Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3/15.0T8BGC.G2
Relator: JOAQUIM BOAVIDA
Descritores: SERVIDÃO DE VISTAS
USUCAPIÃO
FRESTA
IRREGULARIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/25/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1 – Tendo existido durante mais de 70 anos e até 2007/2008, sem qualquer oposição, uma porta e uma janela na parede norte do prédio dos Autores que confina a sul com o dos Réus, tal facto importou a constituição a favor do imóvel daqueles de uma servidão de vistas, adquirida por usucapião.

2 – Em 2007/2008 os Autores demoliram a parede onde se situavam a janela e a porta, erguendo, no mesmo local, uma parede nova, na qual, sensivelmente nos mesmos locais onde existiam as referidas aberturas, inseriram dois conjuntos de aberturas, num total de sete.

3 – Sete aberturas numa parede, cada uma com uma altura de 1,08 m e uma largura de 0,18 a 0,22 m, constituem aberturas irregulares e, dentro desta categoria, frestas irregulares, uma vez que assumem características idênticas às frestas.

4 – A servidão de vistas constituída relativamente à porta e à janela anteriormente existentes não é susceptível de ser exercida através das frestas irregulares agora existentes.

5 – Os Autores não dispõem de título que impeça os proprietários vizinhos de exercer os direitos que lhe assistem relativamente às actuais frestas irregulares, as quais se encontram em contravenção do disposto na lei.

6 – Assistia aos Réus a faculdade de levantar contramuro, em conformidade com o disposto no artigo 1363º, nº 1, do Código Civil.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I – RELATÓRIO

1.1. G. P. e mulher, L. T., intentaram contra A. G. e, marido, C. G., acção declarativa, sob a forma de processo comum, pedindo que os Réus sejam condenados a:

a) Reconhecer que as janelas existentes na parede norte do prédio dos Autores importaram a constituição de uma servidão de vistas e, consequência, a demolir o muro que edificaram, destapando as referidas janelas;
b) Absterem-se de praticar quaisquer actos que perturbem ou lesem tal direito de servidão;
c) Pagarem aos Autores uma indemnização, a título de danos não patrimoniais, no valor de 500,00 €.

Para fundamentar a sua pretensão alegaram, em síntese, que são donos de um prédio urbano que confronta a norte com o prédio urbano dos Réus, sendo que ambos os prédios, há mais de 50/60 anos, correspondiam a uma única construção cujo proprietário era o mesmo, razão pela qual, no prédio dos Autores, sempre existiram duas aberturas que deitavam para o prédio dos Réus, aberturas essas que aí permaneceram por mais de 50 ou 60 anos sem qualquer obstáculo por parte dos antecessores dos Réus ou destes, sem prejuízo de uma das aberturas ter servido, durante alguns desses anos, como porta até ser convertida em janela e de ambas as janelas apresentarem actualmente material moderno, designadamente, caixilharia em alumínio.

Sustentam que, não obstante por força da circunstância de as aludidas janelas sobre o prédio dos Réus terem permanecido abertas, à vista de toda a gente, sem a oposição de ninguém, na convicção de que exerciam um direito de servidão de vistas e que não ofendiam direitos de terceiros, com a consequente aquisição pelos Autores de tal direito de servidão por usucapião, há cerca de 1 ano os Réus, sem respeitar a distância legalmente estabelecida quanto a construções limítrofes e de modo a impedir a entrada de ar, luz e vistas no prédio dos Autores, construíram um muro a delimitar o seu prédio do prédio dos Autores, com o que taparam as preditas duas janelas, ficando estes últimos, em consequência, impedidos de as utilizar.

Mais alegam que, por força do exposto, os compartimentos que tais janelas beneficiam passaram a ser sombrios, deixando de ser arejados e de usufruir de luz solar, o que provoca, nos Autores, um sentimento de revolta, susceptível de merecer compensação.
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Contestaram os Réus, impugnando grande parte da factualidade alegada pelos Autores, sustentando que as aberturas existentes na parede norte do prédio dos Autores constituíam apenas e só frestas e não janelas, o que legitimava os Réus a levantar contramuro no respectivo prédio, pretensão essa que, antes de realizada tal obra, comunicaram por via da sobrinha da Ré aos Autores.

Alegaram que, das duas aberturas em causa nos autos, uma delas, situada no R/C do prédio dos Autores, servia apenas de porta, mediante a qual, por tolerância do dono do prédio dos Réus, pai da Ré, A. M., para com o pai da Autora, A. P., este podia aceder a uma determinada rua por via do logradouro do prédio dos Réus, não significando, no entanto, e em razão do exposto, a existência de tal abertura a constituição de uma servidão de passagem, uma vez que o prédio dos Autores sempre dispôs de comunicação com a via pública.

Referiram que, por força da circunstância de os proprietários vizinhos terem erguido muros nas suas propriedades, tal acesso à rua ficou inutilizado, razão pela qual os Autores fecharam tal abertura do tipo “porta” com 2 tábuas de madeira a pedido do pai da Ré, situação que se manteve ao longo de mais de 50 anos até que em 2007 os Réus decidiram demolir o muro onde tal abertura se encontrava localizada, levantando um novo muro, no qual os Autores edificaram 2 conjuntos de frestas em substituição das 2 aberturas (porta e janela) anteriormente existentes.

Alegaram também que tal nova construção erguida em 2007 violaria o projecto de construção aprovado na Câmara municipal, projecto do qual resultaria que as únicas frestas permitidas deitariam sobre propriedade de terceiros e não sobre a propriedade dos Réus.
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Foi realizada audiência prévia e proferido despacho saneador com dispensa da indicação do objecto do litígio e da selecção dos temas da prova ao abrigo do disposto no artigo 597º do CPC.

Realizou-se a audiência de julgamento e proferiu-se sentença a julgar a acção parcialmente procedente, por parcialmente provada, em consequência do que se decidiu:

«I. Condenar os Réus a reconhecer que a porta e janela existentes na parede Norte do prédio dos Autores e identificadas no ponto 4) da matéria de facto provada importaram a constituição a favor do imóvel dos Demandantes de uma servidão de vistas.
II. Absolver os Réus do demais peticionado no Petitório incluído na Petição Inicial a fls. 5 e 5v. dos autos.
III. Absolver os Autores do pedido de condenação em litigância de má-fé deduzido pelos Réus na respectiva Contestação».
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1.2. Inconformados, os Autores interpuseram recurso de apelação da sentença e formularam, a terminar as respectivas alegações, as seguintes conclusões (que se transcrevem):

«1. Os Autores não se conformam com a douta decisão proferida em 04-04-2018, que determinou a procedência parcial da presente acção, porquanto perante a matéria de facto dada como provada o douto Tribunal a quo não podia ter aplicado o direito como fez.
2. Perante o reconhecimento da servidão de vistas constituída por usucapião o Tribunal a quo devia ter decidido pela procedência de todos os pedidos, não fazendo violou a douta sentença os artigos n.º 1362.º, 1363.º, 1569.º n.º 1 als. b), c) e d), 1570.º, 1572.º todos do Código Civil.
3. Salvo o devido respeito, entendem os aqui recorrentes, que nenhuma das normas jurídicas aplicáveis ao caso em apreço, permite ao douto Tribunal a quo chegar à conclusão a que chega para decidir da manutenção do muro construído pelos Réus.
4. Desde logo, entendem os Recorrentes que o Tribunal a quo, ao reconhecer a existência de servidão de vistas apenas poderia determinar a improcedência do pedido de demolição do muro construído pelos Réus, se tal servidão se tivesse extinto nos termos do art. 1569.º n.º 1 al. b), c) e d) do Código Civil.
5. Como não ficaram demonstrados factos que consubstanciassem qualquer uma daquelas causas de extinção, a servidão de vistas a favor do prédio dos Autores sobre o prédio dos Réus sempre teria que se manter com todas as suas utilidades.
6. Ou seja, sempre se teria que considerar que os Autores tinham direito a abrir as janelas para o prédio dos Autores e portanto não podiam os Réus proceder à construção de contra-muro sem o distanciar 1,5 m do prédio dos Autores, ocorrendo assim a limitação estabelecida no nº 2 do art. 1362º do Código Civil.
7. Mas ainda que assim não entendessem, nada permitia ao Tribunal a quo interpretar as normas jurídicas aplicáveis como o fez para chegar à conclusão plasmada na sentença recorrida.
8. Atentando na doutrina de Pires de Lima e Antunes Varela, nomeadamente na nota 4 da anotação ao artigo 1362.º do Código Civil, verifica-se que desde que a servidão de vistas que existia seja exercida no mesmo local, o direito se mantém independentemente de obra nova.
9. No caso dos autos, atentando na matéria de facto dada como provada nos pontos 9.º e 10.º da matéria de facto fixada, não houve alteração do preciso local onde antes as janelas já existiam, pelo que não há modificação da servidão.
10. Os AA., ora recorrentes, respeitaram na íntegra o espaço de servidão, e a matéria de facto dada como provada permite concluir, sem margem para qualquer dúvida, que a servidão inicial se manteve exactamente nos precisos termos como ab initio se constituiu.
11. A douta sentença incorre em erro iudicando ao tratar a questão da devassa, à luz do direito aplicável, não é correcto tirar a conclusão de que, com a feitura das obras por parte dos AA., se permite uma maior devassa, para com isso permitir a manutenção da obra dos Réus.
12. O douto Tribunal a quo parte do princípio, de que “constituindo as novas aberturas frestas irregulares, aos Réus seria permitido erguer o contra-muro com base no disposto no artigo 1363º nº1 do CC, na medida em que não estava ultrapassado, aquando de tal construção, o prazo da usucapião tendente à constituição de uma servidão atípica a favor do prédio dos Autores”.
13. Antes de mais, não pode o Tribunal a quo concluir pela existência de frestas irregulares quando ficou provado nestes autos, vide pontos 13, 14 e 15 da matéria de facto dada como provada que estamos perante janelas, pode ler-se sempre “aberturas com funcionalidade de janela”, mas mesmo admitindo que estamos perante frestas irregulares sempre a devassa seria menor.
14. Por outro lado, a referência feita ao normativo indicado tem de ser compreendida em conjugação com o preceituado no artigo 1362.º do Código Civil, aquele preceito legal, art. 1363.º n.º 1, constitui uma excepção à regra estabelecida pelo art, 1362.º, como este é excepção à regra imposta pelo art. 1360.º do Código Civil.
15. Compreende-se que assim seja pois, na senda da doutrina e da jurisprudência maioritária, as “frestas” constituem um minus em relação a uma “porta” e “janela”.
16. Na verdade, o objecto da restrição imposta pelo art.º 1360.º do Código Civil não é a vista sobre o prédio vizinho, mas a existência de obra prevista no n.º 1 do art.º 1362.º do mesmo Código, já que a servidão de vistas apenas se destina a impedir a edificação no prédio serviente, em frente da obra do prédio dominante.
17. Assim se defende nos Acórdãos do STJ, de 4/11/1993, CJSTJ, ano I, tomo III, página 98, Acórdão do STJ de 27-04-2005, proc. 05B810, in www.dgsi.pt e nos Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 17/10/2013, no processo 2013101743/10.6TBMUR.P1, relatado por Deolinda Varão, e de 27/10/2011, relatado por Maria Amália Santos, no processo 2011102791/05.8TBVMS.P2, in www.dgsi.pt
18. Assim defendem Pires de Lima e Antunes Varela (Cód. Civil anotado, Volume III, pág. 219, em anotação ao artigo 1362º) quando referem que “A servidão de vistas não é impecável, e já se tem prestado a equívocos. O objecto da restrição não propriamente a vista sobre o prédio vizinho, mas a existência da porta, da janela, da varanda, do terraço, do eirado ou de obra semelhante, que deite sobre o prédio nas condições previstas no artº 1360º”.
19. Se ficou provado que as novas janelas construídas pelos AA., ora recorrentes, ocuparam sensivelmente os mesmos locais (cfr. ponto 10.º da matéria de facto) não se compreende que o Tribunal a quo se tenha permitido concluir pela licitude da actuação dos RR., ora recorridos, ao erguerem o contra-muro.
20. Salvo o devido respeito, o Tribunal a quo não interpretou as normas jurídicas constantes dos preceitos legais citados, artigos 1360.º, 1362.º e 1363.º do Código Civil em ligação.
21. Chegando à conclusão de reconhecimento da servidão de vistas a favor do prédio dos AA., ora recorrentes, sobre o prédio dos RR., o Tribunal recorrido devia ter concluído pela ilicitude do muro erguido pelos RR..
22. Tanto mais que nem pode colher o argumento da maior devassa, como já se mencionou, se atentarmos na distinção entre frestas e janelas, pois mesmo as frestas com as características referidas na matéria de facto dada como provada têm uma abertura menor, permitindo uma devassa menor do que antes a porta e a janela permitiam.
23. Neste sentido, de que as janelas são mais amplas do que as frestas, concluiu o Acórdão da Relação do Porto, de 18/6/2008, proferido no processo n.º 200806180852720, relatado por Marques Pereira, disponível na página www.dgsi.pt.
24. Mesmo partindo do pressuposto no qual se sustenta a douta sentença recorrida de que os AA. ao levarem a cabo as obras, transformando janela e porta em sete frechas irregulares, nunca o argumento da devassa podia justificar a manutenção do muro erguido pelos Réus, quanto mais não seja porque nesse pressuposto sempre a privacidade destes ficaria mais salvaguardada.
25. Deste modo, face à matéria de facto dada como provada, em conjugação com o direito aplicável, outra solução não pode ter a demanda que não seja a da total procedência do peticionado pelos AA., ora recorrentes.
26. Os RR, ao levantarem o contra-muro (cfr. ponto 18.º da matéria de facto) e, desse modo, taparem as aberturas aludidas em 10) a 12) com cerca de 0,18 a 0,22 metros de largura e 1,08 metros de altura para onde deitavam as janelas situadas ao nível do R/C e do 1º andar do prédio dos Autores mencionadas em 13) (cfr. ponto 19.º da matéria de facto dada como provada, agiram em contravenção ao preceituado no artigo 1363.º, n.º 2, do Código Civil.
27. Destarte, devem os Réus ser condenados conforme peticionado a destruir o seu muro erguido em tapagem das suas janelas, em virtude da constituição de servidão de vistas a favor do prédio dos Autores.
28. E alterada a douta decisão de mérito proferida pelo Tribunal a quo por violadora dos artigos artºs 1360.º, 1362.º, 1363.º, 1363.º, 1569.º 1571.º e 1572.º todos do Código Civil.

Nestes termos e nos demais de direito doutamente supríveis por Vªs. Excªs, deve ser alterada a decisão de Direito determinando-se a procedência da acção na sua totalidade, e revogada a douta sentença recorrida, com as legais e devidas consequências, por assim ser de devida, merecida e costumada JUSTIÇA».
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Contra-alegaram os Réus, defendendo o não provimento do recurso.
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O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
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Foram colhidos os vistos legais.
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1.3. QUESTÕES A DECIDIR

Em conformidade com o disposto nos artigos 635º, nºs 2 a 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a área de intervenção do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial (1).

Tal restrição não opera relativamente às questões de conhecimento oficioso, as quais podem ser decididas com base nos elementos constantes do processo. Em matéria de qualificação jurídica dos factos a Relação não está limitada pela iniciativa das partes - artigo 5º, nº 3, do CPC. Por outro lado, o tribunal ad quem não pode conhecer de questões novas, uma vez que os recursos visam reapreciar decisões proferidas e não analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes.

Neste enquadramento, a questão essencial a decidir consiste em saber se a servidão de vistas constituída sobre o prédio dos Réus subsiste na sua execução após os Autores terem substituído a porta e a janela, anteriormente existentes na parede antiga demolida em 2007/2008, pelo conjunto de aberturas de tipo frestas incluído na parede nova erguida nessa data.

Em caso de resposta afirmativa à primeira questão, impõe-se então saber se o contramuro levantado pelos Réus deve ser demolido e se assiste aos Autores o direito de serem indemnizados pelos danos causados com a conduta daqueles.
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II – FUNDAMENTOS

2.1. Fundamentos de facto

A decisão recorrida considerou provados os seguintes factos:

1 – Os Autores, G. P. e L. T. são donos e legítimos proprietários do prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo nº 392 da freguesia de (...), descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº (...).
2 - Por sua vez, os Réus, A. G. e C. G., são donos e legítimos possuidores do prédio urbano igualmente sito em (...), inscrito na matriz da mesma freguesia sob o artigo nº 377.
3 - O prédio urbano dos Réus identificado em 2) confronta a sul com o prédio urbano dos Autores aludido em 1).
4 - Há mais de 70-80 anos, existiam, na parede do prédio dos Autores que confronta com o logradouro/pátio do prédio dos Réus situado a sul daquele imóvel, duas aberturas, a primeira com a funcionalidade de porta, situada ao nível do rés-do-chão do prédio dos Demandantes e, a segunda, com a funcionalidade de janela, situada ao nível do 1º Andar do aludido imóvel dos Autores, distantes menos de 1,50 metros do imóvel dos Demandados, aberturas essas as quais permitiam aos Demandantes e seus antecessores ocuparem parcialmente o imóvel dos Réus.
5 - Com efeito, nessa altura, há cerca de 70-80 anos e sem prejuízo de o prédio dos Demandantes ter acesso directo à via pública, mais concretamente, à Rua (...), os anteriores donos do prédio dos Demandantes utilizavam a abertura aludida em 4) situada ao nível do rés-do-chão do aludido imóvel para, por essa via e de forma mais rápida, aceder a uma determinada rua pública por intermédio do logradouro do prédio dos Demandados;
6 - Sem prejuízo, há cerca de 50-60 anos o acesso directo permitido por tal abertura à referida rua pública ficou impossibilitado por força da oposição a tal passagem manifestada pelos proprietários de prédio confinante com os dos Autores e dos Réus;
7 - Tendo, nesse seguimento, os antecessores dos Autores passado a manter fechada a abertura situada no r/c do respectivo imóvel.
8 - Durante, pelo menos, cerca de 70-80 anos, o prédio dos Autores beneficiou das referidas aberturas com as funcionalidades de porta e de janela, situadas, respectivamente, no r/c e no 1º andar do respectivo imóvel e identificadas em 4), aberturas essas, as quais foram construídas e mantidas à vista de todos, mantendo-se ininterruptamente a deitar para o logradouro/pátio do prédio dos Réus ao longo do referido período temporal, sem oposição de ninguém, na convicção por parte dos Autores e seus antecessores de que exerciam um direito de servidão de vistas e que não lesavam direitos de terceiros, designadamente, dos Demandados e seus antecessores.
9 - Em 2007-2008, por sua livre vontade e no âmbito de uma obra de reconstrução do respectivo imóvel, os Autores resolveram demolir a parede onde se situavam as aberturas aludidas em 4), erguendo, no mesmo local, uma parede nova;
10 - Parede esta que, sensivelmente nos mesmos locais onde existiam as aberturas aludidas em 4), conta com 2 conjuntos de aberturas - 4 ao nível do r/c do prédio dos Autores e 3 ao nível do 1º andar do mesmo imóvel - que deitam para o logradouro/pátio do prédio dos Réus, situando-se a menos de 1,5 metros deste.
11 - As primeiras 4 aberturas aludidas em 10) apresentam, ao nível do r/c do imóvel dos Autores, cerca de 1,08 metros de altura e entre 0,175 a 0,20 metros de largura;
12 - Apresentando, por sua vez, as 3 aberturas ao nível do 1º andar do prédio dos Demandantes, igualmente 1,08 metros de altura e entre 0,18 e 0,22 metros de largura.
13 - Ainda no âmbito das obras de reconstrução do imóvel dos Autores aludidas em 9) a 12), os Autores colocaram, nas divisões de casa de banho, no r/c, e cozinha, no 1º andar, duas janelas, as quais deitam directamente para os locais onde existiam anteriormente as aberturas aludidas em 4) e onde se encontram, actualmente e desde 2007, as aberturas referidas em 10) a 12).
14 - Assim, desde 2007-2008, a abertura com a funcionalidade de porta reconvertida em abertura com a funcionalidade de janela sita no r/c do prédio dos Autores a uma distância de 1,88 metros do solo, a qual, desde então, dispõe de 1,70 m de largura e 1,01 metros de altura, sendo enquadrada por caixilhos, deita directamente para três elementos verticais em tijolo do muro aludido em 11), elementos verticais esses que, por sua vez, deixam entre si duas aberturas, a da esquerda, com 0,20 metros e, a da direita, com 0,175 metros de largura, tendo ambas as aberturas 1,08 metros de altura.
15 - Por sua vez, desde 2007-2008, a abertura com a funcionalidade de janela sita no 1º andar do prédio dos Autores a uma distância de 1,17 metros do pavimento, com 1,69 metros de largura e 1,08 metros de altura, bem como enquadrada por caixilhos, deita directamente para quatro elementos verticais em tijolo, os quais deixam entre si três aberturas com as larguras respectivas de 0,22 metros, 0,22 metros e 0,18 metros, dispondo todas as referidas aberturas de altura idêntica de 1,08 metros e estando a terceira abertura (com 0,18 metros de largura) actualmente enquadrada por 4 tijolos de vidro.
16 - Tendo em vista a realização da obra de reconstrução do imóvel dos Autores aludida em 9), os Demandantes apresentaram um projecto na Câmara (...), projecto esse o qual previa inicialmente a existência de aberturas aí denominadas de “frestas” na parede contígua à propriedade dos Réus, situadas tais frestas ao nível do r/c do imóvel dos Autores, mas não ao nível do respectivo 1º andar.
17 - Posteriormente, e antes de a Câmara Municipal se pronunciar definitivamente sobre tal projecto, os Autores apresentaram em Março de 2007 novo projecto de alterações, projecto este o qual continuava a contemplar a existência de aberturas denominadas de “frestas” na parede situada na confrontação com o prédio dos Réus ao nível do r/c e que foi definitivamente aprovado.
18 - Em 2013-2014, os Réus ergueram, nos limites do seu prédio e na confrontação com o prédio dos Autores, contramuro com altura até ao telhado do imóvel dos Demandantes, deixando um espaço inferior a 1,5 metros entre tal contramuro e as aberturas identificadas em 10) a 12) situadas no muro / parede construída pelos Autores em 2007-2008;
19 - E, desse modo e por essa via, tapando as aberturas aludidas em 10) a 12) com cerca de 0,18 a 0,22 -metros de largura e 1,08 metros de altura para onde deitavam as janelas situadas ao nível do r/c e do 1º andar do prédio dos Autores mencionadas em 13).
20 - Aquando da construção do contramuro aludido em 18), a Autora, por se encontrar em casa nesse momento, teve conhecimento da realização da obra, não tendo manifestado ao empreiteiro e seus auxiliares qualquer oposição a que estes realizassem tal obra.
21 - Por força do contramuro aludido em 18) e 19), os compartimentos de casa de banho, no r/c, e de cozinha, no 1º andar, situados no imóvel dos Autores, os quais, antes de tal obra, beneficiavam de ar, luz e vistas, sendo arejados e usufruindo de luz solar, passaram a ser mais sombrios.
22 - Atento o referido em 18), 19) e 21), os Autores ficaram revoltados pelo facto de verem as janelas aludidas em 13) emparedadas e, como tal, impossibilitadas de deixar entrar ar e luz.
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Factos não provados:

O Tribunal a quo considerou como não provados os factos seguintes:

A. Que, há mais de 50/60 anos atrás, os prédios dos Autores e dos Réus identificados em 1) e 2) constituíssem uma construção detida por um único proprietário.
B. Que as aberturas aludidas em 4) já existissem aquando da construção inicial do prédio dos Autores, tendo a abertura com a funcionalidade de porta aí mencionada sido reconvertida há mais de 20 – 30 anos em abertura com a funcionalidade de janela.
C. Que, aquando da construção da obra aludida em 18), os Réus, através do irmão da 1ª Demandada, tivessem transmitido aos Autores a sua intenção de levantar contramuro na propriedade dos Demandados junto à parede dos Demandantes.
D. Que tal contacto também tivesse sido promovido por S. M., sobrinha da 1ª Ré e arquitecta de profissão, a qual teria esclarecido os Autores de que a obra referida em 18) se destinava a vedar as aberturas aludidas em 10) a 12) e que a mesma era legal, uma vez que tais aberturas configuravam “frestas”.
E. Que a abertura com a funcionalidade de porta aludida em 4), apenas tivesse sido edificada por tolerância do pai da 1ª Ré, o qual, por razões de boa vizinhança, tolerava que os antecessores dos Autores utilizassem o logradouro do prédio dos Réus para acederem à Rua (...).
F. Que, em função do referido em 6), o pai da Ré tivesse pedido aos antecessores dos Autores que procedessem ao fecho da abertura com a funcionalidade de porta aludida em 4), o que os antecessores dos Demandantes aceitaram, tapando tal abertura com 2 tábuas de madeira, e mantendo igualmente a abertura com a funcionalidade de janela situada ao nível do 1º Andar do prédio dos Autores sempre fechada a pedido daquele.
G. Que o projecto de reconstrução do imóvel dos Autores aprovado definitivamente pela Câmara Municipal não incluísse as aberturas denominadas de “frestas” localizadas ao nível do R/C daquele prédio, uma vez que a existência destas teria sido reprovada pelos serviços do Município, sendo aquele projecto, como tal, alterado em conformidade a fim de não prever tais aberturas.
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2.2. Do objecto do recurso

2.2.1. Da servidão de vistas

O prédio urbano dos Réus confronta a sul com o prédio urbano dos Autores.

Há mais de 70-80 anos, existiam, na parede do prédio dos Autores que confronta com o logradouro/pátio do prédio dos Réus situado a sul daquele imóvel, duas aberturas, a primeira com a funcionalidade de porta, situada ao nível do rés-do-chão do prédio dos Autores e, a segunda, com a funcionalidade de janela, situada ao nível do 1º andar do aludido imóvel dos Autores, distantes menos de 1,50 metros do imóvel dos Réus. Essas aberturas permitiam aos Autores e seus antecessores ocuparem parcialmente o imóvel dos Réus.
A sentença recorrida condenou os Réus a reconhecer que a porta e janela existentes, até 2007/2008, na parede norte do prédio dos Autores importaram a constituição, a favor do imóvel destes, de uma servidão de vistas, adquirida por usucapião.
A aquisição de tal servidão de vistas por usucapião é questão incontrovertida, uma vez que os Réus não recorreram desse segmento desfavorável da sentença.

Como é sabido, a servidão é uma das limitações ou restrições ao direito de propriedade, na medida em que, inibindo o dono do prédio onerado de praticar actos que possam prejudicar o exercício da servidão, restringe o gozo efectivo do direito de propriedade pelo aludido dono. Caso não esteja constituída uma servidão, nos termos do artigo 1360º, nº 1, do Código Civil, o proprietário que no seu prédio levantar edifício ou outra construção não pode abrir nela janelas ou portas que deitem directamente sobre o prédio vizinho sem deixar entre este e cada uma das obras o intervalo de pelo menos metro e meio.

Uma vez constituída a servidão de vistas, ao proprietário vizinho só é permitido levantar edifício ou outra construção no seu prédio desde que deixe entre o novo edifício ou construção e as «janelas, portas, varandas, terraços eirados ou obras semelhantes» o espaço mínimo de metro e meio, correspondente à extensão destas obras - artigo 1362º, nº 2, do Código Civil. Consequentemente, o dono do prédio dominante, cujas janelas e portas são objecto da servidão de vistas, tem o direito de impedir o proprietário vizinho de vedar a servidão ou limitar a sua total fruição. Pode, pois, o titular da dita servidão opor-se ao exercício de direitos de gozo pelo titular do prédio vizinho que a afectem.

Portanto, se estivessem em causa a janela e a porta relativamente às quais se constituiu a servidão de vistas, os Autores teriam inequivocamente o direito de exigir a demolição do muro construído pelos Réus.
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2.2.2. Da demolição e reconstrução da parede

Em 2007-2008 os Autores demoliram a parede onde se situavam a janela e a porta, erguendo, no mesmo local, uma parede nova, na qual, sensivelmente nos mesmos locais onde existiam as referidas aberturas, inseriram dois conjuntos de aberturas, sendo quatro ao nível do rés-do-chão do prédio dos Autores e três ao nível do 1º andar do mesmo imóvel. Essas novas sete aberturas deitam para o logradouro/pátio do prédio dos Réus, situando-se a menos de 1,5 metros deste. As primeiras quatro aberturas apresentam, ao nível do rés-do-chão, cerca de 1,08 metros de altura e entre 0,175 a 0,20 metros de largura; as três aberturas ao nível do 1º andar apresentam igualmente 1,08 metros de altura e entre 0,18 e 0,22 metros de largura.

Na parte interior do prédio, os Autores colocaram, nas divisões de casa de banho, no rés-do-chão, e cozinha, no 1º andar, duas janelas, as quais deitam directamente para os locais onde existiam anteriormente as duas aberturas aludidas em 4) e onde se encontram, actualmente e desde 2007, as sete aberturas atrás referidas. Segundo se lê na sentença, “desde 2007-2008, a abertura com a funcionalidade de porta reconvertida em abertura com a funcionalidade de janela sita no rés-do-chão do prédio dos Autores a uma distância de 1,88 metros do solo, a qual, desde então, dispõe de 1,70 m de largura e 1,01 metros de altura, sendo enquadrada por caixilhos, deita directamente para três elementos verticais em tijolo do muro aludido em 11), elementos verticais esses que, por sua vez, deixam entre si duas aberturas, a da esquerda, com 0,20 metros e, a da direita, com 0,175 metros de largura, tendo ambas as aberturas 1,08 metros de altura”. Mais refere que “por sua vez, desde 2007-2008, a abertura com a funcionalidade de janela sita no 1º andar do prédio dos Autores a uma distância de 1,17 metros do pavimento, com 1,69 metros de largura e 1,08 metros de altura, bem como enquadrada por caixilhos, deita directamente para quatro elementos verticais em tijolo, os quais deixam entre si três aberturas com as larguras respectivas de 0,22 metros, 0,22 metros e 0,18 metros, dispondo todas as referidas aberturas de altura idêntica de 1,08 metros e estando a terceira abertura (com 0,18 metros de largura) actualmente enquadrada por 4 tijolos de vidro”. Ao fim e ao cabo, as sete aberturas no exterior são antecedidas, na parte de dentro do imóvel dos Autores, por duas janelas: uma janela está por trás de três aberturas no exterior e a outra antecede quatro aberturas.

Os Autores qualificam tais (sete) aberturas como janelas, enquanto o Sr. Juiz a quo as qualificou como frestas irregulares.

Quanto a nós, entendemos que se trata inequivocamente de frestas (e não janelas) irregulares, prevalecendo a sua projecção para o exterior.

Do cotejo dos artigos 1360º, nº 1, e 1360º, nºs 1 e 2, do Código Civil, resulta existirem três tipos de aberturas (2):

a) Janelas: aberturas com mais de 15 centímetros numa das suas dimensões, onde cabe uma cabeça humana, munidas de sistemas que podem abrir-se e fechar-se, permitindo a entrada de ar e luz, e ainda o debruçamento das pessoas nos seus parapeitos e gozo de vistas;
b) Frestas, seteiras ou óculos: aberturas com não mais de 15 centímetros numa das suas dimensões e que se situam a pelo menos 180 centímetros, a contar do solo ou do sobrado, destinadas à entrada de ar e luz.
c) Aberturas irregulares: aberturas com uma altura inferior 180 centímetros e/ou fora das medidas previstas no artigo 1363º, nº 2, do Código Civil, ou seja, não toleradas por lei.

As sete aberturas não podem ser qualificadas como janelas, desde logo por não permitirem o debruçamento sobre o prédio dos Réus. Não são frestas regulares, uma vez que têm largura e altura superior a 15 centímetros. Como têm todas as sete uma altura de 1,08 m e uma largura de 0,18 a 0,22 m, são aberturas irregulares e, dentro destas, frestas irregulares, uma vez que assumem características idênticas às frestas, embora com dimensões superiores às legalmente previstas.
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2.2.3. Das frestas irregulares

É unânime o entendimento de que, destruída e reconstruída a parede, o proprietário dominante pode nela abrir de novo janelas, desde que entretanto não tenha decorrido o prazo exigido para a extinção da servidão pelo não uso, e estas venham a ocupar precisamente o mesmo local onde existiam as antigas e mantenham as mesmas dimensões e se situem à mesma distância (ou a distância superior) do prédio vizinho (3).

In casu, no lugar onde antes existiam uma porta e uma janela há agora, desde 2007/2008, sete frestas irregulares.

Modificou-se a natureza das aberturas, que se transmutaram para uma realidade diferente, com a correspondente alteração das utilidades susceptíveis de ser retiradas de tais aberturas. Na perspectiva do prédio dos Autores, actualmente permitem uma visão mais limitada e a entrada de luz e, se se abrirem as janelas “acopladas” pelo interior, ar.

Desde já se reconhece a inteira razão do Tribunal a quo ao dizer que os Réus tinham o direito de vedar tais novas aberturas à luz do artigo 1363º, nº 1, do Código Civil.

Em primeiro lugar, o título dos Autores corresponde a uma servidão de vistas e não outra qualquer realidade. Ora, os Autores pretendem exercer o conteúdo de uma servidão de vistas, que tinha sido constituída relativamente a uma janela e uma porta, quando agora o que existe são sete frestas irregulares. Isso corresponde a exercer a servidão, que era de vistas, para algo que já não é inerente a uma servidão de vistas. O título constitutivo está a ser usado para algo diferente daquilo que proporcionou a sua aquisição por usucapião. O que os Réus e os seus antecessores toleraram foi, por relações de boa vizinhança, a existência de uma janela e de uma porta e não de sete aberturas irregulares.

Em segundo lugar, como salientou a sentença recorrida, «haverá que referir terem as frestas, ao contrário das portas e das janelas, a particularidade de permitirem “ver” sem “ser visto”, aspecto esse que melhor permite a devassa do prédio vizinho, na medida em que torna mais difícil ou impossível a detecção da mesma. (…) Se antes os Réus poderiam saber estarem a ser vistos pelos Autores através da porta ou da janela pré-existentes, na medida em que sempre tal visionamento pressuporia a abertura de tais porta e janela, agora que, no prédio dos Demandantes existem duas janelas a dar para as aberturas proporcionadas pelo conjunto das referidas frestas, estes podem ver aqueles sem serem vistos (ou sendo mais dificilmente vistos nessas circunstâncias), o que naturalmente aumenta a gravidade da devassa e aumenta a possibilidade de esta vir a ocorrer».

Em terceiro lugar, mesmo que se desconsiderassem os dois primeiros fundamentos acabados de expor, sempre nos depararíamos, no nosso entender, com um obstáculo intransponível, relacionado com a insusceptibilidade de aquisição por usucapião de uma servidão de vistas através da posse das utilidades inerentes a uma fresta irregular.

Nessa matéria a jurisprudência dos tribunais superiores é actualmente, ao que se julga, quase uniforme, conforme pode ser constatado nos acórdãos da Relação de Coimbra de 11.10.2017 (Maria João Areias), da Relação de Guimarães de 07.12.2006 (Rosa Tching) e de 19.12.2007 (Augusto de Carvalho), da Relação de Évora de 30.11.2016 (Tomé de Carvalho) e 12.10.2017 (Sequinho dos Santos), da Relação do Porto de 11.12.2011 e de 22.02.2011 (Cecília Agante), e do STJ de 06.11.2008 (Pires da Rosa) e de 01.04.2008 (João Camilo), todos acessíveis em www.dgsi.pt. Na doutrina (4) v., por todos, Henrique Mesquita, na Revista de Legislação e Jurisprudência, 128. Segundo esta jurisprudência, de harmonia com o disposto no artigo 1362º, nº 1, do Código Civil, apenas a existência de janelas, portas, varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes, em contravenção do disposto na lei, pode importar, nos termos gerais, a constituição da servidão de vistas por usucapião. Não estão incluídas nessas obras as frestas, qualquer que seja a sua dimensão.

Em matéria de constituição de servidões vigora o princípio consagrado no artigo 1306º, nº 1, do Código Civil, onde se estabelece que «não é permitida a constituição, com carácter real, de restrições ao direito de propriedade ou de figuras parcelares deste direito senão nos casos previstos na lei; toda a restrição resultante de negócio jurídico, que não esteja nestas condições, tem natureza obrigacional». Assim, estando descritas no artigo 1362º, nº 1, do Código Civil, quais as construções susceptíveis de importarem a constituição de servidão de vistas, é inadmissível o recurso à analogia na constituição de servidão de vistas com fundamento em usucapião pela construção de frestas irregulares ou outras aberturas irregulares. A servidão de vistas está reservada para os casos previstos no artigo 1362º, nº 1, do Código Civil.

Se não é possível, através da permanência de uma fresta irregular, adquirir por usucapião uma servidão de vistas, também, por identidade de razão, não é admissível exercer uma servidão de vistas mediante a abertura de uma fresta irregular.

Como se conclui no acórdão do STJ de 01.04.2008 (João Camilo): «Desta forma, a referida abertura, não respeitando as limitações previstas no art. 1363º, nº 2 do Cód. Civil, carece de dimensões para ser considerada janela, já que, de modo algum, permite que um corpo ou sequer uma cabeça humana se projecte através dela sobre o prédio vizinho dos recorrentes, pelo que não pode, pelo uso daquela, se ter constituído a alegada servidão de vistas impeditiva de os recorrentes a taparem através da construção de imóvel no prédio contíguo».

Em quarto lugar, o único plano em que os nossos tribunais superiores não têm mantido um entendimento uniforme ou, pelo menos, predominante é quanto à possibilidade de a permanência de aberturas irregulares conduzir à aquisição de uma servidão atípica. O Código Civil não é expresso no tratamento a dar às aberturas irregulares e a questão tem suscitado divergências na jurisprudência, embora actualmente se possa afirmar que existe uma tendência dominante, que é a de negar a possibilidade de constituição desse tipo de servidões.

Na jurisprudência existem essencialmente três correntes. Uma primeira (5), apoiando-se no princípio do numerus clausus, entende que as aberturas que não obedeçam aos requisitos legais não originam a aquisição de qualquer servidão sobre o prédio por elas afectado, cujo proprietário poderá, em qualquer momento, exigir que sejam modificadas e postas em conformidade com a lei. Uma segunda (6), defende que tais aberturas irregulares poderão levar à constituição de uma servidão atípica, por usucapião, impedindo o titular do prédio serviente de pedir a sua modificação e harmonização com a lei. Uma terceira (7), apoiando-se na doutrina de Henrique Mesquita (8), sustenta que podendo a servidão ter por objecto quaisquer utilidades susceptíveis de serem gozadas através de outro prédio, decorrido o prazo necessário à usucapião, o proprietário adquire uma servidão de ar e de luz, que lhe confere o direito a manter tais aberturas em condições irregulares, mas o proprietário vizinho não perde o direito de construir mesmo junto à linha divisória, ainda que tape as frestas.

Nesta ordem de ideias, temos que também de harmonia com estas três correntes jurisprudenciais os Autores não dispõem do direito de exigir a demolição do muro erguido pelos Réus no limite da sua propriedade. Mesmo para a segunda, que admite a constituição de uma servidão atípica pelo decurso do prazo necessário para haver usucapião e a impossibilidade de o proprietário do prédio serviente construir a menos de 1,5 m da abertura irregular, sempre se colocaria o problema da falta de título bastante para o seu exercício. Constituindo as novas aberturas frestas irregulares, aos Réus sempre seria permitido erguer contramuro com base no disposto no artigo 1363º, nº 1, do Código Civil, «na medida em que não ultrapassado, aquando de tal construção, o prazo da usucapião tendente à constituição de uma servidão atípica a favor do prédio dos Autores», tal como correctamente se aponta na sentença recorrida.

Quer isto dizer que, vista a questão sob que prisma for, sempre os Autores carecem do direito que alegam, atento o facto de agora estarem a ser exercidas utilidades inerentes a frestas irregulares.

Assim sendo, é lícito o comportamento dos Réus, traduzido na construção do muro, não podendo ser condenados a demoli-lo com o fundamento alegado pelos Autores, pelo que fica prejudicado o conhecimento das demais questões.
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2.3. Sumário

1 – Tendo existido durante mais de 70 anos e até 2007/2008, sem qualquer oposição, uma porta e uma janela na parede norte do prédio dos Autores que confina a sul com o dos Réus, tal facto importou a constituição a favor do imóvel daqueles de uma servidão de vistas, adquirida por usucapião.
2 – Em 2007/2008 os Autores demoliram a parede onde se situavam a janela e a porta, erguendo, no mesmo local, uma parede nova, na qual, sensivelmente nos mesmos locais onde existiam as referidas aberturas, inseriram dois conjuntos de aberturas, num total de sete.
3 – Sete aberturas numa parede, cada uma com uma altura de 1,08 m e uma largura de 0,18 a 0,22 m, constituem aberturas irregulares e, dentro desta categoria, frestas irregulares, uma vez que assumem características idênticas às frestas.
4 – A servidão de vistas constituída relativamente à porta e à janela anteriormente existentes não é susceptível de ser exercida através das frestas irregulares agora existentes.
5 – Os Autores não dispõem de título que impeça os proprietários vizinhos de exercer os direitos que lhe assistem relativamente às actuais frestas irregulares, as quais se encontram em contravenção do disposto na lei.
6 – Assistia aos Réus a faculdade de levantar contramuro, em conformidade com o disposto no artigo 1363º, nº 1, do Código Civil.
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III – DECISÃO

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelos Recorrentes.
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Guimarães, 25.10.2018
(Joaquim Boavida)
(Paulo Reis)
(Joaquim Espinheira Baltar)


1. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, Almedina, 2018, pág. 115
2. Seguimos de perto a categorização que é feita no acórdão desta Relação de Guimarães, de 07.12.2006 (Rosa Tching), acessível em www.dgsi.pt.
3. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. III, 2ª edição, 1987, págs. 220 e 221.
4. Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág. 225, defendem que a abertura de uma fresta irregular, decorrido o prazo necessário para haver usucapião, conduz à aquisição de uma servidão “denominada ou não servidão de vistas”. Ou seja, estes autores admitem a constituição da servidão, mas não se comprometeram com a sua qualificação como de “vistas”. Apesar disso, abundam as citações a considerar que os aludidos autores qualificam a servidão assim adquirida como sendo de vistas, o que não se mostra em conformidade com o que se acaba de transcrever.
5. Acórdãos da Relação de Coimbra de 11.10.2017 (Maria João Areias) e da Relação de Évora de 30.11.2016 (Tomé de Carvalho) e 12.10.2017 (Sequinho dos Santos).
6. Acórdãos da Relação de Guimarães de 07.12.2006 (Rosa Tching) e do STJ de 01.04.2008 (João Camilo).
7. Acórdãos da Relação de Coimbra de 21.05.2013 (Alberto Ruço) e de 03.03.2015 (Alexandre Reis), Acórdão Relação do Porto de 22.02.2011 (Cecília Agante), da Relação de Guimarães de 19.12.2007 (Augusto Carvalho), Relação de Évora de 30.11.2016 (Tomé de Carvalho) e do STJ de 03.04.2003 (Santos Bernardino) e de 07.02.2002 (Neves Ribeiro).
8. RLJ, 128, pág. 151, onde, com indiscutível atenção às relações de vizinhança, fundamenta a sua posição: «A cada passo são abertas, em paredes construídas a menos de metro meio da linha divisória, fretas que, sem assumirem a configuração de uma janela, medem mais de 15 cm ou se situam a uma altura inferior à fixada na lei. E a experiência mostra, também, que os proprietários confinantes têm tendência a não reagir contra estas pequenas violações da lei, quer porque não lhes causam dano apreciável, quer porque uma atitude de intransigência criaria necessariamente um clima de hostilidade nas relações de vizinhança, que o comum das pessoas procura evitar. Se se generalizasse, porém, o entendimento de que a existência de frestas em condições diferentes das fixadas na lei pode conduzir à aquisição, por via possessória, de uma servidão de vistas, com o efeito mencionado, relativamente às janelas e outras obras, no nº 2 do artigo 1362º (imposição aos donos dos prédios servientes, de uma zona ou espaço non aedificandi), os proprietários confinantes sentiriam necessidade de reagir imediatamente contra toda a violação do regime legal, por mais insignificante que ela fosse».