acresce que o crime pelo qual o arguido vem acusado, também doloso, deve ser punido com pena de prisão efetiva superior a seis meses. Efetivamente, a moldura abstrata (sem fazer atuar a reincidência) da pena é a de prisão de quatro a doze anos, e considerando os antecedentes criminais do arguido bem como atendendo ao preceituado nos artigos 40º, 71º e 50º do Código Penal tem o tribunal de concluir pela necessidade de aplicar ao arguido pena de prisão efetiva pois que a simples censura do facto e ameaça da pena não realizam de forma adequada as finalidades da punição (seja o desiderato da reintegração do agente na sociedade, seja a afirmação da validade dos bens jurídicos protegidos pelo tipo de ilícito praticado pelos arguidos), uma vez que os antecedentes criminais do arguido inculcam a conclusão de que só o cumprimento da pena de prisão é adequada a conseguir qualquer uma das apontadas finalidades da pena. Por fim – e verificados os requisitos formais da reincidência – importa considerar que também se verifica o requisito substancial de tal instituto. Na verdade, o arguido, tendo cumprido já pena de prisão pela prática de crime de tráfico de estupefacientes, voltou a praticar este crime e fê-lo menos de um ano após ter sido extinta a pena de prisão de seis anos em que foi condenado no Processo Comum Coletivo nº 1845/03.5JAPRT. Daqui se pode concluir que de nada serviu ao arguido a condenação que sofreu e a experiência da prisão, com vista a afastá-lo da prática de crimes de idêntica natureza. Inferir deste comportamento que a anterior condenação e cumprimento de pena não constituiu uma advertência suficiente para afastá-lo da criminalidade, mais não é do que constatar uma realidade. Na verdade, não se provou qualquer circunstância extraordinária na origem da prática dos factos deste processo, pelo que é legítimo concluir que o arguido, apesar da anterior condenação não viu nela advertência suficiente (neste sentido o Acórdão da Relação do Porto de 05/04/2006, in http://www.dgsi.pt). Daqui resulta que o arguido deve pois ser censurado pelo facto da anterior condenação não lhe ter servido de suficiente advertência contra o crime, já que o tempo de privação de liberdade não o coibiu de voltar a praticar o mesmo crime. Aliás, os próprios factos praticados pelo arguido nestes autos, em tudo semelhantes, aos que foram julgados provados no Processo Comum Coletivo nº1845/03.5JAPRT, também nos remetam para tal conclusão. De facto, no Processo Comum Coletivo nº1845/03.5JAPRT foi julgado provado que o arguido se vinha dedicando desde Janeiro de 2005 à compra e venda de estupefacientes estando ora no Brasil ora em Portugal, procedendo à “importação” de cocaína do Brasil, através de encomendas postais contendo tal produto ocultado sob a forma de chocolates, idênticos aos que foram apreendidos na sua residência, então sita na Parede, e à sua posterior distribuição em Portugal; mais foi julgado provado que no dia 13 de Maio de 2005 o arguido trazia com ele uma saca plástica contendo duas embalagens cilíndricas de cocaína com o peso líquido de 502,122 que destinava à venda a indivíduos que o iriam procurar com tal fim. Ora, nos presentes autos recebeu também o arguido a cocaína através de encomenda postal oriunda do Brasil, sendo que para obter tal produto também se deslocou o arguido ao Brasil e manteve contactos com brasileiros. Assim, temos de concluir que deve o arguido ser punido como reincidente. E a tal não obsta em nosso entender o facto do arguido durante o período de liberdade condicional que lhe foi concedido, em que residiu com o filho João M..., e durante o acompanhamento que lhe foi feito ter comparecido sempre junto dos serviços de reinserção social e ter prestado toda a colaboração, sendo objeto de uma avaliação positiva. É certo que nesse período aparentava conduzir o seu modo de vida por padrões que se coadunavam com a normatividade social e apresentava uma atitude autocritica face à prática criminal e consciência da necessidade de mudança, bem como capacidade de inserção social e familiar, evoluindo positivamente no seu processo de reinserção social. Mas é mais certo ainda que, quando deixou de residir com o filho e passou a residir sozinho, e deixou de ser acompanhado pelos serviços de reinserção social, por ter sido convertida em liberdade definitiva a liberdade condicional, pouco tempo depois voltou a praticar os factos objeto dos presentes autos e que o constituem autor de um crime de tráfico de estupefacientes, o que fez recorrendo ao mesmo modus operandi com que praticara o crime de tráfico em 2005. Tendo por base todas as considerações que acabam de se tecer pensamos não poder ser possível retirar outra conclusão senão que de nada serviu ao arguido a condenação que sofreu e a experiência da prisão, pois que o não afastou da prática do mesmo crime.” Nos termos do n.º 1 do artigo 75º do Código Penal “É punido como reincidente quem, por si só ou sob qualquer forma de comparticipação, cometer um crime doloso que deva ser punido com prisão efetiva superior a 6 meses, depois de ter sido condenado por sentença transitada em julgado em pena de prisão efetiva superior a 6 meses por outro crime doloso, se, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente for de censurar por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime.” Por seu turno, prescreve o n.º 2 do citado normativo que “O crime por que o agente tenha sido condenado não releva para a reincidência se entre a sua prática e a do crime seguinte tiverem decorrido mais de cinco anos; neste prazo não é computado o tempo durante o qual o agente tenha cumprido medida processual, pena ou medida de segurança privativas da liberdade.” Constata-se, deste modo, que a verificação da agravante qualificativa reincidência, não é automática, ao contrário do que sucedia no Código Penal de 1886. Relativamente ao pressuposto material dispõe o regime da reincidência que a punição agravada pela reincidência só tem lugar «se, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente for de censurar por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime». Como refere Figueiredo Dias Direito Penal Português, As Consequências…”, pág. 268 «é no desrespeito ou desatenção do agente por esta advertência que o legislador vê fundamento para uma maior censura e portanto para uma culpa agravada relativa ao facto cometido pelo reincidente». E, continua o mesmo Mestre, «o critério essencial da censura ao agente por não ter atendido a admonição contra o crime resultante da condenação ou condenações anteriores, se não implica um regresso à ideia de que verdadeira reincidência é só a homótropa [homogénea ou específica], exige de todo o modo, atentas as circunstâncias do caso, uma íntima conexão entre os crimes reiterados que deva considerar-se relevante do ponto de vista daquela censura e da consequente culpa. Uma tal conexão poderá, em princípio, afirmar-se relativamente a factos de natureza análoga segundo os bens jurídicos violados, os motivos, a espécie e a forma de execução; se bem que ainda aqui possam intervir circunstâncias (…) que sirvam para excluir a conexão, por terem impedido de atuar a advertência resultante da condenação ou condenações anteriores. Mas já relativamente a factos de diferente natureza [reincidência polítropa, genérica ou heterogénea] será muito mais difícil (se bem que de nenhum modo impossível) afirmar a conexão exigível. Desta maneira, …, é… a distinção criminológica entre o verdadeiro reincidente e o simples multiocasional que continua aqui a jogar o seu papel». Esta doutrina tem obtido acolhimento uniforme na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça. Argumenta-se no sentido de que, podendo a reiteração criminosa resultar de causas meramente fortuitas, ou exclusivamente exógenas, – caso em que inexiste fundamento para a especial agravação da pena por, então, não se poder afirmar uma maior culpa referida ao facto – e não operando a qualificativa por mero efeito das condenações anteriores, a comprovação da intima conexão entre os crimes não se basta com a simples história criminosa do agente, antes exige uma «específica comprovação factual, de enunciação dos factos concretos dos quais se possa retirar a ilação que a recidiva se explica por o arguido não ter sentido e interiorizado a admonição contra o crime veiculada pela anterior condenação transitada em julgado e que conduz à falência desta no que respeita ao desiderato dissuasor» (cfr. entre outros, os Acórdãos de 28.02.07, Pº 9/07-3ª, 16.01.08, Pº 4638/07-3ª, de 26.03.08, Pºs 306/08-3ª e 4833/07-3ª, de que foi retirado o trecho transcrito, de 04.06.08, Pº 1668/08-3ª e de 04.12.08; Pº 3774/08-3ª). Conforme resulta do n.º1 do citado artigo 75º a mesma só ocorre “se, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente for de censurar por a condenação ou condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime” Ora, no caso em apreço pensamos que o tribunal ponderou as circunstâncias baseadas nos factos apurados de molde a concluir, de acordo com a lei, que ao caso cabia aplicar o instituto da reincidência, pelo que não nos merece reparo. Analisou o comportamento deste arguido e depois de o ter deixado expresso concluiu que de nada lhe serviu a condenação que sofreu e a experiência da prisão, pois que o não afastou da prática do mesmo crime. Improcede, deste modo, a invocada nulidade por omissão. 2- Deficiente gravação A deficiência da gravação configura nulidade sanável, tal como previsto no artigo 120º,1 do CPP e deve ser arguida no prazo de 10 dias, nos termos do artigo 105º do mesmo Código, pois não consta do elenco das nulidades insanáveis do art. 119 do CPP, – o artigo 120 nº 1 do CPP dispõe que “qualquer nulidade diversa das referidas no artigo anterior deve ser arguida pelos interessados…”. Trata-se de uma nulidade da «audiência» e não da «sentença». O julgamento tem fases distintas – os “actos preliminares”, a “audiência” e a “sentença” (Livro VII da Parte Segunda do Código de Processo Penal), sendo que a nulidade invocada, a ter existido, ocorreu na audiência. Não está em causa uma nulidade da sentença, porque estas são só as previstas no art. 379 nº 1 do CPP. Para a sentença as nulidades da sentença está previsto um regime específico de arguição, podendo as mesmas ser arguidas em recurso (art. 379 nº 2 do CPP). As demais nulidades devem ser arguidas perante o tribunal onde foram praticadas, nos termos previstos no nº 3 do art. 120 do CPP, ou, se não houver norma especial, no prazo de 10 dias indicado no art. 105 nº 1 do CPP, que se contará a partir do conhecimento da ocorrência da nulidade, sendo que, naturalmente, a arguição nunca poderá ser posterior ao trânsito em julgado da sentença. Por isso, a nulidade em causa deveria ter sido arguida perante o coletivo, requerendo-se que fosse repetida a audiência, ou os depoimentos deficientemente gravados (a declaração de nulidade determina os atos que devem ser repetidos – art. 122 nº 2 do CPP). Caberia, então, recurso da decisão que viesse a ser proferida. Isto é assim, porque salvo os casos restritos das questões de conhecimento oficioso, os recursos visam apenas modificar as decisões recorridas e não criar novas decisões sobre matérias ou questões novas que não foram suscitadas ou conhecidas pelo tribunal recorrido. É pacífica a jurisprudência no sentido de que "a missão do tribunal de recurso é a de apreciar se uma questão decidida pelo tribunal de que se recorreu foi bem ou mal decidida e extrair daí as consequências atinentes; o tribunal de recurso não pode pronunciar-se sobre questão nova, salvo se isso for cometido oficiosamente pela lei" - por todos, acs. STJ de 6-2-87 e de 3-10-89, BMJs 364/714 e 390/408. O presente recurso foi interposto apenas da sentença e não de algum incidente processual que teve decisão desfavorável ao arguido. Está limitado ao seu conteúdo, às questões que nela foram ou deviam ter sido decididas. Se a relação decidisse agora sobre a alegada deficiência das gravações estaria a conhecer de questão nova, que não foi submetida, como podia e devia, à decisão do tribunal recorrido. Não tendo sido submetida à decisão do tribunal de primeira instancia a questão da invalidade da audiência, não pode agora esta relação conhecer dela. A consequência é a normalização dos efeitos originariamente precários da nulidade, a qual, no caso de ter ocorrido, ficou sanada. Improcede, pois, a pretensão do recorrente nesta parte. 3- Impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto e insuficiência para a decisão da matéria de facto provada A este respeito impugna o recorrente a factualidade vertida nos pontos 9,10 e 11, concretizando “ que o dinheiro apreendido correspondia ao resultado de transações anteriores de produto estupefaciente (ponto 10) Estamos a ter em mente o valor de 600 euros que se encontravam no bolso das calças que o arguido trazia e 8.450 euros que o arguido tinha numa bolsa que trazia consigo ao ombro. Ora, na motivação, o tribunal esclareceu que socorrendo-se das interceções telefónicas não teve dúvidas acerca dos contactos havidos por este arguido no sentido de aquisição da cocaína e tendo por base o salário auferido e as condições económicas indicadas para este arguido, socorrendo-se das regras de experiência comum formou a sua convicção de que o dinheiro apreendido correspondia ao resultado da sua atividade e não nos merece reparo o modo como formou a convicção já que não se baseou em meras suspeitas ou forma de averiguação inválida. Quanto aos pontos 9 e 11- que o arguido destinava a cocaína a ser introduzida para venda no mercado português, diremos a este respeito que tendo o tribunal dado por assente que o arguido tinha consigo 921,470 gramas, equivalente a 2714 doses, atendendo á quantidade e qualidade apreendida e tendo em conta ainda o montante de dinheiro que trazia consigo, terá de se concluir que o destino teria de ser a venda e por isso bem andou o tribunal a consignar tal factualidade da maneira como o fez. Existirá insuficiência da matéria de facto para a decisão se esta não contiver todos os elementos subjetivos e objetivos do tipo legal de crime(s) cuja prática se imputa ao recorrente. Esta insuficiência não se confunde, porém, com a insuficiência de prova para a decisão de facto proferida, a qual já cai no âmbito do princípio da livre apreciação da prova, ultrapassando os limites do reexame da matéria de direito. De facto, “a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada não tem nada a ver com a eventual insuficiência da prova para a decisão de facto proferida” (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, t. III, 2ª ed., p. 340); “o vício em apreço não tem nada a ver nem com a insuficiência da prova produzida (se, realmente, não foi feita prova bastante de um facto e, sem mais, ele é dado como provado, haverá, antes, um erro na apreciação da prova …), nem com a insuficiência dos factos provados para a decisão proferida (em que, também, há erro, já não na decisão sobre a matéria de facto mas, sim, na qualificação jurídica desta)”[ Ac. STJ de 7/7/2009]; “o vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão não tem a ver, e não se confunde, com as provas que suportam ou devam suportar a matéria de facto, antes, com o elenco desta, que poderá ser insuficiente, não por assentar em provas nulas ou deficientes, antes, por não encerrar o imprescindível núcleo de factos que o concreto objeto do processo reclama face à equação jurídica a resolver no caso.”[ Ac. STJ de 1/6/06, proc. nº 06P1614] Da matéria de facto apurada não resulta insuficiência para a decisão da matéria de facto dado que com base no princípio da livre apreciação da prova foi levado a cabo processo lógico resultante do texto da decisão conjugado com as regras de experiência comum. Quanto ao ponto 29 que o recorrente impugna onde se descreve que o mesmo demonstrou indiferença perante a existência de vítimas e danos, assumindo um discurso desculpabilizador, tem a confirmá-la o relatório social elaborado e constante a fls. 1597 e segs. , documentos juntos a fls. 1534 a 1562 e os depoimentos das testemunhas indicadas que os vieram a confirmar. 4- Qualificação jurídica No entender do recorrente os factos provados configuram a prática de crime de tráfico de menor gravidade, tal como previsto no artigo 25º do DL 15/93 Sendo inegável que o art. 21º n.º 1, do Dec. Lei n.º 15/93, de 22/1, contempla a descrição fundamental relativa à previsão e ao tratamento penal das atividades de tráfico de estupefacientes, não é menos certo que o legislador construiu uma estrutura progressiva, altamente abrangente desse tipo matriz, na qual se integra o art. 25º, criando uma válvula de segurança que permite distinguir os casos de tráfico importante e significativo de situações efetivas de menor gravidade, de forma a obviar que estas últimas sejam tratadas com penas desproporcionadas. Assim, dispõe o citado art. 21º n.º 1 que: “Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no art. 40º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos.” Por seu turno, o art. 25º a), do Dec. Lei n.º 15/93, de 22/1, estatui que, se nos casos dos art°s. 21º e 22º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, a pena é de prisão de 1 a 5 anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V ou VI, apresentando-se, pois, como uma especialidade daquele normativo legal e autonomizando-se por força de uma ilicitude do facto consideravelmente diminuída, seja pela quantidade ou qualidade da substância em causa, seja pelos meios utilizados na prática de qualquer dos actos expressamente plasmados no art. 21º, ou ainda pelas circunstâncias concretas que rodearam a ocorrência. Depois de um período inicial em que a jurisprudência fez uma interpretação muito restritiva do referido art. 25º, quase olvidando o sentido da alteração introduzida ao regime jurídico aplicável ao tráfico de estupefacientes, assente no reconhecimento de que o “tráfico de quantidades diminutas” a que aludia o Dec. Lei n.º 430/83, de 13/12, não acautelava devidamente aquelas situações de efetiva menor gravidade que acabavam por ser tratadas com penas desproporcionadas ou especialmente atenuadas de modo algo forçado, [ V. Nota Justificativa da Proposta de Lei enviada à Assembleia da República ] evoluiu-se para um entendimento de que a integração do tráfico de menor gravidade deste normativo não impõe necessariamente uma ilicitude diminuta, devendo antes situar-se em nível acentuadamente inferior ao exigido pela incriminação do tipo geral do art. 21.º, aí se integrando agora os vulgarmente designados “retalhistas de rua”, sem ligações a quaisquer redes, desprovidos de quaisquer organizações ou de meios logísticos e sem acesso a grandes ou avultadas quantidades de estupefacientes. – cfr. entre outros, os acórdãos do S.T.J. de 24/5/2002, 4/7/2003 e 5/4/2006, Procs. 02P2122, 03P3298 e 06P673, rel., respectivamente, por Carmona da Mota, Costa Mortágua e Silva Flor, todos disponíveis in dgsi.pt. Conforme jurisprudência do nosso STJ, “A tipificação do art. 25º parece significar o objetivo de permitir ao julgador que, sem prejuízo do natural rigor na concretização da intervenção penal relativamente a crimes desta natureza (de elevada gravidade considerando a grande relevância dos valores postos em perigo com a sua prática e a frequência desta), encontre a medida justa da punição em casos que, embora porventura de gravidade ainda significativa, ficam aquém da gravidade do ilícito justificativa da tipificação do art. 21º e encontram resposta adequada dentro das molduras penais previstas no art. 25º. Resposta que nem sempre seria viável e ajustada através dos mecanismos gerais de atenuação especial da pena (art°s. 72º e 73º do Código Penal), cuja possibilidade de aplicação não podia ter deixado de estar presente no espírito do legislador ao decidir-se pelo tipo privilegiado do art. 25º. A justiça da intervenção, com a adequada prossecução dos relevantíssimos fins de prevenção geral e especial, justifica bem as opções legais tendentes à adequada diferenciação de tratamento penal entre os grandes e médios traficantes (art°s. 21º, n.º 1, e 24º), dos pequenos traficantes (art. 25º) …”.[ V., Ac. STJ, de 22/5/2002, Proc. 02P1550, rel. Armando Leandro, in dgsi.pt.] Em conformidade, a diferença entre os art°s. 21º e 25º assenta numa escala de danosidade social centrada no grau de ilicitude, a aferir caso a caso, com base na ponderação das condições especificamente apuradas e que devem ser globalmente valorados por referência à matriz subjacente à enumeração exemplificativa contida na lei – v., entre muitos outros, Ac. STJ, de 18/02/1999, CJ-STJ, Tomo I, pág. 220 e segs., e, na doutrina, Lourenço Martins, “Droga e Direito”, Aequitas, Ed. Notícias, pág. 146 e segs. Mas, não sendo a enumeração legal taxativa, tem-se ainda entendido que o critério a seguir, para qualificar o facto como menos grave ou leve, deverá ser o da valorização global da ocorrência e das concretas e específicas circunstâncias em que a mesma se desenvolveu. Assim, para além das referências à quantidade e qualidade das substâncias traficadas, pode e deve atender-se ao seu grau de pureza ou perigo que representam em razão da sua natureza mais ou menos viciante e, no tocante à modalidade ou circunstâncias da ação, devem ponderar-se, entre outras, as finalidades e as razões que lhe presidiram. Ora, no caso em apreço estamos perante uma atividade algo elaborada na medida em que implica deslocações internacionais e não podemos ignorar a quantidade de droga apreendida de quase um kilo de cocaína e com grau de pureza de 54% que nos leva às 2714 doses. Trata-se de uma droga bastante nociva para a saúde e que foi adquirida de forma que certamente não é rudimentar já que houve o cuidado em a camuflar através de latas rotuladas de leite em pó “N...” e que só vieram a ser descobertas em virtude da existência de escutas. Resulta do exposto que estamos a referir-nos a número nada irrisório de consumidores a quem se destinaria, temos ainda presente a natureza viciante da substância apreendida - situada na escala de maior danosidade social - e a atividade desenvolvida apresentava já uma estrutura organizada de molde a obter os seus proventos. Assim, todas as circunstâncias objetivas, apuradas e descritas na matéria de facto dada como provada apontam no sentido de uma dimensão gravosa da imagem global do facto, não se vislumbrando possível concluir estarmos em presença de uma estrutura compatível com a previsão normativa estabelecida no artigo 25º. A estrutura que aqui encontramos tem cariz organizativo substancial, com desígnio de obter um diferencial com expressão monetária, ou seja de obtenção de proventos económicos. Parece-nos, pois, que tal circunstancialismo sustenta a subsunção da sua conduta ao tráfico do tipo matriz plasmado no art. 21º. 5- Medida da pena De entre uma moldura penal de 5 anos e quatro meses a 12 anos, também não nos parece que seja excessiva, face á factualidade descrita, a aplicação de pena de seis anos e quatro meses de prisão, pois que esta se aproxima do limite mínimo estabelecido e teve em conta a culpa do agente e as elevadas exigências de prevenção.
A responsabilidade pelas custas Uma vez que o arguido decaiu no recurso que interpôs é responsável pelo pagamento da taxa de justiça e dos encargos a que a sua actividade deu lugar [artigos 513.º e 514.º, do Código de Processo Penal]. ■ III – DISPOSITIVO Pelo exposto, os juízes acordam em: · Negar provimento ao recurso interposto pelo recorrente José M... |