Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3834/18.6T8GMR.G1
Relator: ANA CRISTINA DUARTE
Descritores: AUDIÊNCIA PRÉVIA
DISPENSA
CONHECIMENTO DO MÉRITO DA CAUSA
NULIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/30/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- A audiência prévia não pode ser dispensada quando o Juiz tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa.

II– A não convocação da mesma, influindo no exame ou decisão da causa, configura uma nulidade processual, que inquina a própria decisão proferida (saneador sentença) e que pode ser arguida em sede de recurso a interpor da mesma.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

A. R. e mulher T. F. deduziram ação declarativa contra M. M., V. M., R. M. e mulher A. P., S. M., M. S. e marido S. C., D. M. e mulher M. G. e “F. G. & Filhos, Lda.”, pedindo que se reconheça aos autores a qualidade de proprietários de terreno confinante do prédio identificado em 11) da petição, se declare que a 7.ª ré não é proprietária confinantes desse mesmo prédio, se reconheça aos autores o direito de haver para si, através do exercício do direito de preferência oportunamente exercido, a titularidade do prédio identificado em 11) da petição, pelo valor constante da comunicação para o exercício do direito de preferência datada de 14 de setembro de 2017 (€ 72.500,00), se declare inválida e sem efeito a venda do prédio identificado em 11) a favor da 7.ª ré, se ordene o cancelamento de qualquer registo de transmissão porventura feito pela 7.ª ré com base na escritura mencionada em 20) e sejam os 1.º a 6.º réus (vendedores) condenados a pagarem aos autores a indemnização que vier a liquidar-se em execução de sentença, decorrente dos prejuízos e danos causados pelo incumprimento contratual e violação do direito de preferência oportunamente exercido pelos autores.

Os 1.º a 6.º réus contestaram excecionando a ineptidão da petição inicial por cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis e por contradição entre o pedido e a causa de pedir. Mais alegam a inexistência do invocado direito de preferência por falta de confinância entre os prédios. Sem prescindir, excecionam, ainda, a caducidade do direito dos autores por a ação ter sido instaurada depois de decorridos seis meses desde a data em que os autores tiveram conhecimento da compra e venda realizada e porque não depositaram o preço devido no prazo de 15 dias após a propositura da ação, uma vez que o preço pago pela adquirente foi de € 120.000,00.

Contestou, também, a 7.ª ré, aderindo à matéria de exceção alegada pelos demais réus e peticionando a condenação dos autores como litigantes de má-fé.

Os autores responderam ao pedido de condenação como litigantes de má-fé e, a convite do tribunal, à matéria de exceção articulada pelos réus.

Foi dispensada a realização de audiência prévia e proferido despacho saneador no qual se concluiu pela improcedência da exceção de ineptidão da petição inicial.

Foi, de imediato, proferida sentença que julgou a ação improcedente, absolvendo os réus dos pedidos e julgou improcedente o incidente de litigância de má-fé.

Os autores interpuseram recurso, tendo finalizado a alegação com as seguintes
Conclusões:

1. A sentença viola o disposto no n.º 3 do artigo 3.º do CPC, o que consubstancia a prática de uma nulidade processual.
2. A inobservância do contraditório, não permitindo às partes pronunciarem-se sobre questões que o juiz pretenda conhecer de imediato, constitui uma nulidade processual.
3. Os Autores jamais foram ouvidos sobre as questões de facto e de direito subjacentes à decisão surpresa tomada pelo Tribunal a quo.
4. O saneador-sentença conheceu do mérito da causa, pronunciando-se sobre questões de facto e de direito suscitadas nos autos e nunca antes debatidas.
5. Sendo decorrência da lei, defendido pela doutrina e pela jurisprudência, não poderia o Tribunal, antes de decidir, deixar de ouvir os argumentos das partes.
6. Por estar em violação do contraditório, não pode a decisão ser mantida por violação de princípio constitucional.
7. O Tribunal a quo, a par do saneador-sentença, procedeu à dispensa da audiência prévia, nos termos do 591º, n.º 1 do CPC.
8. Entendeu o Tribunal que o estado do processo permitia, sem necessidade de mais prova, a apreciação do mérito da causa, dispensando a realização de audiência prévia.
9. A decisão proferida surpreendeu os Autores, porquanto não decorriam dos autos quaisquer indícios de que o Tribunal iria proferir decisão.
10. Mesmo que as questões a dirimir fossem simples e a decisão sobre elas pacífica na jurisprudência e na doutrina, e não é o caso, não poderia o Tribunal a quo, ainda que no uso do poder de simplificação e agilização processual, deixar de fundamentar a não realização da audiência prévia e deixar de permitir às partes alegarem sobre as concretas questões a decidir.
11. Decorre do artigo 591.º do CPC que se o Juiz pretender decidir de imediato, no todo ou em parte, do mérito da causa, é convocada e realiza-se audiência prévia para facultar às partes a discussão de facto e de direito que importe para esse conhecimento.
12. A não realização da audiência prévia nos casos em que a mesma tem lugar e não pode ser dispensada gera nulidade processual.
13. As situações em que a audiência prévia pode ser dispensada constam do artigo 592º do CPC e nelas não cabem, por certo, o contido na presente ação.
14. As partes foram confrontadas com um saneador-sentença relativamente ao qual não tiveram oportunidade processual de se pronunciarem.
15. É, assim, nula a decisão surpresa, por falta de realização de audiência prévia.
16. O Tribunal a quo reconheceu o incumprimento contratual dos Réus vendedores, mas erradamente não deu esse facto como provado no ponto IV.
17. O saneador-sentença não conheceu dos danos reclamados pelos Autores e inerentes ao incumprimento contratual por parte dos Réus vendedores.
18. Entendeu o Tribunal a quo que para ver reconhecidos os danos sofridos e obter a respetiva indemnização, os Autores teriam de ter exercido a preferência na alienação concretizada em 23 de novembro de 2017.
19. Porque não exerceram o direito de preferência na alienação referida em 18) o Tribunal a quo não conheceu dos danos reclamados pelos Autores na petição.
20. O Tribunal a quo tampouco permitiu que os Autores realizassem, em audiência de julgamento, prova dos danos sofridos.
21. Resulta à saciedade que o contrato foi incumprido e o incumprimento causou danos aos Autores.
22. Por tal, os Autores não podem aceitar o argumento vazado na sentença de que não interessa apurar se algum dos contraentes deu causa à não celebração do contrato.
23. Como não podem aceitar que não seja importante apurar, via julgamento, a prova desse facto intrínseco à ação e ao pedido, mormente o de indemnização.
24. A decisão viola direitos essenciais dos Autores, que tendo pautado o seu comportamento por princípios de seriedade, de cumprimento escrupuloso das suas obrigações, se veem despojados de indemnização pelos danos que culposamente lhes foram causados pelos Réus vendedores.
25. Mesmo que o Tribunal a quo entendesse que a rotura do contrato celebrado com os Autores teria meras consequências obrigacionais, impunha-se que fosse apreciado o pedido constante da alínea f) da petição.
26. Para este pedido ser apreciado, impunha-se o prosseguimento dos autos e a realização de prova testemunhal.
27. Entende o Tribunal a quo:
“a eventual rutura do acordo negociado com os Autores, concretizado com a venda à Ré sociedade, teria consequências meramente obrigacionais, como decorre do regime jurídico dos artigos 798º e 799º do Código Civil, sem prejuízo de, pretendendo ingressar na titularidade do imóvel, dever intentar ação de preferência.” “a circunstância de os Réus vendedores incumprirem o contrato celebrado com terceiros negócio jurídico translativo do direito de propriedade, por preço superior, não implica a existência de qualquer vício que importe a sua invalidade (…) apenas tem consequências na relação Réus vendedores – Autores, mormente, indemnizatórias, mas não afeta a posição jurídica da Ré adquirente.” “Sucede que embora essa comunicação fosse vinculativa, ou seja, importasse a obrigação de alienar o imóvel aos Autores pelo preço de € 72.50040, a verdade é que os Réus acordaram entre si a compra e venda do prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...-..., pelo preço de € 120.000, o que significa que a traslação do direito de propriedade para a esfera jurídica dos demandantes apenas se tornaria possível com o exercício do direito de preferência relativamente a esse negócio.”
28. O Objetivo do art. 1380º do CC é fomentar o emparcelamento de terrenos minifundiários, com vista à constituição de explorações rentáveis.
29. Permitir que após expressa e efetiva comunicação para o exercício do direito de preferência (com as condições essenciais á celebração do contrato), e após aceitação das condições de venda pelo preferente, o obrigado à preferência possa vender o prédio a terceiro não preferente, violando o contrato, seria a negação do instituto legal contido no artigo 1380º do CC, a negação dos direitos de sequela e de prevalência que são características essenciais dos direitos reais.
30. Tanto mais que os Réus vendedores não alegaram qualquer vício da comunicação.
31. Neste concreto caso não se aplica o disposto no artigo 271.º, n.º 3 do CPC.
32. A comunicação, por parte do obrigado à preferência, diferentemente do regime constante do Código de Seabra, tem-se como irrevogável (arts. 224º, nº 1 e 230º, nº 1 do CC), não facultando a lei, na matéria, o exercício de um direito de arrependimento.
33. A aceitação, por parte do preferente, vincula o obrigado, e, igualmente, o próprio, à realização do contrato, nos termos do projeto e clausulado transmitidos – não podendo tal obrigação ser reconduzida ou substituída pela não realização do contrato (seja com o terceiro, seja com o preferente), por um non facere.
34. Conforme se considerou no acórdão de 7.10.97, passo retomado no acórdão de 9.7.98: «a notificação para preferir ficaria despojada de qualquer sentido útil se o obrigado pudesse desistir livremente do negócio.

NESTES TERMOS e nos melhores de direito com o suprimento de Va.s Ex.as, deve o presente recurso ser admitido e o mesmo ser julgado procedente, revogando-se a decisão proferida, com base nos seguintes fundamentos:

- Porque violadora do princípio do contraditório, a decisão de que ora se recorre é nula;
- Porque foi preterida a realização de audiência prévia (quando resulta obrigatória a sua realização), a decisão está ferida de nulidade processual.
- O Tribunal a quo não estava habilitado a proferir decisão de mérito, por falta de prova sobre factos alegados nos autos, e cuja realização de julgamento se impunha;
- Caso assim se não entenda, o que não se concede, deve a sentença ser substituída por douto acórdão em conformidade com as conclusões aduzidas, no qual se reconheça aos Autores a qualidade de proprietários de terreno confinante do prédio identificado em 11) da petição; se declare que a 7ª Ré não é proprietário confinante; Se reconheça aos Autores o direito de haver para si, através do exercício de preferência oportunamente exercido, a titularidade do prédio que identificam no artigo 11) da petição, pelo valor e condições constantes da comunicação para o exercício do direito de preferência, data de 14 de outubro de 2017; Se declare inválida e sem efeito a venda do prédio a favor da 7ª Ré; se ordene o cancelamento do registo de transmissão efetuado a favor da 7ª Ré; Se condenem os Réus vendedores a pagarem aos Autores a indemnização que vier a liquidar-se em execução de sentença, decorrentes do incumprimento contratual e violação do direito de preferência.
Assim se fazendo JUSTIÇA.

Os réus contra alegaram, pugnando pela confirmação da sentença recorrida.
O recurso foi admitido como de apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.

As questões a resolver traduzem-se na apreciação da invocada nulidade por violação do contraditório e ausência de audiência prévia, bem como averiguar se era possível a decisão de mérito na fase em que foi proferida, sem realização de julgamento. Cabe, ainda, finalmente, averiguar do bem fundado da decisão de mérito.

II. FUNDAMENTAÇÃO

Na sentença foram considerados os seguintes factos:

1. Por escritura pública outorgada a 18 de Janeiro de 2000, no Cartório Notarial de Amares, o Autor A. R., por si e em conjunto com J. F. na qualidade de sócios gerentes de X – Compra e Venda de Propriedades, Ld.ª, declararam vender ao primeiro pelo preço de Esc. 19.500.000$00, já pago, que declarou aceitar, o prédio rústico sito no lugar de …, freguesia de ..., concelho de Guimarães, inscrito na respetiva matriz sob o artigo … e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº …-... [documento de fls. 11 a 12].
2. O prédio identificado em 1) encontra-se registado a favor do Autor pela Ap. 23 de 29 de Junho de 2007 [documento de fls. 12 vº].
3. Por carta registada com aviso de receção, datada de 14 de Setembro de 2017, remetida no subsequente dia 18, a Ré M. M., invocando a qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de A. M., comunicou aos Autores “nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 416º do Código Civil, (…) vamos vender a O. S. (…) pelo preço total de € 72.500 (…), que deverá ser pago em cheque bancário na escritura definitiva de compra e venda, a realizar no dia 9 de Outubro de 2017, pelas 11h00m no Cartório Notarial Dr.ª P. C. na Av. …, concelho de Guimarães: “terreno de eucaliptal e mato” sito no lugar de ..., união das freguesias de ... e ..., concelho de Guimarães, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ..., inscrito na matriz sob o artigo … da freguesia de ... (extinta) de que V. Exa é confinante. Como confinante do identificado prédio, assiste-lhe o direito de preferência na projetada venda, pelo que deverá exercer este seu direito, querendo, declarando a preferência por escrito dentro do prazo de oito dias contados da data de receção da presente comunicação [documento de fls. 13 vº e 14].
4. Por missiva datada de 27 de Setembro de 2017 os Autores comunicaram à primeira Ré, na sequência da carta identificada em 3), por si rececionada em 21 de Setembro de 2017, “declarar expressamente, nos termos e para os efeitos dos artigos 416º nº 2, que pretendem exercer o seu direito de preferência na compra/aquisição do bem imóvel denominado “terreno de eucaliptal e mato” sito no lugar de ..., união das freguesias de ... e ..., concelho de Guimarães, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ..., inscrito na matriz sob o artigo …, que proveio do artigo … da freguesia de ..., pelo preço de € 72.500 e condições mencionadas na v/ carta” [documento de fls. 14 vº].
5. A missiva identificada em 5) foi recebida a 28 de Setembro de 2017 pelo Réu S. C. [documento de fls. 15].
6. A escritura pública aludida em 2) não chegou a ser celebrada por questões relacionadas com a área e limites do prédio.
7. Por escritura pública outorgada a 23 de Novembro de 2017 no Cartório de Notária Dr.ª P. C., sito na Av. …, concelho de Guimarães, os Réus M. M., V. M., R. M., S. M., M. S., D. M., declararam, pelo preço já recebido de € 120.000, vender a F. G. & Filhos, Limitada, representada no ato pelo seu sócio e gerente F. G., que declarou aceitar para esta e conhecer os limites do terreno conforme muros e marcos de delimitação existentes no mesmo, o prédio rústico, composto de terreno de eucaliptal e mato sito no lugar de ..., união das freguesias de ... e ..., concelho de Guimarães, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...-..., inscrito na matriz sob o artigo … [documento de fls. 18 a 22].
8. Os Réus A. P., S. C. e M. G. declararam na escritura identificada em 6) prestar aos respetivos cônjuges o necessário consentimento à prática do ato [documento de fls. 18 a 22].
9. O prédio identificado em 7) encontra-se registado a favor da Ré sociedade pela Ap. 1112 de 27 de Novembro de 2017 [documento de fls. 122 a 123].
10. Em 27 de Junho de 2018 os Autores efetuaram o depósito do montante de € 72.500 a título de “preço devido” [documento de fls. 26].

Os apelantes sustentam a nulidade da sentença por violação do princípio do contraditório e a nulidade processual que deriva da falta de realização de audiência prévia.

Dizem que nunca foram ouvidos sobre factos ou questões de direito subjacentes à decisão, nem tiveram oportunidade de se pronunciar sobre o enquadramento jurídico e, não existindo nos autos qualquer indício de que o tribunal iria proferir de imediato decisão de mérito, esta constituiu uma verdadeira decisão-surpresa. Entendem que, se o juiz pretendia decidir de imediato do mérito da causa, teria que ter convocado audiência prévia, para facultar às partes a discussão de facto e de direito que importasse para esse conhecimento, assegurando o respeito pelo princípio do contraditório e evitando decisões-surpresa.

Vejamos.

Dispõe o artigo 591.º, n.º 1 do Código de Processo Civil que:

“Concluídas as diligências resultantes do preceituado no n.º 2 do artigo anterior, se a elas houver lugar, é convocada audiência prévia, a realizar num dos 30 dias subsequentes, destinada a algum ou alguns dos fins seguintes:

a) Realizar tentativa de conciliação;
b) Facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos que ao juiz cumpra apreciar exceções dilatórias, ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa;
c) Discutir as posições das partes, com vista à delimitação dos termos do litígio, e suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto que ainda subsistam ou se tornem patentes na sequência do debate;
d) Proferir despacho saneador;
e) Determinar, após debate, a adequação formal, a simplificação ou agilização processual;
f) Proferir, após debate, o despacho previsto no n.º 1 do artigo 596.º e decidir as reclamações deduzidas pelas partes;
g) Programar, após audição dos mandatários, os atos a realizar na audiência final, estabelecer o número de sessões e a sua provável duração e designar as respetivas datas”

A audiência prévia não se realiza, nos termos do disposto no artigo 592.º do CPC, nas ações não contestadas que tenham prosseguido em obediência ao disposto nas alíneas b) a d) do artigo 568.º e, quando, havendo o processo de findar no despacho saneador pela procedência de exceção dilatória, esta já tenha sido debatida nos articulados.
Para além destes casos, nas ações que hajam de prosseguir, o juiz pode dispensar a audiência prévia quando esta se destine apenas aos fins indicados nas alíneas d), e) e f) do n.º 1 do artigo 591.º do CPC.

Da conjugação dos normativos acabados de referir, logo resulta que a audiência prévia não pode ser dispensada quando o juiz tencione conhecer imediatamente do mérito da causa.
Conforme referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, in CPC Anotado, vol. I, Almedina, 2018, pág. 685: “Do confronto dos artigos 591.º, n.º 1, 592.º, n.º 1, 593.º, n.º 1, 593.º, n.º 3 e 597.º resulta claro que a tramitação de uma ação declarativa comum de valor superior a metade da alçada da Relação (€ 15.000,00) incluirá, em curso normal, a realização de uma audiência prévia, regra que apenas comporta duas exceções tipificadas: quando a lei assim o estabeleça, o que sucede nos casos indicados no artigo 592.º, n.º 1, e quando o juiz dispense a realização da audiência, ao abrigo do artigo 593.º, n.º 1. Com tais ressalvas, a audiência prévia é obrigatória, decorrendo da sua dispensa uma nulidade”.
Trata-se, aqui, de uma nulidade da própria decisão (e não apenas uma nulidade processual, a arguir perante o próprio juiz que a cometeu). “Se a nulidade está coberta por decisão judicial que ordenou, autorizou ou sancionou o respetivo acto ou omissão, em tal caso, o meio próprio para a arguir, não é a simples reclamação, mas o recurso competente, a deduzir e tramitar como qualquer outro do mesmo tipo” – Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 183 e, neste sentido, Acórdãos da Relação de Guimarães de 23/06/2016, da Relação de Lisboa de 15/05/2014 e da Relação de Évora de 26/10/2017, e Teixeira de Sousa em https://blogippc.blogspot.pt, em comentário ao acórdão da Relação de Lisboa de 15/05/2014 e, ainda, Abrantes Geraldes em Recursos no NCPC, 5.ª edição, pág. 25-30 e Acórdãos do STJ de 17/03/2016, 23/06/2016 e de 22/02/2017, todos em www.dgsi.pt.

Neste caso, a omissão da audiência prévia que se destinaria a proporcionar às partes a discussão de facto e de direito em virtude de o juiz tencionar conhecer imediatamente do mérito da causa, determina a nulidade da sentença que apreciou do mérito, sentença essa que constitui uma verdadeira decisão-surpresa, pois sobre a mesma não foram ouvidas as partes, não lhes foi dada oportunidade de se pronunciarem.
É certo que a Sra. Juíza, por despacho anterior, havia decidido ouvir os autores sobre as exceções invocadas na contestação, tendo-lhes concedido prazo para o efeito e admitido a sua pronúncia por escrito, o que estes fizeram, juntando articulado de resposta àquelas exceções.
Contudo, não é disso que se trata, aqui. O que está em causa, é que a Sra. Juíza, ao não convocar a audiência prévia, não deu a conhecer às partes que poderia vir a conhecer do mérito imediatamente, facultando-lhes a discussão de facto e de direito que entendessem oportuna, a esse respeito, tal como determina o artigo 591.º, n.º 1, alínea b) do CPC.
Conforme referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e outro, na obra citada, pág. 687 “É de toda a conveniência que o juiz não decida aspetos materiais do litígio sem um debate prévio no qual os advogados das partes tenham a oportunidade de produzir alegações orais acerca do mérito da causa”. Está em jogo o respeito pelo princípio do contraditório, garantindo às partes pronúncia sobre as questões que o juiz irá decidir numa fase intermédia do processo, de modo a evitar decisões-surpresa – artigo 3.º, n.º 3 do CPC.
Ou seja, sempre que o juiz entenda que está já na posse de todos os elementos que lhe permitam conhecer do mérito da causa no despacho saneador, deve convocar audiência prévia para os efeitos do artigo 591.º, n.º 1, alínea b) do CPC. “Daqui resulta com total clareza o propósito legislativo, no sentido de que as ações declarativas não incluídas na previsão do artigo 597.º não podem terminar com decisão de mérito no despacho saneador sem que o mesmo seja proferido no contexto da realização de uma audiência prévia” – Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e outro, obra citada, pág. 691.

Este vem sendo, aliás, o entendimento da generalidade da jurisprudência dos nossos tribunais - além de outros, vd. os Acs. do TRP de 27-09-2017 no processo 136/16.6T8MAI-A.P1, do TRL de 19/10/2017 no processo 155421-14.5YIPRT.L1-8, do TRP de 24/09/2015 no processo 128/14.0T8PVZ.P1, do TRL de 08/02/2018 no processo 3054/17.7T8LSB-A.L1-6, do TRL de 05/05/2015 no processo 1386/13.2TBALQ.L1-7, do TRE de 30/06/2016 no processo 309/15.9T8PTG-A.E1, todos disponíveis in www.dgsi.pt -, citados no Acórdão deste Tribunal da Relação, de 17/01/2019, processo n.º 4833/15.5T8GMR-A.G3 (José Cravo), e, ainda os Acórdãos desta Relação de Guimarães de 01/03/2018 (Eugénia Cunha), de 10/07/2018 (António Sobrinho) e de 06/12/2018 (Eva Almeida).

Assim, a preterição da audiência prévia, formalidade processual que se reputa de essencial, gera para além de nulidade processual a nulidade do saneador-sentença e implica a anulação do processado a fim da tramitação processual regressar ao momento anterior ao despacho que dispensou a realização da audiência prévia, de forma a possibilitar a efectiva audição das partes em sede de audiência prévia, devendo no despacho que a designar esclarecer, em concreto, os fins a que se destina.

A apelação procede nesta parte, ficando prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas.

III. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se julgar procedente a apelação, anulando-se a decisão recorrida e determinando-se a convocação de audiência prévia com identificação, no despacho respetivo, dos fins a que se destina.
Custas pela parte vencida a final.
***
Guimarães, 30 de janeiro de 2020

Ana Cristina Duarte
Fernando Fernandes Freitas
Alexandra Rolim Mendes