Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2170/21.5T8BRG.G1
Relator: ELISABETE COELHO DE MOURA ALVES
Descritores: PRESCRIÇÃO
CONHECIMENTO DO MÉRITO NO SANEADOR
FACTOS CONTROVERTIDOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/15/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. O caso julgado apenas se forma relativamente a questões ou exceções dilatórias que tenham sido concretamente apreciadas e nos limites dessa apreciação, o que manifestamente não ocorre no despacho que se limita a relegar para final o conhecimento de uma excepção, face à existência de factos controvertidos.
2. Entendendo-se que os autos dispunham de todos os elementos para apreciação e decisão da excepção deduzida (aliás já anteriormente anunciada), após dado o contraditório às partes sobre a pretensão de alteração do iter processual quanto à apreciação da referida excepção, procedendo-se à sua análise e decisão antes do julgamento da causa, o que na perspetiva do bem fundado do despacho recorrido, permitiria evitar a prática de actos inúteis, dispêndio de meios e tempo, quanto à prolação de uma decisão que podia ter sido antecipadamente dada, e justificaria, por isso, o procedimento adoptado, em homenagem ao princípio, previsto no artº 130º do CPC, da proibição da prática de atos inúteis no processo, não se mostra violado o principio do contraditório e da igualdade das partes, ou da confiança.
3. Existindo mais do que uma solução plausível para a questão de direito e factos controvertidos com relevância para alguma delas é prematuro o conhecimento do mérito antes da fase de julgamento.
4. O exercício de alegado direito dos AA. (à restituição do sinal em dobro) apenas estará em condições objectivas de ser exercido com a verificação do facto de que decorre o alegado incumprimento definitivo e culposo do contrato-promessa e não da data da sua celebração.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM EM CONFERÊNCIA NA 3ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I. Relatório

J. J. e outros intentaram a presente acção comum contra Construções X, Irmãos Lda., pedindo a condenação da ré a restituir-lhes o dobro das quantias que lhe pagaram até 1989 – ascendendo essas quantias ao valor, convertido em euros, de 132.462,75 €, o qual, por aplicação do coeficiente de desvalorização da moeda fixado para o ano de 1989, hoje corresponde a 340.429,26 € –, num total de 680.858,52 €, a que devem acrescer juros de mora à taxa legal e anual de 4%.

Alegaram para tanto, em síntese, o seguinte:
- Mediante acordo escrito celebrado em 10.01.1989, a ré prometeu vender aos autores e este prometerem comprar-lhe metade indivisa de um prédio misto, pelo preço de 25 milhões de escudos, correspondentes a 124.699,47 €, a pagar em prestações, o qual já se encontra integralmente pago;
- Mais estipularam que a ré poderia ocupar o referido prédio com a construção de edifícios, para venda no regime de propriedade horizontal, caso em que deveria aos autores uma compensação correspondente a uma percentagem da construção – 10% das fracções do rés-do-chão e dos andares e, por cada um dos apartamentos assim calculados, uma garagem individual na cave do respectivo edifício;
- Acordaram ainda que as despesas a suportar até que a totalidade do prédio misto ficasse apto para nele se iniciar qualquer edificação, nomeadamente com a desocupação do caseiro, projectos, encargos fiscais, infraestruturas urbanísticas, etc., seriam suportadas por ambas as ambas e na proporção de 50%;
- A este título os autores pagaram um total de 1.556.400$00, correspondente a 7.763,28 €;
- O valor total de 132.462,75 € despendido pelos autores corresponde hoje, por aplicação do coeficiente de desvalorização da moeda fixado para o ano de 1989, a 340.429,26 €;
- Dadas as relações de amizade e familiares entre os autores e os representantes da ré, foi-se protelando a realização da escritura ou escrituras, bem como a execução do empreendimento nos termos projectados;
- Em 14.07.2004, sem o conhecimento ou o consentimento dos autores, a ré transmitiu para a sociedade comercial Y – Construção Civil e Compra e Venda de Propriedades, Lda. a posse e a propriedade do prédio misto objecto do contrato promessa, conforme escritura pública de permuta que juntam, actuando de modo consciente e voluntário, com a vontade objectiva de deixarem de cumprir o contrato promessa outorgado com os Autores, em virtude de terem deixado de ser os proprietários do prédio misto prometido vender, faltaram definitiva e culposamente ao cumprimento do mesmo, pelo que lhe é imputável o incumprimento definitivo do referido contrato promessa;
- Deste modo, deve devolver aos autores o dobro dos valores entregues a título de sinal, como tal se presumindo todas as quantias entregues pelos promitentes compradores, tudo acrescido de juros de mora a contar da citação.
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A ré, após citação, ocorrida em 28.04.2021, apresentou contestação, pugnando pela improcedência da acção e pela condenação dos autores como litigantes de má-fé.

Alegou para tanto, em síntese, o seguinte:
- Os autores, alegando dificuldades financeiras, não pagaram a totalidade dos valores referidos no contrato promessa, mas antes um total de 21.500.000$00, correspondentes a 107.241,51 €;
- A ré iniciou a construção de um edifício no prédio em causa no ano de 1991, que terminou no ano de 1999, tendo então instado os autores para indicarem a parte da construção que pretendiam, os quais responderam não pretender a construção, mas antes o valor correspondente, visto atravessarem uma grave crise económica e necessitarem de dinheiro para liquidarem responsabilidades pessoais;
- A ré fez saber que não tinha disponibilidade financeira para efectuar qualquer pagamento, replicando os autores que, nesse caso, se daria o contrato por finalizado, sem mais responsabilidade de parte a parte;
- A ré recorreu a um empréstimo, de forma a satisfazer os autores, começando por lhes entregar a quantia de 12 milhões de escudos, após o que entregou mais 6 milhões de escudos em 15 de Abril e outros 6 milhões de escudos em 15 de Dezembro de 1999, ficando assim o contrato promessa dado sem efeito por acordo de ambas as partes, apesar de nada ter ficado escrito;
- A ré ficou convicta de tal facto, razão pela qual em 2004, procedeu à alienação do imóvel, convicta que lhe pertencia por inteiro e assim induzida pelo comportamento dos autores;
- Não foi estipulado qualquer prazo para o cumprimento do contrato promessa em causa nestes autos, pelo que o mesmo podia ser exigido a todo o tempo;
- No caso de uma obrigação pura ou com prazo em benefício do credor, o prazo de prescrição – que começa a correr quando o direito puder ser exercido – tem início na data da celebração do contrato de que emerge a obrigação;
- Tendo decorrido mais de 20 anos desde a celebração do contrato promessa em questão nestes autos, bem como desde a data do último pagamento efectuado pela ré (1999), prescreveu o direito que os autores pretendem exercer;
- Caso se entenda que não ocorreu a prescrição, o exercício desse direito sempre se traduziria num abuso de direito, nos termos previstos no artigo 334.º do Código Civil.
- Os AA. agem de má-fé pois é falso que nada tenham recebido por conta do contrato, conforme recibos que junta, e apesar de estarem cientes do acordado quanto ao fim do contrato com o pagamento efectuado, não se coibiram de vir exigir o sinal em dobro, factos que são do seu conhecimento pessoal, aduzindo, assim, factos que sabem ser falsos procurando exercer um direito a que sabem não ter direito, pelo que devem ser condenados em multa e indemnização a favor da ré de montante não inferior a 6.000,00€, bem como no pagamento dos honorários do mandatário.
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Os autores pronunciaram-se por escrito sobre as excepções da prescrição e do abuso de direito, pugnando pela sua improcedência, pedindo também a condenação da ré como litigante de má-fé.

Sustentam, em súmula, depois de reiterarem que pagaram integralmente o preço acordado e de negarem os pagamentos que a ré afirma ter efectuado em 1999 – o seguinte:
- As obrigações assumidas pelas partes são contratuais e nunca houve qualquer acordo no sentido de alterar as condições contratuais, sendo certo que, tanto o negócio como qualquer aditamento, alteração ou revogação teriam de fazer-se por documento escrito e assinado pelas partes;
- As relações contratuais vinham-se desenvolvendo normalmente com a construção do edifício e os autores não tinham que estabelecer nenhum prazo para completar o empreendimento, pois isso era da única responsabilidade da ré, não foram notificados para qualquer fim e nunca mostraram desinteresse pelo negócio nem dele desistiram.
- A ré sempre escondeu dos AA. as negociações para venda ou permuta do prédio com terceiros e também escondeu que o tivesse feito, tendo sido com surpresa que recentemente tomaram conhecimento da outorga da escritura de permuta celebrada pela ré com terceiros sobre o prédio objecto do contrato promessa.
- Assim a Ré e os seus representantes, atuando de modo consciente e voluntário, com a vontade objetiva de deixarem de cumprir o contrato promessa outorgado com os Autores, em virtude de terem deixado de ser os proprietários do prédio misto prometido vender, faltaram definitiva e culposamente ao cumprimento do mesmo, pelo que é antes a Ré quem litiga de má fé e por isso deverá ser condenada em multa e indemnização por litigância de mé fé, a fixar pelo Tribunal, atenta a gravidade do seu comportamento.
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Com data de 26 de Junho de 2021, foi designada audiência prévia, consignando-se no despacho, para além do mais, que: «Afigurando-se possível conhecer imediatamente da excepção peremptória de prescrição invocada, julga-se indispensável a realização de audiência prévia, com as finalidades previstas no artigo 591.º, n.º 1, alíneas a) e b) do CPC: realizar tentativa de conciliação, nos termos previstas no artigo 594.º do CPC; frustrando-se esta, facultar às partes a discussão de facto e de direito.»
Em 12 de julho de 2021 foi realizada audiência prévia, na qual, se consignou em acta respectiva: «Frustrada a conciliação, pelo Meritíssimo Juiz foi facultada às partes a discussão de facto e direito, para os efeitos do disposto no artigo 591.º, n.º 1, alínea b), do Cód. Proc. Civil, tendo designadamente em vista a excepção de prescrição invocada pela ré, tendo os ilustres mandatários das partes reiterado, na sua essência, as posições já expressas nos respectivos articulados.
Finda o debate, o Mm. Juiz determinou que sejam os autos conclusos para ser proferido despacho saneador por escrito
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Conclusos os autos, em 6.09.2021, foi proferido despacho saneador, no qual se consignou, para além do mais e para o que ora reporta: «Da prescrição da obrigação da ré:

Atenta a matéria de facto controvertida, relega-se para final o conhecimento da exceção da prescrição invocada pela ré.
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Não existem outras exceções ou questões prévias que cumpra conhecer e obstem à apreciação do mérito da causa.»
Mais foram fixados, o objecto do litígio e os temas de prova, nos termos que se passam a transcrever:
«Objeto do litígio:
- Obrigação da ré pagar o valor reclamado pelos autores na sequência do incumprimento culposo dos termos do contrato promessa celebrado entre autores e ré no passado dia 10 de janeiro de 1989.
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Temas de prova:
- Incumprimento culposo do contrato promessa por parte da ré.
- Data em que ocorreu esse incumprimento.
- Impossibilidade de cumprimento desse contrato por parte da ré.
- Data em que ocorreu essa impossibilidade objetiva de cumprimento do contrato promessa por parte da ré.
- Resolução contratual e data em que a mesma ocorreu.
- Valores pagos pelos autores à ré a título de sinal.
- Data dos pagamentos efetuados pelos autores à ré a título de sinal.
- Valor atual do sinal pago pelos autores à ré na sequência da celebração desse contrato promessa.
- Valor das despesas suportadas pelos autores na sequência da celebração do contrato promessa.
- Interpelação da ré aos autores para indicarem que “área de construção” pretendiam nos termos do contrato promessa (cláusulas quarta e quinta).
- Data em que ocorreu essa interpelação da ré aos autores para indicarem a área de construção que pretendiam receber nos termos das cláusulas quarta e quinta do contrato promessa.
- Acordo entre autores e ré no sentido de alterar as cláusulas quarta e quinta do contrato promessa e substituir a entrega dessa “área de construção” pelo respetivo valor em numerário.
- Valor acordado entre autores e ré na sequência da alteração das cláusulas quarta e quinta do contrato promessa.
- Valor pago pela ré aos autores na sequência desse acordo de alteração dos termos do contrato promessa (cláusulas quarta e quinta).
- Data dos pagamentos efetuados pela ré aos autores nos termos acordados.
- Inércia dos autores e correspondente convicção da ré de que os termos do contrato promessa já estavam cumpridos e que os autores nada mais iriam exigir à ré na sequência desse contrato promessa.
- Má fé processual das partes
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Com data de 1.12.2021, foi proferido despacho, com o seguinte teor: «Compulsados os autos, verifica-se o seguinte:
- Por despacho proferido em 26.06.2021, por se afigurar possível ao signatário decidir imediatamente a excepção peremptória de prescrição invocada, foi designada data para realização de audiência prévia, com as finalidades previstas no artigo 591.º, n.º 1, alíneas a) e b) do CPC;
- Nessa diligência, realizada no dia 12.07.2021, tendo-se frustrado a tentativa de conciliação das partes e depois de facultada às mesmas a discussão de facto e direito, para os efeitos do disposto no artigo 591.º, n.º 1, alínea b), do Cód. Proc. Civil, o signatário reiterou expressamente julgar possível proferir decisão sobre a invocada prescrição, sem necessidade de produzir mais provas, tendo ordenado que os autos lhe fossem conclusos para esse efeito;
- Sucede que os autos foram conclusos no dia 06.09.2021 ao Exmo. Juiz que, durante o mês de Setembro e parte do mês de Outubro, assegurou a substituição do signatário durante o período em que este, por decisão do Conselho Superior da Magistratura, esteve em afectação exclusiva à conclusão de um julgamento e à prolação da sentença num processo de especial complexidade;
- Com base num entendimento diferente do que havia sido preconizado, e que naturalmente se respeita, o Sr. Juiz substituto proferiu despacho saneador, fixou o objecto do litígio e enunciou os temas da prova, estando actualmente em curso a tramitação da prova pericial entretanto requerida.
Não obstante, não se alterou o entendimento preconizado pelo signatário, por escrito e presencialmente perante os mandatários partes. Acresce que nada obsta a que, em consonância com tal entendimento, o Tribunal conheça imediatamente a excepção de prescrição invocada pela ré, sob pena de contradição com a posição anteriormente assumida.
Contudo, em obediência aos deveres de transparência e lealdade processual a que o Tribuna está adstrito, tendo em vista obviar uma decisão surpresa, comunica-se esta intenção às partes, para que possam pronunciar-se, querendo, no prazo de 10 dias
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Em resposta vieram os autores opor-se ao conhecimento da excepção da prescrição, pugnando pelo prosseguimento dos autos com a sua tramitação até julgamento face à matéria que se mostra controvertida, conforme decidido no despacho saneador, que consideram fazer caso julgado formal.
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Por decisão proferida com data de 18.01.2022- ref. 176950557- apreciados os fundamentos aduzidos na resposta dos AA. para o não conhecimento imediato da excepção de prescrição, julgada a falta de fundamento daqueles, foi decidido julgar procedente a excepção de prescrição invocada pela ré Construções X, Irmãos Lda. e, em consequência, absolve-la do pedido; mais foram julgados improcedentes os pedidos de condenação dos autores e da ré como litigantes de má fé.

Inconformados com a decisão, dela recorreram os autores, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões (que se transcrevem):

1-Vem o presente recurso interposto da douta sentença que:
-julga procedente a excepção de prescrição invocada pela Ré e em consequência a absolve do pedido;
-julga improcedentes os pedidos de condenação dos autores e da ré como litigantes de má fé;
-condena os autores nas custas, nos termos do artigo 527º, ns.º 1 e 2 do CPC.
2-Desde logo se diga que tal decisão foi proferida já depois de proferido, por outro Senhor Magistrado, despacho saneador, que decidiu pelo prosseguimento do processo para julgamento, relegando para esse momento a apreciação da excepção de prescrição.
3-É reconhecida constitucionalmente a independência do poder judicial, estando, contudo, as decisões judiciais obrigadas ao cumprimento, entre outros, dos princípios da legalidade e da confiança jurídica, não podendo as partes estar sujeitas a eventuais decisões surpresa.
4-Assim, da ata da audiência prévia só resulta que não houve entendimento das partes quanto à exceção da prescrição invocada pela Ré.
5-Em 6/09/2021 foi proferido despacho saneador, notificado por ofício da mesma data aos mandatários das partes, que, relativamente à alegada prescrição, decidiu: “atenta a matéria de facto controvertida, relega-se para final o conhecimento da exceção de prescrição invocada pela Ré”.
6-Ora, o Exmo. Magistrado que proferiu tal decisão considerou, com total independência e certamente com a devida ponderação, que os autos não forneciam os elementos necessários a uma decisão da matéria de exceção, relegando para final o seu conhecimento e desse despacho saneador não houve reclamações, não sendo suscetível de recurso, nos termos do nº 4 do art. 595º do CPC.
7-Tal despacho saneador não foi proferido pelo Exmo. Magistrado que agora produziu a sentença notificada. Porém, não existe subalternização do Exmo. Magistrado que proferiu o despacho saneador, que agiu com total independência, ponderação e não menor isenção, nem poder de revogação por parte do Exmo. Magistrado que proferiu o despacho ora notificado, relativamente ao despacho saneador proferido, e outro entendimento criaria absurdos processuais não admitidos pelo legislador, ou seja, decisões contraditórias dentro do mesmo processo.
8-Também não se descortina disposição legal que permita ao Exmo. Magistrado, que agora proferiu o despacho notificado, de oficiosamente ou de qualquer outra forma, revogar, alterar ou modificar o despacho saneador proferido, como se de uma nova “instância de recurso” se tratasse.
9-Aliás, nos termos do artigo 620º do CPC os despachos e sentenças que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do próprio processo.
10-E nos termos do artigo 630º do CPC, conjugado com o disposto no artigo 547º, ambos do CPC, a função do Juiz deverá ser no sentido de “adotar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adoptar o conteúdo e a forma dos atos processuais ao fim que visam atingir, assegurando um processo equitativo”.
11-Assim, poderemos falar que na adequação processual adoptada pelo Exmo Magistrado que proferiu despacho saneador, que não mereceu reclamação ou outra qualquer reação das partes e como tal terá formalmente transitado, foi assegurado esse processo equitativo ao ser reconhecido que a matéria da exceção só em sede de julgamento teria, pela prova a produzir, a necessária ponderação e decisão.
12-Conformaram-se as partes e conformou-se com tal despacho o Exmo Magistrado que agora profere a sentença recorrida, em contrário do ali decidido. Na verdade, o Exmo. Magistrado que proferiu o despacho ora notificado já antes se conformou com tal despacho saneador, ao dar-lhe continuidade com a notificação nos autos “nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 467º, nº 2 e 476º, nº 1, ambos do CPC”, por despacho de 2/11/2021, ref. 175842560.
13-Salvo melhor opinião está-lhe legalmente vedado revogar, alterar ou modificar processualmente o “despacho saneador” proferido e transitado o que, a acontecer, configuraria eventualmente violação dos princípios da legalidade e da confiança, constitucionalmente protegidos e do disposto nos nºs 1, 3 e 4 do art. 595º, 596º, 620º, 630º e 547º do CPC.
14-Também os Autores, como demonstrarão em julgamento, irão produzir a prova necessária à improcedência da exceção da prescrição invocada, pelo que, e bem, no despacho saneador, face à matéria controvertida, se relegou tal matéria para conhecimento a final, depois de produzida a prova.
15-Acresce que face ao alegado pelos Autores e Ré, nos articulados e documentos juntos, não esquecendo o processo camarário pedido a titulo devolutivo, os autos nunca permitem nesta fase concluir pela procedência da tal exceção de prescrição, antes pelo contrário.
16-Aliás, decorre do teor do contrato, aceite integralmente pelas partes, que o contrato não é um mero contrato promessa de compra e venda, mas antes um contrato misto de compra e venda, empreitada e até de permuta entre valores entregues e frações a construir no terreno identificado. Mas essa promessa era não de uma parte determinada desse prédio, mas antes, como decorre da clausula segunda do mesmo contrato, “sem determinação de parte ou direito”.
17-Ou seja essa prometida venda dependia de prévia liquidação, total ou parcial, desse direito. Por isso na sua cláusula quarta foi acordado que o prédio pode ser “na sua totalidade ou em parte ocupado pela construção de edifícios para venda no regime de propriedade horizontal”.
18-Ora, resulta da alegação da partes e confissão da Ré que no terreno em causa só foi construído um bloco. Porém, como decorre do processo camarário e até da planta junta pela Ré na sua contestação a construção não se “ficaria” só pela construção do Bloco …, mas antes por uma maior mancha construtiva assinalada naquela planta.
19-Ou seja, o contrato iria, sem prazo estipulado, desenvolver-se no tempo com a construção de outros blocos de acordo com as aptidões construtivas no prédio e dos licenciamentos camarários que fossem sucessivamente obtidos. Assim, estaremos perante um contrato sem prazo, de execução continuada no tempo.
20-E não é verdade, nem está provado, (matéria controvertida e objeto da perícia ordenada) que em 1999 fossem restituídos aos Autores quaisquer valores referentes ao contrato promessa e este revogado por acordo, pois nesse ano não só nada poderiam ter acordado com a Ré, como também nada lhes foi pago.
21-Assim é objetivo que a Ré e os seus representantes, atuando de modo consciente e voluntário, com a vontade objetiva de deixarem de cumprir o contrato promessa outorgado com os Autores, em virtude de terem deixado de ser os proprietários do prédio misto prometido vender, faltaram definitiva e culposamente ao cumprimento do mesmo.
22-Aliás, como resulta do contrato e da experiência comum é ou era à Ré que competia (obrigação decorrente do contrato) elaborar projectos de arquitectura e de especialidades junto da Câmara Municipal de … relativos aos demais blocos habitacionais a construir pela Ré no prédio misto em causa, não cabendo aos Autores nenhuma responsabilidade ou iniciativa nesse âmbito até que estivesse esgotada toda a aptidão construtiva no prédio, de acordo com o PDM de ... e normas construtivas aplicáveis.
23-Deste modo, aos Autores não era exigível nenhum outro comportamento ou iniciativa, muito menos manifestação de vontade, pois que esta estava clarificada no contrato e nenhuma outra obrigação de “fazer” ou “não fazer” era imputável.
24- Acresce que a Ré confessa no artigo 12 da contestação que “por conta do referido contrato promessa os Autores teriam então direito a 10% da área construída nos pisos e rés-do-chão, na totalidade do prédio misto”
25-Também no artigo 24 da contestação a Ré confessa que “do mesmo não consta qualquer prazo para o seu cumprimento”, atribuindo-lhe o regime do n.º 1 do artigo 777º do C. Civil.
26-Ora, a Ré não goza de nenhuma presunção de cumprimento e tendo os autores o direito de exigir o cumprimento do contrato e das obrigações da Ré a todo o tempo, pela natureza e características dessas mesmas obrigações contratuais (construção de vários blocos de acordo com a aptidão construtiva do prédio misto e entrega aos autores de 10% ou frações ou de área de construção equivalente ) a única conclusão é de que a sua execução, além de não ter prazo, de acordo com a experiência comum, levaria vários anos ( não limitados ) e o pagamento só poderia ser com 10% desse valor construído ou área, o que pressupunha que tinham as partes que aguardar a construção de todos os blocos habitacionais para liquidar ou concretizar esses mesmos 10% em cada bloco.
27-O que a Ré veio alegar na sua contestação e tendo presente o ali alegado nos ns.º 13 a 22, o que foi impugnado e logo é matéria controvertida e sujeita a prova, é que em 1999 ( vide 20, 21 e 22 da contestação ) a Ré teria acordado com os Autores que o contrato ficaria “sem efeito” e que os autores teriam sido ressarcidos da contrapartida negocial a que se obrigara a Ré. Ou seja, a Ré não argui a prescrição, mas um acordo, este sujeito a prova.
28-Face ao exposto a conclusão é que os artigos 306º, n.º 1, 308º, ns.º 1 e 2, referidos na douta sentença não aproveitam à Ré no sentido ali atribuído, muito menos permitindo a conclusão de que o prazo prescricional começara a correr desde a data da subscrição do contrato.
29-Assim, sendo toda esta matéria controvertida, bem andou o Exmo Magistrado que proferiu o despacho saneador, que relegou para julgamento a apreciação da excepção de prescrição.
30-Por último, só a venda do prédio a empresa terceira em 2004, omitida aos autores, que dela não tiveram conhecimento, nem deram o seu acordo, é que o contrato se tornou de objeto impossível por incumprimento definitivo da Ré, que desta forma enriqueceu ilegitimamente à custa do património dos autores (artigos 790º e ss do CC).
31-Aliás, incumbe à Ré alegar e provar que a falta de cumprimento não procede de culpa sua, apreciada esta nos termos aplicáveis à responsabilidade civil (artigo 799º - presunção de culpa, artigo 798º - responsabilidade pelo prejuízo, mas mesmo que fosse aplicável o regime dos artigos 790º e seguintes, ainda assim por aplicação do artigo 793º ou 794º do CC a Ré estava vinculada às obrigações contratuais).
32-De tudo resulta que só após a produção de prova estará o Tribunal habilitado a conhecer da causa de pedir e pedidos, incluindo a excepção de prescrição.
33-Pelo que o recurso interposto deve ser julgado procedente e revogada a douta decisão recorrida, devendo os autos prosseguir, mantendo-se o douto despacho saneador anteriormente proferido com a realização das demais diligências de perícia e julgamento, por se verificar a violação das disposições legais citadas.
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A ré apresentou contra-alegações, nas quais pugna pela improcedência da apelação, formulando as seguintes conclusões (que se transcrevem):

1. Alegam os recorrentes que devido ao conhecimento da exceção da prescrição após o despacho saneador se viola os princípios da legalidade e da confiança.
2. A realização da audiência prévia deve ter lugar sempre que for a forma mais adequada de realizar os fins por ela visados, e, no caso concreto, entendeu o Tribunal a quo, no uso dos seus poderes de gestão processual e adequação formal, em 26/06/2021, que se deveria realizar a audiência prévia já que “Afigurando-se possível conhecer imediatamente da excepção peremptória de prescrição invocada,..”
3. No dia da realização referida audiência prévia, e face à impossibilidade de conciliação das partes, foi pelo Meritíssimo juiz a quo indicado que iria conhecer de imediato da exceção da prescrição por entender estarem reunidos os elementos para o efeito, o que comunicou verbalmente aos mandatários das partes.
4. Assim foi com surpresa que a mandatária da Ré, aqui recorrida, recebe o despacho saneador assinado já não pelo Meritíssimo Juiz que presidiu à audiência Prévia, e em que se refere de facto que:
Da prescrição da obrigação da ré:
Atenta a matéria de facto controvertida, relega-se para final o conhecimento da exceção da prescrição invocada pela ré. “
5. Impossibilitando a ora Recorrida de contrapor de alguma forma a referida decisão- artigo 595º nº4 do C. P. Civil.
6. O Meritíssimo juiz que presidira à audiência prévia retomou a titularidade do processo, indicou às partes, mantendo a coerência que já manifestara nos autos, que pretendia conhecer da referida exceção e “em obediência aos deveres de transparência e lealdade processual a que o Tribunal está adstrito, tendo em vista obviar uma decisão surpresa, comunica-se esta intenção às partes, para que possam pronunciar-se, querendo, no prazo de 10 dias. “
7. Em suma, o Tribunal a quo observou e fez cumprir o princípio do contraditório ao longo do processo, tendo dado às partes a possibilidade de se pronunciarem previamente, sobre as questões de facto e de direito em causa nos autos.
8. A prolação da Decisão de mérito sob impugnação, não consubstancia uma decisão surpresa ou a violação dos princípios da legalidade e da confiança carecendo de total fundamento o alegado
9. Alegam ainda os recorrentes a inexistência da prescrição embora a decisão recorrida em relação à matéria se encontre devidamente fundamentada.
10. Vêm agora os recorrentes, ao contrário do que alegam na sua petição inicial, alegar que se trata afinal de um contrato misto de compra e venda, empreitada e até de permuta o que não corresponde minimente à verdade, nem os recorrentes podem, agora, em fase de recurso, vir alegar factos novos.
11. A recorrida nunca efetuou qualquer contrato de empreitada com os recorrentes, nunca se comprometeu a realizar qualquer obra para aqueles mediante um preço.
12. A única coisa que ficou estipulada no contrato, era a venda de 50% do prédio, e que os recorrentes autorizavam a construção, e teriam um determinado valor da construção obtida (10%), e esta possibilidade não era condição do contrato, ou ficou estipulada como condição necessária ao contratado.
13. A prometida venda não dependia da prévia liquidação parcial ou total do direito, nem tal foi alegado pelos recorrentes nas suas peças processuais, nem estava contratado.
14. As partes não estipularam qualquer prazo para celebração do contrato definitivo de compra e venda, e estamos perante uma obrigação sem prazo, cujo cumprimento pode ser exigido a todo o tempo nos termos do artº777 nº1 do Código Civil, pelo que a inércia do titular é passível de ser aferida desde logo, desde a data da celebração do contrato do qual emerge a obrigação.
15. Resultando do contrato-promessa celebrado que não foi fixado prazo, cabia aos Autores/ recorrentes interpelar a Ré/recorrida para tal efeito, podendo tal interpelação ser feita, a partir da data da celebração do contrato, em qualquer momento, iniciando-se, com referência a essa data, a contagem do prazo prescricional.
16. Assim desde 1989 até 28 de Abril de 2021, data da citação da Ré para a presente ação há muito havia decorrido o prazo de prescrição ordinária de 20 anos, não tendo os recorrentes alegado qualquer causa de interrupção da prescrição.
17. Mesmo entendendo que em Abril e Dezembro de 1999, face aos pagamentos efetuados pela Ré teria ocorrido a interrupção do prazo prescricional, também desde essa data até à entrada da ação já decorreram mais de 20 anos, pelo que se revela desprovido de interesse apurar da matéria, ou da revogação do contrato pelas partes.
18. Pelo que se deve manter na íntegra a decisão recorrida Termos em que se conclui sufragando a posição pela douta decisão que julgou procedente a exceção da prescrição invocada pela ora recorrida e absolveu a Ré do pedido, e julgando o recurso interposto pela recorrente improcedente, farão Vossas Excelências, como sempre, inteira Justiça»

O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II. Objecto do recurso

As conclusões das alegações do recurso delimitam o seu objecto, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso ou relativas à qualificação jurídica dos factos, conforme decorre das disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, ex vi do art.º 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 639.º, n. 1 e 5º, n.º 3, todos do Código de Processo Civil (C.P.C.).
Mostra-se também vedado a este tribunal a apreciação e decisão de questões novas, exceto se estas se tornaram relevantes em função da solução jurídica encontrada no recurso ou se versarem sobre matéria de conhecimento oficioso, desde que os autos contenham os elementos necessários para o efeito. - artigo 665º nº 2 do mesmo diploma.

Face às conclusões do recurso, as questões a decidir são as seguintes:
- admissibilidade do conhecimento, em fase prévia ao julgamento e após elaborado o saneador com os temas de prova, da excepção de prescrição;
- saber se os autos reuniam as condições, face à matéria que se encontra controvertida e às várias soluções plausíveis da questão/s de direito em apreciação, a conhecer da excepção da prescrição ou ao invés, se os autos devem prosseguir para produção de prova e seu conhecimento oportuno.
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III – Fundamentação fáctica.

Na decisão proferida foram dados como provados os seguintes factos

1. Mediante documento escrito datado de 10 de Janeiro de 1989, intitulado “Contrato Promessa de Compra e Venda”, a ré Construções X, Irmãos, Lda., representada por A. P., como 1.ª pactuante, e os autores J. J., casado com M. L., M. P., casado com M. C., P. P., casado com S. A., na qualidade de segundos pactuantes, celebraram o seguinte acordo:
ARTIGO PRIMEIRO
Declara o primeiro outorgante e em representação da sociedade Construções X, Irmãos, Lda., ter esta adquirido a M. B. (…) através de contrato promessa de compra e venda celebrado entre ambas as partes em 4 de Novembro de 1989, o prédio misto sito no Campo …, freguesia e concelho de ..., composto de:
a) casa de r/chão e andar, com superfície coberta de 52 m2, coberto e dependência à entrada com a área de 110 m2 e quintal com área de 600 m2, inscrito na matriz predial urbana de ... sob o artigo …;
b) casa de r/chão com superfície coberta de 51 m2, inscrita na matriz predial urbana de ... sob o artigo …; e
c) terreno de lavradio, denominado “…”, com a área de 4.000 m2, inscrito na matriz rústica de ... sob o artigo .., confrontando na totalidade, do Norte – com a Avenida …; do Sul – com o Campo …; do Nascente – C. C. (e herdeiros) e Construções X, Irmãos, Lda.; e do Poente – herdeiros de A. F., e acha-se registado e descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., em nome de M. B. e sob o número …/....
ARTIGO SEGUNDO
Pelo presente contrato a sociedade Construções X, Irmãos, Lda., promete vender aos segundos pactuantes 50% (cinquenta por cento) e sem determinação de parte ou direito, do prédio misto identificado no artigo anterior, pelo preço de VINTE E CINCO MIL CONTOS.
ARTIGO TERCEIRO
O pagamento do preço desta venda será feito através de três verbas a saber:
Verba a) – no montante de DOZE MIL E QUINHENTOS CONTOS, que constitui o sinal e princípio de pagamento, pago pelos segundos pactuantes nesta data e ao qual a sociedade primeira pactuante dá a competente quitação:
Verba b) – no montante de OITO MIL CONTOS, a ser paga no próximo dia trinta do corrente mês de Janeiro de 1989; e
Verba c) – no montante de QUATRO MIL E QUINHENTOS CONTOS, a ser paga em nove prestações mensais e sucessivas de valor igual a QUINHENTOS CONTOS cada uma, vencendo-se no dia trinta de cada mês, sendo a primeira prestação paga no mês de Abril do corrente ano de 1989 e a nona e última prestação (liquidação) a ser paga no mês de Dezembro do corrente ano de 1989.
ARTIGO QUARTO
Os 50% do prédio misto referidos no artigo segundo e que a sociedade pelo presente contrato promete vender aos segundos pactuantes, poderão ser na sua totalidade ou em parte ocupados pela construção de edifícios para venda no regime de propriedade horizontal. Neste caso, e para compensação do valor do terreno, objecto deste contrato, a sociedade Construções X, Irmãos, Lda. promete fazer a entrega aos segundos pactuantes da área de construção, que no artigo seguinte se especificará, nas edificações que forem aprovadas pela Câmara Municipal para o terreno em questão.
ARTIGO QUINTO
A citada área de construção será entregue em termos percentuais, com a excepção nos pisos das caves dos edifícios.
A percentagem nos pisos do rés-do-chão e dos andares (independentemente do tipo de utilização – lojas, escritórios, habitações, etc.) será de 10% (DEZ POR CENTO) da área construída na totalidade do prédio misto descrito no artigo primeiro, ou seja, nos 50% do prédio objecto deste contrato e nos restantes 50% do mesmo prédio pertença da sociedade primeira pactuante.
Nas áreas de habitação e como resultado da aplicação da percentagem referida de 10%, obteremos o número total de apartamentos a entregar; Ao número de apartamentos obtidos nesta regra caberá, por cada apartamento, uma garagem individual na cave do edifício em que se integra.
As áreas de construção a entregar serão localizadas nas diferentes partes do edifício, por forma a que fiquem proporcionalmente divididas pelas zonas de maior e menor valor.
A área de construção a entregar será do tipo e com acabamentos similares aos da restante construção no edifício em que se integra.
ARTIGO SEXTO
As despesas que irão decorrer com a totalidade do prédio misto até o mesmo ficar apto a iniciar-se qualquer edificação, nomeadamente despesas com a sua desocupação (caseiro), de projectos, encargos fiscais, infraestruturas urbanísticas, etc., ocorrerão por conta de ambas as partes e na proporção de 50%.
ARTIGO SÉTIMO
DECLARAM AMBOS OS PACTUANTES: Que aceitam este contrato nos termos exarados.
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IV. Do mérito:
i. Da admissibilidade do conhecimento da excepção da prescrição em fase prévia ao julgamento:

Como se evidencia da tramitação dos presentes autos, o Exm.º Sr. Juiz a quo apreciou a excepção da prescrição invocada na contestação da ré em decisão proferida nos autos antes da sua fase instrutória/julgamento e após ter sido lavrado despacho saneador, no qual foram fixados os temas de prova e de neste ter sido consignado que, face à matéria de facto controvertida, se relegava para final o conhecimento da referida excepção.
Sustenta a apelante, em fundamento da inadmissibilidade do conhecimento e decisão da excepção antes da fase de produção de prova, que a decisão proferida configura uma decisão surpresa, viola o principio da legalidade e da confiança.
Sustenta, outrossim, que a decisão proferida no despacho saneador que relegou o respectivo conhecimento para final, faz caso julgado formal, não foi objecto de reclamação ou de qualquer reacção das partes e outro entendimento conduziria a que subsistam decisões contraditórias no processo; inexiste norma que permita ao juiz revogar, alterar ou modificar o despacho saneador, como se de uma instância de recurso se tratasse.
Tais argumentos, contudo, em nosso entender e com todo o respeito, não merecem acolhimento, concordando-se com o que oportunamente foi expendido na decisão recorrida sobre os mesmos e na qual, após breve análise da tramitação incutida aos autos, foi feita uma apreciação concretizada e fundamentada da alegação aduzida pelos ora apelantes na resposta que apresentaram nos autos, e agora reiteram (em parte), após ter sido anunciada nos autos, ao abrigo do principio do contraditório, a intenção do seu imediato conhecimento e lhes ter sido conferida a possibilidade de pronúncia sobre a mesma.

Consignou-se na decisão recorrida e no que concretamente atine com os argumentos aduzidos em sede recursória, que:
«Em 26.06.2021 foi proferido o seguinte despacho:
«Afigurando-se possível conhecer imediatamente da excepção peremptória de prescrição invocada, julga-se indispensável a realização de audiência prévia, com as finalidades previstas no artigo 591.º, n.º 1, alíneas a) e b) do CPC: realizar tentativa de conciliação, nos termos previstas no artigo 594.º do CPC; frustrando-se esta, facultar às partes a discussão de facto e de direito.
Para o efeito, sugiro o próximo dia 12 de Julho de 2021, pelas 10:00 horas. (…)».
Na audiência prévia, que se realizou na data aprazada, foi tentada a conciliação das partes, sem sucesso. De seguida, foi facultada às partes a discussão de facto e de direito, para os efeitos do disposto no artigo 591.º, n.º 1, alínea b), do CPC (Código de Processo Civil), tendo designadamente em vista a excepção de prescrição invocada pela ré. Os ilustres mandatários das partes reiteraram, na sua essência, as posições já expressas nos respectivos articulados. De seguida, foi determinado que os autos fossem conclusos para ser proferido despacho saneador por escrito.
Sucede que os autos foram conclusos no dia 06.09.2021 ao Exmo. Juiz que, durante o mês de Setembro e parte do mês de Outubro, assegurou a substituição do titular durante o período em que este, por decisão do Conselho Superior da Magistratura, esteve em afectação exclusiva à conclusão de um julgamento e à prolação da sentença num processo de especial complexidade. Com base num entendimento diferente do que havia sido preconizado, e que naturalmente se respeita, o Sr. Juiz substituto proferiu despacho saneador, fixou o objecto do litígio e enunciou os temas da prova.
Não obstante, porque não se alterou o entendimento preconizado pelo signatário titular, por escrito e presencialmente perante os mandatários partes, e porque se entende que nada obsta a que, em consonância com tal entendimento, o Tribunal conheça imediatamente a excepção de prescrição invocada pela ré, sob pena de contradição com a posição anteriormente assumida, foram as partes informadas desse propósito e foi-lhes dada a possibilidade de se pronunciarem, em obediência aos deveres de transparência e lealdade processual a que o Tribunal está adstrito e tendo em vista obviar uma decisão surpresa (cfr. despacho de 01.12.2021).
Apenas os autores se pronunciaram, opondo-se a que o tribunal conheça da excepção de prescrição e solicitando que os autos prossigam a sua tramitação até julgamento, conforme já decidido no despacho saneador transitado, com a continuação das diligências da perícia, imprescindíveis para uma boa decisão da causa.
Mas não procedem os argumentos esgrimidos para sustentar esta posição.
Os autores começam por invocar os princípios da legalidade e da confiança jurídica, afirmando que as partes não podem estar sujeitas a eventuais decisões surpresa ou sem suporte legal. Acrescentam que na audiência prévia não houve entendimento das partes quanto à exceção da prescrição invocada pela ré e que o Tribunal nada decidiu sobre essa questão, antes tendo os autos sido conclusos para ser proferido despacho saneador, no qual se decidiu relegar para final o conhecimento da exceção de prescrição invocada pela ré, tendo-se formado o caso julgado formal quanto a esta questão, nos termos do disposto no artigo 595.º, n.ºs 1 e 3, do CPC. Alegam ainda que: a referida decisão foi proferida com total independência e com a devida ponderação, não tendo sido alvo de reclamação nem sendo susceptível de recurso, nos termos do disposto no n.º 4, do artigo 595.º, do CPC; «não existe subalternização do Exmo. Magistrado que proferiu o despacho saneador, que agiu com total independência, ponderação e não menor isenção, ou poder de revogação por parte do Exmo. Magistrado que proferiu o despacho ora notificado, relativamente ao despacho saneador proferido, e outro entendimento criaria absurdos processuais não admitidos pelo legislador, ou seja decisões contraditórias dentro do mesmo processo»; o ora signatário já se havia conformado com o despacho saneador, ao dar-lhe dado continuidade com a notificação das partes nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 467, n.º 2, e 476.º, n.º 1, do CPC, por despacho de 02.11.2021. (…)
Cumpre apreciar.
É de meridiana clareza que o disposto no artigo 595.º, n.º 3, do CPC não tem o alcance que os autores lhe dão, nem é aplicável à situação em apreço.

É a seguinte a sua redacção:
«1 - O despacho saneador destina-se a:
a) Conhecer das exceções dilatórias e nulidades processuais que hajam sido suscitadas pelas partes, ou que, face aos elementos constantes dos autos, deva apreciar oficiosamente;
b) Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção peremptória.
(…)
3 - No caso previsto na alínea a) do n.º 1, o despacho constitui, logo que transite, caso julgado formal quanto às questões concretamente apreciadas; na hipótese prevista na alínea b), fica tendo, para todos os efeitos, o valor de sentença.»
Da conjugação destes dois números do artigo 595.º resulta que: (a) o despacho saneador que conheça excepções dilatórias ou nulidades processuais constitui caso julgado formal quanto a essas questões; (b) o despacho saneador que aprecie, total ou parcialmente, o ou os pedidos deduzidos ou alguma exceção peremptória tem, para todos os efeitos, o valor de sentença.
No caso concreto, nem as partes alegaram, nem o tribunal conheceu qualquer excepção dilatória ou nulidade processual, nos termos previstos na al. a) daquele n.º 1, pelo que não se formou o caso jugado formal relativamente a questões dessa natureza. Mas também não conheceu da excepção de prescrição alegada pela ré, nos termos da al. b) do mesmo n.º 1, sendo evidente que não foi então proferido saneador-sentença.
O que o tribunal fez no despacho saneador que proferiu foi exactamente o oposto: absteve-se de conhecer a excepção de prescrição, relegando esse conhecimento para final. Não tem, assim aplicação o disposto no n.º 3, do artigo 595.º, do CPC, como começámos por afirmar.
Quando muito, poderia invocar-se aqui o disposto no artigo 620.º do CPC, cujo n.º 1 dispõe assim: «As sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo».
Como escrevem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Parte Geral e Processo de Declaração, Coimbra, 2019, p. 745), «[o] caso julgado formal, por oposição ao caso julgado material, restringe-se às decisões que apreciam matéria de direito adjectivo, produzindo efeitos limitados ao próprio processo e, ainda assim, com algumas excepções, designadamente a que decorre do art. 595.º, n.º 3, quanto à apreciação genérica de nulidades e exceções dilatórias. Despacho que recaia sobre a relação processual é todo aquele que, em qualquer momento do processo, aprecia e decide uma questão que não seja de mérito».
Outra excepção a esta norma é a prevista no n.º 2 do próprio artigo 620.º, relativa aos despachos que não admitem recurso previstos no artigo 630.º do CPC. Ora, como os próprios autores paradoxalmente afirmam, o despacho que relega para final o conhecimento de alguma excepção peremptória é irrecorrível, como expressamente preceitua o artigo 595.º, n.º 4, do CPC (o que, naturalmente, não tem suscitado qualquer dúvida na jurisprudência – cfr. acórdão do TRC de 09.03.2012, proc. n.º 294/10.3TBTND-A.C1, disponível em www.dgsi.pt). Deste modo, tal despacho não constitui caso julgado formal, ao contrário do que é afirmado pelos autores.
De todo o modo sempre se dirá que, se entendêssemos que sim, teríamos de fazer igual raciocínio relativamente ao despacho, proferido anteriormente, onde o tribunal afirma que é possível conhecer da excepção da prescrição e, por essa razão, marca data para audiência prévia para permitir às partes a discussão oral dessa questão. E perante o trânsito em julgado de dois despachos contraditórios, prevaleceria naturalmente o que transitou em primeiro lugar, nos termos previstos no artigo 625.º, n.º 2, do CPC.
Do que ficou exposto já decorre que o conhecimento da excepção de prescrição invocada pela ré não viola o princípio da legalidade nem o princípio da confiança, não constituindo uma decisão surpresa.
Recorde-se, mais uma vez, que o tribunal comunicou às partes que se afigurava possível conhecer da excepção peremprória em causa, permitiu às partes discutir essa excepção em sede de audiência prévia, não obstante a mesma já ter sido discutida nos articulados, e no final dessa diligência ordenou que os autos lhe fossem conclusos para proferir despacho saneador, tendo comunicado oralmente aos mandatários das partes que iria conhecer a referida excepção, apesar de essa comunicação não constar de forma expressa da acta, por manifesta redundância.
Posteriormente, em face da opção contrária exarada no despacho saneador, o Tribunal comunicou às partes que mantém o propósito de conhecer da excepção de prescrição e deu-lhes a possibilidade de se pronunciarem, em obediência aos deveres de transparência e lealdade processual a que o Tribunal está adstrito e tendo em vista obviar uma decisão surpresa (cfr. despacho de 01.12.2021).
Assim, a única decisão que poderia ser qualificada como uma decisão surpresa é, precisamente, a que relegou para final o conhecimento da referida excepção e enunciou os temas da prova.
(….)»
Efectivamente, não se vislumbra que o despacho recorrido consubstancie decisão surpresa ou que a circunstância de ter sido proferido após ter sido elaborado o despacho saneador que relegou o conhecimento da excepção de prescrição para final, consubstancie a violação do principio da legalidade, confiança jurídica ou viole o caso julgado formal.
De facto, importa salientar que o referido despacho que relegou o conhecimento da excepção da prescrição para final, ou melhor dizendo, para a sentença final, não faz, contrariamente ao que parecem defender os apelantes, caso julgado formal. Tal decorre linearmente das disposições conjugadas dos artigos 620º ns.1 e 2, 630º n.1 e 595º n.4, todos do C.P.C., já que como se evidencia deste último normativo, não cabe recurso da decisão do juiz que, por falta de elementos, relegue para final a decisão de matéria que lhe cumpra conhecer (595º n.4 do CPC).
De facto, pressuposto essencial do caso julgado formal é que uma pretensão já decidida, em contexto meramente processual, e que não foi recorrida, seja objecto de repetida decisão. Se assim for, a segunda decisão deve ser desconsiderada por violação do caso julgado formal assente na prévia decisão.
Importa ter em atenção que o caso julgado apenas se forma relativamente a questões ou exceções dilatórias que tenham sido concretamente apreciadas e nos limites dessa apreciação, o que manifestamente e para além do já referido, não ocorre no despacho que se limita a relegar para final o conhecimento da excepção, face à existência de factos controvertidos.
Do mesmo modo, importará referir que da adequação processual imprimida aos autos, quanto ao momento e fase processual do conhecimento da excepção invocada, não pode extrair-se, a nosso ver, a violação dos princípios da legalidade e da confiança, como sustentam os apelantes.
Na verdade, o princípio da adequação formal encontra-se actualmente previsto no artigo 547.º, do Código de Processo Civil, nestes termos: «O juiz deve adoptar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adaptar o conteúdo e a forma dos actos processuais ao fim que visam atingir, assegurando um processo equitativo.»
Como se salienta no Ac. desta Relação de Guimarães de 27.04.2017 (1) (…) da exposição dos motivos do Decreto-Lei n. 329-A/95, extraia-se já a seguinte passagem: “ter-se-á de perspectivar o processo civil como um modelo de simplicidade e de concisão, apto a funcionar como um instrumento, como meio de ser alcançada a verdade material pela aplicação do direito substantivo, e não como estereótipo autista que a si próprio se contempla e impede que seja perseguida a justiça, afinal, o que os cidadãos apenas pretendem quando vão a juízo”, assim se privilegiando claramente a decisão de fundo sobre a mera decisão de forma.
Com efeito, o novo princípio da adequação formal vem romper com o apertado regime da legalidade das formas, conferindo-se, então, os correspondentes poderes ao juiz para adaptar a sequência processual às especificidades da causa apresentada em juízo, reordenando os actos processuais a serem praticados no iter, inclusive com a determinação da prática de acto não previsto ou a dispensa de acto inútil previsto, ou ainda com a alteração da ordem dos actos abstractamente disciplinados em lei.
Tal adequação fica, assim, justificada se houver circunstâncias específicas, relacionadas ao direito material, a aconselhar a variação da forma do procedimento processual.»
Necessário é que sejam salvaguardados o principio do contraditório e da igualdade das partes, o que não se mostra ter sido violado in casu, já que, entendendo-se que os autos dispunham de todos os elementos para apreciação e decisão da excepção deduzida (aliás já anteriormente anunciada)- questão que não está neste momento em aferição e que será alvo de apreciação infra- após dado o contraditório às partes sobre a pretensão de alteração do iter processual quanto à apreciação da referida excepção, procedeu-se á sua análise e decisão, o que na perspetiva do bem fundado do despacho recorrido, que reiteramos, não está gora em apreciação, permitiria evitar a prática de actos inúteis, dispêndio de meios e tempo, quanto à prolação de uma decisão que podia ter sido antecipadamente dada, e justificaria, por isso, o procedimento adoptado, em homenagem ao princípio, previsto no artº 130º do CPC, da proibição da prática de atos inúteis no processo.
Questão diversa da acabada de expor é, no entanto, a de saber se efectivamente na fase processual em que foi proferido o despacho recorrido, o estado da causa não evidenciava controvérsia probatória quanto à matéria de facto da acção e mormente sobre matéria de facto que se reflicta na apreciação da invocada excepção. Por outras palavras, se no processo já se estava na posse de todos os elementos fácticos necessários à prolação de uma decisão conscienciosa, segundo as várias soluções plausíveis de direito.
i. E, com tal questão, entramos na abordagem do segundo ponto em discussão nos autos, qual seja, a de saber se os factos considerados provados na decisão, face à alegação das partes e ao pedido formulado na acção são suficientes à decisão da excepção de prescrição, como pressuposto na decisão recorrida.
Com todo o respeito pela posição vertida no despacho recorrido, entendemos que não.
De facto, o julgado definitivo sobre a procedência ou improcedência da excepção da prescrição no momento em que foi proferido, pressupunha que a matéria de facto alegada na causa e que influísse na decisão da excepção não estivesse controvertida, que o estado do processo já o permitisse de forma segura, sem necessidade de mais provas.

Como se salienta no sumário do Ac. R.P. de 24.05.2021, in www.dgsi.pt

«I - O conhecimento de mérito no despacho saneador apenas deve ter lugar quando o processo fornecer já em tal fase processual, antecipadamente relativamente à normal - a da sentença -, todos os elementos de facto necessários à decisão do caso segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito.
II - Assim, e pela negativa, nunca é legitimo ao julgador enveredar, antecipadamente, pela sua solução definitiva do litígio, sem que garantida esteja a presença de todos os factos necessários a que as outras visões possíveis possam, também, ser logo, sustentadas.
III – (…) IV - E controvertida estando matéria relevante para efetuar a subsunção jurídica do caso a um instituto convocado, nunca pode ser considerado consolidado estado dos autos que permita ao juiz antecipar a decisão, com o adiantar da solução por si perfilhada, pois que necessária se torna (após instrução) a condensação - como provados e não provados - dos factos que permitam, na interpretação, concatenação e ponderação de todos eles, adotar justa solução que se desenhe no leque das possíveis.
V - Deve, pois, o juiz proceder à recolha dos factos da causa (cfr. art. 5º, do CPC) que se mostrem dotados de relevância jurídica, garantindo a condensação de todos, por forma a acautelar anulações de julgamento.»
Em suma, existindo mais do que uma solução plausível para a questão de direito e factos controvertidos com relevância para alguma delas é prematuro o conhecimento do mérito antes da fase de julgamento ou de qualquer excepção peremptória que tenha sido invocada.

Reportemos à situação dos autos:
Através da presente acção peticionam os autores que seja declarado que a ré faltou culposa e definitivamente ao cumprimento do contrato promessa de compra e venda objecto dos autos (celebrado em 1989 e mediante o qual a Ré prometeu vender aos AA. metade do prédio misto aí descrito) e das suas obrigações contratuais ( já que em 2004 transmitiu a propriedade do prédio objecto do contrato promessa para terceiros) e seja esta, em consequência, condenada a restituir em dobro todas as quantias entregues e pagas pelos AA a título de sinal (convertidas em euros e efectuada que seja a sua actualização por aplicação do coeficiente de desvalorização da moeda fixado para o ano de 1989), acrescida de juros de mora desde a data da citação.
Na sua contestação, a ré, para além de impugnar os valores que os AA. sustentam ter pago a título de sinal, invoca um acordo celebrado entre as partes em 1999, mediante o qual acordaram dar sem efeito o contrato com o pagamento de um valor que efectuou aos AA., pelo que convicta de tal e face ao silêncio dos AA. durante todo esse tempo, procedeu à alienação do imóvel. Sustenta, outrossim, que tendo o contrato sido celebrado em 1989 e não tendo sido fixado prazo para cumprimento, nem interpelada para cumprir, a inércia do titular do direito deve ser aferida desde a data da celebração do contrato, iniciando-se na mesma a contagem do prazo prescricional de 20 anos, que atenta a data da sua citação para a presente acção já decorreu, ainda que se considere a sua interrupção com os pagamentos efectuados em 1999.
O tribunal recorrido subscrevendo a tese da ré, entendeu que a prescrição ocorreu, porque decorreram mais de 20 anos sobre a data da celebração do contrato promessa, sem que de permeio tenha ocorrido qualquer causa de suspensão ou interrupção da prescrição, sustentando que, mesmo que se considerasse as ocorrências relatadas em 1999, como reconhecimento do direito pela ré, e portanto como causa de interrupção da prescrição- situação que se mostra controvertida-, ainda assim, decorreram mais de 20 anos até à data da citação da ré para a acção e que a alegada revogação do contrato por acordo das partes, alegada pela ré, também ela controvertida, se mostra irrelevante para apreciação da excepção peremptória da prescrição, não sendo susceptíveis de obstar ao decurso do prazo prescricional.
Escreveu-se a dado passo na decisão recorrida: «No caso dos autos, no contrato promessa de compra e venda cujo incumprimento serve de causa de pedir nesta acção não foi estipulado qualquer prazo para a celebração do contrato definitivo, nem esta celebração estava sujeita a qualquer condição suspensiva ou termo inicial, que releve nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 2, do artigo 306.º, do CC, nem tal foi alegado pelos autores.
Note-se que o contrário não resulta do estipulado na cláusula 4.ª do referido contrato promessa, isto é, da circunstância de as partes terem acordado que a ré poderia construir no prédio cuja metade indivisa prometeu vender aos autores, obrigando-se nesse caso a compensá-los com uma determinada percentagem dessa construção.
Como decorre com toda a clareza das cláusulas contratuais, as partes não acordaram que a escritura do contrato definitivo apenas seria celebrada após a edificação (cfr. artigo 278.º do CC) ou, muito menos, que apenas seria celebrada se tal edificação fosse efectuada (cfr. art. 270.º do CC). Para além de terem reciprocamente prometido celebrar um contrato de compra e venda de metade indivisa de determinado prédio misto, as partes limitaram-se a prever a possibilidade de a promitente vendedora edificar nesse prédio e, se tal sucedesse, a estipular a compensação que nesse caso deveria entregar aos promitentes compradores, o que poderia naturalmente suceder já depois de celebrado o contrato definitivo de compra e venda da metade indivisa do prédio misto. De resto, a compensação assim prevista parece mesmo pressupor a prévia transferência para os autores do direito de propriedade sobre metade indivisa do prédio misto em causa.
Por outro lado, ainda que se entendesse que a referida edificação era susceptível de interferir com o decurso do prazo prescricional, sempre caberia aos autores o ónus de alegar e provar a sua ocorrência e respectiva data, o que estes não fizeram, limitando-se a admitir a existência da construção mencionada pela ré na contestação.
Seja como for, não resta qualquer dúvida de que as partes não estipularam qualquer prazo para a celebração do contrato definitivo, pelo que estamos perante uma obrigação sem prazo ou “pura”, cujo cumprimento pode ser exigido a todo o tempo, nos termos do disposto no artigo 777.º, n.º 1, do CC.
Deste modo, nada impedindo os autores de exercer, a todo o tempo, os seus direitos, exigindo a prestação devida – fosse a celebração do contrato definitivo ou, como vêm fazer agora, a indemnização devida pelo seu incumprimento –, o prazo prescricional começou a correr a partir da respectiva génese temporal, ou seja, a partir da celebração do contrato promessa (…)»
Todavia, com todo o respeito, a situação jurídica em apreciação nos autos não é tão linear como aquela que se surpreende do despacho recorrido que teve por subjacente os únicos factos que aí se deram como provados, como seja, o conteúdo literal do contrato de promessa de compra e venda celebrado entre as partes.
De facto, a questão da prescrição do direito dos autores, considerando o prazo prescricional previsto no artigo 309º do Código Civil, face à causa de pedir invocada, pedido formulado e factos alegados na acção, seja como sustentáculo do pedido, seja da defesa apresentada pela ré na contestação, importa na sua aferição, de acordo com as várias soluções plausíveis da questão de direito, a prova de outros factos alegados e que se mostram controvertidos, que não se circunscrevem apenas à celebração do contrato e data da sua outorga, ainda que se tivesse como certa a afirmação inelutável da inexistência de prazo para a celebração do contrato definitivo e a inexistência de qualquer condição suspensiva ou termo inicial.
Importa referir que o que está em causa na presente acção não é o cumprimento da obrigação de transmissão a que a ré se obrigou contratualmente, mas o incumprimento culposo e definitivo do contrato promessa por parte da ré, considerando a alienação do prédio, objecto do contrato, a terceiro –que impossibilita o cumprimento da obrigação-, o que desde logo, permita-se e com todo o respeito, afasta, a nosso ver, a possibilidade da convocação do acórdão da Relação de Évora de 25.05.2017 (processo n.º 1123/09.6TBOLH-G.E1), cuja apreciação se circunscreve a uma situação diferenciada daquela de que cuidamos (é pedida a execução específica do contrato- art. 830º do C.C.-, sendo certo que a interpelação para cumprimento- ao administrador de insolvência- se dá após o decurso do prazo de 20 anos da sua outorga).
Na verdade, a decisão recorrida estabelece como início da contagem do prazo de prescrição – termo a quo do referido prazo- a data da celebração do contrato promessa, concluindo, por isso, pela verificação da excepção da prescrição por terem decorrido mais de vinte anos até à data da citação da ré para a acção, fundamentada no facto de nada ter impedido, desde então, os autores de exercer a todo o tempo os seus direitos, exigindo a prestação devida, ou seja, a decisão recorrida parte do tempo de cumprimento da promessa, sem que tenha em conta ( ao qual não faz qualquer referência) o facto alegado pelos AA. que inviabilizava o seu cumprimento. De facto, in casu, os autores pretendem não o cumprimento do contrato, mas a declaração do seu incumprimento definitivo e culposo por parte da ré, facto gerador do direito dos AA. à quantia peticionada a título de sinal em dobro, face à permuta efectuada em 2004 do imóvel objecto do contrato promessa, pelo promitente vendedor a um terceiro, conduta incompatível com o cumprimento, ou, por outras palavras, estão em causa as consequências decorrentes da inviabilização pela ré do cumprimento da obrigação a que estava adstrita com a celebração do contrato promessa. (2).
Nessa medida, à luz da causa de pedir, o exercício deste alegado direito dos AA. (à restituição do sinal em dobro, pressuposta a sua resolução face ao incumprimento definitivo da ré) apenas estaria em condições objectivas de ser exercido com a verificação do facto de que decorre o alegado incumprimento definitivo e culposo do contrato-promessa e não da data da sua celebração.
Do disposto pelo artigo 306º do Código Civil, decorre efectivamente que o prazo da prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido, ou seja, inicia-se, em regra, no momento em que nasce a pretensão acionável.
«A prescrição, tal como a caducidade e o não uso, exprimem a relevância do tempo (do seu decurso sobre as relações jurídicas), visando a certeza e a segurança do tráfego jurídico, tendo como fundamento a consideração de que não merece a protecção do ordenamento jurídico quem descura o exercício dos direitos que lhes assistem, porque a paz social não se compadece com a inércia, para lá de limites temporais impostos pelo legislador.
Os institutos citados regulam as consequências do não exercício de direitos subjectivos, avultando preocupações de protecção da certeza e segurança jurídicas (cfr. v.g., Manuel de Andrade, “Teoria Geral da Relação Jurídica”, vol. II, Almedina, 6ª reimpressão, 1983, páginas 445 e 446; Vaz Serra, “Prescrição e Caducidade”, BMJ-105, páginas 32 e 33). (3) »
In casu, o prazo de prescrição a ter em conta é de 20 anos- tratando-se de responsabilidade civil contratual – art. 309º do Código Civil – que pode ser objecto de suspensão e de interrupção – artigos 318º a 327º do mesmo diploma, sendo que completada a prescrição, tem o beneficiário a faculdade de recusar o cumprimento da prestação, ou de se opor, por qualquer modo, ao exercício do direito prescrito- artigo 304º n.1 do C.C.
Ora, como vimos, a questão decidenda na presente acção é a de saber se os AA. têm como peticionam, o direito a exigir da ré, apelante, o montante que reclamam relativo ao sinal que alegam ter pago, em dobro, o que impõe, face à alegação das partes nos articulados da acção, a análise e prova dos termos do contrato; da factualidade alegada e controvertida referente às condições acordadas e seu cumprimento; à modificação e ou revogação do contrato por acordo das partes; se a obrigação se extinguiu em razão da impossibilidade do cumprimento por causa diretamente imputável à ré face ao contrato de permuta celebrado sobre o objecto do contrato promessa a favor de terceiro; se tal incumprimento lhe é imputável a título culposo; se tal confere aos AA. o direito às quantias que reclamam a título de sinal em dobro; se existe abuso de direito por parte dos AA.; se prescreveu ou não o direito de crédito dos AA; complexo factual que se mostra elencado nos temas de prova oportunamente fixados.
Do que vem de se expor decorre que a análise da questão da prescrição do direito dos autores, à luz da causa de pedir invocada e do pedido formulado, contrariamente ao pugnado na decisão recorrida e como decorre do que acima deixámos exposto, para além de poder (dever) ser perspetivada, nos termos expostos, quanto à fixação do dies a quo, em função do momento em que o direito, diga-se, reclamado na acção, puder ser exercido, o que no caso importará a aferição dos factos alegados na acção e momento temporal dos quais decorre o incumprimento definitivo da ré, que ainda que se atenda à data da escritura de permuta do imóvel objecto do contrato promessa nos remete para o ano de 2004, o que, só por si, afastaria a verificação do decurso do prazo prescricional, por não terem decorrido 20 anos desde a sua celebração até à data da citação; mas pressupõe ainda, previamente à sua apreciação, a análise e produção de prova sobre o acervo factual alegado e controvertido relativo não apenas ao incumprimento da ré, mas também no que se refere à factualidade alegada quanto à modificação /revogação do contrato em data muito anterior (1999), e que a ré alegou na sua contestação, factualidade que se interliga e se mostra conexa não apenas com a apreciação da excepção da prescrição, sendo prévia a esta, mas também com os fundamentos alegados para a má-fé que vem invocada por ambas as partes e cujos factos se mostram ainda controvertidos.
Em sede conclusiva, contrariamente ao pugnado na decisão, entendemos, com respeito devido pela opinião aí vertida, inexistirem factos suficientes e que de forma conscienciosa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, permitam conhecer de imediato da excepção da prescrição invocada.
Deste modo, impõe-se a revogação da decisão proferida quanto ao conhecimento da excepção da prescrição, a qual deverá ser apreciada na sentença final, após a produção de prova dos factos alegados, segundo as várias soluções plausíveis para a aplicação do direito.
A apelação é assim procedente.

V- Decisão:

Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogar a decisão recorrida quanto à apreciação da excepção da prescrição, determinando que os autos prossigam os seus ulteriores termos.
Custas do recurso pela recorrida.
Guimarães, 15 de Junho de 2022

Elisabete Coelho de Moura Alves (Relatora)
Fernanda Proença
Anizabel Sousa Pereira
(assinado digitalmente)


1. Processo 1752/12.0TJVNF.G1, in www.dgsi.pt
2. A propósito vide Acs. R.C. de 22.01.2019, processo 4827/17.6TLRA.C1; Ac. STJ de 29.09.2020, processo 4789/15.4T8ALM.L2.S1; Ac. STJ de 28.06.2018, processo 3581/16.3t8GMR.G1, IN WWW.DGSI.PT
3. Como se salienta no Ac. STJ de 19-06-2012, processo 4944/08.3TBGDM.P1.S1, in www.dgsi.pt