Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
121/15.5T9BRG.G1
Relator: AUSENDA GONÇALVES
Descritores: JUNÇÃO DE DOCUMENTO
DESPACHO DE INDEFERIMENTO
RECORRIBILIDADE
FALSO TESTEMUNHO
VIOLAÇÃO DO DISPOSTO NO ARTº 340.º
DO CPP
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/07/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO PROCEDENTE
Sumário: I. O artigo 340º do CPP estabelece os princípios gerais em matéria de produção de prova na audiência, consagrando o princípio da investigação ou da oficialidade: serão produzidos os meios de provas não proibidos por lei, cujas indispensabilidade e utilidade para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa se confirmem em função do objecto do processo e daí que nos números 3 e 4 do preceito se estipulem os pressupostos da rejeição da produção de prova (ou do respectivo meio), da sua ponderação como irrelevante ou supérflua, da sua inadequação notória, da impossibilidade ou discutibilidade da sua obtenção ou da finalidade meramente dilatória do respectivo pedido.
II. A orientação que melhor se ajusta aos princípios que subjazem à impugnação das decisões judiciais, em geral, e, em particular, à natureza da decisão do tribunal sobre a produção de prova ao abrigo do art. 340º do CPP, designadamente com o fundamento de que foi proferida fora das condições legais, é a da sua recorribilidade, posto que a inadmissibilidade desta não está prevista (art. 399º do CPP) nem se trata de um despacho de mero expediente.
III. Na verdade, a admitir-se que em vez de se recorrer de tal decisão se pudesse dela reclamar, como sustenta a tese de que a violação do disposto naquele art. 340º só pode originar uma nulidade sanável, a enquadrar na alínea d), do nº 2, do art. 120º do dito código e sujeita ao regime de arguição previsto no nº 3 do mesmo artigo, isso representaria que se poderia pedir ao juiz que a desse sem efeito por causa dum alegado erro cometido quanto aos factos ou aos respectivos pressupostos de direito, ou seja, que, fora dos casos previstos na lei, alterasse ou revogasse a sua própria decisão, contra o consagrado princípio de que, proferida a decisão, fica esgotado o poder jurisdicional do julgador relativamente ao respectivo objecto e contra a tradicional máxima «das nulidades reclama-se e dos despachos recorre-se».
IV. O crime de falso testemunho é um crime de perigo abstracto e de mera actividade, sendo praticado por quem assuma uma das qualidades mencionadas no citado normativo, razão pela qual a conduta típica esgota-se na prestação do depoimento falso, sem que a lei exija qualquer resultado (e quando o faz é como circunstância agravante).
V. O bem jurídico protegido pelo crime de falsidade é a administração da justiça como função do Estado, traduzindo o interesse público na obtenção de declarações conformes à verdade no âmbito de processos judiciais (ou análogos), pelo que ocorrerá a sua lesão sempre que tal não se verifique, preenchendo, necessariamente, o respectivo tipo objectivo a testemunha que, sobre a mesma realidade, preste num processo dois depoimentos substancialmente antagónicos, ainda que não se apure se um deles – ou, eventualmente, ambos – é falso, uma vez que o fundamento do ilícito é a própria declaração falsa, independentemente da sua efectiva influência na decisão (resultado) e não subsistem dúvidas de que a testemunha prestou mesmo, pelo menos, um depoimento falso.
VI. Nesse conspecto, a demonstração do acto que integrou o falso depoimento apenas releva para a determinação da data do facto e, por isso, do momento da consumação do crime, mas a certeza dessa data, dada a ausência de dúvidas sobre a realização do ilícito típico, não é requisito necessário ao seu preenchimento, embora possa ter reflexos, em concreto, quanto a um dos pressupostos da punibilidade, como é o da não extinção do procedimento por prescrição, ou da actuação da agravante prevista no nº 3 do artigo 360º do CP, eventualidades que terão de ser solucionadas com a intervenção do princípio in dubio pro reo.
Decisão Texto Integral:





Tribunal da Relação de Guimarães
Secção Penal

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Tribunal da Relação de Guimarães
Secção Penal



Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

No processo comum singular nº 121/15.5T9BRG da Instância Local Criminal, da Comarca de Braga, a arguida Sofia A. foi condenada pela prática de um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo art. 360º, nº 1, do C. Penal, na pena de um ano de prisão, suspensa na sua execução por igual período, condicionada ao pagamento da quantia de € 1000 à Santa Casa …, em dez prestações mensais, iguais e sucessivas, no valor de € 100 cada uma, vencendo-se a primeira no prazo de trinta dias a contar do trânsito em julgado da sentença e as restantes em igual dia dos meses subsequentes, devendo a arguida fazer prova do pagamento mediante a junção do recibo correspondente no prazo de dez dias.

No decurso da audiência de julgamento, a arguida, após a sua audição, requereu, através do seu mandatário, a junção aos autos de cinco documentos, ao abrigo do disposto no art. 340º, do CPP, invocando a sua necessidade para a descoberta da verdade e justificando a junção tardia pelo facto de tais documentos se encontrarem em poder de um terceiro.
O Sr. Juiz indeferiu o requerimento, invocando a alínea a), do nº 4, do art. 340º, do CPP, por considerar ser notório que os documentos em causa já poderiam ter sido juntos, atendendo às respectivas datas e a que a arguida deduzira contestação escrita, e que os mesmos não têm interesse para a decisão da causa, por se estar a julgar factos de 20/5/2013, suficientemente determinados na acusação.
Inconformada, a arguida, a fls. 171 e seguintes, interpôs recurso desse despacho, com a motivação que se segue:
«1. Em audiência de julgamento, a Arguida invocou ter em sua posse documentos que atestavam a veracidade das declarações que em fase de inquérito subscreveu
2. Vertidas no “AUTO DE INQUIRIÇÃO DE TESTEMUNHA (página 2)”, constante de fls. 58 e 59 do processo,
3. Em concreto: “… quem gere a empresa S…, Lda, ou seja, quem emite cheques, quem trata com clientes, fornecedores e bancos, respondeu que é a sócia gerente, Maria L..”
4. Com efeito, a Arguida asseverou possuir cheques sacados pela empresa S..., Lda, subscritos por Maria L.,
5. Contratos celebrados com fornecedores assinados por Maria L. em nome e representação daquela, na qualidade de gerente,
6. E um requerimento de pedido de pagamento em prestações de impostos apresentado no serviço de finanças de Braga, em nome da sociedade S..., Lda.
7. Na sequência das suas declarações, a defesa da Arguida requereu a junção aos autos desses documentos em poder daquela, alegando a sua importância para o apuramento da verdade material, dado confirmarem as declarações prestadas pela arguida,
8. Ao abrigo do princípio da verdade material contido no n.º 1 do artigo 340.º do C.P.P.,
9. Justificando a junção tardia na circunstância de se encontrarem em poder de terceiro, que apenas os disponibilizou na data do julgamento.
10. O Meritíssimo Juiz a quo proferiu despacho, não admitindo a junção dos documentos requerida, com fundamento na sua apresentação tardia,
11. E carência de interesse para a verdade material,
12. Indeferindo o requerimento de produção de meios de prova suplementares, estribando-se na alínea a) do n.º 4 do artigo 340.º do C.P.P.
13. Sucede que o requerimento da Arguida, de junção de cheques assinados pela pessoa que afirmou ser a gerente, contratos e documento por tal pessoa subscritos em nome da sociedade em causa nos autos, inclusivamente um requerimento dirigido à Autoridade Tributária, reveste-se de crucial importância para a defesa da arguida e boa decisão da causa.
14. Na verdade, a admissão e valoração daqueles documentos demonstra que a pessoa identificada no depoimento da Arguida como sendo a gerente da sociedade – Maria L. – levou a cabo, ao longo do tempo, a prática reiterada de atos típicos de gerência, exteriorizada junto de fornecedores, da banca e mesmo da administração fiscal,
15. Todos e cada um deles correspondentes aos exemplos constantes no auto de declarações atribuído à Arguida, acima identificado.
16. Face ao exposto, não se conforma a Arguida com a posição expressa no douto despacho em crise, que os apoda de irrelevantes,
17. Quando é manifesto que, pelo contrário, os documentos cuja junção recusou, confirmam, na íntegra, cada ato de gerência mencionado naquele mesmo depoimento que, não obstante, a sentença vem a final reputar de claramente falso.
18. Ora, não aceita a Arguida que documentos que atestam a veracidade das circunstâncias fácticas por si aludidas no seu depoimento sejam desprezados pelo Tribunal como irrelevantes e extemporâneos,
19. Quando este se funda naquelas declarações para a condenação, dando como provado que aqueles factos não ocorreram
20. E que o depoimento da Arguida em contrário corresponde a uma mentira e ao cometimento do crime de falsidade de testemunho.
21. Ora, a circunstância dos ditos documentos cuja junção foi recusada, atestarem a prática, pela pessoa identificada no depoimento da Arguida como gerente, das condutas aí descritas, reveste, para a defesa da Arguida carácter absolutamente imprescindível, enquanto demonstração de que os factos narrados na sua declaração efetivamente tiveram lugar.
22. Aliás, só a prova documental recusada pelo Tribunal tem a virtualidade de demonstrar que os dois documentos autênticos em que assenta a acusação (certidão da sentença proferida no processo n.º 130/13.9IDBRG e o auto de declarações de testemunha) não contêm declarações desconformes com o sucedido.
23. Assim, existe contradição insanável do tribunal a quo, quando o que está em causa é saber se os atos praticados por determinada pessoa na qualidade de gerente ocorreram,
24. Vindo a concluir na sentença que não ocorreram, por isso condenando a arguida como mentirosa,
25. Quando, previamente, o Tribunal obstaculizou à defesa a junção de documentos que provam precisamente o contrário: que a pessoa era gerente, praticou os atos de gerência descritos e que assim a Arguida não mentiu.
26. Nem se diga, como faz o douto despacho em crise, que há disparidade temporal entre as datas dos documentos e o momento da prática do alegado crime julgado no outro processo,
27. Quando o que aqui interessa é saber se a Arguida mentiu porque a pessoa por ela identificada, Maria L., não era gerente, nem praticou os atos de gerência descritos.
28. Na verdade, o questionado à Arguida no inquérito onde se diz ter mentido e por cujas declarações está condenada, foi: “Perguntado quem gere a empresa…”
(sic) - questão formulada no presente do indicativo - sem qualquer delimitação ou âmbito temporal.
29. Pelo exposto, não é verdade, com o devido respeito, o que consta do douto despacho em crise, quando afirma que a acusação circunscreve o objeto do processo,
30. Quando esta apenas refere as datas dos dois depoimentos da aqui Arguida, em nenhum local reportando ao momento em que alegadamente as pessoas visadas nesses depoimentos eram ou não gerentes.
31. Como tal, o douto despacho em crise, faz interpretação errada do normativo constante do artigo 340.º, n.º 4, alínea a) do C.P.P.,
32. Gravemente prejudicial à defesa, na medida em que impossibilita a descoberta de uma das possíveis decisões de direito (a que conduziria à absolvição da Arguida),
33. Negando-lhe, no essencial, a produção de prova documental,
34. Quando o Tribunal está ciente, como consta da sentença condenatória, que o peso inapelável dos documentos oriundos de autos judiciais que acompanham a acusação dificilmente poderiam ser contrariados por depoimentos da arguida ou prova testemunhal,
35. Restando-lhe como única alternativa credível, a demonstração fáctica do sucedido através de documentos que atestassem a veracidade das afirmações proferidas,
36. O que, incompreensivelmente, o Tribunal a quo não permitiu,
37. Pelas razões formais e esvaziadas de sentido que o despacho em crise revela.
38. Desta forma, aquele despacho negou à Arguida o acesso pleno a uma defesa efetiva e substancial em processo penal,
39. Vedando-lhe, injustificadamente, a produção de prova, que abonava a sua versão dos acontecimentos,
40. Dessa forma lesando direitos, liberdades e garantias fundamentais, com expressão no texto constitucional, diretamente aplicáveis sem necessidade de qualquer intervenção ou intermediação de qualquer género,
41. Pelo que o despacho está ferido de morte, devendo ser substituído por outro que admita e valore os documentos cuja junção se recusou.
42. O despacho recorrendo viola o direito de acesso ao tribunal, previsto no artigo 20.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa,
43. O direito às garantias de defesa, incluindo a garantia de recurso, o direito à igualdade de armas, o direito ao contraditório, ao abrigo do artigo 32.º da C.R.P.,
44. Consubstanciados no artigo 340.º, n.º 1 e n.º 4, al. a) do C.P.P., uma vez que o poder vinculado do tribunal acerca da admissibilidade de meios de prova suplementares se deve subordinar ao critério da descoberta da verdade material e da boa decisão da causa,
45. No que se compreende a junção de documentos que atestem factos simétricos aos da acusação, mas de sentido oposto,
46. Cuja essencialidade é ostensiva e inequívoca uma vez que daí poderia resultar a absolvição da arguida.
47. Logo, o douto despacho não pode manter-se, por parcial, face à tese da acusação e por restritivo, face às garantias de defesa.
48. Ao atingir o núcleo essencial dos supra citados direitos, liberdades e garantias fundamentais, previstos na C.R.P., diretamente aplicáveis ex vi artigo 18.º,
49. É o mesmo despacho inconstitucional e de nenhum efeito.
50. Acresce que, face ao gravíssimo vício de que padece, a invocação da ilegalidade e inconstitucionalidade de que o mesma enferma, não carece de qualquer requisito ou arguição preliminar, sendo invocável direitamente em sede de recurso.
51. Neste sentido, o recentíssimo acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 7/10/2015, tirado no processo n.º 174/13.0GAVZL.C1, acessível emwww.itij.pt: «I - O meio processualmente adequado para reagir contra despacho que, no decurso da audiência de discussão e julgamento, indefere diligência de prova requerida, expressa ou implicitamente, ao abrigo do artigo 340.º do CPP, é o recurso, e não a arguição da nulidade prevista no artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do mesmo diploma legal.».

O Ministério Público, em 1ª instância, pronunciou-se no sentido de ser indeferido o mencionado recurso, argumentando que os documentos em causa não são essenciais para a decisão da causa e, a entender-se que, os mesmos são importantes para a decisão da causa, estar-se-ia perante uma omissão que nos termos da alínea d), do nº 2, do art. 120º do CPP, integraria uma nulidade dependente de arguição, e que neste momento se mostra sanada. Nesta Instância, a Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta emitiu fundamentado parecer, em que se pronunciou pela admissibilidade do recurso e pugnou pela revogação da decisão recorrida, por violação do disposto no art. 340º do CPP, porque apenas podem ser indeferidos meios de prova proibidos por lei ou se for notório que não sejam indispensáveis para a descoberta da verdade e boa decisão da causa.
Foi cumprido o art. 417º, nº 2, do CPP, sem que houvesse resposta

A arguida também interpôs recurso da sentença, formulando na sua motivação as seguintes conclusões:
«1. A douta decisão proferida procede a errada apreciação da prova e aplicação do Direito aos factos,
2. Padece de nulidade por excesso de pronúncia e alteração substancial dos factos,
3. E condena a Arguida em pena de prisão violenta e injustificada, assente em pressupostos que não se verificam,
4. Sem que à sua aplicação subjazam reais exigências de prevenção, que o Tribunal funda em errada apreciação de prova,
5. Apartando-se assim da necessidade da pena, que sempre excederia largamente a culpa da Arguida.
6. A acusação não contém a mínima referência aos concretos factos falsos que integram um dos depoimentos da Recorrente alegadamente incompatíveis,
7. Nem no segmento transcrito, nem em qualquer outro daquele libelo.
8. Com efeito, é impossível extrair da narração da acusação, na sua integralidade, dados suficientes quanto ao recorte factual que a Recorrente alegadamente manipulou intencionalmente, faltando à verdade.
9. Não se compreende o facto dado como provado na sentença, na alínea g) da fundamentação de facto, quando consigna: "... mais sabendo que prestava depoimento falso em sede de inquérito e que o conteúdo do mesmo não correspondia à verdade."
10. Na realidade, este acrescento do Meritíssimo Juiz a quo não tem qualquer respaldo na acusação nem na prova produzida em audiência de julgamento.
11. As declarações prestadas pela recorrente não autorizam esta asserção,
12. O depoimento da testemunha da acusação é absolutamente alheio e omisso a este respeito,
13. E nem o cotejo de todas as certidões provenientes do processo n." 130/13.9IDBRG viabiliza a inclusão de tal considerando na matéria de facto provada.
14. Ora, o aditamento feito na sentença de que a recorrente sabia estar a prestar falsas declarações em sede de inquérito, sem amparo no texto da acusação nem na prova produzida,
15. Nem naqueloutra requerida pela recorrente e que o Juiz a quo impediu a produção, indeferindo o requerimento de junção de documentos,
16. Tem um alcance decisivo e determinante da condenação da recorrente no crime por que vem acusada, bem como na concreta escolha e medida da pena que o Tribunal lhe fixou.
17. Com efeito, é conhecida a orientação jurisprudencial deste Venerando Tribunal ad quem quanto a perfilhar a conceção objetiva do crime de falsidade de depoimento,
18. Exigindo para o preenchimento do tipo legal do crime em alusão nos autos, na esteira da melhor doutrina nacional e germânica, a identificação do facto-histórico concreto que o agente de forma intencional alterou quando prestou depoimento em processo criminal.
19. Pelo que o salto lógico que é dado no ponto da matéria de facto provada acima referido, constante da alínea g), é abusivo, inesperado e ilegal,
20. Convertendo a decisão numa verdadeira decisão-surpresa, uma vez que a Arguida não podia contar com aquele tema da prova, omisso na acusação.
21. Ora, o tribunal a quo para aperfeiçoar ou completar a matéria da acusação, teria sempre, no mínimo de notificar a Arguida da alteração dos factos constantes do libelo acusatório originário, deferindo-lhe prazo para organização da defesa, ao abrigo do disposto nos artigos 358.° e 359.° do C.P.P., o que não fez.
22. Não é tolerável que a acusação omita esse ponto essencial do alegado cometimento do crime de falsidade de testemunho, nada dizendo quanto a qual dos dois depoimentos ser o falso,
23. Que toda a produção de prova autorizada pelo tribunal (menos a indeferida à arguida) se alheie desse facto de capital importância,
24. Para depois, na sentença, o tribunal recorrido, sem peias nem pré-aviso, venha a escolher qual deles é falso, condenando a arguida.
25. Pelo exposto, quando dá por provado que a arguida sabia estar a prestar falso depoimento quando foi ouvida no inquérito, a douta sentença em crise exorbita manifestamente do objeto da acusação,
26. Que não alude ao concreto facto inverídico relatado pela arguida, nem o momento processual em que a alegada versão mentirosa terá sido comunicada,
27. Incorrendo assim em excesso de pronúncia e em alteração substancial dos factos, enfermando de nulidade nos termos das alíneas b) e c) do n." 1 do artigo 379.° do C.P.P.
28. Por outro lado, afigura-se que o Meritíssimo Juiz a quo incorre em erro de interpretação e apreciação de prova quando, na alínea d) dos factos provados dá por assente que a arguida, em audiência de julgamento no processo n." 130/13.9IDBRG, "quando questionada sobre a gerência da sociedade, respondeu que era o marido da D. Luísa que tratava de todas as questões da empresa ... "
29. Na realidade, só uma leitura truncada ou apressada das declarações da arguida, vertidas na transcrição de folhas 72 e 73 destes autos, poderá explicar tal conclusão, de cimeira importância no desfecho infeliz deste processo.
30. Não se conforma a Arguida com a seleção das suas declarações, descontextualizando-as, amputando todas as referências expressas, diretas e inequívocas ao exercício da gerência por parte de Maria L..
31. Aliás, é inaceitável que a douta sentença condenatória em crise se baste com conceitos de direito como a dicotomia gerente de direito/gerente de facto, importada do direito tributário,
32. Desprezando os concretos atos de representação e vinculação da pessoa coletiva societária perante terceiros, suscetíveis de exteriorizar publicamente a vontade da sociedade,
33. Incompreensivelmente recusando a junção de documentos que as atestariam sem margem para dúvidas (cheques, contratos, requerimentos à Fazenda, assinados pela gerente).
34. Impedindo-a de provar que essa não era a realidade histórica.
35. O pré-juízo, assente na aparente contradição do declarado pela Arguida em dois momentos temporais diferenciados, levou o Tribunal a concluir que esta agiu com dolo direto, sem, no entanto, em momento algum, explicitar em que se traduziu grau de culpa tão gravoso.
36. Ora, só uma apreciação superficial dos depoimentos, truncados, descontextualizados, centrada em conceitos de direito e não nos concretos factos demonstrativos do sucedido permite concluir como faz a douta sentença, pela frontal e clara contradição entre as declarações que prestou em sede de inquérito e as declarações que prestou em sede de julgamento.
37. Afronta a prova produzida em audiência de julgamento a afirmação na sentença de que "... a arguida manteve neste julgamento que quem geria de facto a sociedade era o marido da arguida."
38. A arguida relatou tão só que tudo tratava com o marido no período em que a Maria L. esteve doente, situação de doença incapacitante, do foro oncológico, que a arguida tentou demonstrar por documento, e que foi também ele enjeitado pelo Meritíssimo Juiz.
39. A sentença, toldada pela apreciação seletiva das declarações da arguida vai tão longe quanto afirma que a conduta da arguida terá sido decisiva para a não perseguição do ex-marido da Maria L. e pela absolvição desta do crime de abuso de confiança fiscal de que vinha acusada.
40. Trata-se de uma conclusão abusiva frontal e claramente desmentida pela simples leitura atenta e completa da certidão da sentença proferida em tal processo.
41. Quanto à questão de investigar e acusar o ex-marido da Maria L., a testemunha Pedro M., inspetor tributário depôs, referindo" ... que durante a ação inspetiva, falou com um senhor que seria marido da gerente (sic) e que esta estaria doente, deixando implícito que este "teria alguma coisa a ver com a sociedade, facto que não explorou."
42. O abandono desta linha investigatória é assim da exclusiva responsabilidade do titular do inquérito em causa, nunca da Arguida.
43. Quanto à alegada essencialidade do depoimento da arguida na absolvição da Maria L. como arguida do crime de abuso de confiança fiscal, resulta da sentença, ao invés, que a questão essencial "... que determinou a absolvição daquela e também da sociedade arguida foi não se terem provado factos integradores do crime de abuso de confiança fiscal que vem imputado às arguidas. Com efeito ... não há prova de que a sociedade tenha efetivamente recebido o valor de IV A liquidado, relativamente ao 1.0 Trimestre de 2011."
44. Eis a verdadeira causa da absolvição da arguida Maria L..
45. Em conformidade, não foi a conduta da recorrente que determinou qualquer afetação ao bem jurídico da administração da justiça,
46. Como também não foram quaisquer depoimentos da recorrente que Visaram beneficiar ou prejudicar a Maria L. ou o ex-marido.
47. Em rigor, não poderia exigir-se à arguida ora recorrente que pormenorizasse quando e como cada um dos gerentes desta sociedade exerceram tal cargo, quando pela simples consulta da certidão da Conservatória do Registo Comercial respetiva se constata que além da Maria L. e seu ex-marido, em mais de uma ocasião, isolada, ou conjuntamente, foram ainda gerentes, outras pessoas da família daqueles.
48. Tudo somado, afigura-se que, por resultar de documentos de fácil leitura e apreensão, bem como das regras da experiência comum, ocorre erro notório na apreciação da prova, nos termos da alínea c) do n." 2 do artigo 410.° do C.P.P.
49. Acresce que a douta sentença em crise, no que toca à demonstração da verificação do elemento subjetivo do crime em causa, considerou haver dolo direto da arguida porque esta "agiu livre, voluntária e conscientemente, depondo falsamente, bem sabendo que a sua conduta era jurídico-penalmente proibida."
50. Sucede que a demonstração tautológica de fórmulas sacramentais, esvaziadas de conteúdo fáctico ligado à realidade, desligado de qualquer concreta vontade expressa e exteriorizada da arguida, nada vale.
51. Nem se afirme que a referência genérica e indiferenciada "à matéria de facto dada como provada" é suficiente para explicitar o dolo direto e em consequência condenar a arguida em pena de prisão.
52. A arguida em momento algum figurou ou intencionou promover a fuga à justiça da Maria L. ou do seu ex-marido, citando-a como gerente a ela, e a ele como seu substituto temporário e especificando a sua ligação às questões da contabilidade.
53. Pelo que não se compreende como a douta sentença trata a arguida com uma severidade inusitada e manifestamente excessiva nos seus termos e considerandos, e, sobretudo, nas consequências.
54. A condenação da arguida em pena privativa da liberdade, sem qualquer justificação pela preferência desta em desabono da pena de multa - quando aquela, mesmo na tese da acusação que se não aceita, cumpriria integralmente as necessidades de prevenção geral e especial do caso - constitui violência inaudita,
55. Mais a mais porquanto o Tribunal fundamenta tal escolha nas necessidades de prevenção que considera elevadas, " ... por terem as declarações da arguida sido determinantes para a dedução de acusação contra a Maria L. e não cumulativamente ou alternativamente contra o seu marido."
56. Sucede que a sentença recorrida labora em manifesto erro por não ter sido essa a causa da absolvição, mas antes a falta de demonstração do recebimento pelas arguidas do imposto!
57. Não se aceita que se diga na douta sentença, que abona em desfavor da arguida a "ausência de qualquer arrependimento" uma vez que tal faz supor que apenas a singela confissão dos factos constantes da acusação apaziguaria o Meritíssimo Juiz a quo.
58. É que ao negar a junção de documentos requeridos pela Arguida em audiência de julgamento, designadamente cheques, contratos e requerimento dirigido à Fazenda Pública, subscritos por Maria L. obstaculizou de forma inadmissível, direitos, liberdades e garantias fundamentais da Arguida.
59. Com efeito, a circunstância dos ditos documentos cuja junção foi recusada, atestarem a prática, pela pessoa identificada no depoimento da Arguida como gerente, das condutas aí descritas, reveste, para a defesa da Arguida caráter absolutamente imprescindível, enquanto demonstração de que os factos narrados na sua declaração efetivamente tiveram lugar.
60. Aliás, só a prova documental recusada pelo Tribunal tem a virtualidade de demonstrar que os dois documentos autênticos em que assenta a acusação (certidão da sentença proferida no processo n." 130/13.9IDBRG e o auto de declarações de testemunha) não contêm declarações desconformes com o sucedido.
61. Assim, existe contradição insanável do tribunal a quo, quando o que está em causa é saber se os atos praticados por determinada pessoa na qualidade de gerente ocorreram,
62. Vindo a concluir na sentença que não ocorreram, por isso condenando a arguida como mentirosa,
63. Quando, previamente, o Tribunal obstaculizou à defesa a junção de documentos que provam precisamente o contrário: que a pessoa era gerente, praticou os atos de gerência descritos e que assim a Arguida não mentiu.
64. Nem se diga, como faz o douto despacho em crise, que há disparidade temporal entre as datas dos documentos e o momento da prática do alegado crime julgado no outro processo,
65. Quando o que aqui interessa é saber se a Arguida mentiu porque a pessoa por ela identificada, Maria L., não era gerente, nem praticou os atos de gerência descritos.
66. Na verdade, o questionado à Arguida no inquérito onde se diz ter mentido e por cujas declarações está condenada, foi: "Perguntado quem gere a empresa ... " (sic) - questão formulada no presente do indicativo - sem qualquer delimitação ou âmbito temporal.
67. Pelo exposto, não é verdade, com o devido respeito, o que consta do douto despacho em crise, quando afirma que a acusação circunscreve o objeto do processo,
68. Quando esta apenas refere as datas dos dois depoimentos da aqui Arguida, em nenhum local reportando ao momento em que alegadamente as pessoas visadas nesses depoimentos eram ou não gerentes.
69. Como tal, o douto despacho em crise, faz interpretação errada do normativo constante do artigo 340.°, n." 4, alínea a) do C.P.P.,
70. Gravemente prejudicial à defesa, na medida em que impossibilita a descoberta de uma das possíveis decisões de direito (a que conduziria à absolvição da Arguida),
71. Negando-lhe, no essencial, a produção de prova documental,
72. Quando o Tribunal está ciente, como consta da sentença condenatória, que o peso inapelável dos documentos oriundos de autos judiciais que acompanham a acusação dificilmente poderiam ser contrariados por depoimentos da arguida ou prova testemunhal,
73. Restando-lhe como única alternativa credível, a demonstração fáctica do sucedido através de documentos que atestassem a veracidade das afirmações proferidas,
74. O que, incompreensivelmente, o Tribunal a quo não permitiu,
75. Pelas razões formais e esvaziadas de sentido que o despacho em crise revela.
76. Desta forma, aquele despacho negou à Arguida o acesso pleno a uma defesa efetiva e substancial em processo penal,
77. Vedando-lhe, injustificadamente, a produção de prova, que abonava a sua versão dos acontecimentos,
78. Dessa forma lesando direitos, liberdades e garantias fundamentais, com expressão no texto constitucional, diretamente aplicáveis sem necessidade de qualquer intervenção ou intermediação de qualquer género,
79. Pelo que o despacho está ferido de morte, devendo ser substituído por outro que admita e valore os documentos cuja junção se recusou.
80. O despacho recorrendo viola o direito de acesso ao tribunal, previsto no artigo 20.°, n." 1 da Constituição da República Portuguesa,
81. O direito às garantias de defesa, incluindo a garantia de recurso, o direito à igualdade de armas, o direito ao contraditório, ao abrigo do artigo 32.° da C.R.P.,
82. Consubstanciados no artigo 340.°, n." 1 e n." 4, aI. a) do C.P.P., uma vez que o poder vinculado do tribunal acerca da admissibilidade de meios de prova suplementares se deve subordinar ao critério da descoberta da verdade material e da boa decisão da causa,
83. No que se compreende a junção de documentos que atestem factos simétricos aos da acusação, mas de sentido oposto,
84. Cuja essencialidade é ostensiva e inequívoca uma vez que daí poderia resultar a absolvição da arguida.
85. Logo, o douto despacho não pode manter-se, por parcial, face à tese da acusação e por restritivo, face às garantias de defesa.
86. Ao atingir o núcleo essencial dos supra citados direitos, liberdades e garantias fundamentais, previstos na C.R.P., diretamente aplicáveis ex vi artigo 18.°,
87. É o mesmo despacho inconstitucional e de nenhum efeito.
88. Acresce que, face ao gravíssimo vício de que padece, a invocação da ilegalidade e inconstitucionalidade de que o mesma enferma, não carece de qualquer requisito ou arguição preliminar, sendo invocável direitamente em sede de recurso.
89. Neste sentido, o recentíssimo acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 7/l0/2015, tirado no processo n." 174/13.0GAVZL.C1, acessível em www.itij.pt: «I - O meio processualmente adequado para reagir contra despacho que, no decurso da audiência de discussão e julgamento, indefere diligência de prova requerida, expressa ou implicitamente, ao abrigo do artigo 340.° do CPP, é o recurso, e não a arguição da nulidade prevista no artigo 120.°, n." 2, alínea d), do mesmo diploma Iegal.»

O Ministério Público respondeu ao recurso interposto da sentença, pugnando pela sua parcial procedência, na parte respeitante à alteração dos factos constantes da acusação, mais concretamente no segmento em que se deu como provado que a arguida sabia que prestava depoimento falso em sede de inquérito, constituindo tal realidade uma alteração não substancial dos factos que não foi devidamente comunicada à arguida, geradora da nulidade a que alude a alínea b, do nº 1, do art. 379º, do CPP.
Neste Tribunal, a Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta não se pronunciou quanto a este recurso.
*
Na medida em que o âmbito dos recursos se delimita pelas respectivas conclusões (arts. 403º e 412º, nº 1, do CPP), sem prejuízo das questões que importe conhecer oficiosamente, por obstarem à apreciação do seu mérito, suscitam-se nestes recursos as questões de saber se:
1ª- O despacho de indeferimento da junção de documentos é recorrível e se, na afirmativa, deve ser revogado por não estar demonstrada a dispensabilidade de tais meios de prova para a descoberta da verdade e boa decisão da causa;
2ª - A sentença está afectada de nulidade por excesso de pronúncia e alteração substancial dos factos descritos na acusação;
3ª - A acusação não contém qualquer referência aos concretos factos falsos que integram um dos depoimentos da arguida, ou a identificação do facto histórico concreto que o agente de forma intencional alterou;
4ª - Existe erro notório na apreciação da prova previsto no art. 410º, nº 2, do CPP.

Importa apreciar tais questões pela ordem da respectiva prejudicialidade e decidir. Para tanto, deve considerar-se como pertinentes ao conhecimento do objecto dos recursos o que se retira do antecedentemente relatado e os factos considerados na sentença recorrida, bem como a respectiva motivação.
Foram considerados os seguintes factos provados (transcrição):
a) Na instância Local de Braga- Secção Criminal- J2 correu termos o processo comum singular nº 130/13.9DBRG, no âmbito do qual foi proferida sentença absolutória, transitada em julgado no dia 5/1/2015, relativamente a Maria L. e S…, Lda., as quais se encontravam acusadas da prática de um crime de abuso de confiança fiscal;
b) Nessa sede, a aqui arguida SOFIA A. foi inquirida na qualidade de testemunha, quer no inquérito, quer na audiência de julgamento, uma vez que exercia as funções de contabilista da referida sociedade;
c) Em sede de inquérito, a aqui arguida prestou depoimento na qualidade de testemunha, no dia 20 de maio de 2013, na Direção de Finanças de Braga e, tendo-lhe sido perguntado "quem gere a empresa S… Lda., ou seja, quem emite cheques, quem trata com clientes, fornecedores e bancos", a mesma respondeu: "é a sócia gerente, Maria L.”;
d) Já em sede de audiência de discussão e julgamento, que teve lugar no dia 17 de novembro de 2014, a aqui arguida, após juramento legal, prestou depoimento e, quando questionada sobre a gerência da sociedade, respondeu que era o marido da "D. . " "que tratava de todas as questões da empresa", mais adiantando que "todos os assuntos que eram tratados e todas as decisões que eram tomadas a nível contabilístico eram pelo marido", sendo que apenas falava com este;
e) Novamente inquirida, a propósito de quem a havia contratado para laborar na empresa, a aqui arguida respondeu "foi o engenheiro Antunes" e sobre se teria o contacto da D. Maria L., a mesma disse "não, era tudo tratado com o engenheiro A… ";
f) Acresce que na sentença absolutória proferida naquelas autos, na respetiva motivação da decisão de facto foi exarado o seguinte: "face à prova produzida em audiência, entendemos inexistir prova bastante relativamente ao efetivo exercício pela arguida das suas funções de gerente à data dos factos. Com efeito, a arguida nega este facto; a testemunha B… corroborou tal versão, ainda que contrariamente ao por si declarado no âmbito dos presentes autos";
g) Ao atuar do modo supra descrito, bem sabia a arguida que, apesar de se encontrar sujeita a um dever processual de verdade e de completude, prestou, em dois momentos processuais distintos, depoimentos antagónicos e contraditórios entre si sobre a mesma realidade, mais sabendo que prestava depoimento falso em sede de inquérito e que o conteúdo do mesmo não correspondia à verdade, bem como que, com a sua conduta, atentava contra a boa administração da justiça;
h) A arguida agiu sempre livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal;
i) A arguida é solteira; trabalha como contabilista, auferindo o rendimento mensal líquido de 1 000, 00 €; paga a prestação mensal de 380,00 € para amortizar o empréstimo contraído para aquisição de automóvel; vive com a sua mãe na casa da mesma; é licenciada em Gestão;
j) Nada consta do certificado de registo criminal da arguida.

Não resultaram quaisquer factos não provados.

– Fundamentação da matéria de facto (transcrição):
«A convicção deste Tribunal quanto à matéria de facto provada e não provada resultou da adequada ponderação de toda a prova documental junta aos autos, bem como da restante prova produzida em sede de audiência de julgamento, devidamente confrontada com as regras da experiência e com a livre convicção do julgador (cfr. o artigo 127.º do Código de Processo Penal.
Relativamente às alíneas a) a h) da matéria de facto provada, a convicção deste Tribunal resultou da cuidadosa na análise da certidão judicial junta aos autos a fls. 01 a 09, bem como do auto de transcrição de fls. 70 a 78, os quais, só por si, claramente comprovam que a arguida mentiu em sede do inquérito n.º 130/13.9IDBRG, prestando falsas declarações na qualidade de testemunha no dia 20 de maio de 2013 na Direção de Finanças de Braga Tal mentira em sede de inquérito foi detetada e assinalada na sentença proferida no processo comum singular n.º 130/13.9IDBRG da Instância Local de Braga - Secção Criminal - J2, motivo pelo qual foi determinada a extração de certidão para a instauração do presente processo contra a aqui arguida (cfr. a certidão da sentença junta aos autos, nomeadamente, fls. 07, frente e verso, bem co mo f Is. 08-verso). Com efeito, em sede de inquérito, a arguida declarou que quem gere a empresa S…, Lda., ou seja, quem emite cheques, quem trata com clientes, fornecedores e bancos, é a sócia gerente Maria L. (cfr. fls. 03)
Sucede que em sede de audiência de julgamento, a arguida do referido processo - MARIA L. - declarou que a empresa era na prática gerida por familiares, nomeadamente o seu atual ex-marido José A. (cfr. a certidão junta aos autos a fls. 07).
Por outro lado, a aqui arguida SOFIA A., na qualidade de testemunha e após ter prestado juramento legal, declarou em sede de audiência de julgamento que quem tratava dos assuntos da empresa era, na realidade, o marido da aqui arguida, tendo sido este quem contratou os seus serviços e que todos os assuntos eram tratados com esta pessoa e não com a arguida, assim excluindo a mesma da gerência de facto da sociedade em causa (cfr. a certidão da sentença junta aos autos, nomeadamente, a fls. 07).
O Tribunal valorou positivamente as declarações da aí arguida e da testemunha - aqui arguida -, entendendo inexistir prova bastante relativamente ao efetivo exercício pela arguida das funções de gerente à data dos factos, o que constituiu o primeiro e principal motivo para a absolvição da aí arguida Maria L. (cfr. a certidão da sentença junta aos autos, nomeadamente, a fls. 07-verso e A aqui arguida não apresentou qualquer justificação credível para a frontal e clara contradição entre as declarações que prestou em sede de inquérito e as declarações que prestou em sede de audiência de julgamento no processo n. º 1 30/1 3.910 B R G. Num primeiro momento procurou inclusivamente convencer este Tribunal que inexiste qualquer contradição entre o que declarou em sede de inquérito e o que declarou em sede de audiência de juIgamento.
Ora, basta atentar nas declarações prestadas em sede de inquérito e nas declarações prestadas em sede de audiência de julgamento para concluir que as mesmas são absolutamente contraditórias quanto à pessoa que, em concreto, geria a sociedade em causa. A título exemplificativo, atente-se que
-em sede de inquérito a aqui arguida declarou que quem emite cheques "é a sócia Maria L.”
-em sede de audiência de julgamento, por duas vezes perguntada sobre quem é que assinava os cheques, a aqui arguida declarou não saber.
Anota-se que a arguida manteve neste julgamento - o presente processo - a versão de que quem geria de facto a sociedade em questão era o marido da aí arguida, pessoa com quem sempre lidou e tratou de todos os assuntos, pelo que a versão mentirosa é a que foi declarada no decurso do inquérito Num segundo momento do julgamento do presente processo, a arguida procurou inclusivamente fazer passar a ideia de que não respondeu conforme consta do auto de inquirição de testemunha cuja certidão consta de fls. 03, não obstante ser uma pessoa com formação superior, capaz de se exprimir de forma correta e adequada, sendo uma pessoa com suficiente autonomia para não assinar um auto com um conteúdo com o qual não concordasse.
Ora, não só a arguida assinou o auto de inquirição de testemunha em causa, aí expressamente assumindo que leu as declarações, achou-as conformes e ratificou-as, como a testemunha C…, Técnica da Divisão de Justiça Tributária do Núcleo de Investigação Criminal da Direção de Finanças de Braga que procedeu à tomada de declarações e elaborou o auto em causa - cujo teor confirmou em audiência de julgamento -, esclareceu que o mesmo contém as declarações prestadas pela arguida e não qualquer referência fáctica que a mesma não tenha dito. Esclareceu a testemunha que tem um conjunto de perguntas num formulário e que vai colocando à pessoa que está a ouvir - neste caso a aqui arguida - sendo inequívoco que o terceiro parágrafo corresponde à resposta que a arguida lhe deu no sentido de saber quem era o gerente de facto da sociedade em investigação, porquanto não necessita de perguntar quem é o gerente de direito por ser suficiente para tal a consulta da certidão permanente do registo comercial da sociedade, ato que é realizado previamente à audição de testemunhas em processo de inquérito crime de natureza fiscal.
A versão da arguida surgiu de forma absolutamente isolada, contrariada pelo seu próprio comportamento de assinar e corroborar as declarações do auto de inquirição de testemunha. A arguida procurou nitidamente furtar-se à sua responsabilidade jurídico-penal e não mereceu assim qualquer credibilidade quanto a esta parte.
Da análise da certidão junta aos autos, bem como das declarações da testemunha supra identificada, a qual apresentou um depoimento coerente, espontâneo e desinteressado, resultou inequivocamente comprovado que a arguida mentiu em sede de inquérito, tendo agido de forma livre, voluntária e consciente bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, tendo ocultado à investigação a identidade de uma concreta pessoa que, de facto, geria a sociedade e deveria responder criminalmente.
Quanto às alíneas i) a m) da matéria de facto provada, a convicção deste Tribunal resultou das declarações da arguida, as quais, quanto a esta parte, surgiram de forma coerente e espontânea, não tendo sido contrariadas por qualquer outro meio de prova.
Relativamente à alínea n) da matéria de facto provada, a convicção deste Tribunal resultou da análise do certificado de registo criminal junto aos autos a fls.132.».
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1. O despacho de indeferimento da junção de documentos.
1.1. A recorribilidade.
Defende a Sra. Procuradora da 1ª instância que o recurso em apreço deve ser indeferido, por se estar perante uma omissão que nos termos da alínea d), do nº 2, do art. 120º do CPP, integra uma nulidade dependente de arguição, e que neste momento se mostra sanada.
Contrariamente a Sra. Procuradora Geral Adjunta pugna pela admissibilidade do mesmo recurso ao abrigo do disposto no art. 399º, do CPP, a contrario, dizendo «que, a decisão do tribunal de produção ou não produção de prova é obviamente recorrível uma vez que a sua irrecorribilidade não está prevista – art. 399º CPP e que quando a omissão da produção de prova tiver ocorrido apesar de esta ter sido requerida, ou seja, quando o tribunal indefere o requerimento para a produção de prova, a impugnação deve ser feita por via de recurso».
Na doutrina, o Conselheiro Oliveira Mendes ( No Comentário ao Código de Processo Penal, 2016, 2ª edição (dos Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça), p. 1049.) defende que a decisão do tribunal de produção ou não produção de prova é, obviamente, recorrível, designadamente com o fundamento de que foi proferida fora das condições legais, posto que a sua irrecorribilidade não está prevista - art. 399º. No mesmo sentido, também Paulo Pinto de Albuquerque antemura a recorribilidade de tal decisão ( In Comentário ao CPP, p. 882.).
Não se desconhece que a jurisprudência diverge quanto ao meio de reacção ao indeferimento de produção de meios de prova em sede de audiência de julgamento.
Assim, expendeu-se no Acórdão da Relação de Coimbra de 1/02/2012 ( P. 416/10.4JACBR.C1 - Vasques Osório.): «A violação do artº 340º, nº 1 do C. Processo Penal e por via dela, a violação do princípio da investigação, na sequência do indeferimento da renovação de prova pericial, só pode originar uma nulidade sanável, a enquadrar na alínea d), do nº 2, do art. 120º do C. Processo Penal, e sujeita ao regime de arguição previsto no nº 3 do mesmo artigo. Tendo o arguido e a sua defensora estado presentes na audiência de julgamento em que foi proferida a decisão e não tendo reagido até ao termo da mesma arguindo o vício, nem tendo recorrido atempadamente da decisão, sanou-se o vício o que, juntamente com o caso julgado formal entretanto verificado, impede que no recurso interposto do acórdão condenatório se conheça do acerto do ali decidido.» ( Também no Ac. TRE de 1-10-2013, CJ, 2013, T4, pág.248 se decidiu: «I. O artº340º do CPP não impede que sejam inquiridas testemunhas, que já podiam ter sido arroladas na acusação ou três dias antes do início do julgamento, basta que a sua inquirição se apresente como necessária e indispensável para a boa decisão da causa; II. Ao não admitir a inquirição em julgamento de testemunha que terá assistido aos factos objecto da acusação, e cujo contributo se impunha face ás dúvidas manifestadas pelo tribunal quanto á ocorrência daqueles factos, incorreu o tribunal na nulidade prevista no artº120º, nº2, al.d) do CPP.».).
No sentido oposto decidiu o mais recente acórdão da mesma Relação de 7/10/2015 ( P. 174/13.0GAVZL.C1 - Maria José Nogueira.): «O meio processualmente adequado para reagir contra despacho que, no decurso da audiência de discussão e julgamento, indefere diligência de prova requerida, expressa ou implicitamente, ao abrigo do artigo 340.º do CPP, é o recurso, e não a arguição da nulidade prevista no artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do mesmo diploma legal. Assim, se o sujeito processual interessado, na sequência de tal despacho de indeferimento, do mesmo não recorre, limitando-se a arguir a referida nulidade, deixando ocorrer, deste modo, o trânsito em julgado do despacho, fica o tribunal de recurso impedido de sindicar a referida decisão.».
Salvo o devido respeito, pensamos que é esta segunda orientação a que melhor se ajusta aos princípios que subjazem à impugnação das decisões judiciais, em geral, e, em particular, à natureza da que é ora censurada pela arguida.
Como logo se vê, não se trata, obviamente, de um despacho de mero expediente nem, também, de uma das decisões cuja irrecorribilidade esteja expressamente prevista (citado art. 399º do CPP).
O que implica que não poderia o Sr. Juiz alterar o decidido, descontados os casos de uma eventual correcção de erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexactidões devidas a outra omissão ou lapso nela manifestados, bem como da sua reforma quanto a custas. Vale aqui a tradicional máxima «das nulidades reclama-se e dos despachos recorre-se» ( Alberto do Reis, “Comentário”, II, pag. 507.). Na verdade, se em vez de se recorrer do despacho se pudesse dele reclamar, isso representaria que se poderia pedir ao juiz que alterasse ou revogasse a sua própria decisão, o que contraria o já consagrado princípio de que, proferida a decisão, fica esgotado o poder jurisdicional do julgador, relativamente ao respectivo objecto, sem prejuízo da invocação da nulidade do despacho nos referenciados termos gerais (Cfr. arts. 613º, nº 2 e 615º, do CPC.), o que não vem ao caso, como se viu. Significa isto que, proferida a decisão, o juiz não a pode alterar, nem modificar os respectivos fundamentos, pelo que não pode produzir qualquer eficácia pedir ao juiz que a dê sem efeito por causa dum alegado erro cometido quanto aos factos ou aos pressupostos de direito; apenas se pode pedir em recurso – se este for admissível – que o tribunal superior a revogue e substitua, ou que, em vez da substituição, anule e mande repetir determinado processado.

1.2. A essencialidade do meio de prova não admitido.
Nestes autos, a recorrente encontrava-se acusada da prática de um crime de falso testemunho, p. e p. pelo art. 360º, nº 1 do CP, mediante a imputação dos seguintes factos:
«1 - Na secção Criminal da Instância Local da Comarca de Braga correu termos o processo comum singular n.º 130/13.910BRG, no âmbito do qual foi proferida sentença absolutória, transitada em julgado no dia 5 de janeiro de 2015, relativamente a Maria L. e S…, LDA., as quais se encontravam acusadas da prática de um crime de abuso de confiança fiscal.
2 - Nessa sede, foi a arguida inquirida na qualidade de testemunha, quer no inquérito, quer na audiência de julgamento, uma vez que exercia as funções de contabilista da referida sociedade.
3 - Em sede de inquérito, a arguida prestou depoimento na qualidade de testemunha, no dia 20/5/2013, na Direcção de Finanças de Braga e, tendo-lhe sido perguntado "quem gere a empresa S… Lda., ou seja, quem emite cheques, quem trata com clientes, fornecedores e bancos", a mesma respondeu: "é a sócia-gerente Maria L.”.
4 - Já em sede de audiência de discussão e julgamento, que teve lugar no dia 17 de novembro de 2014, a aqui arguida, após juramento legal, prestou depoimento e, quando questionada sobre a gerência da sociedade, respondeu que era o marido da "D. L. " "que tratava de todas as questões da empresa", mais adiantando que "todos os assuntos que eram tratados e todas as decisões que eram tomadas a nível contabilístico eram pelo marido", sendo que apenas falava com este;
5 - Novamente inquirida, a propósito de quem a havia contratado para laborar na empresa, a aqui arguida respondeu "foi o eng. A. ", e sobre se teria o contacto da D. Maria L., a mesma disse "não, era tudo tratado com o eng. A… ";
6 - Acresce que na sentença absolutória proferida naquelas autos, na respectiva motivação da decisão de facto foi exarado o seguinte: "face à prova produzida em audiência, entendemos inexistir prova bastante relativamente ao efectivo exercício pela arguida das suas funções de gerente à data dos factos. Com efeito, a arguida nega este facto; a testemunha B… corroborou tal versão, ainda que contrariamente ao por si declarado no âmbito dos presentes autos;
7- Ao actuar do modo supra descrito, bem sabia a arguida que, apesar de se encontrar sujeita a um dever processual de verdade e de completude, prestou, em dois momentos processuais distintos, depoimentos antagónicos e contraditórios entre si sobre a mesma realidade, mais sabendo que prestava depoimento falso e que o contéudo do mesmo não correspondia à verdade, bem como que, com a sua conduta, atentava contra a boa administração da justiça.».
Preceitua o referido art. 360º, do CP que quem, como testemunha prestar depoimento falso é punido com pena de prisão de 6 meses a 3 anos ou com pena de multa não inferior a 60 dias (nº1), sendo tal facto punível com pena de prisão até 5 anos ou de multa até 600 dias se for praticado depois de o agente ter prestado juramento e ter sido advertido das consequências penais a que se expõe (nº 3).
Ora, como se viu, a recorrente foi acusada com o fundamento de ter a mesma prestado depoimentos alegadamente antagónicos no âmbito do P. Comum Singular nº 130/13.9IDBRG, sem que o douto libelo assaque a falsidade a qualquer deles. Com efeito, o imputado crime de falso testemunho ter-se-ia concretizado através de declarações alegadamente contraditórias prestadas em 20.05.2013 e 17.11.2014, em sede inquérito e da audiência, respectivamente, o que justificará que a incriminação tivesse sido reportada ao nº 1 e não ao nº 3 daquele artigo 360º.
Tais declarações reportaram-se à qualidade de gerente e ao exercício efectivo da gerência da sociedade S…, Lda por parte de Maria C., ambas então arguidas a quem era imputado o crime de abuso de confiança fiscal, tendo a ora recorrente e então testemunha exercido as funções de contabilista da mesma empresa.
Por conseguinte, estava em causa o aludido exercício efectivo da gerência da sociedade por parte da mencionada Maria C., no período relativo ao 1º trimestre de 2011, tendo a aqui recorrente, aparentemente, declarado, no inquérito, que era aquela que o fazia (emitindo cheques, tratando com clientes, fornecedores e bancos) e, na audiência de julgamento, que era o marido da mesma quem tratava de todos os assuntos e tomava todas decisões a nível contabilístico.
Naqueles autos 130/13.9IDBRG foram as arguidas absolvidas por ter sido considerado não provado que o IVA que ali estava em causa tivesse sido efectivamente pago à sociedade e que a aludida Maria C., no período a que os factos respeitavam, tivesse o exercício efectivo da gerência dessa sociedade. E, como se infere da motivação da decisão neles proferida sobre a matéria de facto, as declarações então emitidas pela ora recorrente contribuíram para fundamentar a inexistência de prova de tal exercício.
Subsequentemente, foi deduzida a acusação acima aludida.
Vejamos.
O crime de falso testemunho é um crime de perigo abstracto e de mera actividade, sendo praticado por quem assuma uma das qualidades mencionadas no citado normativo. Por essa razão, «não é necessário que a declaração falsa prejudique efectivamente o esclarecimento da verdade suporte da decisão nem sequer que em concreto o tenha colocado em perigo», esgotando-se a conduta típica na prestação do depoimento falso, pois a lei não exige qualquer resultado (e quando o faz é como circunstância agravante). Como o bem jurídico protegido é a «administração da Justiça como função do Estado» traduzindo o «interesse público na obtenção de declarações conformes à verdade no âmbito de processos judiciais ou análogos, na medida em que constituem suporte para a decisão», ocorrerá lesão de tal bem jurídico sempre que tal não ocorra ( Cf. Comentário Conimbricense do C. Penal, III, pág. 462.).
Ora, uma vez demonstrado o antagonismo substancial de dois depoimentos produzidos no mesmo processo, ainda que não se apure se um deles – ou, eventualmente, ambos – é falso, o arguido poderá ser condenado, por não subsistirem dúvidas de que prestou mesmo, pelo menos, um depoimento falso. Daí decorre que, perante a natureza do crime e o mencionado bem jurídico por ele protegido, o arguido poderá ser condenado porque, pelo menos, um dos depoimentos é falso e o fundamento do ilícito é a própria declaração falsa, independentemente da sua efectiva influência na decisão, contrariamente ao defendido no recurso.
A demonstração do acto que integrou o falso depoimento apenas releva para a determinação da data do facto e, por isso, do momento da consumação do crime, mas a certeza dessa data, dada a ausência de dúvidas sobre a realização do ilícito típico, não é requisito necessário ao seu preenchimento, embora possa ter reflexos, em concreto, quanto a um dos pressupostos da punibilidade, como é o da não extinção do procedimento por prescrição, ou da actuação da agravante prevista no nº 3 do artigo 360º ( Que depende da circunstância de o depoimento ter sido precedido de juramento e da advertência sobre as consequências penais. A não demonstração de que foi no depoimento precedido de tal circunstância que o arguido cometeu a falsidade, acarreta, obviamente, a absolvição pela mesma agravante, subsistindo apenas a condenação pelo tipo de ilícito base.), eventualidades que terão de ser solucionadas com a intervenção do princípio in dubio pro reo.
A falsidade de depoimento, numa concepção subjectiva ( Que, tradicionalmente, tem sido entre nós dominante, como Nuno Brandão, numa consequente e bem fundamentada defesa de conceito subjetivo de declaração falsa, esclareceu, no artigo “Inverdades e consequências: considerações em favor de uma conceção subjectiva da falsidade de testemunho” (na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 3/2010, p. 477-504. ), exprime-se na ideia de oposição entre o depoimento produzido e a percepção ou o conhecimento dos factos que o depoente tiver realmente adquirido. «Nessa medida, a aferição da veracidade do depoimento há-de passar pela comparação entre aquilo que a testemunha declara e aquilo que ela própria percepcionou no momento dos factos, independentemente da realidade eventualmente dada como provada pelo tribunal acerca desses mesmos factos». E daí que, «no caso de declarações sucessivas de uma testemunha abertamente contraditórias entre si há seguramente motivo para considerar existir falsidade de depoimento no sentido previsto pelo tipo objectivo de ilícito do crime de falsidade de testemunho inscrito no n.º 1 do art. 360.º do CP. Com efeito, quando esse comportamento da testemunha seja perspectivado na sua globalidade resulta claro que ao longo do processo não transmitiu sempre aos destinatários das suas declarações a realidade por si percepcionada relativamente aos factos objecto da inquirição» ( Autor e loc. citados, onde o mesmo acrescenta: «em alguma altura da sua participação processual o agente faltou à verdade e como tal incorre num facto típico de falsidade de testemunho; podendo quando muito subsistir dúvida sobre o exacto momento em que tal ocorreu. Dúvida essa que, caso tenha relevo penal ou processual penal (v. g., para efeitos de determinação do momento da prática do facto e da prescrição do procedimento criminal ou para a agravação prevista no n.º 3 do art. 360.º do CP), não poderá deixar ser valorada a favor do arguido.».).
Assim, preenche, necessariamente o tipo objectivo do analisado crime de falsidade a testemunha que, sobre a mesma realidade, presta num processo dois depoimentos substancialmente antagónicos, ainda que não se apure qual deles é o falso ( Neste sentido, a título de ex., os Acs. da RG de 02-05-2016 (787/14.3T9GMR.G1 - Lee Ferreira) e 01-07-2013 (1091/11.4TAGMR.G1 - Isabel Cerqueira), da RC de 30-10-2013 (802/11.2TAPBL.C1 - Fernando Chaves) e 29-02-2012 (910/09.0TACTB.C1 - Maria Pilar Oliveira) e, da RP de 09-09-2015 (650/11.0TAVCD.P1 - Vaz Pato) e de 30-01-2008 (0712790 - José Carreto), da RE de 03-11-2015 (49/13.3T3STC.E1 - António Latas) e de 22.11.2011 (40/10.1TAFAL.E1- Carlos Berguete).).
Ora, assim sendo e atendendo ao objecto deste processo delimitado pela acusação, do que se trataria seria apurar se a então testemunha e ora arguida no processo anterior havia prestado, em fase de inquérito, um depoimento, que contribuiu para a dedução da acusação contra as aí arguidas e, na audiência de julgamento, um depoimento realmente inconciliável com aquele, daí resultando que, em fases distintas, a ora recorrente prestou, pelo menos, um depoimento falso ( Aparentemente, o Sr. Juiz não terá conferido qualquer relevo à circunstância de a acusação assentar exclusivamente no putativo antagonismo das declarações da arguida no processo, sem qualquer outra concretização. É o que parece resultar dos termos em que se estriba o despacho proferido em audiência, visado por este recurso interlocutório, e do conteúdo da fundamentação da decisão condenatória proferida, baseada, não no imputado antagonismo, mas na falsidade das declarações subscritas pela arguida no inquérito, sem que o Sr. Juiz tenha procedido a qualquer comunicação de tal alteração como imporia o comando do art. 358º do CPP, tal como, pertinentemente, lembrou o Ministério Público em 1ª instância.).

Posto isto, vejamos o que prescreve o artigo 340º do CPP:
«1 - O tribunal ordena, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.
2 - Se o tribunal considerar necessária a produção de meios de prova não constantes da acusação, da pronúncia ou da contestação, dá disso conhecimento, com a antecedência possível, aos sujeitos processuais e fá-lo constar da acta.
3 - Sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 328.º, os requerimentos de prova são indeferidos por despacho quando a prova ou o respectivo meio forem legalmente inadmissíveis.
4 - Os requerimentos de prova são ainda indeferidos se for notório que:
a) As provas requeridas já podiam ter sido juntas ou arroladas com a acusação ou a contestação, exceto se o tribunal entender que são indispensáveis à descoberta da verdade e boa decisão da causa;
b) As provas requeridas são irrelevantes ou supérfluas;
c) O meio de prova é inadequado, de obtenção impossível ou muito duvidosa; ou
d) O requerimento tem finalidade meramente dilatória.».
Estabelece o normativo os princípios gerais em matéria de produção de prova na audiência, consagrando o princípio da investigação ou da oficialidade:
Serão produzidos os meios de provas não proibidos por lei, cujas indispensabilidade e utilidade para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa se confirmem em função do objecto do processo, o qual, como se sabe, delimita os poderes de cognição do tribunal e é definido e fixado pelos factos essenciais descritos na acusação, em articulação com as normas consideradas infringidas pela sua prática (e também obrigatoriamente indicadas). Daí que nos números 3 e 4 do preceito em análise se estabeleçam os pressupostos da rejeição da produção de prova (ou do respectivo meio), da sua ponderação como irrelevante ou supérflua, da sua inadequação notória, da impossibilidade ou discutibilidade da sua obtenção ou da finalidade meramente dilatória do respectivo pedido.
O Sr. Conselheiro Oliveira Mendes ( No Comentário acima citado, p. 1049.) defende que «a prova deve ser considerada irrelevante quando é indiferente, sem importância ou interesse para a decisão da causa; supérflua quando é inútil para a decisão da causa; inadequada quando é imprópria, nada permite demonstrar ou, de nada serve para a decisão da causa; de obtenção impossível ou de obtenção muito duvidosa quando é inalcançável ou, segundo as regras da experiência, improvavelmente alcançável; com finalidade meramente dilatória quando visa protelar ou demorar a audiência».

No anterior processo, em que foi ordenada a extracção de certidão que deu origem aos presentes autos, averiguava-se se no primeiro trimestre de 2011 a aludida Maria C. para além de constar no Registo Comercial como gerente da sociedade aí arguida, também exercia efectivamente ou de facto tais funções de gerente. Ora, independentemente de a gerência de uma sociedade poder ser, simultaneamente, exercida por um ou mais gerentes, sócios ou não, com divisão ou não de poderes representativos desta e da actividade de gestão, o certo é que a recorrente, visava demonstrar com os questionados documentos – cuja junção o Sr. Juiz inviabilizou com a decisão recorrida – que a dita Maria C. exerceu de facto as funções de gerência, num determinado período de tempo.
Realmente, em audiência, a recorrente asseverou que falou com verdade em ambos os depoimentos que prestou no anterior processo, embora reafirmasse que o prestado na Finanças não foi totalmente elaborado com base nas suas declarações. Isto é, a recorrente, acabando por dizer que na altura em que a já referenciada Maria C. esteva doente era o seu marido (o eng. A..) quem tratava de todos os assuntos consigo pretendeu evidenciar a compatibilidade substancial de ambos os referidos depoimentos e foi com tal desiderato e motivação que propôs que viessem a ser examinados os documentos, que então exibiu, sendo certo que já na anterior audiência se tinha reportado a um atestado “multiusos”, requerendo, no mencionado contexto, logo após ter prestado o seu depoimento, ao abrigo do disposto no art. 340º do CPP, a junção de tais documentos tendentes a demonstrar, nomeadamente, que a declaração que subscreveu nas Finanças tem correspondência com a realidade, pois, a então arguida Maria C. praticara actos efectivos de gerência.
Ou seja, com lucidamente afirma a Exa. Sra. Procuradora Geral Adjunta no seu douto parecer, a recorrente «Declarou agora em audiência de julgamento, além do mais, que as declarações aparentemente contrárias prestadas se reportariam nomeadamente a um período ou períodos em que aquela Maria L. teria estado afastada devido nomeadamente a doença, sendo então o marido (testemunha referida, A..) que tratava das questões da empresa, da qual também era sócio-gerente».
Assim, apesar de os aludidos documentos se reportarem praticamente todos ao ano de 2008, apenas o documento nº 5, é referente a Agosto de 2013, (através do qual Maria C. solicitava o pagamento em prestações de uma dívida), o certo é que, no apontado contexto, não se pode afirmar, sem mais, que os mesmos são irrelevantes para a decisão da causa, antes tem acuidade a pretensão da recorrente, ao procurar demonstrar que a dita Maria C. exerceu de facto as funções de gerência, apenas não o tendo feito no período em causa, devido a doença oncológica, que fez com que, nesse período, tenha tratado com o marido daquela, a testemunha A.., todas as questões referentes à empresa, e daí que (ambas) as suas declarações não sejam falsas, segundo sustenta.
Também o argumento da extemporaneidade invocado pelo Sr. Juiz não é convincente, embora não seja o aspecto mais saliente. Na verdade, o Sr. Juiz não se pronunciou sobre a questão, que a arguida alegara, atinente à impossibilidade de ter requerido a junção dos documentos em momento anterior por estarem eles em poder de terceiro, sem que nada dos autos se retirasse em contrário ou de que aquela apenas na audiência tivesse querido apresentar esses meios de prova, com intuitos dilatórios ou para dificultar o exercício do contraditório.
Podendo a antinomia imputada pela acusação ser mais aparente que real ( Relembra-se que já na audiência de julgamento do anterior processo, a recorrente falara num atestado “multiusos”.), impunha-se, pois, de harmonia com os ditos princípios da investigação e da oficialidade e tendo em vista determinar, para lá de toda a dúvida razoável, que os alegados depoimentos da recorrente eram efectiva e substancialmente inconciliáveis, que o Sr. Juiz não só admitisse a requerida junção dos documentos como ponderasse outras vias possíveis e adequadas para tal esclarecimento, entre as quais a audição – pertinentemente aventada pela Exma. Procuradora Geral – da já referida testemunha A.., que estaria em boas condições de poder esclarecer os factos, por ter conhecimento directo deles.
Em conformidade com o exposto, a decisão recorrida violou o preceituado no art. 340º, nº 1, do CPP, e, por isso, impõe-se a sua revogação com a consequente invalidação de todos os subsequentes actos processuais praticados.
Ponderação que prejudica o conhecimento das demais questões suscitadas.
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Decisão:

Pelo exposto, julga-se procedente o recurso interlocutório e, por consequência, revoga-se o despacho recorrido e determina-se a sua substituição por outro que admita a requerida junção de documentos com a consequente repetição de todos os subsequentes actos que, nos termos supra definidos, processualmente se imponham.

Sem tributação.

Guimarães, 7/11/2016

Ausenda Gonçalves

Fátima Furtado