Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
719/08.8TBBCL-C.G1
Relator: MARIA DOS ANJOS NOGUEIRA
Descritores: PODER PATERNAL
FAMÍLIA NÃO NUCLEAR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/10/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I - A introdução do art.º 1887.º-A, do CC, veio consagrar a necessidade de salvaguarda de relações familiares não estritamente nucleares.
II - Quis-se, por esta via, deixar aberta a porta a todas as formas de concretização e tutela do superior interesse dos menores, que afasta qualquer legalismo ou predomínio da forma sobre a adequação da decisão ao facto, equidade e justiça.
III – Deve, assim, ser fixado um regime de visitas à tia que cuidou da menor, após o seu nascimento, face aos laços de afectividade entre ambas, semelhantes aos da filiação, por via da qual é estabelecida a proximidade e interacção positiva entre a menor e a mãe, incapacitada, por si só, de exercer tais funções.
Decisão Texto Integral: - ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES-

I – Relatório
Sílvia A, veio propor Acção de Alteração da Regulação das Responsabilidades Parentais, contra Júlio P, pedindo se acrescente, àquele que já se encontra fixado, outras cláusulas que especifica, por forma a alargar o respectivo regime de visitas estipulado para permitir que a menor possa conviver mais consigo e com a mãe.
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O requerido veio pugnar pelo indeferimento do requerido, invocando que a requerente nunca colaborou na interacção e diálogo com o progenitor, aproveitando as visitas da menor consigo para denegrir a sua imagem de progenitor junto desta, dando uma imagem depreciativa do mesmo, demonstrando falta de colaboração para que esta conviva de forma sadia consigo.
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Após realização das diligências necessárias, procedeu-se a julgamento, tendo sido proferida sentença que decidiu alterar o exercício das responsabilidades parentais referente à menor da seguinte forma:
a) A menor Marisa R, de quinze em quinze dias poderá estar com a tia Sílvia A, que para o efeito irá buscar a menor a casa do pai, aos sábados pelas 11h e entregá-la-á no domingo, em casa do pai, até às 17h, devendo a tia providenciar pela presença da mãe para que a menor conviva com a mesma e restante família materna, assegurando as deslocações da menor à catequese e todas as demais actividades extra curriculares e lúdicas da menor.
b) A menor passará o dia 25 de Dezembro com a tia que assegurará que esse dia seja passada com a mãe da menor, devendo para o efeito ir buscá-la a casa do pai às 11h e levá-la de volta pelas 18h.
c) No dia de aniversário da menor, a Marisa poderá tomar uma refeição com a mãe, sendo esta assegurada pela tia: caso seja num dia útil a mãe poderá jantar com ela, indo a tia busca-la a casa do pai pelas 19h e levá-la às 21h a casa do pai já jantada; Caso seja um dia fim-de¬-semana que não coincida com o da visita normal: se for no sábado a mãe poderá jantar com a menor, indo a tia buscá-la pelas 18h e levá-la a casa do pai às 22h, caso seja domingo, a mãe poderá almoçar com a menor, indo a tia buscá-la pelas 11h e levá-la de volta às 15h.
d) No dia de aniversário da mãe a menor Marisa poderá tomar uma refeição com esta, nos moldes estipulados na alínea anterior.
e) Mais se determina a eliminação da cláusula da regulação das responsabilidades parentais segundo a qual "a tia materna poderá visitar a menor quando o desejar, desde que avise o pai com antecedência e sempre com respeito dos seus períodos de descanso e futuras obrigações escolares'.
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II-Objecto do recurso
Não se conformando com o decidido veio o requerido Júlio P instaurar o presente recurso, nele formulando as seguintes CONCLUSÕES:
A)- O progenitor é considerado uma pessoa educada, responsável e um bom pai.
B)- A menor Marisa está por sentença judicial, entregue à guarda do progenitor, ora recorrente, com quem reside.
C)- A mãe da menor não está capacitada para assumir a condução do processo de crescimento e de educação da Marisa.
D)- O progenitor, ora recorrente, reúne, juntamente com a sua companheira com quem mantém uma relação estável há vários anos, todas as condições necessárias, a nível emocional, económico e habitacional para ter a menor à sua guarda e cuidados.
E)- O direito atribuído à tia materna Sílvia A de que:
a) A menor Marisa R, de quinze em quinze dias poderá estar com a tia Sílvia A, que para o efeito irá buscar a menor a casa do pai, aos sábados pelas 11h e entregá-la-á no domingo, em casa do pai, até às 17h, devendo a tia providenciar pela presença da mãe para que a menor conviva com a mesma e restante família materna, assegurando as deslocações da menor à catequese e todas as demais actividades extracurriculares e lúdicas da menor".
b) A menor passará o dia 25 de Dezembro com a tia que assegurará que esse dia seja passada com a mãe da menor, devendo para o efeito ir buscá-la a casa do pai às 11h e levá-la de volta pelas 18h.
c) No dia de aniversário da menor, a Marisa poderá tomar uma refeição com a mãe, sendo esta assegurada pela tia: caso seja num dia útil a mãe poderá jantar com ela, indo a tia buscá-la a casa do pai pelas 19h e levá-la às 21h a casa do pai já jantada; Caso seja um dia fim-de-semana que não coincida com o da visita normal: se for no sábado a mãe poderá jantar com a menor, indo a tia buscá-la pelas 18h e levá-la a casa do pai às 22h, caso seja domingo, a mãe poderá almoçar com a menor, indo a tia buscá-la pelas 11h e levá-la de volta às 15h.
d) No dia de aniversário da mãe a menor Marisa poderá tomar uma refeição com esta, nos moldes estipulados na alínea anterior.
Não se enquadra na norma legal que prevê este direito ao progenitor a quem o menor não foi entregue - artigo 1906.°, n.° 6 e 7 do Código Civil.
F)- A Constituição da Republica Portuguesa, no seu artigo 36.°, n.° 5 [(5. Os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos....") dá direitos e deveres aos pais.
G)- A requerente tia da menor nunca contribuiu para o desenvolvimento harmonioso e para a manutenção da relação da menor com o seu pai, dando sempre uma imagem negativa do mesmo.
H)- E esta diferença é fundamental para o desenvolvimento da criança, para salvaguarda do superior interesse da mesma quer no presente, quer no futuro.
I)- Interesses estes que não se podem compadecer com os outros interesses da requerida, Silvia A, em ter consigo a menor como já o manifestou expressamente nos autos.
J)- E quem dá má imagem do progenitor à menor é a tia, ora recorrida invocando e imputando suspeitas e factos falsos e graves ao apelante em relação à sua filha, ou denegrindo a sua imagem perante a menor.
K)- O Tribunal não dá como provados tais factos depreciativos da figura do progenitor.
L)- E isso impõe que a tia não possa estar com a menor nos termos decididos e aqui em recurso.
M)- Por isso mesmo, para o bom e sadio crescimento da menor no lar familiar estável do seu progenitor, ninguém, além do progenitor, deve assumir o papel de guia educador e cuidador do superior interesse da menor.
N)- Pelo que impõe-se seja revogada a sentença ora em recurso e substituída por outra que salvaguarde o interesse da menor.
0)- Ao decidir de forma contrária violou a douta sentença recorrida o principio fundamental de promoção e protecção dos direito da menor: o seu superior interesse, bem como o disposto nos n.ºs 3, 6 e 7 do artigo 1906.° do Código Civil e n.º 5 do artigo 36.° da Constituição da Republica Portuguesa.
Conclui, assim, pedindo que o presente recurso seja julgado procedente, por provado e a sentença recorrida seja alterada no sentido de as visitas da progenitora à menor serem efectuadas pela mesma acompanhada da sua curadora, a avó materna da menor, na residência desta (menor),
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O IL. Magistrado do Ministério Público, veio contra alegar, aduzindo ser do interesse do criança manter o regime provisório fixado, eliminando do regime de visitas a cláusula aberta relativa às visitas que a tia pode efectuar livremente à menor, por se entender constituir um elemento perturbador nas relações ainda pautados pela conflitualidade entre o requerido e o requerente, fixando-se um regime fixo que contemple, ainda, a possibilidade de a menor estar no período festivo de Natal com a tia e com a mãe e restante família materna e assegurando o contacto entre ambas no dias de aniversário da menor e da mãe.
Conclui, assim, ser de manter, como determinado na douta Sentença recorrida, que nos períodos de visitas, a ocorrerem, a tia materna assegure a presença da progenitora junto da Marisa, para que esta possa conviver com aquela e restante família materna, julgando-se improcedente o presente Recurso e mantendo-se, na íntegra, a douta decisão recorrida.

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O recurso foi recebido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.
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Foram colhidos os vistos legais.
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III - Fundamentação de Facto
 Factos Provados:
1. A menor Marisa R nasceu no dia 12 de Fevereiro de 2008 e é filha de Júlio P e Carmo M.
2. Os pais da menor não são casados entre si e nunca viveram juntos, sendo a menor fruto de um relacionamento esporádico ocorrido entre ambos.
3. A paternidade da menor foi estabelecida na sequência de processo de averiguação oficiosa, que correu termos por este Tribunal sob o n.º 851/08.8TBBCL, tendo o requerido reconhecido a paternidade da menor após realização de exames hematológicos.
4. Nos autos de promoção e protecção a que estes vão apensos, com data de 19 de Fevereiro de 2008 foi proferida decisão que aplicou em benefício da menor a medida provisória de apoio junto de outro familiar, ficando aquela à guarda e cuidados da sua tia materna Sílvia A, ora requerente.
5. Nesses mesmos autos, por decisão de 13 de Junho de 2008 foi homologado o acordo de promoção de protecção que aplicou a favor da menor aquela medida em termos definitivos.
6. Desde o seu nascimento e logo após ter tido alta da maternidade, a menor ficou aos cuidados e guarda da ora requerente, Sílvia Silva, sendo esta quem proveu desde aquela data ao seu sustento e educação, vestuário e alimentação.
7. O progenitor, ora requerido, iniciou contactos regulares com a menor, após ter tido conhecimento do teste de paternidade, indo visitá-la com regularidade à ama e posteriormente a casa da tia materna.
8. Por decisão judicial proferida em 22 de Abril de 2010, no processo de promoção e protecção, a medida de apoio junto de outro familiar cessou por ter decorrido acção tutelar comum - apenso A -, no âmbito da qual foi decidido a atribuição da confiança da menor à tia materna, atribuindo-lhe os poderes inerentes ao exercício do poder parental.
9. Em Janeiro de 2011 a tia materna da menor saiu de casa da avó, onde vivia juntamente com a mãe da menor e outros irmãos e passou a viver num apartamento juntamente com o seu companheiro e com a menor Marisa.
10. A Marisa integrou então o agregado familiar desta tia, sendo os cuidados com a mesma repartidos entre a ora requerente e o seu companheiro, que conhece a menor desde que nasceu.
11. Por decisão judicial proferida em 31-08-2012, no âmbito do Apenso B/-Alteração das Responsabilidades Parentais, foi decidido atribuir a guarda da Marisa ao progenitor, com quem esta reside habitualmente e que exerce as responsabilidades parentais da menor.
12. Mais foi fixado um regime de visitas a favor da tia materna, determinando¬-se que a menor poderia passar com esta tia Sílvia A fins-de-¬semana, alternados, entre as 19h00 de sexta-feira e as 19h00 de Domingo, podendo a mãe conviver com a menor nestes fins-de-semana.
13. Para além disso a tia materna poderia visitá-la quando o desejasse, desde que avisasse o pai com antecedência e sempre com respeito dos seus períodos de descanso e futuras obrigações escolares.
14. O requerido interpôs recurso da decisão proferida para o Venerando Tribunal da Relação de Guimarães.
15. Por douto acórdão proferido no âmbito do recurso mencionado foi decidido manter inalterado o regime de visitas fixado na sentença recorrida.
16. No douto acórdão é referido entre o mais que "Se uma criança foi entregue a uma tia materna logo que saiu da maternidade e com ela se manteve ao longo de mais de quatro anos e meio, gerando-se entre ambas um sentimento em tudo igual a uma relação de filiação, ao ponto de a menor tratar por "titi mamã'; deve ser estabelecido um regime de visitas idêntico ao que se estabeleceria se ela fosse sua mãe biológica, por serem iguais as nefastas consequências advenientes da quebra abrupta daquele vínculo”.
17. Até Setembro de 2014 a menor realizava quinzenalmente visitas à habitação dos tios maternos, convivendo com a progenitora nesses momentos mas, actualmente, o progenitor não permite tais deslocações.
18. A tia Sílvia e o seu companheiro, bem como a progenitora tem mantido contactos com a Marisa apenas na habitação do progenitor, semanalmente, numa visita que ocorre no final da tarde dos dias de terça¬-feira e sob supervisão deste.
19. Existe um nível de conflitualidade elevado entre o progenitor e a tia materna da menor.
20. Tal modalidade de contactos não se mostra adequado ao salutar e harmonioso desenvolvimento emocional da menor.
21.A menor demonstra grande afectividade para com a mãe, tia e o seu companheiro e demais família materna, assim como para com o pai a sua companheira e demais família paterna.
22. Existem algumas verbalizações de dados negativos de ambas as partes, numa tentativa de condicionamento do discurso da menor em função do pretendido por cada uma delas, mais preponderante por parte do progenitor relativamente à tia materna Sílvia.
23. A tia materna da menor, ora requerente, actualmente trabalha na empresa Gabar, auferindo €505,00 mensais. Tem um horário de trabalho rotativo, sendo que numa quinzena realiza o horário da manhã, no período compreendido entre as 05h45m e as 14h00 e na quinzena seguinte entre as 14h00 e 22h15.
24. Reside com o companheiro, António J, em habitação própria, unifamiliar, de três andares, inscrita num condomínio de habitações geminadas, sita na Rua do Pinhal, Moure, Barcelos, adquirida mediante empréstimo bancário, pagando uma mensalidade de €350,00 mensais.
25. Esta habitação comporta uma cozinha, casa de banho, três quartos, sendo que um destes quartos é destinado à menor Marisa. Possui espaços exteriores.
26. Apresenta-se com adequado nível de organização e higiene e com nível de conforto e comodidade.
27. O companheiro da requerente exerce actividade profissional numa tinturaria, auferindo um vencimento base mensal de €550,00.
28. O agregado familiar apresenta despesas médias mensais no montante de €480,00.
29. O progenitor da menor vive em união de facto com uma companheira, Adélia M, desempregada desde 2013, e a mãe desta última, Alice C, que aufere uma pensão de sobrevivência de €157,17 e uma pensão de velhice de €261,95.
30. O requerido foi vítima de um acidente de trabalho e desde 1996 beneficia de uma pensão vitalícia no montante mensal de € 384,80.
31. Apresentam despesas médias mensais na ordem dos €175,00.
32. Este agregado familiar reside numa habitação térrea, unifamiliar, propriedade de Alice C, composta por uma cozinha três quartos, um destinado à menor Marisa, e uma casa de banho. Possui as condições mínimas de habitabilidade e um adequado nível de organização e higiene.
33.A menor Marisa frequenta a escola básica da Ucha.
34.Apresenta-se como uma criança com uma boa integração em contexto escolar e bem cuidada no que concerne a cuidados de higiene, vestuário e alimentação.
35. É caracterizada como uma criança alegre e comunicativa.
36. A progenitora da menor apresenta um défice cognitivo notório, tendo um nível intelectual inserido na banda da deficiência mental moderada.
37.Apresenta dificuldades ao nível da noção do tempo e da distância, imaturidade psicológica e labilidade emocional, o que se traduz na adopção de comportamentos irreflectidos e desadequados do ponto de vista do relacionamento interpessoal.
38. O progenitor é considerado uma pessoa educada, responsável e um bom pai.
39. No seguimento de uma denúncia efectuada pela requerente, no ano de 2013, junto da CPCJ, por alegadas suspeitas de abuso sexual e negligência do requerido relativamente à menor Marisa, este prestou declarações, tendo o processo sido arquivado, por falta de fundamento.
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III-O Direito
Como resulta do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, ex vi do art.º 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 639.º, n.os 1 a 3, 641.º, n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil (C.P.C.), sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem das conclusões que definem, assim, o âmbito e objecto do recurso.
Deste modo, e tendo em consideração as conclusões acima transcritas cumpre:
- decidir se deve ser alterado o regime de visitas nos moldes fixados, em conformidade com o pretendido pelo recorrente.
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No caso sub judice as responsabilidades parentais da menor Marisa foram regulados no sentido de ser confiada a sua guarda aos cuidados do pai, com quem reside habitualmente, com direito de visitas por parte da sua tia materna, como uma forma de garantir a ligação entre a menor e a sua mãe, salvaguardando, também, por essa via, a relação de proximidade afectiva que a liga à tia materna que cuidou dela desde o nascimento como se fosse sua filha, face à debilidade intelectual de que padece a sua mãe biológica, não impeditiva de desenvolver laços de afectividade com a filha.
Ora, o poder paternal traduz-se num conjunto de direitos e obrigações, dirigidos ao cuidado e protecção da criança, visando o seu desenvolvimento harmonioso, considerando-se que o interesse desta deverá nortear a actuação dos pais – cfr. n.º1, do art.º 1878, do CC -, sobrepondo-se aos do próprio progenitor, ainda que legítimos.
Nos termos dos artigos 1911.º e 1912.º do Código Civil, a regulação do exercício das responsabilidades parentais, nos casos em que a filiação se encontre estabelecida em relação a ambos os pais e estes não vivam em condições análogas às dos cônjuges, após o nascimento do menor faz-se, com as necessárias adaptações, de acordo com o disposto nos artigos 1904.º a 1908.º do Código Civil.
Assim, o exercício das responsabilidades parentais faz-se de acordo com o disposto no art.º 1906.º do Cód. Civil e tendo em conta o interesse superior do menor, incluindo o de manter uma relação de proximidade com os dois progenitores.
Por sua vez, a Constituição da República, no artigo 36.º, n.º 6, dispõe que "os filhos não podem ser separados dos pais, salvo quando estes não cumprem os seus deveres fundamentais para com eles e sempre mediante decisão judicial".
De acordo, ainda, com os Princípios de Direito da Família Europeia relativos a Responsabilidades Parentais, o exercício destas não pode ficar prejudicado pela dissociação familiar, relacionando-se a realização do interesse da criança com a observância de dois princípios fundamentais:
a) o desenvolvimento harmónico da criança depende necessariamente de ambos os progenitores, não podendo nenhum deles substituir a função que ao outro cabe;
b) as relações paterno-filiais situam-se a um nível diferenciado do das relações conjugais ou maritais.
Em situações de dissociação familiar, assiste ao outro progenitor o direito de participar no crescimento e educação daqueles, bem como o direito de tê-los na sua companhia, concretizando aquilo que é normalmente designado por “regime de visitas” mas que será mais adequado denominar por “organização dos tempos da criança” ou por “relações pessoais entre o filho e o progenitor não residente”.
Este conceito de relações pessoais abrange, designadamente, o denominado direito de visita (permanência ou simples encontro) mas também toda e qualquer forma de contacto entre a criança e os familiares (incluindo nesta definição toda e qualquer relação estreita de tipo familiar como a existente entre os netos e os avós ou entre irmãos, emergentes da lei ou de uma relação familiar de facto) e abrangendo o direito dos familiares à obtenção de informações sobre a criança (cfr. artigo 2.º, alínea a), da Convenção sobre as Relações Pessoais Relativas às Crianças).
O direito de visitas significa assim o direito do progenitor não residente se relacionar e conviver com a criança como um meio desta manifestar a sua afectividade, de ambos se conhecerem reciprocamente e partilharem os seus sentimentos, as suas emoções, ideias, medos e valores, constituindo mesmo a “essência dos direitos parentais para o progenitor não residente”.
Assim, nos casos de ruptura da unidade familiar, devida a separação dos pais, ou mesmo perante a inexistência daquela realidade, sempre se deverá procurar manter uma relação de proximidade com o progenitor a quem o menor não seja confiado, a não ser que circunstâncias excepcionais o desaconselhem.
Por outro lado, podem configurar-se situações que impõem que se proceda a uma reanálise do que possa ter sido acordado, ou determinado, quando o acordo ou a decisão não sejam cumpridos por ambos os pais, ou por terceira pessoa a quem a criança haja sido confiada, ou quando circunstâncias supervenientes tornem necessário alterar o que estiver estabelecido, nos termos do n.º 1, do artigo 42.º, do RGPTC.
Como potenciador da necessária alteração configura-se o designado Síndrome de Alienação Parental, inicialmente definido por Richard Gardner, em 1985, como um distúrbio que surge principalmente no contexto das disputas pela guarda e confiança da criança, caracterizado por um conjunto de sintomas resultantes do processo (alienação parental) pelo qual um progenitor transforma a consciência do seu filho, mediante diferentes estratégias, com o objectivo de impedir, obstaculizar ou destruir os vínculos da criança com o outro progenitor, até a tornar contraditória em relação ao que devia esperar-se da sua condição - Cfr. José Manuel Aguilar, in Síndrome de Alienação Parental – Filhos manipulados por um cônjuge para odiar o outro, Janeiro de 2008, a fls. 33.
Nesses casos, independentemente do modo como são levadas a cabo, ou da estratégia utilizada, mais ou menos consciencializada, importam sempre num custo que se traduz em danos para a criança, passíveis, em circunstâncias extremadas, de lhe gerar graves patologias de carácter psicológico.
Subjacente estando, de forma mais ou menos acentuada e/ou consciente, o enfraquecimento ou mesmo a eliminação dos laços afectivos com o outro progenitor, compreende-se que seja decisiva a actuação daquele que guarda o menor no sentido de impedir os contactos com o outro, numa tentativa de debilitação dos laços afectivos ainda que saudáveis, e decorrentemente afectando de modo indelével a estruturação do afecto, no entendimento deste como uma estrutura mental estável (cfr. Autor e obra acima citados, a fls. 53, citando John Bowlby).
Na realidade, a quebra procurada, e assim evitável, senão indesculpável, da relação com um dos progenitores, importa necessariamente num empobrecimento, nas múltiplas áreas da vida da criança, caso das interacções, aprendizagens e troca de sentimentos e apoios, mas também, podendo gerar, face à presença ou a possibilidade de aproximação do progenitor não guardador, reacções de ansiedade e angústia, em si igualmente patológicas, produtoras de alterações fisiológicas, nomeadamente nos padrões de alimentação e sono, mas também psicológicas, afectando o desenvolvimento do auto-conceito e da auto-estima (cfr. Autor e obra indicados, a fls. 123).
Reportando-nos aos autos, há que atender ao facto de a progenitora da menor ser uma pessoa que apresenta uma debilidade mental, sendo a tia Sílvia a sua tutora e, assim, o elo de ligação privilegiado entre a mãe e a menor.
Acresce que, como resulta dos factos dados como provados, foi esta tia que cuidou da Marisa, após o seu nascimento, tendo-se criado laços de afectividade entre ambas, e mesmo com o companheiro desta, semelhantes aos da filiação, bem como uma relação de muita proximidade e interacção positiva entre a menor, a mãe e a tia.
Assim, é possível concluir que não só as relações e os momentos de contactos estabelecidos entre a menor e a mãe, a tia e o companheiro desta e respectiva família alargada, devem manter-se, vislumbrando-se como prejudicial cessá-¬los, na medida em que, para além do mais, a menor manifestou vontade na sua manutenção.
Certo é que da prova produzida resulta que ambas as partes lançaram críticas e levaram a cabo verbalizações pouco positivas, de um contra o outro.
Só a hostilidade existente entre as partes tem vindo a obstaculizar a tais contactos da menor com a tia e, por via desta, com a mãe e demais familiares dessa linha materna, o que se entendeu, e bem, ser prejudicial para a menor, tendo em conta a sua vontade expressa, nos termos previstos no art.º 5.º do RGPTC, tal como estavam a ser prejudiciais as visitas supervisionadas, nos moldes que estavam a suceder, por se revelarem não serem salutares e adequadas ao seu desenvolvimento harmonioso.
É certo que a titularidade do poder paternal, ou mais propriamente das responsabilidades parentais (para utilizar já a nova linguagem imposta pelo novo diploma) radica sempre nos progenitores vivos, no pai e na mãe, desde logo por imposição da garantia constitucional da não privação dos filhos plasmada no n.º 6 do art.º 36.º da CRP, que só cede quando os pais não cumpram os seus deveres fundamentais, o que acontece nos casos de inibição (art.º 1915.º do CC) ou de perigo para a segurança, saúde, formação moral e educação dos filhos (art.º 1918.º do CC), caso em que os filhos podem ser confiados a terceira pessoa – cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, “CRP, Anot.”, C.ª E.ª, 2007, pág. 566.
Contudo, a nova redacção conferida ao art.º 1907.º pela cit. Lei n.º 61/08, veio consentir, no seu n.º 1, que haja atribuição a terceira pessoa do exercício das responsabilidades parentais.
Da introdução do art.º 1887.º-A, pelo Dec.-Lei n.º 84/95, de 31 de Agosto, resulta, ainda, a necessidade de salvaguarda de relações familiares não estritamente nucleares, tendo como pressuposto a ideia de que esse relacionamento se traduz numa mais-valia para o desenvolvimento psico-social e educacional dos menores.
Por referência ao regime do direito de visita regulado no «REGULAMENTO (CE) N.º 2201/2003 DO CONSELHO de 27 de Novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.º 1347/2000» (Regulamento Bruxelas II bis), é referido em MARINHO, Carlos M G de Melo, Textos de Cooperação Judiciária Europeia em Matéria Civil e Comercial, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, págs. 63 e 64, que: «As regras fixadas no Regulamento, incidentes sobre esta temática, aplicam-se a qualquer tipo de exercício do direito de visita, com abstracção da pessoa do seu beneficiário (abrangendo, pois, por exemplo, os avós e terceiros). A sua concretização prescinde de qualquer forma de exercitação tarifada (…)», tal como resulta dos n.ºs 7 e 8 do art. 2.º de tal normativo.
Quis-se, por esta via, deixar aberta a porta a todas as formas de concretização e tutela dos interesses dos menores, sempre com a noção subjacente de que a realidade é mais rica que a norma e que, aqui, se busca a tutela do superior interesse da criança a um nível que é o único susceptível de emprestar sentido e coerência a essa noção e que afasta qualquer legalismo ou predomínio da forma sobre a adequação da decisão ao facto, equidade e justiça.
O superior nível hierárquico do regime de Direito Europeu – aplicável a título directo e imediato em Portugal ainda que apenas em situações de relevo transfronteiriço – bem como o seu tempo de surgimento, inculcam a noção de que deve ser-lhe atribuído o valor de referencial e elemento de aferição da vontade actualizada do legislador – sendo que Portugal participou activamente nas respectivas negociações, sem que se possa esquecer, para além do mais, que se está perante um processo de jurisdição voluntária o que nos remete para o disposto no Artigo 1410.º do Código de Processo Civil, onde se prevê que «Nas providências a tomar o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adoptar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna.».
Desse princípio deve buscar-se a melhor solução, norteada pelo superior interesse da criança.
É ele que deve orientar o julgador, que sempre curará por encontrar a solução que – não só objectivamente mas também à «luz» dos afectos, do grau de desenvolvimento psíquico, da percepção da distinta dimensão do tempo da infância e dos efeitos dos dias no estádio de desenvolvimento do menor concreto – lhe construa, à medida exacta desses elementos e das suas necessidades, um universo em que possa rever-se, encontrar-se e crescer em plenitude.
Ora, in casu, foi proferida decisão que aplicou em benefício da menor a medida de apoio junto de outro familiar, ficando aquela à guarda e cuidados da sua tia materna, a quem foi atribuída a confiança da menor e os inerentes poderes ao exercício do poder parental, pelo que, quando saiu de casa da avó, onde vivia juntamente com a mãe da menor e outros irmãos, e passou a viver num apartamento juntamente com o seu companheiro, levou a menor Marisa consigo, só, por decisão judicial proferida em 31-08-2012, no âmbito do processo respeitante à ¬Alteração das Responsabilidades Parentais, tendo sido atribuída a guarda da Marisa ao progenitor, com quem esta reside habitualmente e que exerce as responsabilidades parentais da menor, sendo fixado um regime de visitas a favor da tia materna,
Acontece que, a tia Sílvia e o seu companheiro, bem como a progenitora tem mantido contactos com a Marisa apenas na habitação do progenitor, semanalmente, numa visita que ocorre no final da tarde dos dias de terça¬-feira e sob supervisão deste, o que não se mostra adequado ao salutar e harmonioso desenvolvimento emocional da menor.
Assim, tendo em conta que a menor demonstra grande afectividade para com a mãe, tia e o seu companheiro e demais família materna, e que a sua progenitora apresenta um défice cognitivo notório, com um nível intelectual inserido na banda da deficiência mental moderada, apresentando dificuldades ao nível da noção do tempo e da distância, imaturidade psicológica e labilidade emocional, o que se traduz na adopção de comportamentos irreflectidos e desadequados do ponto de vista do relacionamento interpessoal que obsta ao exercício pleno das suas responsabilidades maternais, assumidas pela sua tia desde que nasceu até à guarda paterna, é de todo o interesse da menor, face aos laços criados e afectividade existente, que essa ligação à família da mãe, e à mãe, por via da tia, se mantenham, por forma a assegurar o seu desenvolvimento salutar e o mais equilibrado possível.
Como tal, tendo em conta a factualidade apurada, inviável se torna o pretendido pelo recorrente, quanto aos contactos se restringirem a visitas da mãe e avó, quando não foi esta quem assegurou os cuidados e guarda da menor após o seu nascimento, mas sim a sua tia, para além de não se revelar do interesse da menor que as visitas ocorram na casa do pai, com quebra da ligação à tia e demais família materna.
Necessário se torna que, quer o pai, quer a tia, percebam que o nível de conflitualidade existente entre eles, em nada contribui para o bem estar da menor, antes constitui uma grave perturbação ao seu desenvolvimento que se quer equilibrado, sem que a instrumentalização de que a menor está a ser alvo, possa ser premiada, por via do afastamento da mesma à tia, por quem foi criada, e com quem a menor manifesta vontade de continuar a conviver, por mais que isso possa não agradar ao recorrente.
Tudo ponderado, considera-se que a fixação do regime de visitas estabelecido pelo tribunal a quo, com as alterações introduzidas, se mostra o mais adequado e equilibrado ao interesse da menor e às especificidades concretas da situação sub judice, sendo, por isso, de manter.
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IV - Decisão
Pelo exposto, nos termos supra referidos, os juízes da 2ª secção cível, deste Tribunal da Relação de Guimarães acordam em julgar a apelação interposta totalmente improcedente.
Custas pelo recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe tenha sido concedido.
Notifique.
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TRG, 10.11.2016
(O presente acórdão foi elaborado em processador de texto pela primeira signatária)
Maria dos Anjos S. Melo Nogueira
Desembargador José Carlos Dias Cravo
Desembargador António Manuel Antunes Figueiredo de Almeida