Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1435/18.8T9VNF.G1
Relator: MÁRIO SILVA
Descritores: ACUSAÇÃO PARTICULAR
ELEMENTOS TÍPICOS ILÍCITO
CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE
IMPOSSIBILIDADE SUPRIMENTO JULGAMENTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/09/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
1 - A acusação tem que conter todos os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena (ou medida de segurança) - art. 283º, nº 3, do CPP - neles se incluindo o conhecimento e vontade de realização de um tipo legal de crime.

2 - Acusação e PIC - ainda que, por razões de conveniência, possam constar do mesmo requerimento - constituem peças processuais autónomas, cada uma delas com a sua função própria e, designadamente, não podendo o segundo suprir as deficiências da primeira.

3 - O princípio da vinculação temática, ao fixar o objeto do processo, impede o suprimento - por recurso à alteração substancial dos factos - dos elementos em falta, designadamente os subjetivos, cuja falta, na acusação, impõe a nulidade desta.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório

1. No processo de instrução com o nº 1435/18.8T9VNF, a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo de Instrução Criminal de Guimarães – Juiz 1, foi proferido despacho de não pronúncia, datado de 03/07/2019, do seguinte teor (transcrição):

DECISÃO INSTRUTÓRIA

1.
O Tribunal é competente.
O processo próprio.
*
Questão prévia:

Da nulidade da acusação particular.

O assistente N. R. veio a folhas 75 deduzir acusação particular contra o arguido L. C., imputando factos ao arguido que podem consubstanciar a prática de dois crimes de difamação, previsto e punido pelo artigo 180.º e agravados pelas alíneas a) e b) do 183.º, ambos do Código Penal.

O Ministério Publico a folhas 81 não acompanhou a acusação particular deduzida contra o arguido, uma vez que a mesma omite toda e qualquer referência aos elementos integrantes da consciência da ilicitude, habitualmente traduzido na expressão de que “o arguido actuou sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei” ou qualquer outra que comporte o respectivo conteúdo, concluindo-se, assim, que a acusação particular deduzida não contém a descrição dos factos integrantes da totalidade dos elementos subjectivos do tipo, necessária à verificação do crime imputado ao arguido.

Inconformado com a acusação particular deduzida contra o arguido L. C., veio o mesmo nos termos constantes de folhas 98 e seguintes requerer abertura de instrução, alegando sumariamente, que a acusação particular omite toda e qualquer referência aos elementos integrantes da consciência da ilicitude, pois não se deslumbra em toda a acusação particular que seja imputado ao arguido que este actuou sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, ou qualquer outra que comporte o respectivo conteúdo.

A acusação tinha que narrar os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer outras circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis.

Apreciemos se assiste razão ao MP e ao arguido no sentido da nulidade da acusação particular.

Como decorre do disposto no art. 283º, nº 2, do Código de Processo Penal, “consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.

Por sua vez, o nº 3 do mesmo preceito dispõe que “a acusação contém, sob pena de nulidade: (...) b) a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança (...), cabendo aqui a enumeração dos factos constitutivos do tipo legal de crime.”

A falta de qualquer dos referidos elementos implica que não estão reunidos todos os pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou medida de segurança (cfr., neste sentido, Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, Verbo, vol. I, pags. 339 a 343).

A jurisprudência tem entendido que, a acusação deve ser rejeitada sempre que “a possibilidade de absolvição for maior do que a da condenação”; acusação que, nessa hipótese deve considerar-se manifestamente infundada (cfr., a título de exemplo, Acórdãos do T.R.P. de 13-03-91, CJ ano XVI, tomo 2º, 293, de 10.10.90, BMJ 400, 736; de 31.10.90, BMJ 400, 737; e do T.R.C. de 12.07.90, CJ ano XV, tomo 4º, 96; e do T.R.L. de 29.06.94, CJ ano XIX, tomo 3º, 161; ainda sobre o conceito de indícios suficientes, no sentido apontado, cfr., António Augusto Tolda Pinto - “O novo processo penal”, Rei dos Livros, ed. Jan-89, pags. 252 a 254; David Valente Borges de Pinho - “Da acção penal, tramitação e formulários”, Livraria Almedina, 1989, pag. 103).

Assim, da acusação devem constar as razões de facto e de direito bem como a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, assim como as demais circunstâncias relevantes para a determinação da sanção (cfr. artº 283º, nº 3, al. b) do Código de Processo Penal. Deve, também, indicar as disposições legais aplicáveis e os meios de prova. (cfr. artº 285º, nº 2 e 283º, nº 3, ambos do Código de Processo Penal).
Em síntese, o que se pretende é que, da acusação constem todos os factos, motivações do crime e outras circunstâncias relevantes para a determinação da pena, bem como as provas que fundamentam esses factos.
No que diz respeito ao tipo subjectivo de ilícito, que é o que aqui importa analisar, desde já se diga, que o imputado crime de difamação é de verificação exclusivamente dolosa.
Nos crimes dolosos, a verificação do tipo subjectivo de ilícito pressupõe, tradicionalmente, (cfr., neste sentido, Tereza Pizarro Beleza, in “Direito Penal – Lições Policopiadas”, Vol. II, AAFDL, pág. 181 e Cavaleiro Ferreira, in “Lições de Direito Penal, Parte Geral”, Tomo I, Editorial Verbo, 1992, pág. 282 e segs.) o conhecimento e vontade de realização de um tipo legal de crime por parte do agente - o elemento intelectual ou cognitivo e o elemento volitivo.

Como refere Figueiredo Dias, “o dolo é conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo (...)”; “mas o dolo é ainda expressão de uma atitude pessoal de contrariedade ou indiferença (...) perante o dever-ser jurídico-penal”.

Repetidamente o Tribunal da Relação do Porto tem emitido jurisprudência a propósito da falta dos factos integradores do dolo. A título meramente exemplificativo, veja-se o que se escreveu no recurso do Proc. 465 /07, do 1º Juízo Criminal de Matosinhos:

«O STJ, sugestivamente, no acórdão de 22.10.2003, tirado no proc. n.° 2608/033.a, SASTJ, n.° 74, 149, considerou que o dolo deve ser expressamente invocado para poder ser revelado. A ideia de um dolus in re ipsa, que sem mais resultaria da simples materialização da infracção, é hoje indefensável em direito penal.

Veja-se o aresto do Tribunal da Relação do Porto, publicado no site da dgsi datado de 7.1.2009, o qual é explícito sobre a imprescindibilidade da alegação expressa do elemento subjectivo para ser fixado o objecto do processo. E também no mesmo sentido se refere em outro acórdão proferido no Tribunal da Relação do Porto, igualmente desta Secção, no processo n.° JTRP000384I 1, em 19.10.2005, in www.dgsi.pt., “Entendemos que o elemento subjectivo não pode resultar como extrapolação e efeito lógico do conjunto dos factos objectivos que são imputados ao arguido; com efeito, no nosso ordenamento jurídico, ninguém sustenta a existência de presunções de dolo.

Com efeito, o STJ, por Acórdão de 20 Nov. 2014, Processo 17/07 fixou s seguinte jurisprudência: FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA. ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS. É fixada jurisprudência no sentido de que na acusação, a falta de descrição dos elementos subjetivos do crime, particularmente os que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada em fase de julgamento com recurso ao mecanismo da alteração não substancial dos factos. Tendo o sistema processual penal uma estrutura basicamente acusatória, é pela acusação ou pela pronúncia que o objeto do processo é delimitado, em obediência ao princípio da vinculação temática. Deste modo, o conteúdo da acusação deverá pautar-se pelos aspetos que configuram os elementos subjetivos do crime, nomeadamente os que caracterizam o dolo, abarcando a consciência ética ou consciência dos valores e a atitude do agente de indiferença pelos valores tutelados pela lei criminal. Ora, na falta de alguns dos elementos caraterizadores do tipo subjetivo do ilícito, a integração de deficiências não consubstancia uma alteração não substancial dos factos, pelo que sendo o processo despachado para julgamento, sem ter passado pela instrução, impõe-se a rejeição da acusação, por a mesma ser nula e por ser manifestamente infundada ao não conter a narração dos factos. (com voto de vencido).

Resulta daqui que, quando a acusação particular (assim com a acusação pública) narra factos insusceptíveis de integrarem o tipo não pode haver legalmente pronúncia.
Na verdade, a decisão instrutória nos termos do art.° 308°, n° 1, do CPP, tem de descrever os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança. Ora, se a acusação apresentada pelo assistente não contém esses factos, a sua inclusão na pronúncia significaria, repete-se, a pronúncia do arguido por factos que constituiriam uma alteração substancial dos descritos naquele requerimento, sendo tal decisão nula, por força do já falado artº 309°, n° 1, do CPP.
E uma acusação que não pode legalmente conduzir à pronúncia do arguido é uma acusação que a lei não pode admitir, até porque seria inútil, e não é licito praticar no processo actos inúteis (art”s 137° do CPC e 4° do CPP).
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Nestes termos e pelos fundamentos expostos, ao abrigo do disposto no art. 287.°, n.ºs 2 e 3, quer porque a instrução é inadmissível - por inexequibilidade e por falta de objecto (cfr., em situações similares, Acórdãos da Relação de Lisboa de 06/11/2001, da Relação de Coimbra de 31/10/2001 e da Relação do Porto de 23/05/2001 e de 24/04/2002, processo n.º 0210078, todos consultados em www.dgsi.pt).-, quer porque a acusação particular é nula, por na mesma se ter omitido toda e qualquer referência aos elementos integrantes da consciência da ilicitude, habitualmente traduzido na expressão de que “o arguido actuou sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei”, não pronuncio o arguido e determino, após transito, o arquivamento dos autos.
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Face ao exposto e sem necessidade de quaisquer outros considerandos, julgando nula a acusação particular, determino após trânsito o arquivamento dos autos.
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Custas pelo assistente, com taxa de justiça que se fixa em 1 UC.
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Notifique.”

2 – Não se conformando com a decisão, o assistente N. R. interpôs recurso da mesma, oferecendo as seguintes conclusões – após convite formulado ao aperfeiçoamento das mesmas - (transcrição):

1. O Assistente não se pode conformar, como efectivamente não se conforma, com a decisão ora recorrida, no sentido da não pronúncia do Arguido, por nula a acusação em face de uma apontada falta de menção ao elemento da consciência da ilicitude da conduta efectivamente perpetrada.
2. Ao contrário do decidido, quer na Acusação Particular deduzida, quer no Pedido de Indemnização Civil formulado, são alegados factos que integram os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime de difamação, mormente, no que respeita à consciência da ilicitude, no artigo 10.º da Acusação Particular, na parte supra transcrita – vide artigo 12. das Alegações.
3. Conforme alegado naquele artigo 10.º da Acusação Particular, observa-se a referência expressa ao elemento da consciência da ilicitude, porquanto, dizer que o arguido agiu de forma livre significa que poderia e deveria agir de modo diverso, se assim o quisesse, em conformidade com o direito e o dever-ser, assim agindo “conscientemente”;
4. Actuação consciente representada em todas as circunstâncias do facto, dado que o Arguido tinha plena e perfeita consciência dos seus actos, da sua desconformidade com os comandos legais e, deste modo, da ilicitude dos mesmos, sabendo-os punidos por Lei.
5. Com o devido respeito, que é muito, resulta de forma indubitável, in casu, que o Arguido, nos termos narrados e alegados na Acusação Particular, ao colocar na sua página do Facebook considerações e imputações ofensivas da honra do Assistente, actuou de forma livre e consciente, sabendo que ao imputar tais expressões, de modo público e ampliado como é a rede social em causa, o ofenderia gravemente na sua honra e consideração;
6. Ainda assim, não se coibiu de o fazer, actuando, reitere-se, de forma livre, esclarecida e consciente, sabendo que a sua conduta era punível por Lei.
7. Destarte, observa-se na Acusação Particular factualidade e a alegação que consubstanciam os elementos volitivo e intelectual do tipo de crime em causa e a alegação relativa à consciência da ilicitude do Arguido.
8. Alegação que é reiterada no artigo 20.º, da mesma peça processual, onde vem expressamente alegado o Arguido agiu “totalmente livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram censuráveis e punidas por lei e que não tinham qualquer correspondência com a verdade”.
9. Portanto, ao contrário da decisão aqui recorrida, consta na Acusação Particular deduzida a narração suficiente e necessária quanto aos elementos integrantes da consciência da ilicitude, além do mais.
10. Aliás, ainda que assim se não entendesse, o que não se concebe e muito menos se concede, sempre se impunha atender às regras da experiência comum, aos critérios do normal acontecer e do bom pai de família;
11. E, em consequência, efectuada a análise aos factos alegados, mormente à factualidade respeitante à publicação em causa na rede social Facebook, concluir pela observância do elemento relativo à consciência da ilicitude, atenta a percepção do carácter difamatório inerente à imputação ali efectuada, bem como a inequívoca vontade de proferir/publicar na rede social – vide neste sentido o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa: processo 10714/2004-3.
12. Pelo que, ainda que se entendesse pela inexistência de referência ao elemento da consciência da ilicitude – o que, repita-se, não se concebe e muito menos se concede e apenas por mera hipótese e dever de patrocínio se coloca – sempre se impunha a decisão no sentido de, efectuada a análise às expressões e conduta perpetrada pelo Arguido, devidamente conjugadas com a identificação do assistente pela colocação da sua fotografia, se verificar demonstrado tal elemento.
13. Neste sentido, conforme alegado e parcialmente transcrito, atente-se o teor do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido no processo 833/15.3SMPRT.P1, que decidiu no sentido de, ponderado o acórdão uniformizador de jurisprudência, apesar da jurisprudência fixada, esta não se aplicar à omissão na acusação de factos integradores do conhecimento da ilicitude, quando o relevo axiológico do crime – por enraizado ou difundido na comunidade – decorre da própria natureza do facto típico.
14. É precisamente o que sucede no crime de difamação – cujo bem jurídico é o mesmo que no crime de injúria abordado naquele acórdão – que abrange a formulação de juízos ofensivos da honra e consideração, com um relevo axiológico bastante enraizado e difundido na comunidade.
15. Deste modo, a não se considerar o alegado nos artigos 10.º e 20.º da Acusação Particular e pedido de indemnização civil como correspondendo à alegação do elemento respeitante à consciência da ilicitude da conduta do Arguido, sempre se impunha decisão de pronúncia na medida em que esse elemento decorre da própria natureza do facto típico em causa e, como tal, não se afigura relevante a (suposta) falta de alegação na Acusação Particular.
16. De facto, não se concebe que se determine pela nulidade da Acusação Pública quando são alegados e imputados factos objectivos que indiciam de forma suficiente a prática do crime de difamação, os quais, por si só, determinam a existência de uma vontade (e de uma consciência dessa vontade) do Arguido em perpetrar essa mesma conduta, bem sabendo que iria ofender, como efectivamente ofendeu, o Assistente na sua honra, bom nome e consideração.
17. Consequentemente, por inexistir a apontada nulidade, ou qualquer outra, na Acusação Particular deduzida pelo Assistente, impõe-se a pronúncia do Arguido, sob pena de grave violação do disposto nos artigos 284º e 285º do Código de Processo Penal e 14º, 16º e 180º do Código Penal.
18. Devendo ser revogada a instrutória proferida, aqui recorrida, recebendo-se a acusação particular e pronunciando-se o Arguido pela prática do crime de difamação, p. e p. pelo artigo 180.º e 183.º, do Código Penal;
19. O que se peticiona a V. Exas. Venerandos Juízes Desembargadores, por ser de Inteira Justiça.

Nestes termos deverá o presente recurso ser julgado totalmente procedente e em consequência, receber-se a referida acusação particular, pronunciando o arguido e submetendo os presentes autos a julgamento, assim se fazendo inteira JUSTIÇA.

3 – O Ministério Público junto da primeira instância respondeu ao recurso, considerando que a decisão recorrida não merece qualquer censura, devendo ser mantida, porquanto a acusação particular padece de nulidade por ser completamente omissa quanto à narração dos factos que traduzem a consciência da ilicitude da acção por parte do arguido.
4 – Nesta instância, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, sufragando a posição expressa na primeira instância e concluindo nos mesmos moldes.
5 – No âmbito do disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada qualquer resposta.
6 – Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado de harmonia com o preceituado no artigo 419º, nº 3, do Código de Processo Penal.
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II – Fundamentação

1 - O objeto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respetiva motivação - artº 412º, n1, do Código de Processo Penal e jurisprudência fixada pelo acórdão do Plenário da Secção Criminal do STJ nº 7/95, de 19/10, publicado no DR de 28/12/1995, série I-A -, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam as cominadas com a nulidade de sentença, com vícios da decisão e com nulidades não sanadas - artigos 379º e 410º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Penal (cfr. Acórdãos do STJ de 25/06/98, in BMJ nº 478, pág. 242; de 03/02/99, in BMJ nº 484, pág. 271; Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, vol. III, págs. 320 e ss; Simas Santos/Leal Henriques, “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 3ª edição, pág. 48).

2 - A dissidência invocada pelo recorrente traduz-se, em síntese, em:

- A acusação particular contém todos os elementos típicos (objectivos e subjectivos) do crime imputado;
- A consciência da ilicitude está expressamente referida nos artigos 10º e 20º da acusação particular;
- Tal consciência da ilicitude constitui uma decorrência da própria natureza do facto típico em causa, não sendo relevante a suposta falta de alegação da mesma.
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3 – Teor da acusação particular deduzida pelo assistente

Uma vez que a decisão de não pronúncia do arguido se fundamenta na nulidade da acusação particular, “por omissão na mesma de qualquer referência aos elementos integrantes da consciência da ilicitude, habitualmente traduzido na expressão de que “o arguido actuou sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei”, importa transcrever o seu conteúdo integral, bem como do pedido cível de indemnização conjuntamente formulado (fls. 75 e segs.):

A) Da Acusação Particular

1. O Arguido é sócio gerente da sociedade comercial “X – L. C., Transportes, Unipessoal Lda”, NIPC …, com sede na Rua ..., Mirandela.
2. Por sua vez, o Assistente trabalhou na referida empresa vários anos, tendo cessado a sua relação laboral em Novembro de 2017, mediante envio de carta registada com aviso de recepção.
3. Em meados do mês de Dezembro de 2017 o Arguido colocou na sua página da rede social Facebook urna fotografia do Assistente com a seguinte legenda “procurasse este ladrão as soltas”.,
4. Chamando publicamente o Assistente de ladrão.
5. A expressão proferida, além de grave e falsa, ganha ainda mais relevo e expansão por ter sido utilizado um meio de comunicação social aberto ao público em geral sem qualquer restrição, imputando-se um conjunto difamações e calúnias ofensivas da honra e consideração do Assistente.
6. A publicação na rede social teve o nítido propósito de ofender e denegrir a honra, brio e dignidade do Assistente.
7. Estes comportamentos difamatórios repetiram-se através de um comentário à referida publicação, mediante o qual o Arguido reiterou tais impropérios com uma nova afirmação: “um ladrão de baixa aos tordos”.
8. Quis o arguido causar profundo transtorno e atingir o Assistente na sua honra, consideração e bom nome, tentando igualmente impedir que mesmo retomasse a sua actividade profissional.
9. Para além do mais, o Arguido andou a dizer em cafés e perante pessoas do conhecimento de ambos e do meio de trabalho, que o Assistente era um mau trabalhador e um ladrão.
10. Com esta actuação, de forma continuada, deliberada, livre e conscientemente, o Arguido cometeu em autoria material e na forma consumada dois crimes de difamação, previsto e punido pelo artigo 180º e agravados pelas alíneas a) e b) do 183º, ambos do Código Penal.
11. (sem conteúdo)

B) Do Pedido de Indemnização Civil

12. O Assistente, ora Demandante, dá como integralmente reproduzida, para todos os efeitos legais, a factualidade vertida na acusação particular, consubstanciada nos artigos anteriores, da qual consta que o Arguido, ora Demandado cometeu dois crimes de difamação agravados, pelos preceitos insertos nos artigos 180º e 183° nº 1 a) e b) do Código Penal.
13. O Demandante sentiu-se profundamente ofendido e ultrajado com as expressões que o Demandado proferiu contra si, sentindo-se verdadeiramente vexado e humilhado e dominado por um sentimento de enorme injustiça, o que lhe provocou um profundo mal-estar, já que tais imputações não correspondem à verdade, como bem sabe o Denunciado e foram proferidas com uma intenção claramente maliciosa e de ofender o Denunciante.
14. O Demandante é um homem de bem, prestável respeitado e respeitador das pessoas com quem convive.
15. Tudo isto fez com que o demandante ficasse deprimido, receoso, entristecido, deixando de apresentar a força de viver a que havia habituado os seus familiares e amigos.
16. Assim, as expressões difamatórias geraram sentimentos de extrema humilhação e vergonha, provocando-lhe enorme indignação e tristeza.
17. Tais circunstâncias criaram no Demandante uma forte e estigmatizante perturbação sócio-psico-emocional, constituindo um grave atentado à sua personalidade moral, legalmente tutelado pelo artigo 70º Código Civil.
18. Ora, dúvidas não existem que o demandado adoptou tais condutas com o intuito de ofender a honra e consideração social do Demandante, como de facto ofendeu.
19. Pois, na verdade, sabia que se dirigisse aquelas palavras sobre o Demandante o iria magoar profundamente.
20. Sendo certo que fê-lo totalmente livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram censuráveis e punidas por Lei e que não tinham qualquer correspondência com a verdade.
21. Agindo de forma absolutamente injustificada e ilícita, visando ofender a honra e caluniar o Denunciante.
22. Destarte, os factos descritos consubstanciam danos que, pela sua gravidade, merecem tutela de Direito e são susceptíveis de serem indemnizados – artigo 496º do Código Civil.
23. Indemnização que deve ser fixada em dinheiro – cfr. Artigos 564º e 566º do Código Civil.
24. Pelo que assiste ao Demandante o direito a ser indemnizado pelo Demandado, em quantia não inferior a 2 000.00€, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros moratórios vencidos e vincendos, desde a data das respectivas publicações na rede social até efectivo e integral pagamento.”
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III - Apreciação do recurso

O presente recurso vem interposto da decisão proferida pelo JIC que não pronunciou o arguido pela prática de dois crimes de difamação agravados, p. e p. pelos artigos 180º e 183º, nº 1, al. a) e b), todos do Código Penal.

O fundamento para tal decisão consistiu na nulidade da acusação particular deduzida pelo assistente – que o Ministério Público havia declarado não acompanhar pelo mesmo motivo - por “na mesma se ter omitido toda e qualquer referência aos elementos integrantes da consciência da ilicitude, habitualmente traduzido na expressão de que “o arguido actuou sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei”, ou de qualquer outra equivalente, omissão que só seria suprível mediante recurso a uma alteração substancial dos factos, não admitida pelo art. 309º, nº 1, do Cód. Processo Penal.

A este propósito, afirma o Exmo. Conselheiro Maia Costa que “constitui alteração substancial dos factos o aditamento (…) de elementos típicos (por exemplo, os elementos típicos subjectivos), sem os quais os factos acusados pelo assistente não seriam puníveis” - anotação 7 ao artigo 285º, in Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2016.

No requerimento de abertura de instrução formulado pelo arguido – e que deu origem a esta fase processual - é também aquela a razão justificativa para a requerida prolação de despacho de não pronúncia.
Invoca o recorrente que a acusação particular deduzida contém todos os elementos, objectivos e subjectivos, do ilícito típico, sendo que a consciência da ilicitude está expressamente referida nos artigos 10º e 20º da mesma.
Comecemos por salientar que o assistente, ora recorrente, optou por incluir no mesmo requerimento (cfr. fls. 75 a 79) duas peças processuais autónomas – a acusação particular (do ponto 1 ao 10) e o pedido cível de indemnização (do ponto 12 ao 24), rematando com os pedidos e com a indicação das provas (comuns) a produzir (o ponto 11 inexiste no requerimento apresentado, certamente por mero lapso).
Mas não é pelo facto de se tratar de um só requerimento que as aludidas peças processuais perdem a sua função própria e independente, já que produzem efeitos também autónomos (ainda que o pedido cível, por força do princípio da adesão, assuma alguma dependência do teor da acusação, em cujos factos ilícitos tem que se alicerçar).

Certo é que a acusação - por fixar o objecto do processo, em conformidade com a estrutura acusatória do processo penal, definida constitucionalmente – tem de ser absolutamente autónoma e completa, não podendo ficar dependente de outras peças processuais para esse efeito (ainda que constantes do mesmo requerimento).

No caso em apreço, não estando em causa os elementos objectivos do ilícito, mas apenas os subjectivos, do teor da acusação deduzida logo se alcança que as únicas referências a este são (como bem refere o Ministério Público na resposta ao recurso) as constantes dos pontos com os números 6, 8 e 10, onde se alega que o arguido teve “o nítido propósito de ofender e denegrir a honra, brio e dignidade do assistente”, de “atingir o assistente na sua honra, consideração e bom nome”, atuando “de forma continuada, deliberada, livre e conscientemente” – cfr. transcrição integral supra efetuada.
Porém - como também se realça na citada resposta – tais factos não permitem concluir que o arguido sabia que tal atuação era proibida e punida por lei, ou seja, que tinha consciência da ilicitude dessa atuação.
Atuar de forma consciente pretende significar que o arguido, aquando da acção desenvolvida, era imputável, que não tinha a sua consciência adulterada por quaisquer factores, permanentes ou temporários, limitativos da mesma.
Outra coisa bem diferente é o ter conhecimento/saber que a acção levada a cabo é criminalmente ilícita e punível, isto é os elementos normativos do facto.
Ora, percorrida a acusação deduzida nada se encontra nela que afirme tal conhecimento (da consciência da ilicitude).
Tal facto consta efectivamente do requerimento apresentado, mas, como o recorrente afirma na argumentação recursória do ponto 20. Ora, este ponto não pertence à acusação, mas sim ao formulado pedido de indemnização cível – cfr. transcrição supra.
Como já se referiu, sendo um dos efeitos primordiais da acusação fixar o objecto do processo, é ela que tem de conter toda a factualidade necessária a esse fim, não podendo ser “complementada” com outros factos “exteriores” à mesma. É o que resulta do preceituado no art. 283º, nº 3, al. b), aplicável à acusação particular por força do estatuído no art. 285º, nº 3, ambos do CPP.
A este propósito – e entrando já também na apreciação do último argumento usado pelo recorrente, de que a consciência da ilicitude constitui uma decorrência da própria natureza do facto típico em causa, não sendo relevante a falta de alegação da mesma - afirma o Exmº. Conselheiro Maia Costa, na anotação nº 5 ao art. 283º (Código de Processo Penal Comentado, supra citado), que a ”vinculação temática da acusação obriga, por isso, a que ela contenha uma precisa narração dos factos, que vai delimitar o poder cognitivo do tribunal. Essa narração abrange necessariamente os factos integradores de todos os elementos típicos do crime, quer os objectivos, quer os subjectivos, (…).
Não é admissível a “presunção” do elemento subjectivo do crime a partir dos elementos objectivos descritos na acusação. Esta tem que explicitamente descrever os factos que consubstanciam o tipo subjectivo.
Assim, tratando-se de crime doloso, a acusação deve conter a referência aos factos que sustentam a imputação do dolo do tipo, ou seja; o elemento intelectual (conhecimento de todos os elementos descritivos e normativos do facto) e o elemento volitivo (vontade de realizar o facto típico), (…). A estes elementos acresce um terceiro, chamado emocional, que se consubstancia na falta de consciência ética por parte do agente, ou seja, na sua atitude de indiferença perante os valores tutelados pelo direito (tipo de culpa doloso), que igualmente deve constar da acusação.
A falta de qualquer destes elementos não pode ser suprida em julgamento com recurso ao art. 358º (ver o Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 1/2015 do Supremo Tribunal de Justiça).”
Na verdade, este Acórdão de Fixação de Jurisprudência (com data de 20.11.2014 e publicado no DR, I-A, de 27.01.2015) estatuiu que: “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358º do CPP.” – o sublinhado é nosso.

Nestes termos, o despacho que viesse a pronunciar o arguido por factos diversos dos descritos na acusação do assistente seria nulo – art. 309º, nº 1, do CPP.

Em suma, bem andou o Mmo. JIC ao decidir como decidiu, nada havendo a censurar ao despacho de não pronúncia proferido, que se confirma, improcedendo o recurso interposto.
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IV - DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso interposto pelo assistente N. R., confirmando a decisão de não pronúncia recorrida.
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Custas a cargo do recorrente, fixando a taxa de justiça devida em 3 (três) Ucs – arts. 515º, nº 1, al. b) e 518º, ambos do CPP e 8º, nº 9, este do RCP e tabela anexa a este diploma legal.
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(Texto elaborado pelo relator e revisto por ambos os signatários – artigo 94º, nº 2, do Código de Processo Penal).
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Guimarães, 09 de Março de 2020

(Mário Silva - Relator)
(Maria Teresa Coimbra - Adjunta)