Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
729/08.5TABGC-B.G1
Relator: TERESA COIMBRA
Descritores: REVOGAÇÃO DA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
CRIME DE BURLA
REPARAÇÃO DO MAL DO CRIME
AVALIAÇÃO DAS RAZÕES DO INCUMPRIMENTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/08/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
1. A um arguido condenado pela prática de um crime de burla numa pena de prisão suspensa com a condição de devolver aos burlados o dinheiro com que ilicitamente se locupletou, deve exigir-se que sinta como obrigação primeira o cumprimento da condição imposta.
2. Se, findo o prazo concedido para o efeito e sucessivamente prorrogado por força de justificações apresentadas, se constata que a quantia não foi devolvida e que as justificações carecem de seriedade, deve a suspensão ser revogada.
3. Na avaliação das razões do incumprimento, o comportamento do condenado deve ser apreciado pelo olhar de um cidadão bem formado, ou pelo menos, medianamente diligente e cumpridor.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os juízes da secção penal do tribunal da Relação de Guimarães.

I.
No processo comum com intervenção do tribunal coletivo que, com o nº 729/08.5TABGC, corre termos no juízo central cível e criminal de Bragança foi decidido não revogar a suspensão da execução da pena de três anos de prisão aplicada ao arguido A. F. e declarar extinta a pena imposta, não obstante não ter cumprido, em igual prazo, a condição de pagar aos assistentes a quantia de 49.880€, em prestações mensais, iguais e sucessivas.
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Inconformados com a decisão recorreram os assistentes concluindo a sua motivação do seguinte modo (transcrição):

1º A decisão recorrida consubstancia uma solução que não consagra a justa e correcta aplicação das normas e dos princípios jurídicos adequáveis, não podendo a mesma manter-se.
2º O ora Recorrido, foi condenado, pelo Tribunal de 1ª Instância, a uma pena de prisão de três anos, suspensa na sua execução por igual período, sujeita ao cumprimento de determinadas injunções e deveres (Cfr. artigo 51º do Código Penal – CP).
3º Dessa decisão o recorrido recorreu para o tribunal superior, tendo o mesmo mantido, na íntegra, o Acórdão proferido pela 1ª Instância.
4º No caso dos autos foi imposto ao recorrido o dever de, durante o prazo da suspensão (três anos), proceder ao pagamento da quantia de quarenta e nove mil oitocentos e oitenta euros (49.880€), em prestações mensais e sucessivas, acrescida dos respectivos juros de mora.
5º Ora, desde o trânsito em julgado do Acórdão emanado pelo Tribunal da Relação do Porto (18-06-2013) e até à presente data, o arguido apenas liquidou a importância de vinte mil euros (20.000 €), valor que somente pagou após insistentes interpelações dos Recorrentes.
6º Restando ainda, ao recorrido, pagar 29.880€ (vinte e nove mil oitocentos e oitenta euros).
7º Sucede, porém que, em 23/11/2020, foi proferido despacho pelo Tribunal de 1ª Instância que julgou extinta a pena de prisão suspensa aplicada ao recorrido.
8º São três as questões essenciais na apreciação daquela decisão: por um lado, os recorrentes que a motivação e convicção do Tribunal a quo mostra-se contrária à lei; e por outro, inexiste matéria de facto suficiente para emanar tal decisão; e, consequentemente, verifica-se o erro na apreciação da matéria de facto.
Assim vejamos,
9º A suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao ora recorrido terminaria em Agosto de 2016, mas antes da extinção da suspensão da pena, os recorrentes manifestaram ao Tribunal de 1ª Instância o incumprimento sucessivo do recorrido.
10º Os Recorrentes juntaram aos autos inúmeros requerimentos alegando o incumprimento do dever que havia sido imposto ao Recorrido no Acórdão de condenação, em virtude dosquais, em22deMaio de2017, veio o Tribunal aquo proferir despacho impondo novos deveres ao Recorrido, designadamente, prorrogar por 24 meses o período de suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido; impor ao arguido o novo dever de pagar o remanescente da quantia em divida aos recorrentes (18.500€ - dezoito mil e quinhentos euros), em três prestações iguais, semestrais e sucessivas, vencendo-se a primeira no dia 17/06/2017, a segunda no dia 17/12/2917 e a terceira e última no dia 17/06/2018.
11º Ao longo deste período o recorrido apresentou argumentos fantasiosos por forma a justificar o seu incumprimento, tendo inclusivamente juntado aos autos extractos bancários dos quais se vislumbra que o mesmo aufere em Angola, onde reside e exerce a profissão de Engenheiro Electrotécnico, milhares de euros por mês, tendo residido anteriormente em Marrocos, exercendo a mesma profissão e auferindo os mesmos valores.

12º O carácter duvidoso da argumentação do recorrido afiança-se nos comportamentos que no decurso dos autos adoptou, tendo chegado a enviar comprovativos de uma transferência que jamais efectuou, mas que foi dada como verdadeira pelo Tribunal a quo como fundamento de facto para decidir que se mostrava extinta a pena que foi imputada ao recorrido.
13º Em 03 de Junho de 2019, em sede de audição do Recorrido, o recorrido comprometeu-se a pagar a quantia de sete mil e quinhentos euros (7500€), aos recorrentes, no prazo de seis meses. Até à presente data o recorrido nada pagou, nem manifestou qualquer interesse em fazê-lo.
13º Existem, assim, fortes indícios de que o recorrido nunca teve qualquer intenção de cumprir a condição que determinou a suspensão da execução da pena de prisão.
14º Acresce, ainda referir que, o registo criminal do recorrido é extenso e diz respeito aos mesmos tipos de crime, burla e falsificação de documentos.

Por outro lado,
15º A crise económico-financeira da República Angolana, país onde atualmente reside o recorrido, não pode ser o “bode expiatório” para expurgar a responsabilidade criminal que lhe foi acometida pelo Acórdão proferido em 1ª Instância e confirmado pela Relação. Crise essa que não se verificava quando o recorrido foi pela primeira vez para Angola, gozando, assim, de meios económico-financeiros para cumprir as suas obrigações, não o fazendo, apenas porque não quis.
16º Crê-se, deste modo, não existirem motivações para fazer extinguir a pena de prisão suspensa, já que o recorrido ainda não cumpriu o dever que lhe foi imposto, apesar de gozar de meios económico-finaceiros para concluir o pagamento do remanescente.
17º Mostra-se, assim, evidente que o recorrido violou repetidamente o dever imposto, agindo, desse modo, com culpa grosseira, no incumprimento da obrigação, violando o disposto nos artigos 55º e 56º do CP.
18º De facto, a revogação da suspensão da pena de prisão tem que ser considerada pelo julgador como um último recurso.Para tanto, o arguido deverá ter um comportamento significativamente culposo, de modo a colocar em causa a esperança de que o mesmo se pode recuperar.
19º São dois os fundamentos da revogação da suspensão da pena de prisão - para aplicação da pena de prisão efectiva -, o incumprimento grosseiro ou repetido dos deveres impostos; e o cometimento de crime e respectiva condenação.
20º Conforme vem sendo decidido pela doutrina e jurisprudência portuguesas, o incumprimento grosseiro é o que resulta de uma atitude particularmente censurável de descuido ou leviandade, aqui se incluindo a colocação intencional do condenado em situação de incapacidade de cumprir os deveres ou regras de conduta impostos. Já o incumprimento repetido resulta da atitude do condenado de leviandade prolongada no tempo, revelando uma postura de desprezo pelas limitações resultantes da condenação. – Veja-se Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 06/12/2017, publicado em www.dgsi.pt
21º Não restam dúvidas que, no caso em apreço, estamos perante o incumprimento repetido do dever de pagamento da quantia imputada ao recorrido pelo Acórdão proferido pela 1ª Instância e a violação grosseira desse mesmo dever.
22º Recorrido alega, em sua defesa, que não aufere de meios económico-financeiros suficientes para fazer face ao pagamento da quantia em que foi condenado, por um lado, e por outro, escuda-se no facto de não conseguir enviar as divisas para Portugal.
23º Refutando as suas alegações, poder-se-á dizer que, por um lado os extractos bancáriosqueorecorridojuntacomassuasrespostas,vislumbra-sealiquidez financeira do mesmo, suficiente para honrar os seus compromissos; e por outro, não obstante o atraso das divisas a chegar Portugal, verdade é que elas chegam, e o recorrido nada faz para pagar aos recorrentes.
24º Nesse sentido, dir-se-á que, a transferência que o recorrido alega ter efectuado, jamais ingressou na conta bancária dos recorrentes.
25º Emface doexposto, verificando-se,porumlado,oincumprimento repetidodo dever imposto e a violação grosseira desse mesmo dever, por outro, entendemos que se mostram preenchidos os pressupostos para revogar a suspensão da execução da pena de prisão decretada ao recorrido.
26º Mais se acrescenta, que por despacho datado de 15/01/2019 veio o Tribunal a quo notificar o recorrido para juntar aos autos “o extracto da conta, referente ao período temporal de 1/5/2018 até Fevereiro de 2019, acompanhada de declaração emitida pela dependência bancária da sua domiciliação que ateste as razões da eventual retenção da transferência.
27º Nesse sentido, veio o recorrido, em 24/01/2019, juntar aos autos uma cópia de um artigo de um Jornal, datado de 29/06/2018; uma cópia da “conta corrente Bancária complementar”, com movimentos verificados entre 02/05/2018 e 05/11/2018; uma cópia do pedido ao Banco ...; duas cópias de mensagens trocadas entre o recorrido e a JAR, através de correio electrónico, que também desconhecem os recorrentes de quem se trata.
28º Não resulta, deste modo, dos documentos juntos aos autos pelo recorrido, a pendência da transferência bancária que o mesmo alega ter efectuado para a conta bancária dos recorrentes, de modo a liquidar algumas das prestações em divida, contrariamente ao que é proferido no despacho de que ora se recorre.
29º Atento o exposto, pode assim, dizer-se que os argumentos do recorrido se mostram frustrados.
30º O Recorrido, individuo de caracter suis generis, usou da sua astúcia para ludibriar o Tribunal a quo, tendo-se visto na obrigação de lhe extinguir a pena antes de a ter cumprido.
31º Refira-se, ainda quehánegligência grosseira(ouviolação grosseira)quando estamos perante uma atitude particularmente censurável de leviandade ou descuido perante o “comando jurídico-penal”, plasmando nele qualidades particularmente censuráveis de irresponsabilidade e insensatez.
32º No caso que levamos à consideração do Tribunal ad quem, nenhum esforço foi feito pelo recorrido, no sentido de cumprir a obrigação imposta pelo Tribunal recorrido, da qual dependia a sua liberdade.
33º Em face do exposto, é incompreensível que o Tribunal a quo entenda não existir por parte do recorrido uma violação grosseira, uma fuga preconizada pelo recorrido às suas responsabilidades.
34º E os três anos atrás? Quanto ganhou, quanto pagou, quanto enviou para Portugal? A crise económico-financeira assolou a República Angolana em finais de 2014, até lá o recorrido teve todo o tempo do mundo para fazer cessar o seu dever, mas não o fez. E questiona-se porquê? Falta de vontade? Não interiorização da pena que lhe foi acometida?
35º Entende-se,assim,que há umerro de análise do Tribunal a quo, quando esteassume como verdadeiras as alegações infundadas do recorrido.
36º Por conseguinte, mostra-se evidente que o incumprimento injustificado do dever de pagar aos Recorrentes a quantia que lhe foi imposta, como garantia da suspensão da execução da pena de prisão aplicada, constituiuma situação de violação manifestamente grosseira.
37º E nesse sentido, poder-se-á dizer que a simples censura do facto e a ameaça de prisão jamais asseguraram as necessidades de prevenção geral e especial emergentes no caso em análise.
38º Pode, assim, afirmar-se estarmos perante a violação, por errada interpretação do Tribunal a quo, do disposto nos artigos 40º, 50º a 53º, 55º, 56º n.º 1 alínea a) e 57º todos do Código Penal.
39º A correcta interpretação e aplicação de todas estas normas, impunha, inelutavelmente, que como resultado necessário do sucessivo incumprimento verificado do pagamento da quantia fixada pelo Acórdão do Tribunal a quo deveria constituir uma condição da suspensão da execução da pena de prisão e que, em resultado de tais conclusões, fosse ordenada a revogação da suspensão da execução da pena de prisão em causa e o consequente cumprimento, pelo recorrido, da referida pena computada em três anos de prisão efectiva.
Nestes termos, deve ser dado provimento ao presente recurso penal e revogadoo douto acórdãorecorrido que declarou extinta a pena aplicada ao Recorrido.
Só assim se fazendo inteira e merecida Justiça, seguindo-se os ulteriores termos até final!
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Respondeu o ministério público em 1ª instância, pugnando pela manutenção da decisão.
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Remetidos os autos a este tribunal, também aqui o ministério público entendeu que o recurso não merece provimento.
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Foi cumprido o art.º 417.º nº 2 do Código de Processo Penal (CPP).
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Após os vistos, realizou-se conferência.
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II.
Cumpre apreciar e decidir, tendo em conta que são as conclusões que delimitam o objeto do recurso (art. 412 do CPP), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
Analisado o recurso dos assistentes temos que, em resumo, se impõe aferir se é de manter, ou não, a decisão de extinção da pena por força da não revogação da suspensão da execução da pena de prisão.
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É a seguinte a decisão recorrida (transcrição, sem notas de rodapé):
§ 1. A. F. foi condenado na pena de 3 anos de prisão suspensa por igual prazo, sob condição de pagar em prestações mensais e sucessivas de iguais montantes, a quantia de 49.880 € (quantia em capital1, após imputação dos 5 mil euros depositados – cf. ponto III-1)-B) e C) do acórdão condenatório transitado).
Por despacho de 15.9.2016, foi prorrogado por 18 meses o período da suspensão e alterou-se a forma de pagamento do remanescente então em dívida, que passou a ser de 3 prestações semestrais de iguais montantes.
Decorrido o prazo, cumpre decidir.
§ 2. Da quantia em causa, o condenado pagou 20.000 €.
§ 2.1. Dispõe o art. 56º, nº 1, alínea a) do Código Penal que “a suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso o condenado infringir grosseira e repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano individual de readaptação social”.
Por sua vez, dispõe também o artigo 55º, nº 1, do mesmo diploma que “se, durante o período de suspensão, o condenado, culposamente, deixar de cumprir qualquer dos deveres ou regras de conduta impostos, ou não corresponder ao plano de readaptação, pode o tribunal…”.
Da conjugação destas duas disposições, resulta que a revogação da suspensão da execução da pena por incumprimento de qualquer dever ou condição pelo condenado, só pode ocorrer se esse incumprimento se ficar a dever a culpa grosseira do mesmo (cf. Ac. do TRC de 11.10.2017, P. 53/09.6IDVIS.C1, dgsi).
A actuação com culpa grosseira equivale á actuação indesculpável, em que o cidadão comum não incorre, não merecendo ser tolerada – cf. Ac. do TRG de 19.1.2009, processo nº 2555/08.1, dgsi.
Ao contrário do que ocorre com o disposto no art. 49º3 CP quanto ao não pagamento da multa – em que é o condenado quem tem de provar que aquele não lhe é imputável, no regime da suspensão da pena, o condenado não tem de fazer tal prova – não se presume o carácter culposo do incumprimento, e muito menos uma culpa agravada (grosseira).
Na expressão lapidar do Ac. do TRP de 11.1.20124 “Não há qualquer disposição legal que faça recair sobre o condenado o ónus da prova da que o incumprimento do dever que condiciona a suspensão da pena não foi culposo”.
§ 2.2. Tendo em mente tais considerandos e olhando para o caso concreto, não se poderá concluir pela prova de uma violação grosseira, por banda do condenado.
Na verdade, o que perpassa dos autos, e a igual conclusão chegou o MP, é que o incumprimento parcial da obrigação de pagamento se deveu em grande medida à crise económica e de divisas que assola Angola (para onde o condenado foi trabalhar, deixando de auferir quaisquer rendimentos em Portugal: cf. doc. do Fisco de fl. 994), com salários em atraso e sobremaneira a impossibilidade prática de transferir divisas para fora de Angola – situação esta que constitui um verdadeiro facto público e notório e que, de resto, tem sido amplamente noticiado entre nós, pelas suas repercussões nefastas sobre as nossas empresas exportadoras.
De resto, o condenado juntou prova documental disso mesmo – p. ex., declaração bancária de fl. 980, da qual se extrai que um pedido de transferência de uma quantia de 4.100 €, de Angola para Portugal, ordenada em 4.5.2017 ainda não havia sido efectivada em 5.12.2107, sete meses depois(!) “a qual aguarda a disponibilidade de divisa internacional”; cf., ainda, a declaração da entidade patronal do condenado de fl. 1000, na qual reconhece haver salários em atraso, devendo ao condenado em Outubro de 2015 o montante de 9.822,225,00 Kwanzas (equivalendo a 12.658,23 € ao câmbio actual).
O contributo desse factor, exógeno ao condenado, basta, por si só, para afastar a caracterização de uma putativa culpa como “grosseira” – justamente porque lhe não é imputável.
Assim, sem necessidade de maiores considerações, e não havendo notícia da prática de qualquer outro crime na pendência da suspensão, resta-nos extinguir a pena.
§ 3. Termos em que julgo extinta a pena aplicada a A. F., nos termos do art. 57º1 CP.
Após trânsito, remeta boletins.
Notifique.
Oportunamente, arquive.
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Apreciação do recurso.

A apreciação do presente recurso interposto pelos assistentes impõe, para melhor compreensão do que está em causa, uma retrospetiva das vicissitudes processuais ocorridas nos autos, remontando, pelo menos, ao julgamento que teve lugar em 2012.
O arguido foi julgado pela prática de um crime de burla, consubstanciado no facto de ter levado os assistentes a celebrarem, em 19.03.2003, um contrato promessa de compra e venda e a entregarem-lhe a título de sinal 49.880€, relativamente a imóveis de que sabia não poder dispor.
No julgamento aceitou reembolsar os assistentes do montante recebido em prestações mensais de 2000€, que devia cumprir a partir do mês do trânsito, tendo depositado, antes do julgamento, a quantia de 5.000€.
O acórdão transitou em julgado em 17/06/2013.
O arguido pagou a primeira prestação em 04/10/2013 e a segunda em 21/11/2013.
Em janeiro e março de 2014 pagou mais 4.000€;
Em novembro e dezembro de 2015 pagou outros 4.000€;
Em fevereiro de 2016 pagou 1.500€, num total de 13.500€.
Em junho de 2016 os assistentes deram conta ao tribunal da falta de pagamento e requereram a revogação da pena.
Em 05/07/2016 o arguido justificou a falta de pagamento com o facto de ter 10 meses de salários em atraso ("perfazendo mais de 70.000 euros") por força da má situação dos trabalhadores portugueses em Angola, situação para a qual não via um desfecho positivo a curto prazo, razão pela qual deixou adiantado que requereria oportunamente o prolongamento da suspensão.
Manifestou intenção de cumprir e refutou a existência de "violação culposa ou grosseira".
Disse ainda que o queixoso com as suas atitudes conseguiu que a entidade patronal de Braga o despedisse, o que se não tivesse acontecido teria permitido que ocorressem os pagamentos em falta.
Na sequência destes posicionamentos o Ministério Público veio a manifestar o entendimento de que devia ser alterada a obrigação de pagamento, por forma a que a quantia ainda em falta fosse paga em três prestações semestrais sucessivas, a contar do fim do período de suspensão decretado e não mensalmente e, bem assim, a prorrogação do prazo de suspensão da execução da pena de prisão por mais 18 meses, isto é, até 17/12/2017.
Concordando com a promoção do MP, o tribunal prorrogou por 18 meses o período de suspensão da execução da pena de prisão, portanto, até 17/12/2017 e impôs o pagamento da quantia em dívida em três prestações semestrais, iguais e sucessivas.
Por ter havido dificuldade em notificar o arguido da decisão proferida o Ministério Público, considerando a desatualização da decisão promoveu a prorrogação por mais 24 meses do período de suspensão da pena.
Contra ela se insurgiram os assistentes uma vez que o arguido não mais pagou qualquer quantia, no entanto considerando o atraso da notificação da decisão, a pretensão do Ministério Público foi acolhida pelo tribunal que, ao abrigo do disposto no artigo 55º alínea c) e d) do Código Penal decidiu, em alteração do anteriormente determinado, prorrogar por 24 meses o período de suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido, ou seja, até 17/06/2018, mantendo a obrigatoriedade de pagar a quantia em dívida em 3 prestações, vencendo-se a primeira em 17/10/2017 (data corrigida a fls 966), a segunda em 17/12/2017 e a terceira em 17/06/2018.
Em 14/02/2017 o arguido juntou aos autos um requerimento acompanhado de um documento com o qual pretendeu atestar a "sua disponibilidade em liquidar paulatinamente o montante correspondente ao pedido de indemnização civil em que foi condenado, ai se encontrando explícita uma das razões da dificuldade em honrar o seu compromisso”, chamando a atenção para a data em que disse ter sido ordenada a transferência bancária (04/05/2017) e a data em que foi emitida a declaração que juntou (05/12/2017), ou seja, 7 meses, sem que tivesse sido realizada, desconhecendo o arguido quando o seria, o que inviabiliza involuntariamente e sem qualquer responsabilidade da sua parte qualquer tipo de pagamento aos queixosos.
Tendo sido entendido pelo Ministério Público que "a alegada impossibilidade poderá ser mero pretexto para o incumprimento, pois desde logo, nada se sabe sobre o que faz o arguido em Angola, quais os seus rendimentos, que bens o mesmo possui, onde reside", foi promovido que o arguido viesse documentar o cumprimento da prestação em falta, o que foi deferido em 12/01/2018.
Entretanto foram juntas aos autos informações sobre: a inexistência, em Portugal, de veículos em nome do arguido; o último desconto para a segurança social em Portugal ter ocorrido em abril de 2007; a inexistência de património imobiliário em Portugal; a inexistência da declaração de rendimentos relativos aos anos de 2013 a 2017; a existência nos anos de 2013 e 2014 de rendimentos da categoria B, respetivamente nos montantes de 454,92€ e 151,64€.
Foi oficiada a agência do Banco ... em ... para que informasse se ainda existia obstáculo à transferência solicitada.
Em 23/05/2018 o arguido juntou aos autos uma longa carta onde diz, muito em resumo, ser para si "um ponto de honra pagar aos autores o valor em causa"; que tentou pagar com a entrega de um apartamento em Marrocos (que o queixoso não aceitou porque obteve a informação de que o arguido "nada tinha naquele país"); que aceitou um convite para ir para a direção geral de uma empresa, em condições financeiras muito boas que lhe permitiriam pagar em 2 anos todos os problemas financeiros que tinha; que com os valores dos vencimentos auferidos resolveu outros problemas financeiros que tinha e quando começava a pagar ao queixoso foi chamado a Portugal, à sede da empresa onde trabalhava em Angola, à qual o queixoso dirigiu emails denegrindo a sua imagem, o que levou a que ficasse na situação de desempregado; que veio a conseguir outro emprego em Angola, mas em condições menos vantajosas, sendo que também ai chegou a influência negativa do queixoso; que ainda arranjou outro emprego em Angola, mas parte dos salários ficaram por pagar, juntando uma declaração de uma empresa denominada X, datada de 22/10/2015, com a qual disse pretender comprovar a existência de dívida para consigo no montante de 9.822.225,00 Kwanzas; que procurou ainda alternativas, mas tendo por referência a data de Maio de 2018, há um ano e 6 meses que se encontra sem salário. Mais refere o facto de "as transferências de salários de Angola para Portugal terem, ficado praticamente bloqueadas” (remetendo para a declaração do Banco ... anteriormente apresentada). Insistiu em que desde 2010 o queixoso vem denegrindo a sua imagem - junta conversas em rede social - o que lhe tem acarretado prejuízos que contabiliza em mais de 500.000€ e o tem impedido de cumprir as obrigações, apesar de, afirmar, querer cumprir.
Notificado o arguido para esclarecer a situação da transferência bancária que disse ter feito, voltou a escrever ao processo dizendo da vontade em terminar o processo e dos prejuízos que lhe foram causados pelo queixoso; confirmou ter transferido dinheiro para Portugal para a conta de um irmão para fazer face a despesas da mãe que se encontrava acamada e que, perspetivando vir a Portugal em novembro, conta fazer a entrega de mais 1.500€. Refere também a dificuldade em realizar "qualquer outro movimento de transferência internacional", diz estar "verdadeiramente desesperado (peço perdão do sublinhado) com a perseguição que me move o Professor Cipriano… “ e acaba a reafirmar que quer pagar ao queixoso pedindo ao tribunal que analise todos os factos que o impossibilitam de cumprir.
Juntou declarações de empresas – Y, com sede em ... e D CORPORATION, com sede em Luanda, para as quais trabalhou e que, diz, lhe devem salários – a Y diz ter desenvolvido com o arguido “uma pareceria de trabalho sob o regime “back to back” desde fins de 2016 a início de 2018, no âmbito da qual terá a receber o valor de 3.190.000,00AOA que a empresa pagará logo que receba do seu cliente, data não possível de prever”; a D CORPORATION declara em 15.10.2018 que o arguido colaborou com a empresa na condição “back to back” desde Janeiro de 2018 e que pela actividade desenvolvida irá receber 2.500.000,00 Kwanzas -, vindo posteriormente a juntar declaração idêntica de outra empresa M. (SU), Lda, datada de 11.12.2018, que declara ter com o arguido “desde há três meses, uma parceria de trabalho a concretizar na condição de repartição de lucros futuros”.
As empresas, disse, asseguravam-lhe alimentação e estadia.
Notificados os assistentes vieram recordar que eles é que foram burlados e estão a ser prejudicados com os sucessivos incumprimentos por parte do arguido que no seu (dos assistentes) entendimento não tem qualquer intenção de cumprir a condição que determinou a suspensão, razão pela qual se opõem a qualquer prorrogação, requerendo que seja revogada a suspensão da pena imposta ao arguido.
O Ministério Público promoveu que fosse concedido novo prazo de 90 dias para cumprimento; o tribunal notificou o arguido "pela última vez" para dar resposta ao despacho quanto ao estado da transferência bancária.
Segue-se nova e longa resposta do arguido informando que a agência negou a informação solicitada, razão pela qual junta um extrato de conta corrente, onde se encontra registada uma transferência feita para o irmão em 06/04/2018, que demorou "cerca de 15 dias a chegar". Chama a atenção para os poucos rendimentos de que dispõe e reafirma que quer pagar. Volta a repetir que a situação em que se encontra se deve à perseguição encetada pelo queixoso à sua pessoa; à crise que se vive em Angola; à perda de mais de 500.000€ e de estatuto social e económico que possuía; à impossibilidade de viajar por dificuldades financeiras; afirmando a perspetiva de pagar em janeiro de 2019 mais 2.500€.
Mais afirma que está "tecnicamente desempregado" dedicando-se apenas a "parcerias de assessoria técnica", a "saltar de empresa em empresa", assegurando apenas "os mínimos de sobrevivência".
Requer que tudo seja tido em consideração pelo tribunal.
Junta documentos (conta corrente bancária, declaração de dívida de empresas, transcrições de conversas de facebook, informação sobre cotação e desvalorização da moeda Angolana).
Notificados os assistentes, manifestaram o entendimento que "o condenado está novamente a tentar ludibriar-nos com as suas "desculpas", considerando que os documentos juntos "não são suficientemente esclarecedores e não comprovam absolutamente nada do que lhe foi pedido".
Entendem que não tem intenção de cumprir, que qualquer prorrogação de prazo é manifestamente injusta e excessiva e que deve ocorrer a revogação da suspensão.
O tribunal a quo entendeu faltarem esclarecimentos sobre o estado da conta cujo extrato foi junto e, bem assim, sobre a residência do irmão, o que o arguido satisfez acompanhando com uma nova exposição e repetindo novamente as dificuldades na transferência do dinheiro e dando ênfase às atitudes do queixoso. Juntou documentos.
Notificados os assistentes do teor do requerimento do arguido e documentos juntos vieram dizer que do artigo de jornal se retira que a situação das transferências bancárias respeitantes ao ano de 2017 se encontra regularizada; que da análise da conta bancária "não se vislumbra transferência bancária pendente"; que o documento (cópia ao pedido do Banco ...) só pode considerar-se anedótico, por não conter qualquer dado concreto sobre a transferência e que os documentos com os quais o condenado pretende comprovar que é alvo de perseguição por parte do assistente, servem apenas para protelar o incumprimento como o tem feito até aqui.
Continuam os assistentes a dizer que outra prorrogação do prazo é "injusta e excessiva", que o condenado não tem qualquer intenção de cumprir a condição que determinou a suspensão; que violou repetidamente os deveres impostos e que as reais vítimas deste processo são os ofendidos.
Foi designada data para audição do arguido, que teve lugar em 03/06/2019 e na qual se comprometeu a pagar no prazo de 6 meses aos assistentes a quantia de 7.500€, o que foi aceite.
Decorridos os 6 meses sem que o condenado tivesse pago a quantia conforme se comprometera, vieram os assistentes requerer a revogação da suspensão.
Por sua vez o arguido veio dizer da sua impossibilidade em cumprir com o acordado "devido à crise em Angola, que ao invés de amainar, ainda se agudizou, desde a data da última inquirição continuo sem conseguir um emprego que me permita obter valores para realizar o aludido pagamento".
Continua a dizer ser sua intenção pagar, volta a falar de perseguição que lhe foi movida pelo queixoso junto de amigos que o podiam ajudar a encontrar emprego e v.g. junto da empresa portuguesa e angolana W, desde 2010, passando por pessoas amigas em 2015 e 2016, até 2017. Refere as difíceis condições em que vive em Angola. onde espera conseguir colocação que lhe garanta um salário que permita pagar aos assistentes. Repete que tentou por outras vias ressarcir o queixoso com um imóvel em Marrocos, que o queixoso não aceitou por ter sido informado (no dizer do arguido, falsamente) de que o imóvel não era do arguido.
Terminou reiterando a vontade de cumprir e requerendo que as justificações apresentadas sejam aceites.
Os assistentes notificados do requerimento do arguido vieram dizer que é manifesto que o arguido "não tem qualquer intenção de cumprir com a condição que determinou a suspensão da pena de prisão".
Pelo tribunal foi considerado que a explicação do arguido "nada diz quanto a factos supervenientes à sua ultima audição e na qual se comprometeu a pagar 7.500€ em 6 meses", pelo que foi o arguido notificado para pagar ou para os efeitos tidos por convenientes.
O arguido não respondeu.
Decorrido o prazo, o Ministério Público emitiu parecer no sentido de não ser possível "estabelecer com um mínimo de segurança que o incumprimento do que falta da indemnização condicionante de suspensão tenha sido culposo", razão pela qual em nova tomada de posição no processo veio a promover que fosse declarada extinta a pena, o que mereceu a concordância do arguido e a oposição dos assistentes que, em requerimento onde historiam os incumprimentos do arguido. se opõem a nova prorrogação e à promovida extinção da pena.
Segue-se a decisão recorrida que declarou extinta a pena, cujo teor acima se transcreveu.
*
Cumpre apreciar e decidir.

Dispõe o artigo 56º do Código Penal (CP) que:

1. A suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado:
a) Infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de condutas impostos ou o plano de reinserção social, ou
b) Cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela ser alcançadas.
2. A revogação determina o cumprimento da pena de prisão fixada na sentença sem que o condenado possa exigir a restituição de prestações que haja efetuado.
(…)

Como é incontroverso a revogação atualmente – (não era assim na redação originária do Código Penal de 1982) - não é automática, antes impõe a análise das razões que levaram ao comportamento em apreciação. Se o julgador concluir que se trata de uma infração grosseira ou repetida das obrigações impostas, ou se o condenado tiver praticado um novo crime que tenha levado a uma nova condenação e que permita a conclusão, segura, de que o arguido não foi merecedor da confiança e esperança nele depositadas, a suspensão da pena deverá ser revogada.
Como se escreveu no acórdão desta Relação, de 08-10-2012 in www.dgsi.ptO abandono do automatismo na revogação da suspensão não traduz qualquer vontade do legislador de criar um regime mais permissivo, mas, antes, de ligar indelevelmente o destino da suspensão à satisfação das finalidades que estiveram na sua base.
A aplicação de uma qualquer pena tem sempre como finalidade primeira o afastamento do arguido da prática de novos crimes. Nenhuma pena, mesmo as privativas de liberdade, têm como fim último a própria privação de liberdade, porque a privação de liberdade é, ou deve ser, tão só o meio necessário para realização do fim pretendido com a imposição da pena (cfr. Cavaleiro de Ferreira Direito Penal Português, Parte Geral, II, Verbo 1982, 479).
Isto é, a privação de liberdade não sendo um fim em si mesma pode ser um dos meios possíveis e necessários para a realização do fim que a imposição da pena visa atingir, porque a imposição de uma pena tem de se revestir de eficácia, para não se tornar inútil.
É por isso que a imposição de qualquer pena implica sempre a ponderação das particularidades de cada caso concreto para que acabe por ser escolhida a pena que melhor se ajusta à situação, isto é, a que melhor permite atingir as finalidades da punição, que são a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (art.º 40 nº 1 do Código Penal).
Nos presentes autos o arguido recorrente começou por ser condenado numa pena de 3 anos de prisão que ficou suspensa na sua execução, com a condição de o arguido pagar a quantia de 49.880€, nos termos por ele aceites (a forma como está redigida a condenação no dispositivo do acórdão deu azo a diferentes interpretações no respeitante à quantia que o arguido deveria pagar para satisfazer a condição. O certo é que sendo considerado pelo tribunal a quo o capital em dívida de 54.880€ e tendo sido deduzidos os 5.000€ pagos antes do julgamento, resta agora indubitavelmente o pagamento da quantia de 49.880€, como aquela que condicionou a suspensão da pena).

De acordo com o atrás transcrito artigo 56º do Código Penal são três os fundamentos da revogação da suspensão previstos na lei: os dois primeiros são a infração grosseira ou a infração repetida dos deveres, regras de conduta ou plano de reinserção social; o último é o cometimento de crime durante o período de suspensão que revele que as finalidades que estiveram na base da suspensão não foram alcançadas.
Não havendo notícia da prática de outro crime por parte do arguido, vejamos se se pode dizer ter ocorrido uma infração grosseira ou repetida dos deveres impostos.
Para Paulo Pinto de Albuquerque (in Comentário ao Código Penal, 3ª ed, 316) a infração grosseira dos deveres impostos é a que, mesmo não sendo dolosa, resulta de uma atitude particularmente censurável de descuido ou leviandade; a infração repetida dos mesmos deveres é a que resulta de uma atitude de descuido ou leviandade prolongada no tempo, que não se esgota num ato isolado da vida do condenado, mas traduz menosprezo pelas limitações resultantes da sentença condenatória.

O arguido foi condenado por sentença transitada em julgado pela prática de um crime de burla qualificada na pena de 3 anos de prisão, suspensa por 3 anos, mediante a obrigação de pagar aos assistentes durante o período de suspensão a quantia de 49.880€ à razão de 2.000€/mês.
O arguido não pagou tal quantia, nem nos moldes predefinidos judicialmente, nem nas prorrogações que lhe foram concedidas, nem quando se comprometeu a pagar parte da quantia ainda em dívida, quando foi ouvido presencialmente.
O arguido, da quantia total, pagou ao longo dos cerca de mais de 9 anos que intercorreram entre o trânsito em julgado e a presente data, a quantia de 20.000€, sendo que embora tivesse começado por pagar após o trânsito do acórdão condenatório, foi afrouxando os pagamentos, até que deixou completamente de pagar e decorridos mais de 18 anos sobre o momento em que indevidamente se locupletou com o dinheiro dos assistentes, e mais de 9 sobre o trânsito em julgado da condenação, continua por devolver 29.880€.
A análise das vicissitudes processuais, atrás elencadas permite concluir que a sagacidade demonstrada na prática do crime continuou a ser usada ao longo do processo para justificar os sucessivos incumprimentos.
Vejamos: disse ter perdido um emprego bem remunerado e estar desempregado, mas juntou aos autos declarações de várias empresas para as quais alegadamente trabalha e trabalhou durante vários anos (a afirmação de que não lhe pagaram até à atualidade não é evidentemente, minimamente, credível); disse ter feito uma transferência de dinheiro, que nunca chegou a Portugal (mas a declaração que usa para o efeito (fls. 980) levanta sérias dúvidas, desde logo tendo em conta a folha de papel em que foi escrita, quando comparada com fls. 1054 e ss); disse ter tentado obter informações sobre o atraso nas transferências e a carta que junta a fls. 1118 é absolutamente omissa quanto à identificação do que pretende (data/valor/destinatários das transferências); disse não conseguir fazer transferências, mas disse também que as fez para um irmão e a ex-mulher; disse que privilegiou o pagamento de outras dívidas que tinha em Portugal, bem sabendo que o pagamento da dívida que tinha para com os assistentes era condição de liberdade; disse ter querido pagar com um imóvel que possuía em Marrocos, mas como o assistente, -informado de que não era verdade- não aceitou, o arguido não transformou o referido imóvel em dinheiro para pagar o que devia; comprometeu-se da última vez em que foi ouvido a pagar 7.500€ e apesar de notificado para justificar o que aconteceu para não pagar o montante que ele próprio escolheu como quantia a entregar, remeteu-se ao silêncio, esperando tão só que a pena fosse extinta.
Os sucessivos requerimentos que juntou aos autos ao longo dos anos são reveladores de que percebeu que, assumindo-se como vítima do assistente, era muito provável que acabasse por não lhe ser exigido qualquer pagamento. Por outro lado, o comportamento omissivo reiterado é revelador de que privilegiou outros gastos e não levou a sério a condição que lhe foi imposta, que passava por devolver o dinheiro que recebeu indevidamente.
É que uma coisa é a obrigação de pagar uma quantia que não se tem, que não se recebeu, mas que é devida e que um condenado não consegue de modo algum obter; outra coisa é a obrigação de devolver uma quantia que foi indevidamente recebida, comprometer-se a fazê-lo (em julgamento comprometeu-se a devolver a quantia à razão de 2.000€/mês; posteriormente afirmou por diversas vezes que pagaria, até à última vez - na sequência da audição presencial - em que se comprometeu a pagar 7.500€ da quantia ainda em dívida), criando nos assistentes e no tribunal a expectativa de que cumpriria aquilo com que se comprometera. Ao não honrar a palavra dada percebe-se que, quando no julgamento se comprometeu a pagar e foi condenado nos termos em que disse que pagaria, pretendeu apenas garantir que não lhe seria aplicada pena de prisão efetiva; quando posteriormente se foi comprometendo a pagar, pretendeu apenas ir garantindo prorrogações de prazo e quando, por fim, assumiu que pagaria 7.500€ em 6 meses, não o fez porque os autos já evidenciavam compreensão para as sucessivas justificações.
Ora, se já sabia que não iria pagar, não devia ter assegurado que o faria.
Ao longo dos anos não trouxe aos autos qualquer alteração na vida verdadeiramente justificante das omissões.
A alegada falta de trabalho e de oportunidades em Portugal decorrente da perseguição do queixoso, é contraditada com o facto de desde 2007 não ter qualquer atividade declarada na segurança social em Portugal (fls 993) e de, em Angola, ter trabalhado para diversas empresas X, Lda, Y,Lda, D. ,Lda, M., Lda; as dificuldades na transferência de dinheiro são contrariadas com transferências efetivamente realizadas para familiares; a falta de capacidade financeira é contrariada com a afirmação feita de que saldou outras dívidas e bem assim com as afirmações feitas ao longo do processo de que pagaria aos assistentes diversas quantias em prazos que ele próprio fixou, mas nunca cumpriu.
Certo é que ao longo dos anos pagou o que quis, como quis, quando quis e foi aproveitando sempre da compreensão que foi recebendo por parte do tribunal (apesar da oposição dos assistentes).
A pena imposta deveria ter servido ao arguido para que entendesse que a burla praticada tinha ficado no passado. A oportunidade que lhe foi dada não devia servir para arranjar novos pretextos de se manter na posse do dinheiro que lhe não pertence. O arguido percebeu que poderia continuar a tornear as obrigações impostas, vitimizando-se, mesmo que contradizendo-se, deixando ir passando o tempo.
Fosse pelo sentimento de impunidade que adquiriu, fosse porque não conseguiu interiorizar, de forma séria, a advertência que a condição imposta nestes autos pretendia ser, o certo é que o arguido tem na sua posse há 18 anos, 29.880€ que pertencem aos assistentes, está judicialmente obrigado a devolvê-los há 9 anos e não o faz, numa demonstração clara de que não sentiu como grave o aviso de que o incumprimento da condição de pagamento de tal quantia seria entendida como reveladora de que as finalidades subjacentes à suspensão não foram alcançadas.
Como diz Faria Costa (in Direito Penal e Globalização- Reflexões não locais e pouco globais, 33) (…) O direito penal não se pode confundir com a narrativa de “Alice no País das Maravilhas” (…). Trata-se de uma narrativa que narra factos e narra a consequência desses mesmos factos que tem, por isso, consequências fortes no real verdadeiro. Dizer-se que quem praticar um crime (…) sofre uma pena (…) não é fantasia. É uma narração que determina, no futuro, para quem estiver sob a alçada daqueles factos, uma privação da sua liberdade. É uma narração que antecipa o futuro e molda esse mesmo futuro”.
O recorrente sabia que se não cumprisse a condição - que foi fixada mediante as condições que disse aceitar e poder cumprir - a pena, antes suspensa, muito provavelmente tornar-se-ia efetiva. Ao incumprir deliberadamente a obrigação de pagamento o arguido moldou o seu próprio futuro.
E não se diga que não se vislumbra um comportamento culposo. O comportamento do arguido, tem de ser apreciado pelo olhar de um cidadão que seja bem formado ou, pelo menos, medianamente diligente e cumpridor. Ora, o comportamento reiteradamente omissivo, adotado durante tantos anos e acentuado quando começou a explorar a vitimização, esquecendo que as vítimas foram os assistentes, mostra-se particularmente censurável e indesculpável, e coloca decisivamente em causa as finalidades subjacentes à suspensão da execução da pena. Como se disse no acórdão proferido por este Tribunal no processo 128/08.9TAVNC-C.G1 (Des. Cândida Martinho) “A “espada” que recaía sobre si e que lhe valeu a liberdade, impunha-lhe que colocasse como prioridade o cumprimento da condição a que ficou vinculado”, o que não aconteceu. Sucederam-se os anos e com eles a demonstração de que o comportamento do arguido não foi um ato isolado, mas revela uma postura de menosprezo pelas limitações resultantes da sentença condenatória, comportamento que cai na alçada da alínea a) do nº 1 do Art. 56º do C.P.. É por isso que se pode afirmar que transigir com tal comportamento significa descredibilizar a suspensão da execução da pena, enquanto verdadeira pena autónoma, de substituição, susceptível de, por si, realizar as finalidades da punição (Cfr. Ac. RG citado).
O despacho recorrido não pode, pois, manter-se.
Assim, tendo em conta que a justiça que os autos reclamam passa essencialmente pelo cumprimento da condição da suspensão da pena imposta, impõe-se revogar o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que revogue a suspensão da execução da pena e determine o cumprimento pelo condenado de 3 anos de prisão efetiva, salvo se o tribunal a quo vier a constatar, no momento em que vier a proferir o novo despacho, que se mostra paga a quantia ainda em falta (29.880 euros) devida aos assistentes.
*

III.
DECISÃO.

Em face do exposto decidem os juízes desembargadores da secção penal do tribunal da Relação de Guimarães:
- Julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelos assistentes e, consequentemente, revogam o despacho recorrido e determinam que seja substituído por outro que - caso não se mostre paga a quantia em falta (29.880 euros) no momento em que venha a ser proferido - revogue a suspensão da execução da pena imposta e determine o cumprimento pelo condenado, A. F., de 3 anos de prisão efetiva.
Sem custas.
Notifique.
Guimarães, 08 de novembro de 2021

Maria Teresa Coimbra
Cândida Martinho