Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
28/18.4T8MTR.G1
Relator: JOAQUIM BOAVIDA
Descritores: PAREDE COMUM
EMISSÃO DE CHEIROS
ESGOTOS A CÉU ABERTO
RELAÇÕES DE VIZINHANÇA
DIREITOS DE PERSONALIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/16/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO INDEPENDENTE E SUBORDINADA
Decisão: PARCIAL PROCEDÊNCIA DA APELAÇÃO INDEPENDENTE E IMPROCEDÊNCIA DA APELAÇÃO SUBORDINADA
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- Só relativamente a uma parede comum é que qualquer dos consortes dispõe da faculdade de nela introduzir ferros, traves ou barrotes, desde que não ultrapassem o meio da parede. Não sendo a parede comum, não dispõe o proprietário do prédio vizinho de tal faculdade.

II- O proprietário de um imóvel dispõe da faculdade de opor-se à emissão de cheiros provenientes de prédio vizinho, desde que tais factos importem um prejuízo substancial para o uso do imóvel ou não resultem da utilização normal do prédio de que emanam.

III- Sendo no caso a criação de suínos uma actividade normal numa região em que isso tem raízes ancestrais, o problema não reside em serem criados suínos, mas sim na forma como são tratados os dejectos provenientes da exploração.

IV- Não se pode considerar como normal fazer escorrer os esgotos resultantes da corte de suínos a céu aberto, por um prédio, até serem desembocados num caminho público aí existente, com todas as consequências perniciosas daí resultantes, em termos de potenciação da emanação de cheiros nauseabundos e de concentração de insectos. Para o padrão actual da nossa sociedade, apreciado por um homem médio, essa não é uma utilização normal do prédio, pois ultrapassa os limites da tolerabilidade exigível ao proprietário do prédio vizinho.

V- A questão da emissão de poluição, em especial de cheiros nauseabundos ou pestilentos, não se coloca apenas no âmbito das relações de vizinhança, no confronto entre proprietários de prédios vizinhos. Há outros planos em que a mesma se coloca: no plano da tutela do direito de personalidade, no plano do direito do ambiente e no plano constitucional. Esses outros níveis de tutela alargam sucessivamente o âmbito subjectivo e os fundamentos de reacção contra uma actividade poluente.

VI- Sendo os direitos de personalidade verdadeiros direitos fundamentais, a ponderação que se fez, dando prevalência ao direito dos autores a uma vida saudável e a um ambiente sadio, sobre o direito de os réus despejarem livremente os detritos provenientes da pocilga existente no seu prédio, é necessária, adequada e proporcional, atenta a sua diferente natureza e a hierarquia dos valores em confronto.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I – RELATÓRIO

1.1. D. G. e mulher, P. G., intentaram acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra M. M. e mulher, A. S., pedindo que os Réus sejam condenados:

«1. A taparem a saída dos esgotos da sua corte de suínos, por forma a que estes não produzam o cheiro pestilento que actualmente apresentam;
2. A retirarem a gravilha que espalharam pelo caminho público e pelo caminho dos AA., de modo a não prejudicar a passagem do gado destes; 3. A tapar a mina que mantêm aberta junto ao caminho dos AA., para evitar acidentes graves com os animais;
4. A orientar e derivar os esgotos de sua casa de morada para o saneamento municipal, deixando de os dirigir para o prédio dos AA.;
5. A parar com os despejos de líquidos, da janela de sua casa, também para o prédio dos AA.;
6. A deixar de derramar água para o caminho, durante o tempo frio, para evitar que esta gele e cause danos ao gado dos AA.;
7. A retirar, da parede, em pedra, que veda o prédio dos AA., a rede e os ferros que lá cravaram sem autorização destes, deixando aquela parede nas condições em que se encontrava antes do abuso;
8. A pagar, aos AA., pelos danos não patrimoniais que lhes causaram, a quantia de € 15.000,00 euros».
*
Os Réus contestaram por impugnação e requereram a condenação dos Autores como litigantes de má-fé, em multa e indemnização.
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1.2. Convocada a audiência prévia, foi proferido despacho-saneador, definido o objecto do litígio e enunciados os seguintes temas da prova:

«1. Aquisição originária e derivada da posse do prédio dos autores (art.º 1.º a 6.º da pi).
2. Aferir se os Réus derivaram esgotos da corte situada junto à sua casa de morada, onde guardam vários animais suínos – matam cerca de vinte por ano –, por forma a fazer passar aqueles esgotos, a céu aberto, junto ao armazém dos AA. e fazendo-os desembocar no caminho público (art.º 12.º pi).
3. Demonstrar se tais esgotos emitem cheiros nauseabundos, concentram insectos em quantidade imensa e produzem gás metano que é tóxico, dificultando enormemente o trabalho dos AA., principalmente, no tempo quente (art.º 13.º pi).
4. Comprovar se os autores espalharam gravilha pelo caminho público e mesmo pelo caminho pertencente aos AA., de modo a dificultarem o máximo a passagem do gado que escorrega (art.º 15.º pi).
5. Confirmar se os RR. mantêm aberta uma mina, bem junto ao caminho usado pelo gado dos AA., o que constitui um perigo para os animais (art.º 16.º pi).
6. Atestar se os RR. dirigem para o prédio dos AA., os esgotos da sua casa de morada e fazendo contínuos despejos, da janela nascente da sua casa de morada, também para o prédio dos AA., de todos e quaisquer líquidos que usam na mesma (art.º 17.º da pi).
7. Aferir se durante o tempo frio, os RR. abrem uma torneira existente junto à porta da sua casa de morada e, com intenção de prejudicar os AA., deixam correr a água para o caminho público e para o caminho destes, para que esta gele e provoque a derrapagem e a queda dos animais dos AA. (art.º 18.º pi).
8. Demonstrar se os RR. colocaram uma rede numa parede que delimitam os prédios pertencentes a uns e a outros – art.º 23.º pi».

Realizada a audiência de julgamento, proferiu-se sentença a julgar a acção parcialmente procedente, por parcialmente provada, e a decidir:

«A) Condenar os Réus pagar a cada um dos Autores quantia de 1.000,00 € (mil euros) a título de indemnização por danos não patrimoniais.
B) Absolver os Réus do demais peticionado pelos Autores.
C) Absolver os Autores do pedido de condenação como litigantes de má-fé formulado pelos Réus».
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1.3. Inconformados, os Autores interpuseram recurso de apelação da sentença, formulando as seguintes conclusões:

«1. Vêm, os AA., recorrer das respostas, sobre a matéria de facto, vertidas nos pontos 8. e 17. dos factos provados; das respostas, sobre a matéria de facto, vertidas nos pontos a), e), f), e h) dos factos não provados; da absolvição dos RR. quanto aos pedidos constantes da p.i., sob os números 1, 3, 5 e 7; e da condenação dos RR. a pagar, a cada um dos AA., a quantia de, APENAS, € 1.000,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais.
2. Os referidos factos dados como provados e não provados não respeitam a prova produzida em audiência de julgamento.
3. Designadamente, não respeitam o que consta dos depoimentos das testemunhas, arroladas pelos AA., D. D., (membro da Junta da actual freguesia de … e …, vizinha da de …), M. L., J. C., J. D. e D. A., antigo Presidente da Junta e actual Presidente da Assembleia de Freguesia de … (a que pertence a aldeia de …); e até das testemunhas, arroladas pelos RR., J. G., M. I. e do próprio Réu e do seu filho.
4. As testemunhas arroladas pelos AA., todas de bem com os RR., depuseram com conhecimento de causa, por forma desinteressada e com total isenção, conforme se pode ver dos seus depoimentos que vêm transcritos, no essencial, no corpo destas alegações.
5. As testemunhas indicadas pelos RR., pelo contrário, algumas da sua família (filho, sogra do filho), prestaram depoimentos omissos, incoerentes, imprecisos, contraditórios e com falta de isenção, como, por exemplo, se pode inferir do diálogo entre a testemunha M. I. e o advogado dos AA., aqui transcrito a fls. 4.
6. Em face desta evidência, impõe-se que os factos provados, nos pontos referidos a fls. 2 destas alegações, sejam alterados pela forma seguinte:
- Os pontos 8. e 17. dos factos provados, mercê dos depoimentos das testemunhas D. D., M. L., J. C., D. A., J. G. e, até, da confissão do Réu, supra transcritos de fls. 5 a 13, deverão sofrer uma alteração nas suas formulações, sugerindo-se as seguintes:
8. “Os AA. passam, junto e dentro do referido armazém, pelo menos 4 horas por dia”.
17. “Actualmente, os Réus dispõem de uma fossa para recolha dos dejectos dos seus suínos, a qual foi construída em finais de Fevereiro de 2018”.
7. Também os factos constantes das alíneas a), e), f) e h), em face dos depoimentos das testemunhas D. D., M. L., D. A., J. G., J. D. e também do depoimento do filho do Réu e da confissão deste, transcritos de fls. 14 a 33, deverão passar a figurar como factos provados, com os números 20., 21. e 22., pela forma seguinte:
20. “Os RR. mantêm aberta uma mina, bem junto ao caminho usado pelo gado dos AA., o que constitui um perigo para os animais, que podem, a qualquer momento, ali cair e ferir-se gravemente.”, com base nos depoimentos supra transcritos a fls. 14 a 22.
21. “Os RR. vêm fazendo despejos da janela norte da sua casa de morada, para o prédio dos AA., de líquidos por aqueles usados.” Atentos os depoimentos supra transcritos a fls. 22 a 27.
22. “Há cerca de três anos, os RR. colocaram, numa parede, em pedra, que limita o prédio que estes possuem de outro prédio dos AA. identificado no artigo 1º da p.i., uma rede, amparada em vários ferros cravados, também pelos RR., naquela parede, sendo que, para tal, não pediram autorização aos AA.”, levando em conta os depoimentos acima transcritos, a fls. 27 a 32.
8. Com esta factualidade dada como provada, não podem os RR. deixar de ser condenados nos pedidos formulados, pelos AA. na sua p.i., com o números 3., 5 e 7 no seguinte:
- A tapar a mina que mantêm aberta junto ao caminho dos AA., para evitar acidentes graves com os animais;
- A parar com os despejos de líquidos, da janela de sua casa, também para o prédio dos AA.; e
- A retirar, da parede, em pedra, que veda o prédio dos AA., a rede e os ferros que lá cravaram sem autorização destes, deixando aquela parede nas condições em que se encontrava antes do abuso.
9. E, porque os RR. apenas construíram a sua “fossa” após a entrada da presente acção e, seguramente, após terem sido notificados da contestação dos ora AA., no processo n.º 101/17.6T8MTR, junta a estes autos, e não provaram, como lhes competia, que tal “fossa” seja obra suficiente para evitar que os dejectos dos ditos suínos não produzam o cheiro pestilento que apresentavam ao tempo da propositura da presente acção, também os mesmos devem ser condenados:
- A tapar a saída dos esgotos da sua corte de suínos, por forma a que estes não produzam o cheiro pestilento que apresentavam aquando da propositura desta acção.
10. Por último e atendendo a que, durante mais de 24 anos, os AA. estiveram diariamente sujeitos a cheiros nauseabundos, à concentração de insectos em quantidade imensa, aos vapores devidos à libertação de gás metano, tóxico, o que lhes causou muito incómodo e sofrimento e os impede de trabalhar normalmente, como consta dos pontos 10. a 12.. dos factos provados, devem os RR. ser também condenados:
- A pagar, a cada um dos AA., a quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros), a título de ressarcimento dos danos não patrimoniais que lhes causaram.
11. Com efeito, é jurisprudência do STJ, praticamente unânime, que, na fixação da indemnização por danos não patrimoniais, os tribunais não se devem guiar por critérios miserabilistas, pelo que tal compensação terá que ser significativa e não meramente simbólica – Vd., por todos, os Acórdãos do STJ: de 18/10/2018, no processo 3499/11.6TJVNE.G1.S2; de 05/04/2018, no processo 1853/11.2TBVRF.P2.S1; de 29/08/2017, no processo 3499/11.6TJVNE.G1.S2; e de 24/02/2005, no processo 05A2366, todos in www.djsi.pt.
12. Foi violado pela M.ma Juiz a quo, entre outros, o artigo 607º do NCPC.

Termos em que, nos melhores de Direito e sempre com o mui douto suprimento, deve o presente recurso ser julgado procedente por provado e, consequentemente, anulada a douta sentença recorrida, na parte impugnada, a qual deverá ser substituída por outra que condene os RR. nos pedidos formulados, pelos AA., sob os números 1., 3., 5. e 7. da p.i. e, ainda, a pagarem, a cada Autor, a quantia de € 5.000,00, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais que lhes causaram.».
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1.4. Os Réus apresentaram contra-alegações e interpuseram recurso subordinado da sentença, formulando as seguintes conclusões:

«I. Os réus/recorridos vêm apresentar as suas contra-alegações nos termos do n.º 5 do art.º 638º do CPC e simultaneamente interpor recurso subordinado, nos termos do disposto no art.º.633º, para impugnar a resposta dada ao facto 12 da matéria provada, e invocar erro interpretação e aplicação dos art.º 70º, 1346º, 335 º do Código Civil, 18º, 64º e 66º da Constituição da República Portuguesa.
II. Em contra-alegações dizemos que não houve qualquer erro de julgamento da matéria vertida nos pontos provados 8 e 17 bem como nos não provados constantes das al. a), e), f) e h).
III. O depoimento testemunhas referidas pelos recorrentes para justificar a alteração do facto 8, não merecem credibilidade, foram claramente instruídas para dizer que os autores passam cerca de 4 horas por dia na vacaria.
IV. Quanto a pretendida alteração ao ponto 17, diga-se, antes de mais, que os recorrentes são autores, caindo sobre eles o ónus de alegar e provar os factos constitutivos do direito que alegam.
V. Os autores/recorrentes não alegaram nem produziram qualquer tipo de prova sobre a estanquicidade da fossa para onde os réus encaminham os detritos da corte dos porcos. Por isso, esse facto não pode constar do elenco factual.
VI. Quando ao facto não provado a) nenhum argumento é utilizado pelos recorrentes para que se possa avaliar ou reapreciar o julgamento feito na decisão recorrida.
VII. Quanto ao facto e), dizemos que o que resulta da prova produzida, nomeadamente das declarações de M. M., da testemunha M. I. e D. M. e das fotografias juntas com a contestação é que existe uma mina propriedade dos réus, no subsolo do lameiro dos autores, com a entrada no terreno dos réus. VIII. Que a mina tem mais de 100 anos e nunca lá caiu nenhum animal.
IX. Que se quiserem, os autores podem vedar o seu terreno, impedindo assim que qualquer animal caia do terreno deles para o terreno dos réus, e consequentemente que caia para a porta da mina.
X. As testemunhas referidas pelos autores nas alegações a que se responde, não merecem credibilidade, pois dizem que a mina afundou, o que não aconteceu, mantem-se inalterada há mais de 100 anos, como se demonstrou. Os seus depoimentos revelam que não conhecem o lugar onde está a mina.
XI. Quando ao afirmado na al. f) dos factos não provado dizemos que: os réus, há cerca de 40 anos, canalizaram os esgotos de sua casa para um seu terreno, através de tubagem que enterraram na berma de um caminho que confina a norte com a sua casa. Encostado à parede de casa dos RR existe uma caixa de derivação desses esgotos – declarações do réu M. M. e depoimento de D. M..
XII. Em 2007, ano em que foi feito o saneamento público na aldeia de ..., os RR ligaram os esgotos de sua casa ao saneamento público – facto provado 19.
XIII. A ré, duas vezes por dia tem que lavar a entrada de sua casa, pois, as vacas dos AA. defecam à sua porta – facto provado 18. Pois isso, não credível que uma mulher que se dá ao trabalho de lavar a entrada duas vezes por dia, depois faça despejos da janela da cozinha para a rua.
XIV. Acresce que, os autores não provaram, como alegaram, que o caminho que se situa a norte da casa dos réus é sua propriedade, assim sendo, mesmo que tivessem provado que os réus faziam despejos pela janela, seria para o caminho e não para prédio dos autores.
XV. Quando ao afirmado em h) dizemos que, mesmo que os autores não tivessem dado autorização expressa para que o réu colocasse rede no seu muro, deram autorização tácita, porque viram o réu a colocar a rede e nada disseram, como o autor afirmou nas declarações de parte que prestou.
XVI. Aliás, consideramos que, salvo melhor entendimento, a atitude do autor, relatada nas suas declarações e na petição inicial, constitui abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium.
XVII. Pelo que se disse, não assiste qualquer razão aos autores, devendo ser mantida a resposta dada aos pontos da matéria de facto impugnados.
XVIII. Decidindo-se pela improcedência totalmente do recurso apresentado pelos autores e mantendo a decisão recorrida, nesta parte.

Recurso Subordinado

XIX. Os réus consideram que a sentença recorrida errou no julgamento da matéria de facto vertida no ponto 12 dos factos provados (A referida actividade dos RR., causa muito incómodo e sofrimento aos AA. e impede-os de trabalhar normalmente), em primeiro lugar, porque esta afirmação não contém factos é, antes, uma conclusão. E para aqui chegar deveriam ter sido alegados provados factos que concretizassem esse sofrimento, esse incómodo. Devia ter sido alegado e provado em que medida foram os autores impedidos de trabalhar. O que não aconteceu.
XX. Em segundo lugar por considerarem que o tribunal recorrido, com os factos provados 2, 6, 7, 8, 9, 10 e 14 não pode presumir o vertido em 12, porque estes factos não autorizam aquela presunção.
XXI. Como dissemos, a sentença motivou a prova deste facto, exclusivamente, na presunção. Inexiste prova sobre o incómodo, sofrimento ou os impedimentos do trabalho dos autores por causa do cheiro dos porcos dos réus. O que, atendendo às regras da prova, competia aos autores. E esta falha não pode ser suprida com recurso a presunções.
XXII. Acresce que, dos factos provados e da lógica da vida, da experiência de vida comum, não podemos concluir que o trabalho desenvolvido numa vacaria a cuidar de 18 a 20 vacas pode ser perturbado pelo cheiro de 6 a 12 porcos, criados numa corte cerca de 40 metros da vacaria.
XXIII. Isto porque, as vacas também defecam e urinam por onde quer que passem ou estejam, e estes detritos cheiram mal e propiciam o desenvolvimento de insetos, por isso, os autores, nas 4 horas que dizem passar, por dia, naquela vacaria, não conseguem distinguir o cheiro da bosta das vacas do cheiro da bosta dos porcos ou as moscas e mosquitos criados nas fezes dos porcos ou nas fezes das vacas, para que se possa concluir que é o cheiro dos procos que “causa muito incómodo e sofrimento aos AA. e impede-os de trabalhar normalmente.”
XXIV. Pelo que se disse, a decisão recorrida errou no julgamento desta matéria, devendo ser corrigida, passando o facto 12 a constar da matéria de facto não provada.
XXV. A sentença recorrida errou na interpretação e aplicação do direito.
XXVI. Entendeu a sentença recorrida que a atividade legal de criação de 6 a 12 porcos feita pelos réus, cheira mal e propicia o surgimento de insectos causando incómodo, sofrimento e perturbação no trabalho dos autores quando estes exercem a sua atividade no prédio vizinho, onde cuidam de 18 a 20 vacas, sendo este comportamento dos réus ilícito por violar os direitos de personalidade dos autores a uma vida saudável e a um ambiente sadio. Discordamos.
XXVII. O disposto no art.º 1346º do CC não pode ser aplicado ao caso dos autos, como foi. A atividade desenvolvida pelos réus é legal. Como veremos, não ficou demostrado que a criação dos porcos dos réus cause um prejuízo substancial para o uso do imóvel dos autores (os autores estão a usar o seu imóvel como vacaria).
XXVIII. A atividade dos RR, de criarem uma ninhada de porcos, não viola o direito fundamental de proteção à saúde previsto no art.º 64º da CRP, na medida em que os autores se queixam de sentirem o cheiro dos porcos quando estão a trabalhar na sua vacaria, e não se queixam de que aquele cheiro afete de qualquer forma a sua saúde.
XXIX. Não é possível o ambiente de vida humano presente numa vacaria ser prejudicado com o cheiro de uma criação de porcos existente na propriedade vizinha, por isso, a atividade dos réus não viola o direito fundamental dos autores previsto no art.º 66º da CRP.
XXX. Os direitos de personalidade estão integrados no conceito de dignidade da pessoa humana e é nesta perspetiva que devem ser analisados. Por isso, para que um facto seja lesivo dos direitos de personalidade temos que compreender que é lesivo da dignidade da pessoa humana.
XXXI. Não nos parece que, perdoem a expressão, o diferente cheiro da merda, porque é disto que se trata, mereça relevância, tenha dignidade para lesar direitos de personalidade de quem quer que seja.
XXXII. E, por isso, a atividade dos réus não constitui qualquer ofensa ilícita que mereça a proteção prevista no art.º 70º do CC.
XXXIII. Entendemos que neste caso estamos perante dois direitos iguais: o direito de num prédio criar porcos e noutro criar vitelos. E, havendo colisão de direitos, deve ser resolvida pelo n.º 1 do art.º 335º e não pelo n.º 2, como fez a sentença.
XXXIV. Mas mesmo que assim não fossem, mesmo que estivéssemos perante direitos diferentes, a ponderação sobre a intensidade e a relevância da lesão dos direitos de personalidade, imposta pelo n.º 2 do art.º 18 da CRP levaria, necessariamente, a solução idêntica, isto é, a conclusão de que inexiste lesão ilícita aos direitos de personalidade dos autores.
XXXV. É por este somatório de razões que consideramos que a sentença recorrida errou na interpretação das disposições previstas no art.º 70º, 335º, 1346º do Código do Código Civil e 18º, 64º e 66º da Constituição da República Portuguesa, por não serem aplicáveis ao caso dos autos.
XXXVI. Deve, por isso, dar-se provimento ao presente recurso subordinado, revogando nesta parte da sentença recorrida e absolvendo os réus de todos os pedidos. Assim se fará a costumada JUSTIÇA».
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Os Autores não contra-alegaram relativamente ao recurso subordinado.
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Os recursos – independente e subordinado – foram admitidos como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
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Foram colhidos os vistos legais.
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1.5. QUESTÕES A DECIDIR

Em conformidade com o disposto nos artigos 635º, nºs 2 a 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a área de intervenção do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial (1). Tal restrição não opera relativamente às questões de conhecimento oficioso, as quais podem ser decididas com base nos elementos constantes do processo. Em matéria de qualificação jurídica dos factos a Relação não está limitada pela iniciativa das partes – artigo 5º, nº 3, do CPC. Por outro lado, o tribunal ad quem não pode conhecer de questões novas, uma vez que os recursos visam reapreciar decisões proferidas e não analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes.

Neste enquadramento, constituem questões jurídicas a decidir:

i) Erro no julgamento da matéria de facto no que respeita aos pontos 8, 12 e 17 dos factos provados e aos pontos a), e), f) e h) dos factos não provados, atenta a impugnação da decisão sobre a matéria de facto feita em ambos os recursos;
ii) Reapreciação de direito em função da modificação da matéria de facto requerida pelos Recorrentes.
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II – FUNDAMENTOS

2.1. Fundamentos de facto

A decisão recorrida considerou provados os seguintes factos:

1 - Os Autores são donos e legítimos proprietários de um prédio denominado “Armazém e Cultura ...”, sito dentro dos limites do lugar de …, inscrito na matriz predial rústica da freguesia de ... sob o artigo ....
2 - Nesse armazém guardam o seu gado bovino – entre 18 e 24 cabeças –, as suas rações, feno e algumas alfaias agrícolas.
3 - Foram os Autores quem o construiu em terreno que herdaram de Manuel e L. A., através de escritura de doação outorgada em 18 de Dezembro de 1992.
4 - Estes doadores, por si e antepassados, possuíram o referido prédio durante mais de 30 e 40 anos, como donos, à vista de toda a gente, continuadamente e sem qualquer oposição, pagando todos os impostos devidos.
5 - Dele sempre retiraram todos os seus frutos, designadamente, milho, batata e hortaliças.
6 - Todos os dias, pela manhã, os Autores vão buscar o seu gado ao dito armazém e levam-no ao monte, para pastar.
7 - Ao fim do dia, trazem-no de volta ao armazém e ali o acamam, para lá pernoitar.
8 - Os Autores passam junto e dentro do referido armazém um número diário de horas não concretamente apurado.
9 - Os Réus, por sua vez, possuem e dizem-se donos de uma casa de morada, inscrita na matriz predial urbana da freguesia de ..., sob o artigo …, e sita na Rua da …, também em …, a cerca de 45 metros do armazém dos Autores.
10 - Os Réus derivaram os esgotos da corte situada junto à sua casa de morada, onde guardam vários animais suínos, por forma a fazer passar aqueles esgotos, a céu aberto, junto ao armazém dos Autores e fazendo-os desembocar no caminho público
11 - Estes esgotos emitem cheiros nauseabundos, concentram insectos em quantidade imensa e produzem gás metano que é tóxico, dificultando enormemente o trabalho dos Autores, principalmente, no tempo quente.
12 - A referida actividade dos Réus, causa muito incómodo e sofrimento aos Autores e impede-os de trabalhar normalmente.
13 - O Autor marido é sapador florestal.
14 - A Ré Antónia tem uma exploração de suínos, legal, para fabricação de fumeiro.
15 - A Ré teve no ano de 2016, 6 porcos e no ano de 2017 criou 12 porcos.
16 - Os referidos porcos são mantidos numa corte que dista da sua casa de habitação mais de 30 metros e do armazém dos Autores cerca de 40 metros.
17 - Actualmente, os Réus dispõem de uma fossa estanque para recolha dos dejectos dos seus suínos, a qual foi construída em Fevereiro de 2018.
18 - A Ré, duas vezes por dia tem que lavar a entrada de sua casa, pois, as vacas dos Autores defecam à sua porta.
19 - Os Réus têm os esgotos da sua casa de habitação ligados ao saneamento desde 2007.
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Factos não provados:

O Tribunal a quo considerou não provados os seguintes factos:

«a) Com os trabalhos descritos em 6 e 7 dos factos provados, os AA. passam muito do seu tempo diário junto e dentro do referido armazém;
b) O gado suíno produz, não raramente, um ruído ensurdecedor e quase insuportável.
c) A actividade descrita em 10.º dos factos provados sujeita os Autores a doenças.
d) Os RR espalharam gravilha pelo caminho público e mesmo pelo caminho pertencente aos AA., de modo a dificultarem ao máximo a passagem do gado que escorrega e não consegue equilibrar-se devidamente, aumentando, em muito, o risco de lesões.
e) Os RR. mantêm aberta uma mina, bem junto ao caminho usado pelo gado dos AA., o que constitui um perigo para os animais, que podem, a qualquer momento, ali cair e ferir-se gravemente.
f) Os RR. vêm, ainda, dirigindo para o prédio dos AA., os esgotos da sua casa de morada e fazendo contínuos despejos, da janela norte da sua casa de morada, também para o prédio dos AA., de todos e quaisquer líquidos que usam na mesma.
g) E, quase diariamente, durante o tempo frio, os RR. abrem uma torneira existente junto à porta da sua casa de morada e, com intenção de prejudicar os AA., deixam correr a água para o caminho público e para o caminho destes, para que esta gele e provoque a derrapagem e a queda dos animais dos AA..
h) Há cerca de três anos, colocaram, numa parede, em pedra, que limita o prédio dos AA. identificado no antecedente art. 1º, de um outro prédio que os RR. ali possuem, uma rede, amparada em vários ferros cravados naquela pedra., sendo que, para tal, não pediram autorização aos AA..
i) Os Autores guardam naquele armazém, que ilicitamente transformaram em estábulo cerca de 30 cabeças de gado.
j) No terreno adjacente ao armazém não cultivam qualquer planta.
k) O A marido é sapador florestal, pelo que, poucas horas pode dedicar à pecuária
l) Quem detém suínos no rés-do chão da cozinha onde fabrica o fumeiro, são os AA., e descarregam os dejectos numa linha de água afluente do Rio Cávado.
m) Os porcos raramente emitem qualquer tipo de ruido.
n) A mina referida no ponto 16 da p.i., diga-se que existe há mais de 100 anos e nunca lá caiu nenhum animal.
o) As vacas dos AA não passam por ali, para isso acontecer teriam que descer ou subir muros (socalcos no prédio dos AA) com cerca de 4 metros de altura.
p ) Os RR são pessoas asseadas e respeitadoras, não andam a despejar dejetos na rua nem em prédio vizinho.
q) Não é a atividade da Ré de lavar a entrada de sua casa que cria gelo na rua, este surge, quando surge, naturalmente naquela e noutras ruas, frutos do clima na região.
r) Os RR. levantaram parte de uma parede meeira que tinha caído com a chuva (sem que os AA pagassem a parte que lhes competia) e nela colocaram postes e uma rede para impedir que o lixo que os Autores deixam no seu prédio caia no prédio dos Réus».
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2.2. Do objecto do recurso

2.2.1. Da impugnação da decisão da matéria de facto

2.2.1.1. Em sede de recurso independente e de recurso subordinado, os respectivos Recorrentes impugnam a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal de 1ª instância.

Para que a Relação possa conhecer da apelação da decisão de facto é necessário que se verifiquem os requisitos previstos no artigo 640º do CPC, que dispõe assim:

«1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3. O disposto nos nºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do nº 2 do artigo 636º».

No fundo, recai sobre o recorrente o ónus de demonstrar o concreto erro de julgamento ocorrido, apontando claramente os pontos da matéria de facto incorrectamente julgados, especificando os meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida e indicando a decisão que, no seu entender, deverá ser proferida sobre a factualidade impugnada.
Em todo o caso importa enfatizar que não se trata de uma repetição de julgamento, foi afastada a admissibilidade de recursos genéricos sobre a decisão da matéria de facto e o legislador optou «por restringir a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente» (2).

Delimitado pela negativa, segundo Abrantes Geraldes (3), o recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto será, total ou parcialmente, rejeitado no caso de se verificar «alguma das seguintes situações:

a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (arts. 635º, nº 4, e 641º, nº 2, al. b);
b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados (art. 640º, nº 1, al. a);
c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
d) Falta de indicação, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação».
*
Aplicando os aludidos critérios ao caso que agora nos ocupa, verifica-se que os Recorrentes, excepto quanto à alínea a) dos factos não provados, indicam quais os concretos pontos de facto que consideram incorrectamente julgados, especificam os meios probatórios que imporiam decisão diversa e mencionam a decisão que, no seu entender, deveria ter sido proferida sobre as questões de facto controvertidas. No que se refere à prova gravada em que fazem assentar a sua discordância, procedem à indicação dos elementos que permitem minimamente a sua identificação e localização.
Por isso, podemos concluir que os Recorrentes cumpriram suficientemente o ónus estabelecido no citado artigo 640º do CPC e, por outro lado, tendo sido gravada a prova produzida na audiência de julgamento e dispondo dos elementos que serviram de base à decisão sobre os factos em causa, esta Relação pode proceder à reapreciação da matéria de facto impugnada.
Quanto ao âmbito da intervenção deste Tribunal, tal matéria encontra-se regulada no artigo 662º do CPC, sob a epígrafe “modificabilidade da decisão de facto”, que preceitua no seu nº 1 que «a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa».
Por isso, passa-se a reapreciar a matéria de facto impugnada.
*
2.2.1.2. Por referência às conclusões do recurso independente (v., além do mais, a conclusão 1ª), extrai-se que os Autores/Recorrentes consideram incorrectamente julgados os pontos nºs 8 e 17 dos factos provados e os pontos constantes das alíneas a), e), f) e h) dos factos não provados.

Quanto ao resultado da impugnação, como se vê nas conclusões 6ª e 7ª das suas alegações, os Recorrentes entendem que:

a) Devem ser alterados os pontos 8 e 17, para passar a ter a seguinte redacção:
«8. “Os AA. passam, junto e dentro do referido armazém, pelo menos 4 horas por dia”.
17. “Actualmente, os Réus dispõem de uma fossa para recolha dos dejectos dos seus suínos, a qual foi construída em finais de Fevereiro de 2018”»;
b) Os «factos constantes das alíneas a), e), f) e h) (…) deverão passar a figurar como factos provados, com os números 20., 21. e 22., pela forma seguinte:
20. “Os RR. mantêm aberta uma mina, bem junto ao caminho usado pelo gado dos AA., o que constitui um perigo para os animais, que podem, a qualquer momento, ali cair e ferir-se gravemente.”, com base nos depoimentos supra transcritos a fls. 14 a 22.
21. “Os RR. vêm fazendo despejos da janela norte da sua casa de morada, para o prédio dos AA., de líquidos por aqueles usados.” Atentos os depoimentos supra transcritos a fls. 22 a 27.
22. “Há cerca de três anos, os RR. colocaram, numa parede, em pedra, que limita o prédio que estes possuem de outro prédio dos AA. identificado no artigo 1º da p.i., uma rede, amparada em vários ferros cravados, também pelos RR., naquela parede, sendo que, para tal, não pediram autorização aos AA.”, levando em conta os depoimentos acima transcritos, a fls. 27 a 32».
*
Por sua vez, os Réus, também Recorrentes, no recurso subordinado, consideram incorrectamente julgado o ponto nº 12 dos factos provados e entendem que deve passar a constar da matéria de facto não provada (v. conclusão XXIV das suas alegações).
*

2.2.1.3. O Tribunal a quo exprimiu a motivação da decisão sobre a matéria de facto nos seguintes termos:

«A convicção do Tribunal para a determinação da matéria de facto acima descrita teve em consideração a posição assumida pelas partes nos respectivos articulados e resultou da análise crítica e conjugada, à luz das regras de experiência, fundadas em critérios de normalidade, e atendendo às regras do ónus da prova aplicáveis, dos depoimentos das testemunhas inquiridas em audiência de julgamento, em conformidade com o que resulta da respectiva acta.
As respostas dadas pelo Tribunal fundamentaram-se, igualmente, na análise, global e pormenorizada, do teor dos documentos juntos aos autos, nomeadamente, os que foram juntos pelas partes nos respectivos articulados.
Dessa forma, tendo presentes os meios de prova já referidos, isoladamente ou conjugados entre si, cumpre concretizar como se formou a convicção do Tribunal. Assim, desde logo, o Tribunal atendeu à certidão predial rústica referente ao prédio inscrito na matriz sob o n.º …, em que o autor é identificado como o seu proprietário, da qual se alcança a sua identificação; localização; confrontações; descrição e área de fls. 7, relevante para dar como provado o facto descrito em 1.º dos factos provados; cópia da escritura de doação celebrada no dia 18/12/1992, pela qual Manuel e mulher L. A. doaram à Autora P. G. e ao seu marido o prédio em causa nos autos, de fls. 8 a 9, relevante para dar como provado o facto descrito em 3.º dos factos provados; caderneta predial urbana referente ao prédio inscrito na matriz sob o art.º … , em que o réu marido é identificado como sendo seu proprietário e da qual se alcança a sua identificação; localização; confrontações; descrição e área de fls. 10, relevante para dar como provado o facto descrito em 9.º dos factos provados; declaração da existência de suínos de fls. 22 e 23, da qual se alcança que a ré, no ano de 2016, declarou possuir 6 suínos e no ano de 2017, declarou possuir 12 suínos, a que se atendeu para dar como demonstrado o facto vertido em 10.º e 15.º (designadamente, a existência de um número não concretamente apurado de animais de raça suína); factura emitida em nome do réu marido da qual se alcança o pagamento da quantia de €269,79, com a data de emissão de 08/03/2007, referente a ramal de ligação e tarifa de ligação de saneamento, de fls. 25, relevante para dar comprovado o descrito em 19.º; declaração da existência de suínos de fls. 39, da qual se alcança que a ré, no ano de 2018, declarou possuir 11 suínos a que se atendeu para dar como demonstrado o facto vertido em 10.º e 15.º, nos termos supra exarados; ortofotomapa com indicação dos locais em causa nos autos, as suas áreas e quotas de implantação, de fls. 39 verso, relevante para dar como demonstrado o facto contido em 16.º
No que tange aos factos elencados em 6.º, 7.º e 9.º o Tribunal atendeu à confissão expressa de tais factos em sede de articulados por banda dos Réus, dando essa matéria como assente por acordo.

A análise dos referidos documentos foi complementada pela análise dos depoimentos obtidos em sede de audiência de julgamento, designadamente:

Declarações de parte do autor M. M., casado, agricultor. Questionado, negou os factos vertidos na petição inicial, afirmando que a sua exploração de suínos detém licença de utilização e autorização do IFAP. Esclareceu que actualmente, os esgotos decorrente da lavagem da corte dos suínos são dirigidos para uma fossa que construiu em Fevereiro de 2018, sendo que, anteriormente, tais esgotos iam para o seu terreno, servindo de fertilizante das terras. Esclareceu o método de limpeza da corte dos suínos que segue (lavagem dia sim e dia não, que impede a formação de cheiros ou acumulação de estrume), negando que os suínos produzam barulho incomodativo. No que tange às alegadas violações do direito de propriedade descritas pelos Autores, negou ter procedido à distribuição de gravilha no chão e relatou ser verdade que existe uma mina, mas afirmou que o gado dos Autores não passa por aquele local, sendo certo que ali nunca caiu qualquer animal; esclareceu, ainda, não ser verdade que os Réus derivem esgotos da sua casa para o prédio dos Autores bem como os líquidos que usam no dia-a-dia, uma vez que tem o saneamento de sua casa ligado à rede pública desde 2007. Esclareceu que têm necessidade de limpar a entrada da sua casa, em virtude da passagem do gado dos Autores, que sujam com excrementos aquele local. Por fim, referiu que colocou a rede descrita em 23.º, sendo que, para o fazer, obteve o prévio consentimento dos Autores, os quais não se opuseram.
Mais se diga, que quanto aos factos elencados em 1.º a 5.º e 8.º, o Tribunal atendeu ao depoimento de D. D., casado, agricultor, residente em …, o qual esclareceu ser amigo dos Autores e dos Réus; depoimento de M. L., viúva, doméstica, residente em (mencionou que conhece os Autores e Réus da aldeia e que está de bem com ambos, sendo proprietária de uma lameira junto ao prédio dos Autores e dos Réus); J. C., solteiro, pastor, com residência em ..., o qual disse conhecer Autores e Réus, estando de bem com todos, sendo que, em virtude da acção interposta, os Réus deixaram de lhe falar; Depoimento de J. D., casado, residente em … desde 2001, amigo dos Autores e dos Réus e D. A., casado, empresário, residente em Braga e proprietário de um prédio em …, o qual referiu que entre os anos de 2001 a 2005 for presidente da assembleia de freguesia de ... (que abrange a freguesia de …) e depois exerceu o cargo de Presidente daquele Junta de Freguesia durante 8 anos. Esclareceu estar de boas relações com todos os presentes e ter vivido naquela aldeia até aos seus 17 anos, trabalhando na agricultura.
As referidas testemunhas, de forma serena e coerente entre si, descreveram a forma de aquisição do prédio e os actos de posse empreendidos pelos Autores e seus antecessores, ao longo dos anos, descrevendo que tais actos têm vindo a ser praticados à vista de todos, de forma pacífica, sem oposição de quem quer que seja, ao longo dos anos, na convicção de estar a exercer um direito próprio, razão pela qual mereceram convencer o Tribunal da veracidade do por si alegado. No que tange aos trabalhos efectuados no armazém pelos Autores, os depoimentos foram essencialmente coincidentes, ressalvando-se o facto de não ter sido possível apurar com a certeza necessária o número de horas diárias que são despendidas pelos Autores na execução daqueles trabalhos.
Relativamente aos factos descritos em 10.º a 12.º, atendeu-se ao depoimento de D. D., M. L., J. C., J. D. e D. A., que de forma fluente, coerente, consentânea entre si, afirmaram que os Réus são proprietários de uma corte, onde criam durante todo o ano porcos, em número que não conseguem precisar, sendo que os dejectos dos mesmos são agora (pelo menos, desde Fevereiro de 2018) dirigidos para uma fossa. Sucede que, antes de ter sido construída a referida fossa, os dejectos dos suínos escorriam a céu aberto, através de um rego aberto pelo terreno dos Réus, junto ao armazém dos Autores, até atingir a rua pública. As referidas testemunhas afirmaram de forma coerente que tais dejectos criavam cheiros imundos, o qual era muito intenso junto à lameira e armazém pertencentes aos Autores. A este respeito, diga-se que testemunha M. L. esclareceu de forma sincera, que as águas decorrentes da lavagem da corte dos suínos dos Réus escorriam para a sua lameira, indo cair no caminho público, sendo que o rego que conduzia aquelas águas cheirava muito mal, sendo o seu depoimento confirmado por J. C. e J. D., que asseveraram tal factualidade, mais referindo esta última testemunha que quando trabalhava na sua horta, que ficava perto dos prédios em causa nos autos, sentia o cheiro intenso e nauseabundo decorrente da lavagem da corte dos suínos dos Réus.
Ouvido o réu em declarações de parte, o mesmo assumiu que só a partir de Fevereiro de 2018 é que os dejectos animais são depositados numa fossa, sendo que, até então, a água da lavagem da corte dos animais servia de fertilizante no seu terreno.
No mesmo sentido asseveraram M. I., solteira, florista, vizinha dos Autores e dos Réus e M. C., vizinha dos Autores e dos Réus; sogra do filho dos Réus, que confirmaram que a água dos esgotos decorrente da lavagem era desviada para o terreno dos Réus. Todavia, estes depoimentos não lograram convencer atenta a espontaneidade, isenção, clareza demonstradas pelas testemunhas arroladas pelo autor, que causaram maior impressão de verdade a este Tribunal e que permitiu dar como assente a referida factologia.
Mais se diga que, os factos vertidos em 11.º (parte final) e 12.º, foram também alcançados por recurso a presunções naturais e regras de experiência comum, pois é consabido que a actividade de criação de suínos é geradora de uma elevada carga poluente, que naturalmente dificultará a execução de tarefas ao ar livre, designadamente, a realização de serviços agrícolas, importando maiores incómodos e sofrimentos àqueles que são obrigados a suportar tais cheiros.
No que respeita ao facto dado como provado em 13.º, atendeu-se ao depoimento sincero, isento e credível de D. A., que confirmou tal facto.
Quanto aos factos elencados em 14.º a 18.º, valorou-se o teor das declarações de parte prestadas pelo autor M. M., em conjugação com os elementos de prova documental junta aos autos, nos termos supra elencados.
Quanto ao facto mencionado em 19.º, atendeu-se às declarações de parte do réu e ao documento junto aos autos de fls. 25, sendo que foi ainda valorado o depoimento de J. G. que confirmou ter construído uma fossa para os Réus, tendo descrito os trabalhos efectuados de forma isenta e sincera.
Relativamente aos factos dados como não provados nas alíneas a) a c), refira-se que as testemunhas inquiridas não demonstraram conhecimento directo sobre os mesmos ou as declarações que apresentaram relevaram-se pouco concretizadas e/ou conclusivas, não logrando convencer o Tribunal da sua razão de ciência.
Quanto à colocação de gravilha no caminho - facto dado como não provado na alínea d) - o Tribunal verificou que os depoimentos apresentados não foram congruentes, sendo certo que nenhuma das testemunhas referiu ter visto os Réus a praticarem tal facto - veja-se, neste sentido o depoimento de D. A.; M. L.; J. C.; J. D. e D. A.. As demais testemunhas inquiridas revelaram não terem sido os Réus quem espalhou a gravilha - veja-se, o depoimento de D. M. (filho dos Réus); M. I. (que afirmou ter sido um empreiteiro quem depositou e espalhou a gravilha), pelo que, face à ausência de prova segura, o Tribunal teve que dar tal facto como não provado.
No que se refere à alegada existência de um mina - facto não provado elencado em e) -importa referir que ocorreu uma dualidade manifesta nos depoimentos prestados pelas testemunhas arroladas pelos Autores e pelos Réus, sendo que as testemunhas arroladas pelos Autores asseveraram que a referida mina, no estado concreto em que se encontra, constitui uma fonte de perigo para o gado dos Autores. Questionados, declararam desconhecer que alguma vez ali tivesse caído um animal.
A este propósito, referiram as testemunhas D. A. e J. D. que a “mina é perigosa porque afundou”, não tendo prestado quaisquer explicações adicionais e convincentes que nos permitissem concluir pela sua perigosidade.
Por sua vez, a testemunha M. L., afirmou que a Câmara Municipal de … procedeu à colocação de cimento junto à mina, estreitando o caminho em terra, o que faz com que o gado passe mais próximo da mina, o que é um factor de perigo. Todavia, não se alcança a razão de ser desse perigo acrescido, uma vez que o gado tanto caminha em caminhos de terra batida, paralelo e estradas pavimentadas.
A testemunha J. C. fez uma descrição sumária da mina, não trazendo quaisquer factos que nos permitissem concluir pela sua perigosidade.
A testemunha D. M., filhos dos Réus, afirmou a este propósito que não ocorreu qualquer abatimento da mina, razão pela qual inexiste qualquer perigo.
Por sua vez, D. A. afirmou que a mina pertence aos Réus e pode tornar-se perigosa se os animais não forem resguardados, sendo que os mesmos não podem passar lado a lado. Questionado, esclareceu não ter conhecimento de ter ocorrido qualquer acidente na mina com o gado.
Por sua vez, as testemunhas dos Réus confirmaram, e termos gerais, a existência da referida mina, mas asseguraram que a mesma não constituía qualquer perigo para os animais.
Ora, da concatenação dos mencionados depoimentos, resulta que os mesmos foram vagos, pouco claros e insuficientes para formar uma convicção segura no que tange à perigosidade da mina, sendo certo que as testemunhas não apresentaram razão de ciência suficientemente forte que permitisse ao Tribunal concluir no sentido invocado pelos Autores.
Quanto ao facto não provado elencado em f), refira-se apenas que a testemunha M. L. afirmou tal facto; porém, a forma como o mesmo foi declarado - sem precisar as circunstâncias de tempo em que presenciou tal facto e a sua periodicidade, não nos permitiu atribuir credibilidade ao seu depoimento. Por sua vez o autor, ouvido em declarações de parte, confirmou tal facto. Todavia, considerando que a referida factualidade não foi corroborada pela demais prova produzida e atendendo ao manifesto interesse no desfecho da causa, não foi possível dar tal facto como demonstrado.
Relativamente ao facto não provado descrito em g), o Tribunal deu-o como indemonstrado, pois apesar de se ter apurado que efectivamente os Réus lavam a entrada de sua casa, pois as vacas dos AA. defecam à sua porta - tal como referido pelo réu M. M. - , não se demonstrou que o fazem quase diariamente, com intenção de prejudicar os AA., deixando a correr a água para o caminho público e para o caminho destes, para que esta gele e provoque a derrapagem e a queda dos animais dos AA..
Por sua vez, quanto ao contido h), o mesmo foi dado como não provado, atentos os depoimentos divergentes prestados quanto a esta matéria, sendo que as testemunhas arroladas pelo Autores não demonstraram conhecimento e/ou razão de ciência que lhes permitisse declarar tal facto. Apenas o autor, ouvido em declarações de parte, asseverou tal factualidade, mas essas declarações não foram atendidas porquanto não foram corroboradas pela demais prova produzida.
A demais matéria dada como não provada resulta de quanto à mesma não ter sido feita qualquer prova e/ou a prova produzida resultar manifestamente insuficiente para convencer o Tribunal.
Mais se refira que os demais elementos de prova, quer documental quer testemunhal que não foram especificados foram considerados anódinos e irrelevantes para a boa decisão da causa».
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2.2.1.4. Com vista a ficarmos habilitados a formar uma convicção autónoma, própria e justificada, procedemos à análise de todos os documentos juntos aos autos e à audição integral da gravação das declarações de parte do Autor marido (D. G.) e do Réu marido (M. M.), e dos depoimentos das testemunhas D. D. (55 anos, agricultor, residente em …, conhece Autores e Réus “desde sempre” e vai à aldeia de ... quase todos os dias por ter lá um prédio perto dos das partes, passando no caminho da Rua …), M. L. (77 anos, nascida e residente em ..., conhece os Autores e Réus da aldeia e é proprietária de uma lameira junto aos prédios dos Autores e dos Réus; os Réus deixaram de lhe falar na sequência da instauração da acção), J. C. (pastor, com residência em ..., conhece Autores e Réus, mas os Réus deixaram de lhe falar na sequência da instauração da acção), J. D. (esteve emigrado na Alemanha e regressou a Parada em 2001, onde reside desde então; tem um restaurante em Montalegre e uma horta junto dos prédios das partes), D. A. (viveu em ... até aos 17 anos de idade, agora reside em Braga, é empresário da construção civil, é proprietário de um prédio em ..., entre os anos de 2001 a 2005 foi presidente da assembleia de freguesia de ..., que abrange a aldeia de ..., e depois exerceu o cargo de presidente daquele Junta de Freguesia durante 8 anos; disse estar de boas relações com ambas as partes), M. I. (florista, vizinha dos Autores e dos Réus; os Autores deixaram de lhe falar na sequência da interposição da acção), M. C. (conhece todas as partes da aldeia onde reside, é vizinha dos Autores e dos Réus e sogra do filho dos Réus), D. M. (engenheiro civil, residente na zona de Guimarães, filho dos Réus e que quase todos os fins-de-semana regressa à sua terra) e J. G. (conhece todas as partes da aldeia e foi ele que em Fevereiro de 2018, com a sua retroescavadora, realizou parte da obra referente à fossa construída pelos Réus no seu terreno).
Há duas circunstâncias que este Tribunal tem o dever de mencionar por limitarem a já por si restrita imediação que é percepcionada pela gravação da prova prestada oralmente na audiência final. Ambas emergem do facto de a generalidade das pessoas ouvidas terem sido confrontadas longamente com documentos juntos aos autos e não ser possível valorar na sua plenitude o alcance dos esclarecimentos então prestados. Por um lado, ao aproximarem-se do sítio onde estava o processo os intervenientes deixavam de se ouvir convenientemente (mais parecia estarem a murmurar a um canto, presumindo-se que isso se deve à não colocação de microfone direccionado para a zona onde estava a ser produzida a prova), perdendo-se a percepção de algumas das palavras e o respectivo timbre e entoação; seguramente mais de uma hora de gravação está nessas deficientes condições. Por outro lado, além de algumas vezes nem sequer ser perceptível qual o documento que estava a ser exibido, não se consegue apreender de forma satisfatória o que as testemunhas (e o declarante Réu marido, que também foi confrontado com documentação) estavam a identificar no documento ou a esclarecer por referência ao mesmo. Nesse quadro, em consciência, é extremamente difícil a um tribunal de recurso laborar no sentido de formar uma convicção autónoma, atenta a perda de elementos valiosos para o efeito.
Posto isto, incumbe agora verificar se a discussão probatória fundamentadora da decisão corresponde à prova realmente obtida ou, ao invés, se a mesma se apresenta de molde a alterar a factualidade impugnada, nos termos propugnados pelos Recorrentes.
*
2.2.1.5. Do ponto nº 8 dos factos provados

Tendo o Tribunal a quo dado como provado que «os Autores passam junto e dentro do referido armazém um número diário de horas não concretamente apurado», pretendem os Recorrentes/Autores que tal ponto de facto seja modificado e passe a ter a seguinte redacção:
«8. Os Autores passam, junto e dentro do referido armazém, pelo menos 4 horas por dia».

O Tribunal recorrido justificou a sua decisão relativamente a este ponto de facto, dizendo que «[n]o que tange aos trabalhos efectuados no armazém pelos Autores, os depoimentos foram essencialmente coincidentes, ressalvando-se o facto de não ter sido possível apurar com a certeza necessária o número de horas diárias que são despendidas pelos Autores na execução daqueles trabalhos».
Revistos todos os meios de prova produzidos relativamente a este facto, verifica-se não ser possível afirmar, com um mínimo de certeza, quantas horas por dia os Autores passam dentro do seu armazém ou junto deste.
Que era difícil de quantificar esse tempo já isso resultava indiciado da circunstância de os próprios Autores, no artigo 9º da petição inicial, se terem cingido a afirmar que «passam muito do seu tempo diário junto e dentro do referido armazém» (sublinhado nosso).
Ora, se os próprios Autores não conseguiram indicar qualquer número de horas, naturalmente que a dificuldade é ainda mais acrescida para o Tribunal.
Deixando de lado o motivo pelo qual algumas testemunhas (por exemplo, D. D. e M. L.) coincidiram na indicação da duração do trabalho no armazém em duas horas da parte da manhã e outras duas horas da parte da tarde, percorremos a prova com a finalidade de saber se todos os dias são necessárias essas quatro horas para tratar das vacas na zona do armazém, independentemente de saber qual desse tempo é passado dentro ou junto ao mesmo.
Desde logo, verificamos que há uma diferença substancial: segundo a testemunha D. D., no Verão a maioria das vacas «vão para a serra e ficam lá». Só ficam no armazém – que em rigor deveria ser qualificado de estábulo – as que têm crias e as que estão prestes a parir (ou estão “feridas”, como disse esta testemunha, embora se deduza que esta será uma situação esporádica). Essa situação diferenciada entre o Verão e o Inverno acabou por ser referida pela generalidade das testemunhas chamadas a depor sobre esse facto. Porém, apesar de haver a referida distinção a fazer, nenhuma testemunha distinguiu o número de horas de trabalho no armazém consoante seja Verão ou Inverno. Para as testemunhas e até para o próprio Autor, que prestou declarações de parte, é sempre igual e parece-nos que havia razões substanciais para haver uma distinção. Não tendo sido feita, a conclusão sobre as quatro horas constitui um acto temerário, que não se alicerça numa prova segura e convincente.
Depois, tal como resulta do depoimento de J. C., pessoa com experiência como pastor, as tarefas a executar não são as mesmas todos os dias. Por exemplo, nem todos os dias se limpa o estábulo («de vez em quando tem de ser limpo»). Ou seja, não só existe uma diferença entre o Verão e o Inverno, como nem o trabalho é exactamente igual todos os dias, pelo que é difícil fazer uma média, abrangendo a referida variabilidade.
Fazendo ainda apelo ao depoimento de J. C., verifica-se que esta testemunha indicou duas horas da parte da manhã e a tarde toda. Porém, na parte da tarde, incluiu o período de tempo que “gasta” para «sair para o monte» ou para «botar para os lameiros, para o monte», dizendo que no total, «de inverno, são três, quatro horas». Como incluiu a saída para fora do armazém e nos autos está em causa apenas o período de tempo passado na zona do armazém, fica-se sem saber quanto tempo seria efectivamente gasto nas tarefas que aí decorrem. Além disso, a testemunha fez um paralelismo com o seu caso, em que tem 39 vacas. Como os Autores têm cerca de metade desse efectivo (v. declarações de parte do Autor), será difícil de admitir que trabalhem mais de metade do tempo que a testemunha gasta.
Finalmente, ainda uma maior dificuldade surge: as quatro horas são de trabalho de duas pessoas ou só de uma? É que nenhuma testemunha esclareceu tal matéria e os Recorrentes propõem que do facto constem os Autores, no plural, o que significaria que cada um deles passava quatro horas na zona do armazém, perfazendo oito horas unitárias de trabalho.
Por estas razões – e outras ainda se poderiam referir – entendemos que não se mostra justificada a impugnação.
*

2.2.1.6. Do ponto nº 17 dos factos provados

O Tribunal a quo deu como demonstrado que «actualmente, os Réus dispõem de uma fossa estanque para recolha dos dejectos dos seus suínos, a qual foi construída em Fevereiro de 2018».

Os Recorrentes pretendem que tal facto passe a ter a seguinte redacção:

17. Actualmente, os Réus dispõem de uma fossa para recolha dos dejectos dos seus suínos, a qual foi construída em finais de Fevereiro de 2018».

A questão está em saber se a fossa feita pelo Réus em Fevereiro de 2018 é ou não “estanque”, pois propugnam pela eliminação de tal palavra.
Uma fossa será estanque se não deixar sair o seu conteúdo, ou seja, se estiver bem tapada e vedada.
Neste ponto, verifica-se que a sentença deu como provado os «factos elencados em 14.º a 18.º», com base na valoração do «teor das declarações de parte prestadas pelo autor M. M., em conjugação com os elementos de prova documental junta aos autos, nos termos supra elencados».
Não está elencado na motivação da decisão qualquer documento relativamente ao facto nº 17. Consultados todos os documentos juntos aos autos, não resulta dos mesmos a estanquicidade da fossa.
Portanto, apenas temos as declarações de parte do Réu, as quais não são corroboradas por qualquer outro meio de prova, o que só por si nos parece insuficiente para dar como demonstrada a referida qualidade da fossa.
Além disso, não foi afirmado pelo Réu que a fossa era absolutamente estanque, tendo-se limitado a afirmar que colocou cimento no chão. Mas mesmo isso é posto em dúvida pela testemunha D. D. em dois dos extractos transcritos no recurso principal (colocação de cimento e ter constatado que quando andou a fazer a silagem, “lá em cima”, cheirava mal). Também a testemunha J. G. afirmou que quando colocou as cinco argolas não tinha cimento no fundo.

Por isso, na procedência da impugnação, modifica-se a redacção do ponto nº 17 dos factos provados, que passará a ser a seguinte:

«Actualmente, os Réus dispõem de uma fossa para recolha dos dejectos dos seus suínos, a qual foi construída em Fevereiro de 2018».
*
2.2.1.7. Da alínea a) dos factos não provados

Na sentença, sob a alínea a) dos factos não provados, deu-se como não provado o seguinte facto:

«Com os trabalhos descritos em 6 e 7 dos factos provados, os AA. passam muito do seu tempo diário junto e dentro do referido armazém».
Embora na conclusão 1ª das alegações do seu recurso especifiquem que consideram incorrectamente julgado tal ponto de facto, não indicaram a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre essa questão de facto.
Portanto, não cumpriram o ónus previsto no artigo 640º, nº 1, al. c), do CPC.
Por outro lado, já abordamos esta matéria quando se apreciou a impugnação relativamente ao ponto nº 8 dos factos provados.
Finalmente, «passar “muito” tempo» é algo insusceptível de ser dado como provado. Através da utilização do advérbio indica-se uma grande quantidade indefinida e exprime-se uma valoração subjectiva, pois o que é muito para uma pessoa pode não o ser para outra. Ora, não se pode considerar provada uma indefinição ou a expressão de uma valoração.
Termos em que se rejeita nesta parte a impugnação.
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2.2.1.8. Da alínea e) dos factos não provados

Deu-se como não provado que «os RR. mantêm aberta uma mina, bem junto ao caminho usado pelo gado dos AA., o que constitui um perigo para os animais, que podem, a qualquer momento, ali cair e ferir-se gravemente».
Os Recorrentes impugnam a decisão relativamente a este facto, propugnando que o mesmo seja considerado provado, «com base nos depoimentos supra transcritos a fls. 14 a 22», ou seja, os prestados pelas testemunhas M. L., J. D. e D. A.. Invocam ainda as declarações de parte do Réu marido.

Revistos os meios de prova produzidos, não conseguimos formar uma convicção diferente da exposta na decisão recorrida, sendo esclarecedor da apreciação crítica das provas produzidas o seguinte extracto que a seguir transcrevemos:

«No que se refere à alegada existência de um mina - facto não provado elencado em e) -importa referir que ocorreu uma dualidade manifesta nos depoimentos prestados pelas testemunhas arroladas pelos Autores e pelos Réus, sendo que as testemunhas arroladas pelos Autores asseveraram que a referida mina, no estado concreto em que se encontra, constitui uma fonte de perigo para o gado dos Autores. Questionados, declararam desconhecer que alguma vez ali tivesse caído um animal.
A este propósito, referiram as testemunhas D. A. e J. D. que a “mina é perigosa porque afundou”, não tendo prestado quaisquer explicações adicionais e convincentes que nos permitissem concluir pela sua perigosidade.
Por sua vez, a testemunha M. L., afirmou que a Câmara Municipal de … procedeu à colocação de cimento junto à mina, estreitando o caminho em terra, o que faz com que o gado passe mais próximo da mina, o que é um factor de perigo. Todavia, não se alcança a razão de ser desse perigo acrescido, uma vez que o gado tanto caminha em caminhos de terra batida, paralelo e estradas pavimentadas.
A testemunha J. C. fez uma descrição sumária da mina, não trazendo quaisquer factos que nos permitissem concluir pela sua perigosidade.
A testemunha D. M., filhos dos Réus, afirmou a este propósito que não ocorreu qualquer abatimento da mina, razão pela qual inexiste qualquer perigo.
Por sua vez, D. A. afirmou que a mina pertence aos Réus e pode tornar-se perigosa se os animais não forem resguardados, sendo que os mesmos não podem passar lado a lado. Questionado, esclareceu não ter conhecimento de ter ocorrido qualquer acidente na mina com o gado.
Por sua vez, as testemunhas dos Réus confirmaram, e termos gerais, a existência da referida mina, mas asseguraram que a mesma não constituía qualquer perigo para os animais.
Ora, da concatenação dos mencionados depoimentos, resulta que os mesmos foram vagos, pouco claros e insuficientes para formar uma convicção segura no que tange à perigosidade da mina, sendo certo que as testemunhas não apresentaram razão de ciência suficientemente forte que permitisse ao Tribunal concluir no sentido invocado pelos Autores».
Em reforço da argumentação do Tribunal recorrido, cabe-nos salientar que a referida mina existe há muitas dezenas de anos, pois, a testemunha M. L., que é a pessoa mais velha que foi inquirida (tem 77 anos de idade), disse que sempre se lembra de a mina ali existir, o que também foi afirmado pelas restantes pessoas ouvidas. Deixando por agora de fora a questão da passagem, que abordaremos mais à frente, ninguém referiu que a mina foi objecto de qualquer intervenção por parte dos Réus, designadamente nos últimos anos. A mina, enquanto tal, está como sempre esteve, pelo que é indiscutível a inexistência de intervenção na mina da qual pudesse resultar um incremento do perigo da mesma.
Em segundo lugar, não estamos a falar de um poço de água situado ao lado de uma passagem para pessoas e animais, mas sim de uma pequena mina. É elucidativo o depoimento de J. C. (testemunha arrolada pelos Autores e que até está de relações cortadas com os Réus), que aos 12m55s do seu depoimento descreve-a como um «buraquito» pequeno e uma «minazita». Isto é importante para termos uma noção de que “perigo” é que estamos a falar, uma vez que nos pareceu ter existido um manifesto empolamento da dimensão da mina e dos seus perigos, que quase foi transformada num “buraco negro”, no qual se cai e se desaparece. O exagero foi, no caso, inimigo da verdade.
Em terceiro lugar, a única modificação produzida naquela zona foi introduzida pela Junta de Freguesia (v., além do mais, os depoimento de D. A., antigo Presidente dessa Junta de Freguesia e actual Presidente da respectiva Assembleia, e de M. I., antiga Secretária da Junta de freguesia), que, na parte relevante para a questão ora em apreciação, cimentou o piso da passagem, ou seja, em vez de se pisar terra, agora pisa-se cimento. Mais: tal alteração foi introduzida depois de obtido o expresso acordo dos Autores (é sobre isso elucidativo o depoimento de D. A.).
Portanto, os Réus nada fizeram na mina ou na passagem e os Autores concordaram expressamente com a cimentação do piso da passagem feita pela Junta de Freguesia.
Em quarto lugar, parece-nos que o alegado “perigo” é sobretudo consequência do litígio entre as partes, que se terá iniciado por uma questão de águas, passou pela propositura de uma anterior acção pelos Réus contra os Autores e culminou agora na presente acção. Em todos os anos que a mina leva de existência nunca qualquer vaca ou outro animal lá caiu.
É elucidativo o facto de as testemunhas que secundaram a tese dos Autores terem desvalorizado o perigo de as vacas do Autor, ao saírem do armazém, poderem cair de uma altura de cerca de três/quatro metros de altura (o muro/parede referido pelos Autores no art. 23º da p.i. não tem no seu cimo qualquer vedação e está ao nível do piso aí existente) em contraposição com a possibilidade de caírem num “buraquito” pequeno, situado quase ao nível da passagem. Quer dizer, para as testemunhas, bem como para o Autor marido nas suas declarações de parte, verdadeiramente perigoso é a possibilidade de cair na mina e não de uma altura de cerca de quatro metros de altura.
Em quinto lugar, o argumento invocado prende-se com as vacas não gostarem de pisar cimento e terem a tendência para se desviar. Sobre isto basta atentar que à frente do armazém dos Autores existe uma área cimentada extensa, que as vacas têm necessariamente de pisar, e até agora nenhuma vaca se desviou em direcção ao sítio da parede, o que a levaria a cair da tal altura de quatro metros. Também estas vacas, conforme todas as pessoas atestaram (e até é visível em duas fotografias juntas aos autos), atravessam a aldeia e percorrem ruas que não têm piso de terra, pelo que estão habituadas a percorrer pisos que não são os ideais para animais de cascos.
Por isso, não se descortina fundamento suficiente para modificar a decisão do Tribunal recorrido.
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2.2.1.9. Da alínea f) dos factos não provados

O Tribunal a quo deu como não provado que «os RR. vêm, ainda, dirigindo para o prédio dos AA., os esgotos da sua casa de morada e fazendo contínuos despejos, da janela norte da sua casa de morada, também para o prédio dos AA., de todos e quaisquer líquidos que usam na mesma».
Os Recorrentes pretendem que seja considerado provado que «Os RR. vêm fazendo despejos da janela norte da sua casa de morada, para o prédio dos AA., de líquidos por aqueles usados», atentos «os depoimentos supra transcritos a fls. 22 a 27», ou seja, os prestados pelas testemunhas M. L., J. D., D. A. e M. I.. Invocam ainda as declarações de parte do Réu marido.

Procedemos à audição dos depoimentos das testemunhas indicadas, bem como de todas as demais e das declarações de parte.
Parte substancial dos extractos transcritos versam sobre a questão de saber se a seguir à janela norte da casa dos Réus se situa um prédio dos Autores, para o qual seriam feitos os alegados despejos.
Mas o essencial consistia em saber se eram ou não feitos os despejos alegados pelos Autores na petição inicial e sobre isso apenas temos de objectivo que a testemunha M. L. disse que viu uma vez a Ré a «deitar água para baixo» e que a testemunha J. D. afirmou que viu «as pedras sujas de escamas de peixe e óleo» à frente da janela da cozinha.
Será isto suficiente para dar como demonstrado que os Réus fazem despejos de líquidos usados pela janela? Não estamos a reportar-nos a um despejo ocasional, que ocorreu uma vez e não teve sequência, mas a uma actividade regular de deitar líquidos da janela para o chão do prédio que está situado em frente.
Ora, salvo o devido respeito, entendemos que face aos referidos elementos não é possível dar como demonstrado o facto pretendido pelos Autores.
Em primeiro lugar, nenhuma das aludidas duas testemunhas conseguiu precisar as circunstâncias de tempo em que ocorreu o facto que relataram na audiência. Dar como demonstrado um facto que as testemunhas nem sequer conseguem localizar no tempo é, no mínimo, um acto temerário, pois não assenta numa prova segura e insere-se num particular contexto em que existe um intenso conflito de vizinhança entre as partes, com as testemunhas a tomar partido a favor ou contra cada uma das partes.
Em segundo lugar, mesmo que arriscadamente se desse como provado que a Ré, em dia e hora que se ignora, em circunstâncias que não se sabe, deitou água pela janela, isso era perfeitamente irrelevante para a decisão da acção, pois esta não se destina a fazer uma censura por uma única acção.
Em terceiro lugar, existe clara contraditoriedade entre meios de prova, pois as testemunhas M. I. (que nesta parte prestou um depoimento claramente equidistante, afirmando que nem a Autora mulher nem a Ré mulher são pessoas capazes de praticar semelhantes actos), D. M. e M. C. trouxeram aos autos elementos que põem em causa a realidade do facto que os Autores pretendem que se considere provado.
A verdade é que os Réus têm a sua casa ligada à rede de saneamento público desde 2007 e antes disso, desde a década de 80, a um sistema particular que recorria a uma fossa. Dispondo de sistema de despejo das águas residuais na rede de saneamento público, designadamente de pia na cozinha em causa, não se descortina razão para a Ré mulher ter o trabalho de, em vez de deixar a água (ou outros líquidos) ir pia abaixo, recolher os líquidos num recipiente e ir deitá-los pela janela. Só por maldade tal comportamento se pode conceber e isso não está minimamente indiciado.
Termos em que nesta parte improcede a impugnação.
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2.2.1.10. Da alínea h) dos factos não provados

Face à decisão tomada relativamente à alínea h) dos factos não provados, pretendem os Recorrentes que se dê como demonstrado que «”Há cerca de três anos, os RR. colocaram, numa parede, em pedra, que limita o prédio que estes possuem de outro prédio dos AA. identificado no artigo 1º da p.i., uma rede, amparada em vários ferros cravados, também pelos RR., naquela parede, sendo que, para tal, não pediram autorização aos AA.”, levando em conta os depoimentos acima transcritos, a fls. 27 a 32».
Os Recorrentes alicerçam a impugnação deste específico segmento da decisão nos depoimentos de D. D., M. L. e J. D..
O Tribunal a quo explicitou que o facto «foi dado como não provado, atentos os depoimentos divergentes prestados quanto a esta matéria, sendo que as testemunhas arroladas pelo Autores não demonstraram conhecimento e/ou razão de ciência que lhes permitisse declarar tal facto. Apenas o autor, ouvido em declarações de parte, asseverou tal factualidade, mas essas declarações não foram atendidas porquanto não foram corroboradas pela demais prova produzida».

Parece-nos perfeitamente pacífico que os Réus colocaram, há cerca de três anos, por referência à data da propositura da acção, numa parede em pedra, uma rede que ampararam com vários ferros cravados nessa parede. Todas as testemunhas inquiridas sobre essa matéria confirmaram a colocação da rede e que foram cravados ferros na parede. O próprio Réu marido e o seu filho – a testemunha D. M. – admitiram que foi colocada a rede e cravados os ferros na parede, só que afirmaram que a parede é de ambas as partes (meeira ou comum; a determinado passo da gravação ouve-se também o Réu a dizer que a parede é sua) e que foi obtida autorização dos Autores para o efeito.

Portanto, as questões factuais controvertidas resumem-se a apurar a natureza da parede e se foi ou não obtida autorização para a colocação da rede através de suportes na parede.
Revistos todos os meios de prova, entendemos que a parede é propriedade dos Autores e que os Réus não pediram autorização expressa àqueles para colocarem a rede e cravarem os ferros na parede.

Em primeiro lugar, apesar de já ter sido em parte reconstruída, é patente que se trata de uma parede antiga, muito anterior à aquisição pelas partes dos respectivos prédios.
Em segundo lugar, é seguro que a parede não foi erigida pelos Réus e ninguém afirmou que o tenha sido pelos seus antecessores.
Em terceiro lugar, considerando o elevado desnível entre os dois prédios, é indiscutível que a parede tem uma função de suporte do terreno do prédio dos Autores. A sua função não é demarcar os dois prédios, mas sim o de “amparar” o prédio dos Autores, como referiram as testemunhas mencionadas na impugnação.
Atenta a aludida função instrumental, como foi referido pela generalidade das testemunhas, o normal é a parede ser do proprietário do prédio que está a ser “amparado”.
Em quarto lugar, essa função instrumental foi confirmada pelas testemunhas que foram confrontadas com essa questão.
Em quinto lugar, as testemunhas D. D., M. L. e J. D. afirmaram peremptoriamente que a parede é dos Autores e explicaram as razões por que assim o consideravam.
Em sexto lugar, embora o Tribunal recorrido tenha dado como provado tal facto por considerar que foram prestados “depoimentos divergentes”, a única divergência é entre os depoimentos das aludidas três testemunhas e o prestado pelo filho do Réu, naturalmente interessado em defender a posição do pai.
Em todo o caso, a testemunha D. M. reconheceu que foi o filho dos Autores que reconstruiu o muro, o que depõe a favor da tese da propriedade dos Autores.
Mas não existem só os referidos três depoimentos a escorar a tese dos Autores, pois, a própria testemunha M. C., que é sogra do filho dos Réus, reconheceu a apontada função da parede e que a mesma pertencia aos Autores. Também as testemunhas J. C. e D. A. confirmaram a função da parede e que é dos Autores.
Finalmente, se a parede fosse dos Réus ou comum, não se descortinava a razão para as testemunhas D. M. e M. C. afirmarem que foi obtida autorização dos Autores. Nesse caso não precisavam de autorização dos Autores. O pedido de autorização só tem cabimento se a parede for dos Autores.
Em face do exposto, nenhuma dúvida temos em afirmar que a parede é propriedade dos Autores.

Resta apurar se os Réus pediram autorização aos Autores para colocar a rede e os ferros na parede.
O Réu marido afirmou que os Autores viram-no «pôr lá a rede e não me disseram nada». Portanto, resulta das suas declarações de parte que não formulou um pedido prévio e expresso de autorização. A testemunha D. M. afirmou que o seu pai pediu autorização mas não assistiu ao acto e prestou nessa parte um depoimento titubeante, com avanços e recuos (v. em especial as instâncias do Mandatário dos Autores), que lhe retiram credibilidade.
M. C. disse que o Réu pediu autorização mas não assistiu a qualquer acto relativo à mesma.
Já as testemunhas D. D., M. L. e J. D. afirmaram que os Réus não pediram autorização. Também o Autor marido nas suas declarações de parte reafirmou que o Réu não lhe pediu autorização. Face aos depoimentos destas testemunhas e ao enquadramento acabado de referir, formulamos a convicção de que não foi pedida autorização aos Autores.

Pelo exposto, na procedência da impugnação dos Recorrentes, suprime-se a alínea h) dos factos não provados e adita-se aos factos provados um ponto 20 com a seguinte redacção:

«20 - Há cerca de três anos, os Réus colocaram numa parede, em pedra, que limita o prédio que estes possuem de outro prédio dos Autores identificado no ponto 1, uma rede, amparada em vários ferros cravados, também pelos Réus, naquela parede, sendo que, para tal, não pediram autorização aos Autores.».
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2.2.1.11. Do ponto nº 12 dos factos provados

O Tribunal recorrido considerou provado que «a referida actividade dos Réus, causa muito incómodo e sofrimento aos Autores e impede-os de trabalhar normalmente».
No recurso subordinado os Réus impugnam aquela decisão, pretendendo que tal facto seja considerado não provado.
Argumentam os Recorrentes que o ponto impugnado «não contém factos é, antes, uma conclusão» e que «o tribunal recorrido, com os factos provados 2, 6, 7, 8, 9, 10 e 14 não pode presumir o vertido em 12, porque estes factos não autorizam aquela presunção».

Em primeiro lugar, em caso algum numa decisão da matéria de facto se pode utilizar o advérbio “muito”. É uma expressão valorativa, de cariz subjectivo, e não um facto. Em nada ajuda a graduar o incómodo ou o sofrimento, atenta a indefinição que lhe subjaz, em termos de grandeza.
Por isso, só por aqui já existe um motivo para corrigir o ponto de facto.

Em segundo lugar, percorrida toda a prova produzida, em especial a testemunhal e as declarações de parte, verificamos que ninguém por sua iniciativa aludiu a “sofrimento” ou que os Autores “sofreram” com o cheiro dos esgotos dos suínos. As testemunhas afirmaram, isso sim, que tal cheiro incomodava os Autores e todas as pessoas que se acercavam da zona, designadamente as testemunhas D. D., M. L. e J. D.. Nenhuma das testemunhas ouvidas negou ou sequer pôs em causa que o cheiro era incómodo.
Portanto, é inequívoco que os Autores foram incomodados com o cheiro nauseabundo dos dejectos dos suínos que, provindos da pocilga, corriam a céu aberto pelo terreno dos Réus até desembocarem no caminho público. Disso não existe a mínima dúvida, bastando ouvir as testemunhas para assim concluir.
Quanto ao “sofrimento” dos Autores, pelas razões já apontadas, consideramos que não pode ser dado como provado. Aliás, os Autores nem sequer alegaram os factos tradutores do sofrimento ou as formas da sua manifestação, nem os mesmos emergem da prova produzida. Nesta parte, limitaram-se a alegar uma mera conclusão.

Em terceiro lugar, tendo o Tribunal a quo dado como provado no ponto nº 11 que os cheiros nauseabundos, originadores da concentração de insectos e produtores de gás metano, dificultavam «enormemente (4) o trabalho dos Autores, principalmente no tempo quente», não se percebe por que razão o Tribunal a quo voltou a abordar o efeito dos cheiros no trabalho no ponto nº 12 dos factos provados.
Não só isso não se justificava, por já ter sido objecto de decisão, como a repetição conduz a uma certa contradição entre os dois pontos: no primeiro emprega-se a palavra “dificultar” e no segundo “impedir”, sendo que não são sinónimos. E de duas uma: ou dificultava o trabalho ou o impedia.
A realidade é que ninguém disse que o cheiro impedia os Autores de trabalhar, mas sim que dificultava a execução das tarefas. O próprio Autor marido, durante as suas declarações de parte, utilizou a palavra “dificultar”.
Por isso, não tendo o ponto nº 11 sido objecto de impugnação e atenta a sua redacção, deve suprimir-se a parte do ponto nº 12 em que se diz que «impede-os de trabalhar normalmente».

Portanto, na parcial procedência da impugnação, modifica-se o ponto nº 12 dos factos provados, que passará a ter a seguinte redacção:

«12 - A actividade dos Réus, referida nos pontos 10 e 11, causa incómodo aos Autores.».
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2.2.1.12. Matéria de facto assente após decisão das impugnações

Os factos provados são os que a seguir se indicam:

1 - Os Autores são donos e legítimos proprietários de um prédio denominado “Armazém e Cultura ...”, sito dentro dos limites do lugar de ..., inscrito na matriz predial rústica da freguesia de ... sob o artigo ....
2 - Nesse armazém guardam o seu gado bovino – entre 18 e 24 cabeças –, as suas rações, feno e algumas alfaias agrícolas.
3 - Foram os Autores quem o construiu em terreno que herdaram de Manuel e L. A., através de escritura de doação outorgada em 18 de Dezembro de 1992.
4 - Estes doadores, por si e antepassados, possuíram o referido prédio durante mais de 30 e 40 anos, como donos, à vista de toda a gente, continuadamente e sem qualquer oposição, pagando todos os impostos devidos.
5 - Dele sempre retiraram todos os seus frutos, designadamente, milho, batata e hortaliças.
6 - Todos os dias, pela manhã, os Autores vão buscar o seu gado ao dito armazém e levam-no ao monte, para pastar.
7 - Ao fim do dia, trazem-no de volta ao armazém e ali o acamam, para lá pernoitar.
8 - Os Autores passam junto e dentro do referido armazém um número diário de horas não concretamente apurado.
9 - Os Réus, por sua vez, possuem e dizem-se donos de uma casa de morada, inscrita na matriz predial urbana da freguesia de ..., sob o artigo …, e sita na Rua da …, também em ..., a cerca de 45 metros do armazém dos Autores.
10 - Os Réus derivaram os esgotos da corte situada junto à sua casa de morada, onde guardam vários animais suínos, por forma a fazer passar aqueles esgotos, a céu aberto, junto ao armazém dos Autores e fazendo-os desembocar no caminho público
11 - Estes esgotos emitem cheiros nauseabundos, concentram insectos em quantidade imensa e produzem gás metano que é tóxico, dificultando enormemente o trabalho dos Autores, principalmente, no tempo quente.
12 – A actividade dos Réus, referida nos pontos 10 e 11, causa incómodo aos Autores.
13 - O Autor marido é sapador florestal.
14 - A Ré Antónia tem uma exploração de suínos, legal, para fabricação de fumeiro.
15 - A Ré teve no ano de 2016, 6 porcos e no ano de 2017 criou 12 porcos.
16 - Os referidos porcos são mantidos numa corte que dista da sua casa de habitação mais de 30 metros e do armazém dos Autores cerca de 40 metros.
17 – Actualmente, os Réus dispõem de uma fossa para recolha dos dejectos dos seus suínos, a qual foi construída em Fevereiro de 2018.
18 - A Ré, duas vezes por dia tem que lavar a entrada de sua casa, pois, as vacas dos Autores defecam à sua porta.
19 - Os Réus têm os esgotos da sua casa de habitação ligados ao saneamento desde 2007.
20 - Há cerca de três anos, os Réus colocaram numa parede, em pedra, que limita o prédio que estes possuem de outro prédio dos Autores identificado no ponto 1, uma rede, amparada em vários ferros cravados, também pelos Réus, naquela parede, sendo que, para tal, não pediram autorização aos Autores.

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2.2.2. Da reapreciação de Direito

2.2.2.1. Da conclusão 8ª do recurso independente

Entendem os Recorrentes que, na integral procedência da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, «não podem os RR. deixar de ser condenados nos pedidos formulados, pelos AA. na sua p.i., com o números 3, 5 e 7 no seguinte:

- A tapar a mina que mantêm aberta junto ao caminho dos AA., para evitar acidentes graves com os animais;
- A parar com os despejos de líquidos, da janela de sua casa, também para o prédio dos AA.; e
- A retirar, da parede, em pedra, que veda o prédio dos AA., a rede e os ferros que lá cravaram sem autorização destes, deixando aquela parede nas condições em que se encontrava antes do abuso».

Primeiro, a eventual alteração da solução jurídica alcançada na decisão impugnada, quanto à defendida procedência dos pedidos nºs 3 e 5 deduzidos na petição inicial, no nosso entendimento dependia, na sua totalidade, da modificação da matéria de facto propugnada pelos Recorrentes quanto às alíneas e) e f) dos factos não provados, o que não sucedeu, pelo que se considera necessariamente prejudicado o conhecimento do pedido de alteração do decidido naquela decisão relativamente a esses dois pedidos, objecto do recurso interposto pelos Autores, o que aqui se declara, nos termos do artigo 608º, nº 2, do CPC ex vi do artigo 663º, nº 2, in fine, do mesmo diploma.

Segundo, na parcial procedência do recurso independente sobre a matéria de facto, foi considerado provado que os Réus, há cerca de três anos, colocaram numa parede, em pedra, que limita o prédio que estes possuem de outro prédio dos Autores identificado no ponto 1, uma rede, amparada em vários ferros cravados, também pelos Réus, naquela parede, sendo que, para tal, não pediram autorização aos Autores.
Os Autores, enquanto proprietários exclusivos da parede, têm o direito de se opor a que os Réus cravem ferros na mesma para amparar uma rede.
A referida utilização pelos Réus da parede alheia viola o direito de propriedade dos Autores, os quais, nos termos do artigo 1305º do Código Civil (CCiv.), gozam de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição da coisa que lhes pertence.
Só se a parede fosse comum é que os Réus dispunham da faculdade, consagrada no artigo 1373º, nº 1, do CCiv., de introduzirem na mesma ferros, desde que não ultrapassassem o meio da parede. Não sendo a parede comum, não dispõem de tal faculdade.
Por isso, na procedência do recurso quanto ao pedido nº 7 da petição inicial, os Réus devem ser condenados a retirar, da parede em pedra que veda o prédio dos Autores, a rede e os ferros que lá cravaram sem autorização destes, deixando aquela parede nas condições em que se encontrava anteriormente.
*
2.2.2.2. Da conclusão 9ª do recurso independente

Entendem os Recorrentes que os Recorridos não provaram, como lhes competia, que a fossa que construíram em Fevereiro de 2018 «seja obra suficiente para evitar que os dejectos dos ditos suínos não produzam o cheiro pestilento que apresentavam ao tempo da propositura da presente acção, também os mesmos devem ser condenados:

- A tapar a saída dos esgotos da sua corte de suínos, por forma a que estes não produzam o cheiro pestilento que apresentavam aquando da propositura desta acção».

Está demonstrado que em Fevereiro de 2018 os Réus construíram uma fossa na qual são agora recolhidos os dejectos dos seus suínos. Deixou de subsistir a situação anterior, em que os esgotos da pocilga eram vertidos, a céu aberto, no terreno dos Réus até desembocarem no caminho público. Era devido ao facto de os dejectos ficarem a céu aberto que emitiam cheiros nauseabundos (e todas as demais consequências dadas como provadas).
Sendo os dejectos recolhidos em fossa construída para o efeito, com a consequente cessação da causa dos maus cheiros, carece de fundamento a pretendida tapagem da saída dos esgotos da corte dos suínos dos Réus.
Finalmente, lavram os Recorrentes em equívoco sobre o ónus da prova: sendo o fundamento do pedido a emissão de cheiros nauseabundos e demonstrando os Réus que realizaram a aludida obra, não era a estes que competia provar a inexistência de cheiros; era aos Autores que incumbia provar que subsistiam os cheiros.
Não estando demonstrada a subsistência de cheiros nauseabundos, carece de fundamento a condenação dos Réus a taparem a saída dos esgotos.
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2.2.2.3. Da conclusão 10ª do recurso independente e das conclusões XXVI a XXXVI do recurso subordinado

Enquanto os Autores propugnam pelo aumento da indemnização para € 5.000,00 a cada um deles, os Réus sustentam que inexiste qualquer fundamento para a fixação de indemnização.

Vamos começar por apreciar a argumentação dos Réus constante do recurso subordinado.
Na petição inicial os Autores deduziram um oitavo pedido, consistente na condenação dos Réus «a pagar, aos AA., pelos danos não patrimoniais que lhes causaram, a quantia de € 15.000,00 euros». Como fundamento de direito para essa sua pretensão, invocaram, no artigo 20º da p.i., que «todos aqueles cheiros nauseabundos e atentados à saúde dos AA. são proibidos pelo estatuído nos arts. 1347º e 1348º do Código Civil».
Na sentença entendeu-se condenar os Réus a pagar a cada um dos Autores a quantia de mil euros a título de indemnização por danos patrimoniais. Considerou-se que a emissão de cheiros constitui «uma violação à integridade física, ao repouso e à qualidade de vida» e que «a par deste direito fundamental e do lado dos Réus, existe um direito de propriedade privada e um outro ao livre exercício da iniciativa económica privada, ambos direitos fundamentais constitucionais de natureza económica (arts. 61º/1 e 62º/1 da CRP)». Porém, como «os direitos em confronto não são iguais, opondo-se, por um lado, direitos fundamentais de personalidade e, do outro, um direito à exploração económica», concluiu-se que «o direito a um ambiente sadio, constituindo uma imanação dos direitos fundamentais de personalidade, constitucionalmente tutelado, é superior ao direitos dos Réus em proceder à exploração económica da actividade de suinicultura, devendo prevalecer sobre este, sem que o facto de a actividade dos Réus se encontrar licenciada permita concluir de forma diversa».
Os Réus insurgem-se contra esta parte da sentença, invocando que no seu prédio está a ser feita uma utilização normal, que não existe prejuízo substancial justificativo da aplicação do disposto no artigo 1346º do CCiv., que a criação de suínos não tem a virtualidade de ofender ou ameaçar a personalidade física e moral dos Autores e que estão em confronto direitos iguais, pois em ambos os prédios são desenvolvidas actividades económicas idênticas, com o mesmo tipo de poluição, pelo que não tem aplicação o disposto no artigo 335º, nº 2, do CCiv.

Liminarmente, para evitar repetições desnecessárias, entendemos que a sentença enquadrou devidamente a questão.
Em primeiro lugar, desde logo enquanto proprietários, os Autores dispunham da faculdade de opor-se à emissão de cheiros provenientes do prédio vizinho, nos termos do artigo 1346º do CCiv. Este preceito exige «que tais factos importem um prejuízo substancial para o uso do imóvel ou não resultem da utilização normal do prédio de que emanam».
É certo que criar suínos, tal como afirmam os Réus, é uma actividade normal, sobretudo numa região em que isso tem raízes ancestrais, muito ligada à tradição dos enchidos e respectivo fumeiro. Mas o problema não está em serem criados suínos, mas sim na forma como, até à construção da fossa, em Fevereiro de 2018, eram tratados os dejectos provenientes da pocilga. Não é normal fazer escorrer os esgotos resultantes da “corte de porcos” a céu aberto, por um prédio, até serem desembocados num caminho público aí existente, com todas as consequências perniciosas daí resultantes, em termos de potenciação da emanação de cheiros fedorentos e de concentração de insectos. Para o padrão actual da nossa sociedade, apreciado por um homem médio, essa não é uma utilização normal do prédio pelos Réus, pois ultrapassa os limites da tolerabilidade exigível ao proprietário do prédio vizinho.
E não se argumente com o licenciamento da actividade, uma vez que não abrange aquela concreta forma de tratamento dos esgotos.
Em segundo lugar, a questão da emissão de poluição, em especial de cheiros pestilentos, não se coloca apenas no âmbito das relações de vizinhança, no confronto entre proprietários de prédios vizinhos. Há outros planos em que a mesma se coloca: no plano da tutela do direito de personalidade, no plano do direito do ambiente e no plano constitucional, tal como a sentença bem salienta.
Em certo sentido, podemos dizer que esses outros níveis de tutela alargam sucessivamente o âmbito subjectivo (5) e os fundamentos de reacção contra uma actividade poluente.
Em sede constitucional, nos termos do artigo 66º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), consagra-se que «todos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender». Também o artigo 64º, nº 1, da CRP estabelece que «todos têm direito à protecção da saúde e o dever de a defender e promover». É assim indiscutível que qualquer cidadão dispõe do direito de reagir contra quaisquer instalações pecuárias poluentes, designadamente as que afectem a sua saúde e bem-estar, devido, por exemplo, à sua falta de higiene e salubridade.
Por outro lado, o artigo 70º do CCiv. estabelece a tutela geral do indivíduo «contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral», podendo «requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso». Uma das formas de tutela dos direitos de personalidade é precisamente a responsabilidade civil. Isto porque a ofensa ilegítima a esse direito gera o dever de indemnizar, nos termos do artigo 483º, nº 1, do CCiv.
A norma do artigo 70º do CCiv. decorre da dignidade da pessoa humana e protege um conjunto indeterminado de bens jurídicos pessoais não tipificados, os vários modos de ser físicos, psíquicos e morais da personalidade, de acordo com uma visão mais ampla e rica da pessoa, assumindo uma natureza materialmente constitucional, pois remete para o catálogo de direitos, liberdade e garantias consagrados na Constituição. Tem uma formulação geral e indeterminada de forma a abranger, no seu âmbito de protecção, aspectos da personalidade cuja lesão ou ameaça de violação só com a evolução dos tempos assumam um significado ilícito.
Em todo o caso, é indiscutível que tutela o direito à saúde, à integridade física e ao bem-estar, aspectos que estão em causa nos autos, uma vez que a contínua sujeição a cheiros nauseabundos afecta o bem-estar da pessoa e põe em risco a sua saúde.
Em terceiro lugar, ao contrário do propugnado pelos Réus, é manifesto que o direito dos Autores e o direito dos Réus não são iguais ou da mesma espécie. Na sentença considerou-se, e bem, que estavam em confronto dois direitos de espécie diferente, pelo que, em aplicação do disposto no artigo 335º, nº 2, do CCiv., prevalecia o direito que se deve considerar superior, ou seja, o dos Autores. De um lado, temos um direito fundamental de personalidade, traduzido no direito a uma vida saudável e a um ambiente sadio, e, do outro lado, um direito de exploração económica de um prédio. Porém, a vertente da exploração económica do prédio aqui em causa é especificamente a respeitante à forma como eram vertidos os esgotos da pocilga nesse prédio.
Mais, tanto na sentença como neste acórdão, não se impõe aos Réus qualquer forma de cessação ou limitação da sua actividade, mas apenas se reconhece que a forma como anteriormente tratavam os detritos provenientes da sua exploração pecuária era violadora do apontado direito dos Autores. Os próprios Réus, reconhecendo implicitamente a ilicitude da sua anterior conduta quanto aos esgotos, fizeram – e bem – uma fossa e resolveram o problema de poluição que a sua corte de suínos gerava. Por isso, a tutela do direito dos Autores apenas se coloca no plano da responsabilidade civil, sendo para nós inequívoco que estão reunidos os respectivos pressupostos, tal como considerou o Tribunal recorrido.
Em quarto lugar, a questão da eventual violação do direito de propriedade dos Réus, ou dos seus direitos de personalidade, resultante da exploração pelos Autores de uma vacaria nas proximidades da casa daqueles e respectivas repercussões, designadamente no plano da responsabilidade civil, é objecto da acção nº 28/18.4T8MTR, conforme se mostra certificado a fls. 77-98, a qual, incidindo sobre um tema semelhante ao deste processo, traduz uma inversão dos papéis processuais. Naturalmente que essa matéria é insusceptível de aqui ser apreciada, pois será decidida naquela acção. Todavia, sempre se dirá que não estão propriamente em confronto o direito de num prédio “criar porcos” e o direito de no outro prédio “criar vitelos”, como os Réus afirmam na conclusão XXXIII das suas alegações; estão em causa, outrossim, as consequências das aludidas actividades, designadamente em termos de poluição, e os direitos de personalidade das partes ou o direito de se oporem, no âmbito das relações de vizinhança, à emissão de cheiros nocivos provenientes do prédio vizinho que importem um prejuízo substancial para o uso do seu imóvel ou não resultem da utilização normal do prédio de que emanam.
Em quinto lugar, sendo os direitos de personalidade verdadeiros direitos fundamentais, a ponderação que se fez, dando prevalência ao direito dos Autores a uma vida saudável e a um ambiente sadio, sobre o direito de os Réus despejarem livremente os detritos provenientes da pocilga existente no seu prédio, é necessária, adequada e proporcional, atenta a sua diferente natureza e hierarquia de valores.
Em suma, tendo os Réus violado ilicitamente o apontado direito dos Autores, estão obrigados a indemnizar os danos resultantes da apontada violação, que a sentença considerou serem os danos não patrimoniais, fixando uma indemnização de mil euros a favor de cada um dos lesados.

No recurso independente, os Autores sustentam que a indemnização deve ser mais elevada, condenando-se os Réus no pagamento, a cada um dos Autores, da quantia de cinco mil euros, a título de ressarcimento dos danos não patrimoniais que lhes causaram.
Entendemos que a sentença fixou criteriosamente a indemnização e que inexiste qualquer razão para aumentar o seu valor.
As circunstâncias do caso assim o ditam.
Quando estão em causa danos não patrimoniais a respectiva indemnização não visa reconstruir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento, mas sim compensar de alguma forma o lesado pelas dores físicas e morais sofridas, em suma, pelo seu padecimento.
Na verdade, os interesses cuja lesão desencadeia um dano não patrimonial são infungíveis, não podem ser reintegrados mesmo por equivalente, sendo possível, todavia, em certa medida, compensar o dano mediante satisfações derivadas da utilização do dinheiro, isto é trata-se de proporcionar ao lesado uma compensação que, de algum modo, alivie os sofrimentos que o facto lesivo lhe provocou, ou lhos faça esquecer.

Ora, no caso de danos não patrimoniais, rege o disposto no artigo 496º do Código Civil, segundo o qual:

«1 - Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. (...)
4 - O montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494º(...)».

No caso de a responsabilidade se fundar na mera culpa, poderá a indemnização ser fixada equitativamente, em montante inferior ao que corresponderia aos danos causados, desde que o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem (artigo 494º do CCiv.).
Os danos não patrimoniais não são avaliáveis em dinheiro, certo que não atingem bens integrantes do património do lesado, antes incidindo em bens como a vida, a saúde, a liberdade, a honra, o bom-nome e a beleza.
O seu ressarcimento assume, por isso, uma função essencialmente compensatória, embora sob a envolvência de uma certa vertente sancionatória.
As circunstâncias a que, em qualquer caso, o artigo 496º, nº 4, manda atender são o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso.
A apreciação da gravidade do referido dano, embora tenha de assentar no circunstancialismo concreto envolvente, deve operar sob um critério objectivo, num quadro de exclusão, tanto quanto possível, da subjectividade inerente a alguma particular sensibilidade humana.

No caso dos autos, há que considerar, desde logo, que os Autores não residem no prédio onde se situa o armazém, nem na “lameira” situada imediatamente ao lado da pocilga. Se estivessem permanentemente sujeitos aos cheiros nauseabundos dos esgotos, a situação mereceria uma ponderação substancialmente diferente.
O certo é que os Autores só durante um período limitado do dia se encontram junto ou dentro do armazém que têm no seu prédio (identificado no ponto 1). Além disso, como se trata de uma vacaria e se deslocam ali para tratar das vacas, o mais natural é passarem a maior parte do tempo dentro do edifício, momento em que dificilmente se concebe que o cheiro dos dejectos dos porcos suplante o cheiro dos dejectos das vacas.
Depois, o grau de culpabilidade dos Réus tem de ser analisado num quadro em que as próprias vacas dos Autores defecam à porta da casa dos Réus, tendo a Ré mulher que lavar duas vezes por dia a entrada de sua casa (ponto 18 dos factos provados). Por isso, não se pode considerar que o grau de culpa dos Réus é muito elevado.
Acresce que os Réus tomaram a iniciativa de fazer a obra necessária à cessação do dano. É seguro que a obra começou a ser realizada antes de ser instaurada a presente acção e que a sua conclusão é quase coincidente com a data de entrada da petição inicial na secretaria do Tribunal (a acção deu entrada a 26.02.2018 e, segundo o Réu, a obra foi concluída no dia 21.02.2018 – na sentença deu-se como provado que foi “construída em Fevereiro de 2018”).
Finalmente, há que ter em conta a situação económica tanto dos Autores como dos Réus, que nos parece ser a correspondente ao padrão médio de uma aldeia de província, como é o caso da aldeia de .... A fixação de uma indemnização mais elevada estaria desfasada da capacidade económica das partes.

Termos em que improcede totalmente a apelação dos Réus (recurso subordinado) e parcialmente a apelação dos Autores.
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2.3. Sumário

1 – Só relativamente a uma parede comum é que qualquer dos consortes dispõe da faculdade de nela introduzir ferros, traves ou barrotes, desde que não ultrapassem o meio da parede. Não sendo a parede comum, não dispõe o proprietário do prédio vizinho de tal faculdade.
2 – O proprietário de um imóvel dispõe da faculdade de opor-se à emissão de cheiros provenientes de prédio vizinho, desde que tais factos importem um prejuízo substancial para o uso do imóvel ou não resultem da utilização normal do prédio de que emanam.
3 – Sendo no caso a criação de suínos uma actividade normal numa região em que isso tem raízes ancestrais, o problema não reside em serem criados suínos, mas sim na forma como são tratados os dejectos provenientes da exploração.
4 – Não se pode considerar como normal fazer escorrer os esgotos resultantes da corte de suínos a céu aberto, por um prédio, até serem desembocados num caminho público aí existente, com todas as consequências perniciosas daí resultantes, em termos de potenciação da emanação de cheiros nauseabundos e de concentração de insectos. Para o padrão actual da nossa sociedade, apreciado por um homem médio, essa não é uma utilização normal do prédio, pois ultrapassa os limites da tolerabilidade exigível ao proprietário do prédio vizinho.
5 – A questão da emissão de poluição, em especial de cheiros nauseabundos ou pestilentos, não se coloca apenas no âmbito das relações de vizinhança, no confronto entre proprietários de prédios vizinhos. Há outros planos em que a mesma se coloca: no plano da tutela do direito de personalidade, no plano do direito do ambiente e no plano constitucional. Esses outros níveis de tutela alargam sucessivamente o âmbito subjectivo e os fundamentos de reacção contra uma actividade poluente.
6 – Sendo os direitos de personalidade verdadeiros direitos fundamentais, a ponderação que se fez, dando prevalência ao direito dos autores a uma vida saudável e a um ambiente sadio, sobre o direito de os réus despejarem livremente os detritos provenientes da pocilga existente no seu prédio, é necessária, adequada e proporcional, atenta a sua diferente natureza e a hierarquia dos valores em confronto.
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III – DECISÃO

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar:
a) Improcedente o recurso subordinado dos Réus;
b) Parcialmente procedente o recurso independente dos Autores e, em consequência, condenar os Réus a retirar, da parede em pedra que veda o prédio dos Autores referido no ponto 1, a rede e os ferros que lá cravaram sem autorização destes, deixando aquela parede nas condições em que se encontrava anteriormente, e mantendo-se no mais a sentença.
Custas do recurso subordinado pelos Réus. Custas do recurso independente na proporção do decaimento.
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Guimarães, 16.01.2020
(Acórdão assinado digitalmente)

Joaquim Boavida (relator)
Paulo Reis (1º adjunto)
Joaquim Espinheira Baltar (2º adjunto)


1. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, Almedina, 2018, pág. 115.
2. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, Almedina, 2018, pág. 163. No mesmo sentido Francisco Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, vol. II, Almedina, 2015, pág. 463.
3. Abrantes Geraldes, ob. cit., págs. 168 e 169.
4. Mais uma expressão que não deveria constar da matéria de facto, assim como “imensa”, que igualmente está no ponto 11 dos factos provados.
5. Pode ser afectado pela actividade poluente um sujeito que não é proprietário de qualquer prédio.