Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
21582/18.5T8LSB.G1
Relator: HEITOR GONÇALVES
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL DO ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
CRÉDITOS DOS TRABALHADORES
CASO JULGADO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/19/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I. Os autores pretendem obter o ressarcimento dos danos causados pela actuação da ré no processo de insolvência, a quem imputam a violação ilícita e culposa dos deveres funcionais inerentes ao cargo de administradora da insolvência na fase de apreciação e reconhecimento dos créditos dos trabalhadores.

2. A acção funda-se, pois, no regime de responsabilidade civil do administrador de insolvência estabelecido no artigo 59º, nº1, do Cire (Código de Insolvência e de Recuperação de Empresas aprovado pelo Dec-Lei 53/2004), segundo o qual “o administrador da insolvência responde pelos danos causados ao devedor e aos credores da insolvência e da massa insolvente pela inobservância culposa dos deveres que lhe incumbem; a culpa é apreciada pela diligência de um administrador da insolvência criterioso e ordenado”.

3. Segundo os autores, a ré violou esses deveres por mor de ter conscientemente apreciado de forma desigual os créditos dos trabalhadores não sindicalizados e os créditos dos trabalhadores sindicalizados quando a situação de todos eles era igual (ilicitude) afastando-se desse modo do que se considera ser uma actuação dum administrador zeloso e criterioso (culpa).

4. A indemnização que cada um dos autores peticiona corresponde à percentagem do valor do crédito que deixam de receber mercê do “tratamento privilegiado” dado aos trabalhadores sindicalizados (danos) - «Se os créditos reconhecidos aos trabalhadores sindicalizados se limitassem aos vencidos na data da revogação, por acordo, dos contratos de trabalho, e à indemnização devida, tudo fixado por acordo, o produto da venda do imóvel e dos móveis teria chegado para pagar integralmente os créditos de todos os trabalhadores, e sobrava para pagamento de outros créditos na ordem de graduação».

5. A procedência dos pedidos de indemnização implica necessariamente a aceitação da existência do erro no reconhecimento pela ré dos créditos reclamados pelos trabalhadores sindicalizados referentes ao período entre o acordo de revogação dos contratos de trabalho e a data em que foi declarada a insolvência (e/ou de não ter dado igual tratamento aos autores enquanto trabalhadores não sindicalizados), bem como do erro de facto e de direito da sentença que os julgou verificados e os graduou em conformidade com a lista elaborada pela A.I. nos termos do artigo 129º do Cire

6. Embora não exista identidade de pedidos, de sujeitos e de causa de pedir entre os dois processos, a sentença de verificação e graduação de créditos proferida no âmbito do processo de insolvência (onde os AA. figuram como credores e a ré como administradora da massa insolvente) impõe-se na decisão de mérito da presente acção como pressuposto indiscutível, sob pena de violação do instituto do caso julgado.

7. A actuação da ré ficou validada e legitimada pelo trânsito em julgado da referida sentença proferida no apenso da insolvência, mormente quanto aos montantes e qualidades dos créditos dos trabalhadores, não podendo nesta acção afirmar-se o oposto, isto é, a actuação ilícita e culposa da ré e o erro de facto e de direito no reconhecimento dos créditos dos trabalhadores sindicalizados do período situado entre o acordo de revogação dos contratos de trabalho e a data da declaração de insolvência da entidade patronal.

8. Este efeito positivo do caso julgado assenta numa relação de prejudicialidade: “o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida” (J. Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado, Rui Pinto, in Código de Processo Civil Anotado, II volume, Coimbra Editora, 2011, pág. 325).
Decisão Texto Integral:
acordam os juízes da 1ª secção cível da relação de guimarães

I. J. P., M. C. e M. J. demandaram nesta acção declarativa A. M., pedindo que seja condenada a pagar 12.368.10€ ao 1º autor, 8.709,43€ à 2ª autora, e 3.977,22 ao 3º autor, quantias acrescida de juros à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento, reclamadas a título de indemnização dos danos patrimoniais sofridos na sua condição de credores no processo de insolvência da sociedade comercial “X-Indústria de Solas, Lda”, em virtude da violação ilícita e culposa pela ré dos seus deveres funcionais inerentes ao cargo de administradora judicial no âmbito daquele processo de insolvência.

II. A Ré invocou na contestação a excepção de prescrição do peticionado direito à indemnização, com o fundamento de ter decorrido o prazo de 2 anos previsto no artigo 59.º, n.º 5 do Cire (Código de Insolvência e de Recuperação de Empresas), desde a publicitação de lista de credores reconhecidos, em fevereiro de 2007, e com a notificação pessoal dessa lista a 27.04.2010.

Apresentando a sua versão dos factos, diz que reconheceu os créditos dos autores nos termos reclamados porque a insolvente não tinha contabilidade organizada, tomando igual posição em relação aos trabalhadores sindicalizados depois de ser informada que eles intentaram acções no Tribunal de Trabalho de impugnação da ilicitude do despedimento e reclamando o direito a todas as prestações desde a data do despedimento até à declaração de insolvência da empregadora.
III. No despacho exarado no final dos articulados foi anunciado às partes que o estado dos autos possibilitava o conhecimento de imediato do mérito da causa, e foi-lhes dada a oportunidade de dizerem o que se lhes oferecessem sobre aquele propósito, designadamente requerendo o agendamento da audiência prévia com o fim previsto no artigo 591º, nº1, alínea b), do Código de Processo Civil.

Responderam os AA., dizendo que a prova de parte considerável dos factos se bastava com a apresentação de documentos, e nessa conformidade requereram que a secretaria do tribunal diligenciasse junto do Juízo de Comércio de Lisboa pela aceleração da emissão da certidão por eles aí solicitada.

O Sr. Juiz dispensou a referida certidão, face à consulta electrónica do processo de insolvência e à junção de meras cópias dos documentos, e decidiu o mérito da causa sem necessidade de mais provas, tendo absolvido a ré de todos os pedidos formulados na acção.

IV. Os AA. recorrem dessa decisão, terminando com as seguintes conclusões.

1.ª É nula, por falta de fundamentação e nos termos da alínea b), do n.º 1, do artigo 615.º, do Código de Processo Civil, a decisão da matéria de facto que é, como a dos autos, absolutamente omissa quanto à motivação, não fazendo qualquer análise critica das provas ou apontado qualquer ilação ou fundamento decisivo para sua convicção, ou sequer dizendo em que documentos se baseou, por violação do disposto no n.º 4, do artigo 607.º, do mesmo Código.
2.ª Não podem considerar-se provados por acordo os factos para os quais se exige prova documental autêntica, como é o nosso caso, em que estão em causa um conjunto de actos praticados num processo judicial, que só podem provar-se por certidão das peças desse processo, nos termos do disposto no n.º 2, do artigo 363.º, artigos 369.º e seguintes, todos do Código Civil e artigo 131.º, do Código de Processo Civil, ou com a consulta electrónica do mesmo processo feita pelo tribunal, caso em que o tribunal deve referir que concretas peças do processo consultou, as quais sempre teriam de ser juntas a estes autos, nos termos do disposto no n.º 2, do artigo 412.º, do C. Proc. Civil, o que tudo vem a respeito dos factos considerados provados nos 3, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 18, 19, 20 e 21.
3.ª Num processo em que se alega o incumprimento dos deveres da parte contrária, no caso os deveres funcionais do administrador de uma insolvência, de análise, diligência e apuramento dos créditos e de tratamento com igualdade dos credores iguais, importa selecionar os factos relativos à violação desses deveres, por serem factos essenciais à apreciação do pedido.
4.ª Assim e estando aqueles factos alegados pelos autores, não pode tal questão decidir-se sem se selecionar os factos, relativos à violação, pelo administrador da insolvência daqueles seus deveres,
5.ª Ao decidir a questão do pedido de indemnização por danos causados pelo administrador da insolvência, pela violação culposa dos seus deveres funcionais, sem selecionar aqueles factos, o tribunal violou o disposto na alínea b), do n.º 1, do artigo 595.º, para além do que parece mesmo ter cometido a nulidade da omissão de pronúncia sobre factos essenciais alegados pelas partes, nos termos do disposto na alínea d), do n.º 1, do artigo 615.º, em conjugação com o n.º 4, do artigo 607.º, e o n.º 1, do artigo 5.º, todos do Código de Processo Civil, a qual, no entanto e no caso, uma vez que se trata de um saneador-sentença, sempre deverá resultar na sua revogação e consequente prosseguimento do processo para os apurar (….)
6.ª Vem isto a respeito do alegado: no artigo 15.º da petição inicial (de que o membro da comissão de credores e representante dos trabalhadores é, afinal, um funcionário do sindicato); nos artigos 21.º e 22.º, da petição inicial, que respeita aos factos alegados na reclamação de créditos e aos documentos ali apresentados pelos autores, da mesma forma que, de resto, se selecionou o alegado nos artigos 23.º a 25.º, da petição, ou seja, o montante reclamado, os factos alegados e os documentos apresentados pelos trabalhadores sindicalizados; do alegado nos artigos 39.º, 40.º e 42.º, da petição inicial, relativamente ao momento em que os autores se aperceberam da disparidade nos montantes dos créditos reconhecidos; do alegado nos artigos 57.º a 74.º, da petição inicial, onde se descreveu a violação, pela ré, dos seus deveres funcionais, dizendo o que é que a ré devia ter feito e não fez, como a consulta de documentos, que estavam disponíveis, ou uma confrontação com as pessoas, e muitas havia para isso, e onde se alegou a forma como a ré actuou, não se inteirando de nada, não querendo inteirar-se de nada; do alegado nos artigos 75.º a 79.º, da petição inicial, onde se marcou o nexo de causalidade entre o comportamento da ré e o dano sofrido pelos autores;
7.ª Não podem considerar-se provados factos que foram impugnados pela parte contrária e que não estão demonstrador por prova autêntica, o que vem a propósito: do facto 24, que a X estava inactiva desde 2005, não possuía instalações, nem qualquer estabelecimento em actividade, não tinha a contabilidade organizada desde Dezembro de 2004, não tendo o gerente procedido à regularização, tendo sido a insolvência qualificada como culposa, imputável àquele; e do facto 25, que a ré tomou conhecimento, aquando da reclamação de créditos, que os referidos trabalhadores sindicalizados tinham impugnado, no Tribunal de Trabalho, o alegado despedimento, acções que viriam a ser arquivadas por inutilidade superveniente da lide, na sequência da declaração de insolvência, sobretudo porque nada disso consta das reclamações de créditos, nem comprovado, nem sequer alegado.

Quanto à ilicitude

8.ª “O modelo de responsabilidade [do administrador da insolvência] corresponde, com grande proximidade, ao travejamento geral da figura da responsabilidade aquiliana baseada na culpa, tal como resulta do Código Civil”, havendo ali “de específico o facto de estarmos em presença de uma modalidade funcional de responsabilidade, que se fundamenta na violação de deveres postos a cargo do administrador da insolvência na satisfação da missão geral de que está encarregado.” Conclusão adaptada das anotações do Professor Luís Carvalho Fernandes e do Mestre João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, Lisboa, 2015, página 343, por sua vez inspiradas no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 29 de Novembro de 2011, ali citado
9.ª Mostra-se suficientemente alegada a ilicitude do comportamento do administrador da insolvência, por violação dos seus deveres de averiguação, de análise, de diligencia e desempenho criterioso, num caso como o nosso, em que está alegado, em resumo, que:
- que a administradora nomeada em processo de insolvência por sugestão do sindicato a que pertencem os trabalhadores requerentes, sabendo ou podendo saber que todos os trabalhadores da insolvente, por acordo com a insolvente, cessaram os contratos de trabalho por acordo escrito em que fizeram constar os montantes das compensações devidas por esta àqueles, tratou de reconhecer os créditos dos trabalhadores sindicalizados, desacompanhados de qualquer documento e em que reclamavam o valor do acordo acrescido das remunerações entre a data da cessação do contrato de trabalho e a declaração da insolvência, e, em injustificada desigualdade de tratamento, não reconheceu os créditos dos trabalhadores que não se sindicalizaram, quando as reclamações de créditos destes se mostravam instruídas com os acordos celebrados e, para além disso, só reclamavam os créditos constantes do acordo celebrado com a empregadora, sem o acréscimo daquelas remunerações; - que aquele reconhecimento ligeiro só pode ter-se ficado a dever à gratidão pela sugestão da sua nomeação e este não reconhecimento só pode ter-se ficado a dever a vingança por não sindicalização, sobretudo tendo em conta o motivo do não reconhecimento dos créditos, documentados e inferiores, dos trabalhadores não sindicalizados, que foi “não consta da contabilidade; reclamação extemporânea; documentos de suporte insuficientes” ou “não consta da contabilidade; documentos de suporte insuficientes”, quando, como é evidente, ou nenhum constava da contabilidade ou todos constavam da contabilidade (cf artigos 27.º a 31.º, da petição inicial); - que aquele não reconhecimento foi feito com o propósito de distrair a atenção dos não sindicalizados que, claro, se concentraram na impugnação dessa decisão de não reconhecimento e não prestaram atenção à decisão, não comunicada por carta, do reconhecimento ampliado aos sindicalizados (cf artigos 32.º a 35.º, da petição inicial); - que a administradora acabou por, em relação aos trabalhadores SINDICALIZADOS e tal como por eles reclamado, reconhecer o crédito por retribuições e subsídios no período compreendido entre o alegado despedimento de cada um e a data da declaração da insolvência, não o tendo feito, mesmo que não reclamado, em relação aos trabalhadores NÃO SINDICALIZADOS, quando a administradora da insolvência devia a todos tratar com igualdade, socorrendo-se quer do conteúdo e documentos das reclamações, quer dos elementos da contabilidade, quer de outros elementos que fossem do seu conhecimento ou que estivessem ao alcance do seu conhecimento (artigos 57.º a 60.º); - que dos documentos da empresa constavam, em condições de igualdade, todos os trabalhadores, que a administradora da insolvência não consultou sequer ou, tendo-os consultado, ignorou (artigos 61.º e 62.º); - que se a administradora da insolvência os tivesse consultado e os não ignorasse, logo veria a data da contratação de cada trabalhador, as funções que cada um exercia e a retribuição de cada um, pois que na empresa estava disponível, desde logo, o mapa de pessoal, e logo veria também que os contratos de trabalho cessaram, embora em momentos diferentes, todos por acordo de revogação, pois que desses documentos ficou um exemplar na X (artigos 63.º a 66.º); - que, para além de tudo isso, a administradora da insolvência podia e devia ter recolhido alguns depoimentos, até do gerente da X, o que também não fez, mas que lhe teriam dito o que aqui se alegou, e que, com o conhecimento disso, a administradora da insolvência podia e devia ter tratado todos com igualdade, reconhecendo, se para isso houvesse motivo, o direito a retribuições desde a data da cessação de cada contrato de trabalho até à data da insolvência (artigos 67.º a 71.º); - que a administradora da insolvência, em coerência com a decisão de reconhecer os créditos dos trabalhadores Sindicalizados apesar de não acompanhados de qualquer documento, e de não reconhecer os créditos dos trabalhadores Não sindicalizados, apesar de acompanhados do acordo de revogação, de nada se quis inteirar, e de nada se inteirou (artº 72.º a 74.º);
10.ª Em face deste caso concreto, perante as diferenças de reclamação dos diversos trabalhadores e da mesma forma que, confessadamente, interpelou os trabalhadores sindicalizados, a ré tinha o dever de interpelar os outros, confrontando-os com as diferenças, em lugar de lhes “enfiar” com o não reconhecimento do crédito porque os créditos destes, que até estavam documentados no acordo, “não constam da contabilidade”, que, da expressão assim utilizada, parece que existia, apesar do que a ré o nega noutros lugares da contestação.
11.ª Aquela suficientemente alegada ilicitude é relevante porque os autores, credores da insolvência administrada pela ré, cabem no âmbito de protecção das normas que estabelecem aqueles deveres funcionais; Quanto à auto-responsabilização
12.ª O ónus da reclamação e o princípio da autorresponsabilização das partes não podem ser vistos como os instrumentos processuais para resolver todos os problemas e particularmente para reparar as violações dos deveres de outros agentes em funções públicas, designadamente os tratamentos de favor do administrador da insolvência em relação a alguns credores e de hostilidade em relação a outros.
13.ª É que, como se fundamentou no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Fevereiro de 2014, que “está ultrapassada a concepção liberal dos contratos, em que cada uma das partes defende, de forma egoística, exclusivamente os seus interesses”, vivendo-se agora o tempo em que, “pelo contrário, a boa-fé, numa lógica de cooperação e colaboração, exige que cada uma das partes pense nos interesses da outra.”
14.ª Ora e se isto deve ser assim no âmbito dos contratos, é-o, por maioria de razão, no exercício de funções públicas, não sendo hoje admissível que se permita que um administrador da insolvência ou outro qualquer agente no exercício de funções públicas, desempenhe o seu papel com desprezo pelos interesses dos outros, particularmente, neste caso concreto, dos credores, para, mais adiante e como não houve reação nos estreitos prazos processuais, se referir que as partes tinham o dever de reclamar e que, não o tendo feito, fica a violação dos deveres sanada.
15.ª O ónus da reclamação e o princípio da autorresponsabilização ficam aligeirados nos casos em que, num processo de insolvência, os trabalhadores que residem em Guimarães, não estão representadas por advogado desde o início, reclamaram o seu crédito, impugnaram o comunicado não reconhecimento dele, e não impugnaram o reconhecimento exponencial de créditos de outros trabalhadores, do que não foram notificados por carta, num processo que corre termos em Lisboa e em que, legitimamente, contavam que as funções públicas de administrador judicial estivessem a ser cumpridas com zelo, critério e isenção;
16.ª Ainda que, neste caso, aqueles princípio e ónus não saiam aligeirados e concorrendo para o alegado dano a violação culposa de outros deveres, como os do administrador da insolvência, sempre estaremos perante uma concorrência de culpas: a da administradora que actuou em violação dos seus deveres funcionais; a dos autores que não reclamaram. E, neste caso e depois de produzidas as provas, haverá que fazer a ponderação das medidas das culpas para, em aplicação do disposto no artigo 570.º, do Código Civil, determinar a medida das responsabilidades.

Quanto à absolvição do pedid
17.ª Julgando o tribunal que o autor numa acção de responsabilidade extracontratual, não alegou a prática de qualquer ilicitude, o que constitui um seu requisito e, por isso, facto essencial, então a petição inicial mostra-se inepta, por falta de identificação de uma causa de pedir, devendo o réu ser absolvido da instância e não do pedido. POR FIM,
18.ª A decisão recorrida violou ou não fez a melhor interpretação e aplicação do disposto no n.º 4, do artigo 607.º, ocasião em que parece mesmo ter cometido a nulidade apontada na alínea b), do n.º 1, do artigo 615.º, sempre do Código de Processo Civil, assim como violou o disposto no n.º 2, do artigo 363.º, artigos 369.º e seguintes, todos do Código Civil, artigo 131.º, e n.º 2, do artigo 412.º, ambos do Código de Processo Civil,
19.ª A decisão recorrida violou o disposto na alínea b), do n.º 1, do artigo 595.º, para além do que parece mesmo ter cometido a nulidade da omissão de pronúncia sobre factos essenciais alegados pelas partes, nos termos do disposto na alínea d), do n.º 1, do artigo 615.º, em conjugação com o n.º 4, do artigo 607.º, e o n.º 1, do artigo 5.º, todos do Código de Processo Civil;
20.ª Noutro passo, a decisão recorrida violou ou não fez a melhor interpretação e aplicação do disposto no n.º 1, do artigo 59.º, n.º 1, do artigo 129.º, ambos do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, artigo 12.º, do Estatuto do Administrador de Insolvência, bem como do ónus da reclamação e do princípio da auto-responsabilização.

V. A ré interpôs recurso subordinado e, por sua vez, a interveniente “Y” requereu a ampliação do recurso nos termos do artigo 636º do Cód. Proc. Civil.

Conclusões do recurso subordinado da ré:
I. O Presente recurso subordinado deu entrada por mera cautela de patrocínio e na sequência do recurso apresentado pelos Autores;
II. Assim, a decisão de mérito a decair, o que apenas por mera hipótese académica se admite, nunca poderá beliscar, nem afastar, a decisão final de absolver a Ré do pedido face à aguardada procedência da excepção suscitada; Ora,
III. Como consta do próprio texto decisório (quando se refere à contestação apresentada pela Ré) foi suscitada, além do mais, a excepção perentória de prescrição.
IV. Exceção que também foi arguida pela seguradora Chamada;
V. Todavia, pese embora esta questão essencial tenha sido atempadamente suscitada, na decisão recorrida inexiste o conhecimento da mesma;
VI. Atendendo à matéria de facto dada como assente, nomeadamente aos factos 13. 14. 15. há muito que decorreu o prazo de 2 anos previsto no artigo 59.º do CIRE para a alegada responsabilização da Ré; Acresce que, por outro lado,
VII. Também foi suscitada a litigância de má-fé dos Autores, constante dos artigos 103.º e seguintes da contestação. O Tribunal a quo igualmente não se pronunciou quanto à verificação dos pressupostos do n.º 2 do artigo 542.º do Cód. Proc. Civil;
VIII. A decisão recorrida tendo deixado de se pronunciar sobre as duas questões acima indicadas, questões estas que, no nosso humilde entendimento, são essenciais e que não podia deixar de conhecer;
IX. Pelo exposto padece a decisão recorrida de nulidade, por omissão de pronúncia e falta de fundamentação;
X. Tendo-se assim violado o disposto nos artigos 154.º, 542.º, n.º 2, 543.º, 615.º n.º 1 al. d) e 608.º n.º 2 todos do Cód. Proc. Civil.

Conclusões da interveniente sobre a requerida ampliação do recurso:
46. Em conformidade, deve ser aditado como provado com o seguinte: “A Ré celebrou com a companhia de seguros, Y Europe Underwriting Ltd, Sucursal em Portugal, um acordo escrito denominado por “módulo de responsabilidade civil profissional”, conforme apólice de seguro, sendo que o período do mesmo iniciou-se em 01.04.2012, sujeito às condições especiais e gerais constantes do documento n.º 1 junto com a contestação da interveniente que aqui se considera integralmente por reproduzido.”
47. Todavia, no que concerne à responsabilidade da ora Interveniente, sempre se diga que, a mesma encontra-se excluída.
48. Isto porque, o período de seguro iniciou-se em 01 de Abril de 2012, pelo que, “quaisquer eventos ou factos geradores de responsabilidade cometidos pela Segurada e reclamados durante o período do seguro serão considerados, desde que não sejam ou devessem ser do conhecimento do Segurado na data do início do presente contrato.”
49. Isso significa que o contrato de seguro celebrado com a ora Recorrida só cobre os eventuais actos ou omissões geradores de responsabilidade da Ré A. M., que tenham ocorrido após 01 de Abril de 2012.
50. Uma vez que os Recorrentes imputam à Ré, como alegado ilícito gerador de responsabilidade, o tratamento desigual e injustificado no reconhecimento dos créditos aos trabalhadores sindicalizados e dos trabalhadores não sindicalizados, o que originou disparidades no valor final a pagar aos trabalhadores e as listas do artigo 129.º do CIRE foram enviadas pela Administradora de Insolvência aos Recorrentes, por carta registada em 05.02.2007 e a lista definitiva de credores foi-lhes notificada em 27.04.2010.
51. Resulta evidente que o facto ilícito descrito pelos Recorrentes se situa fora do âmbito temporal da apólice.
52. Caso o douto Tribunal venha a considerar ilícita e culposa a atuação da Ré e causa de danos aos Autores, o que não se concede, a ora Interveniente argui a falta de cobertura do seguro por não se enquadrar no seu âmbito temporal.
53. Pelo que deve o Tribunal reconhecer que o sinistro em causa cai fora do limite temporal da apólice, não podendo, pois a Interveniente ser condenada ao pagamento de qualquer quantia peticionada pelo A.
54. Face ao exposto, deverá ser considerado provada a falta de cobertura temporal do contrato de seguro e, consequentemente, a Interveniente absolvida do pedido.

Os autores apresentaram resposta ao recurso subordinado e ao requerimento de ampliação do recurso, pugnando pela improcedência da arguida excepção de prescrição do direito de indemnização, bem como do pedido da ré no sentido da condenação dos autores como litigantes de má-fé.

VI. Distribuído o recurso, o relator mandou providenciar pela junção aos autos de certidão de actos processuais da insolvência 862/06.8TyLSB e das petições de ações intentadas por alguns trabalhadores no Tribunal de Trabalho, e deu ainda a oportunidade às partes de exercerem o contraditório sobre a seguinte questão:
«Em conferência poderá ser equacionada a apreciação oficiosa da excepção da autoridade do caso julgado da sentença de verificação e graduação de créditos proferida no processo de insolvência 862/06.8TYLSB.
É que a procedência do pedido da acção com fundamento na responsabilidade extracontratual da ré colocaria em causa questões jurídicas que ficaram definitivamente resolvidas na referida decisão, como a atinente à licitude e validade do reconhecimento de créditos conforme a lista elaborada pela administradora de insolvência. A fim de se evitar que as partes sejam confrontadas com uma decisão-surpresa sobre a matéria, concedo-lhes o prazo de 10 dias para, querendo, se pronunciarem».

IX. Cumpre apreciar e decidir.

Questão prévia.
Interposto recurso pelos autores da sentença que julgou improcedente a acção, a ré interpôs recurso subordinado, arguindo a nulidade de julgamento prevista no artigo 615º, nº1, al. d), do Cód. Proc. Civil, por a decisão ter omitido pronúncia sobre a invocada prescrição do direito à indemnização.

É manifesta a falta legitimidade da recorrente para recorrer face ao disposto nos arts 631º, nº1, e 633º, nº1, visto que nenhum segmento decisório sobre o mérito da causa lhe é desfavorável, circunstância que obsta ao conhecimento do objecto do recurso subordinado. Mas a eventual necessidade de apreciação da excepção esteja salvaguardada por via da ampliação do recurso requerida pela “Y” ao abrigo do disposto no art. 636º, e ademais a Relação sempre se poderá substituir ao tribunal recorrido nos termos do artigo 665º.

Vejamos as questões suscitadas no recurso principal interposto pelos autores.

i) Nulidade prevista no art. 615º, nº1, al. d), dado o facto de a sentença omitir a motivação da decisão da matéria de facto, e violar o nº4 do art. 607º, e não fazer a análise crítica da prova nem indicar os documentos em que se baseou;

ii) Violação dos normativos dos arts 363º e 369º e ss, do Código Civil, em virtude dos actos processuais de outro processo só poderem ser provados pela certidão correspondente ou, sendo a decisão baseada na consulta do processo pelo juiz, pela indicação e junção das peças consultadas (pontos 3, 5 a 16, 18 a 21);

iii) Violação do disposto no nº1 do artigo 595º do CPC, por falta de selecção de factos relevantes para a decisão sobre a violação ilícita e culposa pela ré dos seus deveres funcionais, mormente os alegados nos artigos 15º, 21º, 22º, 39º, 40º e 42º, 57º a 74º e 75º a 79º da petição inicial;

iv) Errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 59º, nº1, e 129º, do Código de Insolvência e de Recuperação de Empresas.

i) A fundamentação da decisão sobre a matéria de facto não discrimina os factos provados por documentos e os factos provados por acordo, limitando-se o Sr.juiz a consignar o seguinte: «atendendo aos factos não impugnados e aos documentos juntos encontram-se provados nos autos os seguintes factos».

É apodíctico que esse modo de justificar a decisão não gera qualquer nulidade, e não dificulta o escrutínio da decisão quanto à observância as regras do direito probatório material. A simples análise do texto da sentença permite identificar os factos relativamente aos quais era necessária prova documental, por respeitarem a actos processuais e/ou a decisões proferidas noutros processos (pontos 1, 2, 3, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 18, 19, 20, 21, 24, 25 e 26), os restantes factos são naturalmente os que o tribunal recorrido considerou provados por falta de impugnação.
E ainda a propósito da fundamentação da decisão da matéria de facto, também é processualmente errada a alusão que os recorrentes fazem à falta de motivação e da análise crítica da prova, pois motivação propriamente dita e análise crítica da prova só tem lugar nos casos em que a convicção do juiz é formada mediante provas sujeitas à sua livre apreciação, e já não quando a prova é vinculativa, princípio afirmado no nº.5, do artigo 607º, segundo o qual a livre apreciação das provas «não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes».

Em suma: A fórmula vaga usada pelo juiz na fundamentação da decisão traduz uma mera imprecisão, perfeitamente suprível pela Relação, e para dissipação de quaisquer dúvidas foi solicitada ao tribunal de comércio de Lisboa celeridade na emissão da certidão reclamada pelos recorrentes, e à ré certidão das petições das acções intentadas por alguns trabalhadores no Tribunal de Trabalho.

O teor de todos esses documentos, isoladamente e de forma conjugada, permite confirmar o acerto da decisão recorrida sobre a aquisição processual dos factos insertos nos pontos 1, 2, 3, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, em parte (“os autores impugnaram junto da administrador de insolvência o não reconhecimento dos seus créditos, no que tiveram êxito, pois que a administradora viria a admiti-los”), 15, 16, 18, 19, 20, 21, 24, 25 e 26.
A matéria do ponto 22 é de índole essencialmente conclusiva, mas nada a obstar a que se mantenha no acervo provado; a matéria do ponto 23 traduz o cálculo efectuado por referência ao montante dos créditos e ao valor global do produto da massa insolvente provindo da venda do imóvel e dos móveis; a matéria inserta no ponto 4 está admitida por acordo; a 1ª parte do ponto 14 constitui matéria de natureza controvertida (foi alegada no art. 33º da p.i. e impugnada pela ré no art. 38º da contestação); e a matéria do ponto 17 é igualmente controvertida (foi alegada nos artigos 39º e 42º da p.i., mas impugnada nos artigos 36 e 37º da contestação).

Pelo exposto, consideram-se que estão provados os seguintes factos:

1. “X – Indústria de solas, limitada”, nipc ………, com sede em Guimarães, era uma empresa que se dedicava à indústria de solas e que tinha diversos trabalhadores.
2. Entre junho de 2004 e abril de 2005, por dificuldades financeiras da X, mas por acordo com esta, os trabalhadores fizeram cessar os respetivos contratos de trabalho, tendo levado as respetivas declarações de situação de desemprego para requererem a atribuição do subsidio de desemprego, e fixado o montante de indemnização, que a X não pagou.
3. Em 03.08.2006, F. N. e R. L., no interesse de todos os trabalhadores que se haviam sindicalizado, identificados no artigo 10.º da petição inicial, requereram a declaração da insolvência da X, que teve a última sede registada na Rua …, em Lisboa.
4. A “X” tinha outros trabalhadores, que não se associaram àquele sindicato, designadamente os Autores.
5. O requerimento foi distribuído ao 1.º Juízo do extinto Tribunal de Comércio de Lisboa, onde a ação passou a correr os seus termos sob o n.º 862/06.8TYLSB e no dia 30.10.2006, foi proferida sentença que declarou a insolvência da referida X e levando em conta a sugestão dos requerentes, foi designada, para exercer as funções de administradora da insolvência, a ré, A. M..
6. Em 07.02.2007 realizou-se a assembleia de credores, ocasião em que os referidos trabalhadores sindicalizados se fizeram representar por advogado, não tendo comparecido os trabalhadores Não Sindicalizados, quando foi composta a comissão de credores assim: -Banco …, S.A.; - Instituto da Segurança Social; - A. C., “representante dos trabalhadores”.
7. Para o processo da insolvência, foram apreendidos bens móveis e o produto da venda, feita pelo Serviço de Finanças de … no âmbito de execução fiscal, de um imóvel, com o valor global de EUR 425´000.00 (quatrocentos e vinte e cinco mil euros).
8. Os AA. reclamaram os créditos no montante do acordo que cada um celebrara com a X.
9. Os trabalhadores Sindicalizados reclamaram créditos de acordo com os montantes que constavam dos respetivos “acordos de revogação dos contratos de trabalho” no que respeita a retribuições, férias, subsidio de férias e subsídio de Natal vencidos à data da revogação, e no que respeita à indemnização, tendo, no entanto, acrescentado retribuições e subsídios desde a data dos alegados despedimentos até à data da insolvência, alegando que foram despedidos ilicitamente.
10. As listas do artigo 129.º do CIRE foram remetidas pela Ré aos autos de insolvência por correio registado de 05 de março de 2007.
11. A administradora da insolvência reconheceu os créditos dos referidos trabalhadores Sindicalizados como reclamados, fazendo-os constar da lista dos créditos reconhecidos.
12. Relativamente aos trabalhadores Não Sindicalizados, a administradora da insolvência, com duas exceções, não reconheceu os créditos, fazendo constar, como motivo do não reconhecimento: − “não consta da contabilidade; reclamação extemporânea; documentos de suporte insuficientes” ou − “não consta da contabilidade; documentos de suporte insuficientes”.
13. Os AA. foram individualmente notificados, por carta registada datada de 5 de fevereiro de 2007, do não reconhecimento dos seus créditos, e ainda de que poderiam consultar o processo e a lista de créditos “no 1.º Juízo do Tribunal do Comércio de Lisboa, para preparar e fundamentar eventuais impugnações”.
14. Os Autores impugnaram a decisão de não reconhecimento dos seus créditos, no que tiveram êxito, pois que a administradora viria a admiti-los.
15. Os AA. foram pessoalmente notificados pelo Tribunal do Comércio de Lisboa, por cartas datadas de 27.04.2010, da lista definitiva de créditos reconhecidos.
16. A 14 de setembro de 2016, foi proferida sentença que julgou verificados os créditos relacionados pela administradora da insolvência, notificada às partes por ofícios de 10 de outubro de 2016 e transitou em julgado.
17. Em 19.01.2017, os AA. apresentaram nos autos de reclamação de créditos do processo de insolvência um requerimento e comunicaram também aos serviços da Segurança Social, o recebimento indevido do subsídio de desemprego, nos termos do documento junto (doc. 84 da p.i.) que aqui se dá como reproduzido.
18. Em 05.04.2017, o Instituto da Seg. Social requereu no procº de insolvência que as quantias pagas a título de subsídio de desemprego fossem consideradas dívidas da massa insolvente e, por isso, retida a respetiva soma, de 293´869,40€.
19. No dia 18 de abril de 2017, os Autores pronunciaram-se dizendo que não ocorreu qualquer despedimento ilícito, pelo que as restituições dos subsídios de desemprego deviam ser feitas pelos trabalhadores que os receberam.
20. Em 02.05.2017, os aqui AA. apresentaram nos autos da insolvência novo requerimento, alertando para um conjunto de contradições no comportamento da administradora da insolvência, tendo o tribunal, sobre o descrito, decidido, por despacho datado de 04.09.2017, que com a prolação da sentença de verificação e graduação de créditos, se esgotara o poder jurisdicional, mas determinando que de peças dos autos fosse extraída certidão para o Ministério Público, para os fins tidos por convenientes, após o que foi instaurado inquérito para investigação da prática de crime, que, por despacho de 18.05.2018, foi arquivado porque estaria já prescrita a responsabilidade criminal.
21. Se os créditos reconhecidos aos AA. e restantes trabalhadores contemplassem as retribuições e subsídios entre a data da cessação do contrato e a data da declaração da insolvência, o produto da venda do imóvel e dos móveis seria rateado por todos, por forma a que todos receberiam proporcionalmente pelo mesmo critério, nos termos da tabela do artigo 81.º da petição inicial.
22. Se os créditos reconhecidos aos trabalhadores se limitassem aos vencidos na data da revogação, por acordo, dos contratos de trabalho, e à indemnização devida, tudo fixado por acordo, o produto da venda do imóvel e dos móveis teria chegado para pagar integralmente os créditos de todos os trabalhadores, e sobrava para pagamento de outros créditos na ordem de graduação.
23. A X estava inactiva desde 2005, não possuía instalações, nem qualquer estabelecimento em actividade; não tinha a contabilidade organizada desde dezembro de 2004, não tendo o gerente procedido à regularização, tendo sido a insolvência qualificada como culposa, imputável àquele.
24. A Ré tomou conhecimento, aquando da reclamação de créditos, que os referidos trabalhadores sindicalizados tinham impugnado, no Tribunal de Trabalho o despedimento, peticionando que fosse julgado a ilicitude do despedimento e requerendo a reintegração no posto de trabalho, sem prejuízo da categoria e antiguidade, ou em substituição, o direito à respetiva indemnização, bem como o direito a todas as prestações vincendas desde a data do despedimento até à data que viesse a ser declarada a ilicitude; estas ações viriam a ser arquivadas por inutilidade superveniente da lide, na sequência da declaração de insolvência.
25. A presente ação deu entrada a 28 de setembro de 2018, tendo a Ré sido citada a 12 de outubro de 2018.

O direito.
Os autores pretendem com esta acção obter o ressarcimento dos danos causados pela actuação da ré no processo de insolvência da “X Indústria de Solas, Lda”, a quem imputam a violação ilícita e culposa dos deveres funcionais inerentes ao cargo de administradora da insolvência na fase de apreciação e reconhecimento dos créditos reclamados pelos trabalhadores.

Ou seja, a acção funda-se no regime de responsabilidade civil do administrador de insolvência estabelecido no artigo 59º, nº1, do Cire (Código de Insolvência e de Recuperação de Empresas aprovado pelo Dec-Lei 53/2004), segundo o qual “o administrador da insolvência responde pelos danos causados ao devedor e aos credores da insolvência e da massa insolvente pela inobservância culposa dos deveres que lhe incumbem; a culpa é apreciada pela diligência de um administrador da insolvência criterioso e ordenado”.
Como anota o acórdão do STJ de 12.07.2018, tem-se entendido que esse regime de responsabilidade civil por actos próprios do administrador de insolvência “é reconduzível à responsabilidade extracontratual por factos ilícitos, na medida em que decorre do exercício das funções para que foi nomeado. Por isso, existirá responsabilidade do administrador da insolvência sempre que se verifique a violação dos seus deveres funcionais, legalmente impostos, quer por via de comportamentos positivos, quer por via de comportamentos omissivos, exigindo-se ainda a verificação dos restantes pressupostos da responsabilidade delitual, nos termos do artigo 483º do CC”.

Os deveres do administrador de insolvência, à data em que é situada a actuação ilícita e culposa da ré, encontravam-se previstos no art. 16º da Lei nº. 32/2004, de 22.07, segundo o qual o administrador da insolvência “deve, no exercício das suas funções e fora delas, considerar-se um servidor da justiça e do direito e, como tal, mostrar-se digno da honra e das responsabilidades que lhes são inerentes” (nº1) e “no exercício das suas funções, deve manter sempre a maior independência e isenção, não prosseguindo quaisquer objectivos diversos dos inerentes ao exercício da sua actividade” (nº2).

Segundo os autores, a ré violou esses deveres por mor de ter conscientemente apreciado de forma desigual os créditos dos trabalhadores não sindicalizados e os créditos dos trabalhadores sindicalizados quando a situação de todos eles era igual (ilicitude) afastando-se desse modo do que se considera ser uma actuação dum administrador zeloso e criterioso (culpa).

No essencial e em síntese, alegam que todos os trabalhadores celebraram com a insolvente um acordo de “revogação do contrato de trabalho”, onde fixaram os valores dos créditos a que tinham direito (retribuições, férias, e subsídios de férias e de Natal), contudo a ré admitiu e reconheceu ainda aos trabalhadores sindicalizados créditos reclamados referentes a retribuições e subsídios desde o aludido acordo até à declaração de insolvência, não dando esse mesmo tratamento aos autores.
A indemnização que cada um dos autores peticiona corresponde à percentagem do valor do crédito que deixam de receber mercê do “tratamento privilegiado” dado aos trabalhadores sindicalizados (danos) - «Se os créditos reconhecidos aos trabalhadores sindicalizados se limitassem aos vencidos na data da revogação, por acordo, dos contratos de trabalho, e à indemnização devida, tudo fixado por acordo, o produto da venda do imóvel e dos móveis teria chegado para pagar integralmente os créditos de todos os trabalhadores, e sobrava para pagamento de outros créditos na ordem de graduação».

Em função do contexto descrito, a procedência dos pedidos de indemnização implica necessariamente a aceitação da existência do erro no reconhecimento pela ré dos créditos reclamados pelos trabalhadores sindicalizados referentes ao período entre o acordo de revogação dos contratos de trabalho e a data em que foi declarada a insolvência (e/ou de não ter dado igual tratamento aos autores enquanto trabalhadores não sindicalizados), bem como do erro de facto e de direito da sentença que os julgou verificados e os graduou em conformidade com a lista elaborada pela A.I. nos termos do artigo 129º do Cire

A propósito do “erro manifesto” referido no nº3 do artigo 130º do Cire, tem-se discutido na doutrina e na jurisprudência a natureza da sentença homologatória da lista de credores reconhecidos elaborada pelo administrador de insolvência, havendo quem sustente que o juiz se limita a apor a sua chancela no documento sem ter aferir da sua veracidade e legalidade (Maria José Costeira, Novo Direito de Insolvência, ed. 2005, p. 31), outros entendem que o conceito de erro manifesto deve ser interpretado em termos amplos “não podendo o juiz abster-se de verificar a conformidade substancial e formal dos títulos de créditos constantes da lista que vai homologar para o que pode solicitar ao administrador os elementos de que necessite” (João Labareda O Novo Código de Insolvência p.ag. 46/47), orientação que se acolhe, na linha do ac. do STJ de 18.09.2007 (Fonseca Ramos), o qual enfatiza que o erro manifesto “pode respeitar à indevida inclusão do crédito nessa lista, ao seu montante e às suas qualidades”.
Embora não exista identidade de pedidos, de sujeitos e de causa de pedir entre os dois processos, a sentença de verificação e graduação de créditos proferida no âmbito do processo de insolvência (onde os AA. figuram como credores e a ré como administradora da massa insolvente) impõe-se na decisão de mérito da presente acção como pressuposto indiscutível, sob pena de violação do instituto do caso julgado.

A actuação da ré ficou validada e legitimada pelo trânsito em julgado da referida sentença proferida no apenso da insolvência, mormente quanto aos montantes e qualidades dos créditos dos trabalhadores, não podendo nesta acção afirmar-se o oposto, isto é, a actuação ilícita e culposa da ré e o erro de facto e de direito no reconhecimento dos créditos dos trabalhadores sindicalizados do período situado entre o acordo de revogação dos contratos de trabalho e a data da declaração de insolvência da entidade patronal.

Este efeito positivo do caso julgado assenta numa relação de prejudicialidade: “o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida” (J. Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado, Rui Pinto, in Código de Processo Civil Anotado, II volume, Coimbra Editora, 2011, pág. 325).

A propósito da autoridade do caso julgado, refere M. Teixeira de Sousa que ele se manifesta “pela proibição de contradição da decisão transitada: autoridade de caso julgado é o comando de acção, a proibição de omissão respeitante à vinculação subjectiva à repetição do processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição no processo posterior do conteúdo da decisão anterior.” (O Objecto da sentença e o Caso Julgado, BMJ 325º, pág. 49).

Face às expostas considerações jurídicas e aos factos provados, sem necessidade de aquisição dos demais alegados, os pedidos da acção soçobram por respeito à autoridade do caso julgado.
Sempre se consigna que, não fora a ponderação da autoridade do caso julgado, a acção soçobraria com os fundamentos aduzidos na sentença recorrida.

O administrador de insolvência goza de ampla autonomia e poder de decisão no processo de insolvência, sobretudo na administração da massa insolvente e na fase da liquidação, mas não é isso que sucede propriamente quanto à apreciação e reconhecimento de créditos, em que a sua actuação está sujeita à sindicância dos interessados (v.g. impugnação da lista de credores reconhecidos nos termos do artigo 130º do Cire) e do juiz.

Na lista definitiva de credores da insolvência 862/06.8TYLSB, a administradora de insolvência reconheceu aos trabalhadores sindicalizados e não sindicalizados os créditos conforme as reclamações apresentadas, e se quanto aos trabalhadores sindicalizados reconheceu os créditos por retribuições e subsídios entre a data do “acordo de revogação” e a data da declaração de insolvência é porque tinham peticionado esses valores em acções de impugnação do despedimento intentadas no Tribunal de Trabalho (direito potestativo que os autores também poderiam ter exercido, mas não exerceram).

Por isso, não se vislumbra aí falta de isenção ou uma actuação menos criteriosa por banda da administradora de insolvência, nem o tribunal considerou haver nessa matéria qualquer ilegalidade ou falta de fundamento que pudesse obstar à verificação e graduação dos aludidos créditos dos trabalhadores sindicalizados.

A negligência, inépcia ou desatenção dos interessados em não exercerem os seus direitos no momento próprio, não pode ser suprida ou validamente substituída por via da interposição da acção de responsabilidade civil nos termos do artigo 59º do Cire.

Decisão.

Acordam os Juízes desta Relação:
1º Em não tomar conhecimento do objecto do recurso subordinado da ré;
2º Em julgar improcedente a apelação dos autores.
3º Improcedendo a apelação, considera-se prejudicada a ampliação do recurso requerida pela recorrida/seguradora.

Custas pelos recorrentes.
TRG, 19.11.2020.