Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2927/18.4T8VCT.G1
Relator: MARIA CRISTINA CERDEIRA
Descritores: VENDA DE BENS DE CONSUMO
BEM DEFEITUOSO
VEÍCULO AUTOMÓVEL
PRESUNÇÃO DE CULPA
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/13/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- Ao contrato de compra e venda de bem de consumo são aplicáveis, em primeira linha, o regime jurídico da venda de bens de consumo previsto no DL 67/2003 de 8/4 (que transpôs para o direito interno a Directiva n.º 1999/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio), alterado e republicado pelo DL 84/2008 de 21/5, em conjugação com a Lei n.º 24/96 de 31/7 (Lei de Defesa do Consumidor) e, subsidiariamente, as regras previstas no Código Civil para o mesmo tipo contratual.
II- Segundo o regime estabelecido no DL 67/2003 de 8/4, que regula a venda de bens de consumo, o vendedor profissional tem o dever de entregar ao comprador/consumidor bens que sejam conformes com o contrato de compra e venda celebrado (art. 2º, n.º 1). Por sua vez, o n.º 2 do art. 2º elenca determinados “factos-índice” demonstrativos de não conformidade, de tal forma que, se comprovados, presume-se a desconformidade com o contrato (presunção juris tantum).
III- Por sua vez, o comprador/consumidor, em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, tem direito a que aquela conformidade seja reposta, sem encargos para si, por meio de reparação ou de substituição, assim como poderá optar pela redução adequada do preço ou mesmo resolver o contrato (art. 4º, n.º 1, do DL 67/2003).
IV- No âmbito do DL 67/2003 de 8/4 é ao comprador/consumidor que cabe o ónus de alegar e provar o defeito de funcionamento da coisa, isto é, a sua desconformidade com o contrato, e que esse defeito existia à data da entrega da coisa, embora disponha de presunções legais de não conformidade que facilitam tal prova (art. 2º, n.º 2). Ou seja, bastará ao consumidor alegar e provar os factos-índice da presunção de desconformidade com o contrato e que eles se manifestaram dentro do prazo da garantia legal imposta por aquele diploma legal (2 ou 5 anos a contar da entrega), para se presumir que o defeito já existia à data da entrega (art. 3º, n.º 2).
V- Uma vez provada a existência do defeito, recai sobre o vendedor, para afastar a sua responsabilidade, o ónus de ilidir a presunção de não conformidade, mediante a alegação e prova de que a falta de conformidade resulta de facto imputável ao comprador (nomeadamente do mau uso ou da incorreta utilização do bem por parte do consumidor), a terceiro ou devida a caso fortuito, ou que, atentas as circunstâncias, o defeito não existia na data da entrega.
VI- O Código Civil não contém um regime próprio sobre a responsabilidade direta do produtor, a qual foi objeto de legislação específica, através do DL 383/89 de 6/11, que transpôs para o ordem jurídica interna a Directiva n.º 85/374/CE do Conselho, de 25 de Julho de 1985, em matéria de responsabilidade decorrente de produtos defeituosos.
VII- A Lei nº. 24/96 de 31/7 (Lei de Defesa do Consumidor), alterada pelo DL 67/2003 de 8/4, ao conferir ao consumidor o direito à reparação da coisa ou à sua substituição está a pressupor uma relação contratual directa com o fornecedor remetendo a responsabilidade objetiva do produtor para os “termos da lei” (art. 12º, n.º 2), ou seja, para o DL 383/89 de 6/11.
VIII- O DL 67/2003 de 8/4 veio consagrar, pela primeira vez, medidas jurídicas relativas às garantias voluntariamente assumidas pelo vendedor, fabricante ou por qualquer intermediário (art. 9º), bem como a responsabilidade direta do produtor perante o consumidor, pela reparação ou substituição da coisa defeituosa (art. 6º), facultando ao consumidor, sem prejuízo dos direitos que lhe assistem perante o vendedor, a chamada “ação directa” contra o produtor ou seu representante, a fim de reclamar a reparação ou substituição da coisa defeituosa, mas já não a anulação ou resolução do contrato.
IX- Em prol do direito de proteção do consumidor, conferido pelo DL 67/2003 de 8/4, os meios que o comprador consumidor tem ao seu dispor para reagir contra a venda de um bem defeituoso, previstos no artº. 4º, n.º 1 do citado diploma legal, não têm qualquer hierarquização ou precedência na sua escolha, estando apenas esta escolha limitada pela impossibilidade do meio ou pelo “abuso de direito” (art. 4º, n.º 5 do DL 67/2003).
X- Em caso de compra e venda de veículo automóvel, a devolução integral do preço contratual liquidado pelo comprador e a correspondente devolução do veículo por este, com o uso e desgaste entretanto sofrido, envolveria um enriquecimento sem causa por parte do comprador, violador da boa fé contratual.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

M. S. intentou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra X, Automóveis, Lda., pedindo que seja:

a) Declarado resolvido o contrato de compra e venda do veículo identificado no artº. 1º da petição inicial, celebrado entre A. e Ré;
b) Condenada a Ré a restituir à A. o valor que pagou pela compra do veículo identificado no artº. 1º da petição inicial, no montante de € 26.750,00, acrescido de juros de mora calculados à taxa legal desde a citação até efectivo e integral pagamento;

Caso assim se não entenda:
c) Condenada a Ré a substituir a viatura automóvel da A. por outra viatura, nova, da mesma marca, modelo, versão e ano;

Caso ainda assim se não entenda:
d) Condenada a Ré a reparar definitivamente a avaria do veículo em apreço identificada no artº. 34º da petição inicial e que gera os sinais identificados no artº. 7º do mesmo articulado, sob pena de ficar obrigada a pagar uma sanção pecuniária compulsória nunca inferior a € 2.500,00 por cada vez que a mesma surgir, após cada reparação.

Em todo o caso:
e) Condenada a Ré a pagar à A. uma indemnização a título de danos não patrimoniais nunca inferior a € 5.000,00, acrescida de juros de mora calculados à taxa legal desde a citação até efectivo e integral pagamento.

Para tanto alega, em síntese, que a Ré é concessionária da marca K, comercializando e prestando serviços de reparação e manutenção de veículos automóveis daquela marca, e em 1/12/2015 vendeu à A. um veículo automóvel da marca K, modelo Civic Tourer Elegance Navi, 1.6 diesel, 120cv, com a matrícula QP, em estado novo, para seu uso pessoal, pelo preço de € 26.750,00, pago a pronto.
A Ré concedeu uma garantia de 5 anos ao veículo em apreço, que cobria qualquer problema/defeito que o mesmo apresentasse.
Sucede que, decorridos dois meses após a compra, mais concretamente em 13/02/2015 (sábado), quando a A. circulava com o veículo, no painel de instrumentos por cima do volante acendeu-se a “luz indicadora de avaria no motor” e apareceu inscrita a menção “verificar sistema”, tendo a A. em 15/02/2016 (2ª feira) levado o veículo à oficina da Ré para reparação de tal problema. Nessa altura o veículo tinha percorrido 4.480 Km, distância que marcava no respectivo conta-quilómetros. No final desse dia, quando procedeu à recolha do veículo, verificou que os sinais de alerta tinham desaparecido do painel de instrumentos.
Esta situação repetiu-se nos dias 4/04/2016 (nesta data o veículo marcava 7.775 Km no respectivo conta-quilómetros), 15/06/2016, 8/09/2016, 11/09/2016 e 20/09/2016, sendo que nesta última data, o chefe da oficina comunicou à A. que a marca K iria enviar um “sensor melhorado” para resolver definitivamente o problema da viatura, tendo o veículo sido deixado na oficina da Ré em 12/10/2016 para esse fim.
Acontece que, nos dias 26/12/2016 e 12/01/2017, o veículo voltou a exibir as mencionadas luzes no painel de instrumentos, sendo que nestes dias a A. voltou a levá-lo à oficina da Ré, que fez uma “reprogramação/reaprendizagem” do sensor colocado em 12/10/2016 e as luzes desapareceram do painel.
No dia 22/04/2017, o veículo voltou a apresentar os sinais de alerta identificados no artº. 7º da petição inicial e em 28/04/2017 a A. voltou a conduzi-lo à oficina da Ré, onde permaneceu das 9h às 17h30, mas foi devolvido com as luzes acesas no painel de instrumentos. Nesse dia 28/04/2017, a Ré pediu à A. que voltasse a levar o veículo no dia 9/05/2017, para tirar fotografias ao motor e ao sensor, bem como para reparar o problema que o veículo apresentava, o que ela fez.
Em 9/05/2017, ao instalar o veículo no elevador, para o levantar e tirar fotografias, a Ré danificou a embaladeira, amolgando-a, por baixo da porta do condutor, mas entregou o veículo sem que o mesmo apresentasse os sinais de alerta.
No dia 7/07/2017, o veículo voltou a apresentar as luzes no painel de instrumentos, a A. voltou a levá-lo à oficina da Ré e recolheu-o no final do dia, tendo verificado que tais “sinais” haviam desparecido do painel. Em 9/08/2017, o veículo voltou a apresentar os mesmos “sinais de alerta”, a A. levou-o à oficina da Ré, onde foi observado por um engenheiro, foi trocado o sensor e devolvido sem as luzes acesas no painel de instrumentos.
Em 4/09/2017, a A. conduziu novamente o veículo à oficina da Ré para que esta reparasse os danos que havia causado na embaladeira no dia 9/05/2017, o que foi feito.
Nos dias 13/11/2017, 11/12/2017, 19/12/2017, 26/12/2017, 19/01/2018, 25/01/2018, 1/02/2018, 5/02/2018, 9/02/2018, 13/04/2018 e 12/06/2018 (contando nesta última data com 50.870 km), o veículo acendeu as ditas luzes no painel de instrumentos e, de todas essas vezes, foi levado à oficina da Ré para reparação e devolvido supostamente com a anomalia resolvida, ou pelo menos, sem que os tais sinais de alerta aparecessem no painel de instrumentos.
Depois de ter sido sujeito a mais de vinte intervenções na oficina da Ré, o problema persiste, pois o veículo da A. padece de uma incapacidade de regeneração do filtro de partículas diesel e dos orifícios das sondas de oxigénio do veículo, que quando colmatados por fuligem tornam impossível a viabilidade de utilização do veículo, circunstância de que a A. só veio a tomar conhecimento por carta que lhe foi enviada pela K em finais de Maio de 2018.
Na sequência desta comunicação e após o chefe da oficina da Ré lhe ter dito que não tinha mais soluções para resolver o problema do veículo, em Junho de 2018 a A. solicitou uma reunião com os responsáveis da Ré e os representantes da K, numa última tentativa de resolver definitivamente o problema do seu veículo, a qual teve lugar em 29/06/2018, tendo a A. comparecido na esperança de que lhe fosse efectivamente proposta uma solução para o problema do veículo, seja através da substituição por um veículo idêntico ou através do reembolso do dinheiro que havia despendido com a compra.
Todavia, a única solução que a Ré propôs à A., após vistoriar o veículo nas suas instalações, foi que esta colocasse um aditivo a cada 5 depósitos de gasóleo, a expensas suas, com o objectivo de dilatar o espaço de tempo entre avarias, tendo sido ainda informada pela Ré que teria de suportar as reparações que se afigurassem necessárias daí para a frente, pois a K já não as iria suportar mais.
Esta anomalia/avaria determina que, logo que as luzes de aviso apareçam no painel de instrumentos, o veículo não possa mais ser utilizado, sob pena de o sistema de controlo das emissões e o motor poderem ficar danificados.
Acrescenta que tendo a Ré vendido à A. um veículo automóvel com deficiência ou defeito, que não apresentava, como não apresenta, as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar, assiste à A. o direito a ver resolvido o contrato de compra e venda do veículo em apreço celebrado com a Ré e peticionar o reembolso do dinheiro que pagou, de harmonia com o preceituado nos artºs 406º, 432º, 763º, 879º e 882º do Código Civil e nos artºs 2º, nº. 1 e 4º da Lei de Defesa do Consumidor.
Refere, ainda, que por via de toda esta situação, a A. sofreu, como continua a sofrer, muitos incómodos, transtornos, chatices, aborrecimentos e muitas perdas de tempo, nomeadamente em deslocações para tentar resolver esta situação, recolha de elementos, documentos, testemunhas, envio de cartas, consultas na Deco, em advogado e reuniões com a Ré. E com a proposta feita pela Ré para “resolver” o problema do seu veículo, sentiu-se enganada, ludibriada, incomodada, desgostosa e passou muitas noites sem dormir, sofreu nervosismo e ansiedade, devendo ser-lhe atribuída quantia não inferior a € 5.000,00 para compensação de todos estes danos não patrimoniais sofridos.

A Ré contestou, excepcionando a sua ilegitimidade para ser demandada na presente acção, por se tratar de uma concessionária da marca de automóveis K, que é representada em Portugal pela sociedade Y Portugal, S.A., a qual se dedica à importação para o território nacional de veículos novos da marca K, peças sobressalentes, acessórios e respectivos equipamentos e sua distribuição, através de uma rede comercial constituída por concessionários independentes, que a Ré integra, e também representa a K no território nacional para efeitos de garantia legal e/ou contratual de que beneficiam as viaturas novas comercializadas na rede de concessionários, pelo que caso haja defeito de fabrico, como alega a A., deverá ser chamado o fabricante ou, no caso, o importador para território nacional dos veículos automóveis daquela marca, a Y Portugal, S.A.
Mais alega que mesmo que se considere que a viatura em causa padece efectivamente de um defeito, sempre se estará, “in casu”, no âmbito da cobertura e aplicação da garantia legal de que a viatura beneficia e, no caso concreto, da garantia contratual de 5 anos de que o veículo da A. beneficia, sendo tal garantia da responsabilidade da marca K e do seu representante em Portugal, não tendo a aqui Ré qualquer responsabilidade na mesma.
Por esta razão, no caso dos autos, foi a K através da Y, que respondeu por escrito às reclamações da A. e declinou a existência de defeito da viatura e obviamente a cobertura do mesmo pela garantia de que o veículo gozava na data, pelo que deveria o fabricante da viatura ou o seu representante no território nacional ser chamado aos presentes autos, não tendo a Ré qualquer interesse em contradizer.
A Ré impugnou, ainda, a matéria de facto alegada na petição inicial, invocando que o defeito alegado pela A. resulta exclusivamente de uma utilização inadequada do veículo automóvel em causa por parte daquela, face às características técnicas e parâmetros de utilização definidos pela marca para o mesmo, sendo que a garantia K (extensão 5 anos) exclui do seu âmbito a reparação de qualquer avaria causada pelo uso indevido ou negligente da viatura.
A A. esteve pela última vez nas oficinas da Ré em 18/06/2018, tendo a viatura saído da oficina já sem o sinal de que a A. se queixava: a luz avisadora ligada.
A Ré sempre se disponibilizou a que a viatura fosse novamente inspeccionada por técnicos da K e a marca, através do seu representante nacional, na carta que enviou à A. manifestou igual disponibilidade; porém, até hoje a A. não usou de tal faculdade por razões que se desconhecem.
Acrescenta que procedeu com o dever de diligência a que estava obrigada e sempre assegurou à A. as reparações gratuitas dos componentes do veículo por esta adquirido, no âmbito das garantias de que este beneficiava. A A. recebeu todas as informações sobre as regras e normas de uso do veículo, conforme documento que assinou, sendo que o veículo em causa não padece de qualquer anomalia ou defeito, estando conforme as especificações e com as características técnicas definidas pelo produtor K.
Por fim, a Ré requereu a intervenção principal provocada da Y Portugal, S.A., representante da marca K em Portugal, alegando ser esta sociedade que se dedica à importação de veículos novos da marca K, peças sobressalentes, acessórios e respectivos equipamentos para Portugal e é também a representante daquela marca para efeitos de garantia legal e/ou contratual de que beneficiam as viaturas novas comercializadas nos concessionários.
Conclui, pugnando pela procedência das excepções deduzidas, pelo deferimento do incidente de intervenção principal provocada da Y Portugal, S.A. e pela improcedência da acção no que a si respeita, devendo a Ré ser absolvida dos pedidos contra si formulados.

A A. não deduziu oposição à intervenção nestes autos da sociedade Y Portugal, S.A., requerida pela Ré.

Em 21/11/2018 foi proferido despacho a admitir a intervenção principal provocada, do lado passivo, de Y Portugal, S.A. e a determinar a sua citação.
Regularmente citada, a interveniente Y Portugal, S.A. apresentou contestação, impugnando os factos alegados pela A. na petição inicial e alegando que as ocorrências relatadas pela A. devem-se a uma incorrecta utilização do veículo por parte daquela, sendo que a A., aquando da compra do veículo, foi aconselhada pelo funcionário da 1ª Ré a adquirir uma viatura a gasolina, que não possui filtro de partículas, sendo assim mais compatível com uma utilização em percursos urbanos e/ou curtos, como eram os da A., ou a fazer uma utilização da mesma conforme as suas características específicas.
Refere, ainda, que a A. adquiriu a viatura com dois tipos de garantia, a legal (geral) e a contratual, perfazendo um total de 5 anos de garantia. Nenhuma das garantias cobre “qualquer problema/defeito”, sem mais, do veículo; abrangem comprovados defeitos de material ou de fabrico, para além de que os contratos de garantia são sujeitos a algumas exclusões, nomeadamente materiais de desgaste tais como, escovas, limpa pára-brisas, pastilhas e discos de travão, óleo, líquido de ar condicionado, etc.
Termina, pugnando pela procedência das excepções deduzidas e improcedência da acção com a absolvição da Chamada de todos os pedidos contra si formulados.

Realizou-se a audiência prévia, tendo sido proferido despacho saneador, no qual se procedeu ao saneamento da acção, verificando-se a validade e regularidade da instância, foi julgada improcedente a excepção da ilegitimidade da 1ª Ré, definiu-se o objecto do litígio e enunciaram-se os temas de prova, que não sofreram reclamações.

Foi realizada perícia ao veículo da A., cujo relatório e esclarecimentos dos peritos se encontram juntos a fls. 85 a 96 e 116vº a 120vº.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, com observância do legal formalismo.

Após, foi proferida sentença que julgou a presente acção parcialmente procedente e, em consequência, decidiu:

· Declarar resolvido o contrato de compra e venda relativo ao veículo identificado no ponto 1. dos factos provados, celebrado entre a Autora e a Ré X, Automóveis, Lda.;
· Condenar a Ré X, Automóveis, Lda. a restituir à Autora o valor pago pela compra do referido veículo, no montante de € 26.750,00 (vinte e seis mil setecentos e cinquenta euros), acrescido de juros de mora vencidos e vincendos, calculados à taxa legal de 4%, contados desde a citação até efectivo e integral pagamento;
· Condenar, solidariamente, a Ré X, Automóveis, Lda. e a chamada Y Portugal, S.A. a pagar à Autora a quantia de € 1.000,00 (mil euros), devida a título de indemnização por danos não patrimoniais.
Decide-se absolver as demandadas, quanto ao mais.
Custas a suportar por ambas as partes na proporção do respectivo decaimento.

Inconformada com tal decisão, a Ré X, Automóveis, Lda. dela interpôs recurso, extraindo das respectivas alegações as seguintes conclusões [transcrição]:

1. A aqui recorrente não se conforma com a decisão do Tribunal a quo que julgou a presente acção parcialmente procedente e consequentemente condenou a ré X, Automóveis, Lda. e, consequentemente, decidiu “Declarar resolvido o contrato de compra e venda relativo ao veículo identificado no ponto 1. dos factos provados, celebrado entre a Autora e a Ré X, Automóveis, Ldª e ademais,
a) Condenar a Ré X, Automóveis, Ldª a restituir à Autora o valor pago pela compra do referido veículo, no montante de €26.750,00 (vinte e seis mil, setecentos e cinquenta euros), acrescido de juros de mora vencidos e vincendos, calculados à taxa legal de 4%, contados desde a citação até efectivo e integral pagamento;
b) Condenar, solidariamente, a Ré X, Automóveis, Ldª e a chamada Y Portugal, S.A. a pagar à Autora a quantia de €1.000,00 (mil euros), devida a título de indemnização por danos não patrimoniais.
2. A Meritíssima Juiz efectuou um enquadramento jurídico errado da factualidade que vem dada como demonstrada e consequentemente falhou ao considerar existir fundamento bastante para declarar a resolução do contrato de compra e venda e ademais condenar a Recorrente na restituição do valor pago pela compra do veiculo e solidariamente com a Chamada solidariamente indemnização por danos não patrimoniais.
3. Importa ter presente a factualidade que vem dada como provada, com relevo para a decisão final a proferir nos autos:
1. A Autora é dona e legítima possuidora de um veículo automóvel, da marca K, modelo Civic Tourer Elegance Navi, 1.6 diesel, 120cv, com a matrícula QP.
2. A 1ª Ré é dona de um concessionário da marca K, comercializando e prestando serviços de reparação e manutenção de veículos automóveis de tal marca.
3. A A. comprou o referido veículo à Ré, novo, para seu uso pessoal, no dia 1 de Dezembro de 2015, pelo preço de €26.750,00, pago a pronto.
(…)
6. Tal escolha da A. foi ainda determinada pelo facto de a conceder, como concedeu, uma garantia de 5 anos ao veículo em apreço, nos termos constantes do documento junto a fls. 15, cujo teor se aqui por integralmente reproduzido.
7. Dois meses após a compra do referido veículo, mais concretamente no dia 13/02/2016 (sábado), encontrava-se a A. a circular com o mesmo, quando no “painel de instrumentos” por cima do volante acendeu-se uma “luz indicadora de avaria no motor” e apareceu inscrita a menção “verificar sistema”.
(…)
14. A informou a A. que no final desse mesmo dia, 15/02/2016, a viatura em apreço já teria o problema para que alertavam os sinais supra identificados no ponto 7 resolvido, altura em que aquela o foi recolher, tendo verificado que os mesmos desapareceram do painel de instrumentos.
15. No dia 4/04/2016, quando a A. conduzia o veículo em apreço, este voltou a apresentar os “avisos” supra descritos no ponto 7.
16. Nesse dia, a A. voltou a conduzir o veículo em apreço à oficina para reparação de tal problema, contava o mesmo com quatro meses e tinha percorrido apenas 7775 quilómetros, distância que marcava no respetivo conta-quilómetros.
17. A disse à A. que no final desse mesmo dia, 04/04/2016, a viatura em apreço teria o problema para que alertavam os sinais supra identificados em 7 resolvidos, altura em que aquela o foi recolher, tendo verificado que os mesmos desapareceram do painel de instrumentos.
18. No dia 15/06/2016, quando a A. conduzia o veículo em apreço voltaram a surgir os “sinais” supra identificados em 7., motivo pelo qual, aquela conduziu-o novamente à oficina da para reparação, tendo a mesma dito que, desta feita, iria “reiniciar o sistema”, e o problema iria ficar resolvido.
19. No final do dia 15/06/2016, a A. foi recolher o seu veículo à oficina da Ré, tendo verificado que os sinais em causa haviam desaparecido do painel de instrumentos.
20. Nos dias 08/09/2017, 11/09/2016 e 20/09/2016, quando a A. conduzia o veículo em apreço, o mesmo voltou a apresentar os “avisos” supra identificados no ponto 7.
21. Nesses dias, a A. conduziu o veículo em apreço à oficina da para reparação de tal problema, e no final dos mesmos recolheu-o, verificando sempre que os sinais em causa haviam desaparecido do painel de instrumentos.
22. No dia 20/09/2016, o chefe da oficina da Ré, Sr. F., contatou telefonicamente a A. a informar que a marca K lhe iria enviar um “sensor melhorado” no fim-de-semana seguinte para resolver definitivamente o problema da viatura para que alertavam os avisos supra identificados no ponto 7.
23. No dia 12/10/2016, a A., conduziu o veículo em apreço à oficina da R. para colocar o “sensor melhorado”.
24. Nos dias 26/12/2017 e 12/01/2017, o veículo voltou a apresentar os “sinais” supra identificados no ponto 7., a A. voltou a conduzi-lo à oficina da ambos os dias, tendo esta feito uma “reprogramação/reaprendizagem” do sensor colocado em 12/10/2016.
25. No final de ambos os dias, a A. voltou a recolher a sua viatura, tendo verificado que os sinais em causa haviam desaparecido do painel de instrumentos.
26. No dia 22/04/2017, o veículo voltou a apresentar os sinais supra identificados no ponto 7 supra e no dia 28/04/2017 a A. voltou a conduzi-lo à oficina da Ré, onde permaneceu das 9h00 às 17:30, mas foi devolvido com os mesmos no painel de instrumentos.
27. Nesse dia (28/04/2017), a pediu a A. que voltasse a levar o veículo à sua oficina no dia 09/05/2017 para tirar fotografias ao motor e ao sensor, o que ela fez, bem como para reparar o problema que o veículo apresentava.
28. No dia 09/05/2017 ao instalar o veículo nas suas máquinas, mais concretamente, no elevador, para o levantar e tirar fotografias, a danificou a embaladeira, amolgando-a, por baixo da porta do condutor, mas entregou o veículo sem que o mesmo apresentasse os sinais supra identificados no ponto 7.
29. No dia 07/07/2017, o veículo voltou a apresentar os sinais supra identificados no ponto 7,a A. voltou a levá-lo a oficina, e recolheu-o no final do dia, tendo verificado que tais “sinais” haviam desparecido do painel de instrumentos.
30. No dia 09/08/2017, o veículo voltou a apresentar os mesmos “sinais”, a A. voltou a levá-lo a oficina da , o veículo foi observado por um engenheiro, o “sensor trocado” e, a A. recolheu-o no final do dia, altura em que verificou que tais sinais haviam desparecido do painel de instrumentos.
31. No dia 04/09/2017, a A. conduziu novamente o veículo à oficina da para que esta reparasse os danos que havia causado na embaladeira no dia 09/05/2017, o que foi feito.
32. Nos dias 13/11/2017, 11/12/2017, 19/12/2017, 26/12/2017, 19/01/2018, 25/01/2018, 01/02/2018, 05/02/2018, 09/02/2018, 13/04/2018, 12/06/2018 (contando nesta última data com 50.870km) o veículo apresentou os sinais supra identificados no ponto 7., sendo que, de todas essas vezes, a A. levou-o à oficina da para reparação e recolheu-o no final de cada um desses dias sem que os tais sinais aparecessem no painel de instrumentos.
33. Acontece que, após ter sido sujeito a mais de vinte intervenções na oficina da , sempre para resolver o problema para que alertavam os sinais supra identificados no ponto 7., sem que as mesmas tenham alcançado sucesso definitivo.
34.Talsucede porque o veículo da A.padece de uma incapacidade de regeneração do filtro de partículas diesel e dos orifícios das sondas de oxigénio do veículo, o que torna impossível a viabilidade de utilização do veículo.
35. O que a A., só veio a tomar conhecimento por carta enviada pela “K – Y Portugal, S.A.”, em finais de Maio de 2018 – cfr. doc. de fls. 23 e 24, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
36. Para tentar resolver o problema do veículo para que alertam os sinais supra identificados no ponto 7, a sujeitou o veículo às seguintes intervenções: reinício do sistema, troca de sensores, regeneração de sensores, colocação de sensores melhorados, reaprendizagem dos sensores, verificações técnicas com recolha de dado e fotografias.
37. Sem que, tenha alguma vez tido sucesso de forma definitiva, pois, aproximadamente, de dois em dois meses, o filtro de partículas diesel e os orifícios das sondas de oxigénio do veículo ficam colmatados com fuligem, gerando os sinais de alerta supra identificados em 7. no painel de instrumentos, e o veículo não pode ser, normalmente, utilizado, sob pena de avaria do sistema de emissões e do motor.
38. Apósrecebera carta acima referida em35.,emJunho de 2018,a A. solicitou uma reunião com os responsáveis da R. e com os representantes da K.
39. Tal reunião foi marcada para o dia 29 de Junho de 2018, sendo que a A. compareceu na mesma na esperança de que lhe fosse efetivamente proposta uma solução para o problema do seu veículo, seja através da substituição por um veículo idêntico ou através do reembolso do dinheiro que havia despendido com a compra.
40. Todavia, a única solução que lhe foi proposta, após vistoriar, mais uma vez, o veículo nas instalações da Ré, foi que esta colocasse um aditivo a cada 5 depósitos de gasóleo, a ser suportado por si (A.), com o objetivo de dilatar o espaço de tempo entre avarias.
(…)
47. A é, além do mais, concessionária, em Viana do Castelo, da Marca de automóveis K comercializando os mesmos, bem assim como explorando uma oficina de reparação automóvel.
48. Neste estabelecimento comercializa, como concessionária, veículos automóveis da marca K, que é representada em Portugal pela sociedade Y Portugal, SA.
49. A sociedade Y Portugal, SA dedica-se à importação para o território português de veículos novos da marca K, peças sobresselentes, acessórios e respectivos equipamentos e sua distribuição, através de uma rede comercial constituída por concessionários independentes a qual a integra.
50. É também por intermédio da Y Portugal, SA que a K é representada no território nacional para efeitos de garantia legal e/ou contratual de que beneficiam as viaturas novas comercializadas na referida rede de concessionários, como é o caso da viatura objecto dos presentes autos.
51. A ré, se autorizada pela K e pelo seu representante nacional efectua reparações “ao abrigo da garantia”, tal como qualquer outro concessionário da marca no território nacional.
52. A Ré, após análise do sistema e prestando um serviço de limpeza conhecido como “regeneração do filtro“ bem como por simpatia comercial a substituição dos sensores de medição do oxigénio.
53. Por uma questão de política comercial como usual, a , não se opõe ao exercício de direitos de reparação ou mesmo substituição por parte de adquirentes por via da invocação da utilização desses veículos a não ser que possua dados concretos, suficientemente sólidos e precisos que lhe permitam concluir nesse sentido.
54. Por essa razão a para excluir qualquer possibilidade de defeito do componente, consultou os serviços técnicos da K, que garantiram estar, no veículo da A., tudo em conformidade com as definições do produtor do veículo.
55. A substituiu a sonda de oxigénio e promoveu diversas sessões de regeneração activa em oficina com aumento mecânico da temperatura e limpeza térmica do filtro partículas e sua regeneração.
56. A A. recebeu todas as informações sobre as regras e normas de uso do veículo, conforme documento de garantia junto a fls. 15, cujo teor se por integralmente reproduzido.
(…)
59. A 1.ª , apenas por cortesia comercial, efetuou por diversas vezes a limpeza ao DPF, sem custos para a Autora.
60. A autora adquiriu a viatura com dois tipos de garantia, a legal (geral) e a contratual (H+2).
61. A marca K, tal como o seu importador em Portugal, aqui 2.ª Ré, dá 3 anos de garantia ou 100.000km, em todos os seus veículos, ao consumidor final.
62. A marca K, assim como o seu importador em Portugal, oferece uma garantia suplementar de 2 anos, perfazendo um total de 5 anos de garantia.
63. Em certo tipo de componentes, como a estrutura e o chassi, a garantia pode chegar até aos12 e10 anos, respetivamente, tudo cf.doc.de fls.55,denominado Contrato de Garantia Suplementar entregue a todos os clientes, juntamente com o Manual de Manutenção e Garantia.
(Sublinhado nosso)
4. Refira-se que, com a presente acção pretende a autora que o tribunal,
“a) Declarar-se resolvido o contrato de compra e venda do veículo identificado no artigo 1º desta peça, celebrado entre Autora e Ré;
b) Condenar-se a Ré a restituir à A, o valor que pagou pela compra do veículo identificado no artigo 1º desta peça, no montante de 26.750,00€ (vinte mil setecentos e cinquenta euros) acrescido de juros de mora calculados à taxa legal desde a citação até efetivo e integral pagamento;

Caso assim se não entenda;
c) Condenar-se a Ré a substituir a viatura automóvel da A. por outra viatura, nova, da mesma marca, modelo, versão e ano;

Caso ainda assim se não entenda:
d) Condenar-se a Ré a reparar definitivamente a avaria do veículo em apreço identificada no artigo 34º supra e que gera os sinais identificados no artigo 7º supra, sob pena de, ficar obrigada a pagar uma sanção pecuniária compulsória nunca inferior a 2.500,00€ por cada vez que a mesma surgir, após cada reparação.”
5. Deve-se, pois, verificar se da factualidade que vem dada como demonstrada decorre tudo aquilo que vem alegado pela autora no petitório, bem como a quem deve ser imputada a eventual responsabilidade pelos factos, quem deve ser objecto de condenação e qual a medida dessa condenação.
6. Desde logo, no que tange a GARANTIA, como resulta dos factos provados o veiculo da A. é de marca K, sendo esta o produtor do mesmo, e representada em Portugal pela Chamada Y que respondem e são responsáveis, seja quanto aos defeitos de fabrico seja quanto à garantia de que beneficiam os veículos da marcacfr. pontos 48 a 51 e 56, 60 a 63 dos factos provados.
7. A recorrente comercializa, de facto, mas como concessionária da marca K, através de contrato de concessão, veículos automóveis da marca K, que, por sua vez, é representada em Portugal pela sociedade Y Portugal, SA.
8. Porém, fica claro e resultou provado na decisão que a sociedade Y Portugal, SA dedica-se à importação para o território português de veículos novos da marca K, peças sobresselentes, acessórios e respectivos equipamentos e sua distribuição.
9. E, é por intermédio da Y Portugal, SA que a K é representada no território nacional para efeitos de garantia legal e/ou contratual de que beneficiam as viaturas novas comercializadas na referida rede de concessionários, como é o caso da viatura objecto dos presentes autos – cfr. docs juntos com a PI e que se dão como reproduzidos.
10. O Tribunal a quo deu como provado que – facto 51 dos factos provados – que a Recorrente, apenas se autorizada pela K e pelo seu representante nacional efectua reparações “ao abrigo da garantia”, tal como qualquer outro concessionário da marca no território nacional.
11. E, da matéria de facto julgada provada e dos documentos juntos aos autos, designadamente a carta enviada pela Chamada Y à autora – facto 35 - resulta que a Recorrente não foi autorizada, pela Chamada, a efectuar mais reparações do que as narradas na matéria de facto.
12. Facto que comunicou efectivamente à A. conforme indicações recebidas da marca e seu representante apos a reunião referida nos factos provados.
13. Isso mesmo refere o Tribunal na fundamentação da sentença ao referir os testemunhos de F. M. e P. O. – cfr. fundamentação que se dá aqui como reproduzida.

Em conclusão,
14. a viatura da A. encontrava-se coberta e ao abrigo da garantia contratual vigente à data dos factos de que beneficiam as viaturas novas comercializadas na referida rede de concessionários, como é o caso da viatura objecto dos presentes autos, e que é da responsabilidade da Y Portugal, SA por intermédio da qual a K é representada no território nacional.
15. A recorrente não tem pois qualquer obrigação de garantia do veiculo que, como se disse e resulta provado pode ser acionada em qualquer concessionário da rede K no território nacional – cfr. factos provados.
16. A recorrente apenas, se solicitada, no seu estabelecimento, por proprietário de veiculo que apresente defeito ou problema que seja coberto pela garantia, pode intervir no mesmo, seja reparando, seja substituindo peças ou componentes com autorização expressa da K dada através da Y a quem reporta e tal ocorre tenha ou não o veiculo sido adquirido no estabelecimento atento o âmbito nacional da garantia.
17. Assim resulta que o Tribunal a quo fez errado julgamento dos factos e das obrigações contratuais (designadamente de garantia) e aplicação do direito ao omitir e ao não considerar que, provando-se, como se julgou provado, que a viatura padecia de um defeito no DPC o mesmo, porque passível de eliminação – vg. que na contestação a Ré Y alegou que a causa era má utilização do veiculo que não resultou provada – com substituição completa do componente (que nunca foi realizada por recusa/ falta autorização da K/ Y) – que devia condenar, aliás como pedido pela A., no âmbito da garantia e obrigações a Ré Y e não a Recorrente, devendo assim ser aquela a eliminar o defeito ou, sem conceder, substituir a viatura automóvel da A. por outra viatura, nova, da mesma marca, modelo, versão e ano.
18. O tribunal fez errado julgamento ao atribuir esta responsabilidade à Ré e fê-lo sem qualquer suporte factual ou documental indo contra tudo o julgado provado e as obrigações contratuais das partes na presente acção e sua intervenção na mesma e na ocorrência dos factos e respectivas vicissitudes.
19. A Recorrente .. não tem qualquer responsabilidade e assim deve na procedência deste recurso a sentença Recorrida ser alterada no sentido apontado e julgar parcialmente procedente a ação, mas condenando a Ré Y e não a Recorrente na eliminação do defeito e/ou substituição da viatura nos moldes pedidos pela A. com as ressalvas quanto aos valores que abaixo se farão.

Sem conceder e caso assim não se decida,
20. A sentença estriba-se na Lei do consumidor para sustentar a decisão tomada e na existência de “coisa defeituosa”.
21. O ónus da prova de que existe um defeito da coisa vendida em regra cabe ao comprador (artº 342 do C.C.), sendo que provado o defeito da coisa, então e só então, estabelece o artº 799 do C.C., a presunção de culpa do vendedor se a coisa entregue padecer de defeito, cabendo por sua vez a este a prova de que o defeito não provém de culpa sua.
22. Como alegado, o vendedor ora recorrente afastou cabalmente esta presunção, ou seja resulta a saciedade dos factos provados que o defeito não provem de culpa sua, mas sim de culpa do fabricante/ produtor sendo, ele Recorrente, absolutamente alheio ao mesmo.
23. É sabido que ocorrendo estes defeitos, a lei assegura em termos gerais ao comprador o direito à reparação, à substituição, à redução do preço, à resolução e à indemnização (arts. 913º, nº 1 e 905º e segs. do C.C.).
24. Todavia, esta garantia pese embora esteja diretamente relacionada com o contrato de compra e venda, a verdade é que, como se disse e sublinha, a Recorrente não teve qualquer intervenção na concessão da garantia, resultando a sua vinculação exclusivamente ao contrato de compra e venda e não da garantia citada.
25. A garantia “se refere apenas ao vendedor, o art.º 921º não abrange os casos em que a garantia é prestada pelo fabricante, situação que é qualificada por alguns autores como promessa ao público, e por outros como contrato unilateral de garantia, mas que, em qualquer caso institui uma relação direta entre produtor e consumidor, à qual o vendedor permanece estranho e que não exclui nem limita as garantias por ele prestadas” (nosso sublinhado).
26. A garantia de bom funcionamento refere-se apenas à reparação ou substituição da coisa, independentemente de culpa do vendedor ou do produtor, mas não à anulação do contrato ou redução do preço, nem indemnização (ibidem).
27. No caso concreto, a recorrente/vendedora é alheia à garantia de funcionamento prestada pela marca “...”, na qualidade de produtor do veículo automóvel.
28. Por isso, apenas a 2.ª Ré poderá ser responsabilizada no âmbito da garantia de funcionamento prestada, devendo, em consequência a decisão recorrida ser alterada neste sentido.

Ainda sem conceder, e caso não se decida no sentido apontado,
29. o credor não tem, em princípio, o direito de resolver o negócio em consequência da mora do devedor, mas tão só o de exigir o cumprimento da obrigação e a indemnização pelos danos sofridos, já que o direito potestativo de resolução só é concedido no caso de impossibilidade culposa (artº 801º, nº 2).
30. As disposições especiais da compra e venda apontam também no sentido acabado de expor, já que neste contrato a resolução funciona subsidiariamente, isto é, só se pode pôr termo a ele quando não for viável recorrer à eliminação do defeito ou à substituição da prestação (artºs 913º e 914º do CC).
31. Conforme ensina Pedro Romano Martinez (obra e loc. cit, pág. 440) “enquanto o cumprimento da prestação acordada for possível, mediante a eliminação do defeito ou através da sua substituição, não pode estar aberto o caminho para a resolução do contrato (…).
32. No sistema jurídico português há uma espécie de sequência lógica: em primeiro lugar, o devedor está adstrito a eliminar os defeitos ou a substituir a prestação; frustrando-se estas pretensões, pode ser exigida a redução do preço ou a resolução do contrato.
33. A regra que impõe este seguimento está patente no art.º 1222, n.º 1, em relação ao contrato de empreitada, mas apesar de não haver norma expressa neste sentido no domínio da compra e venda, ela depreende-se dos princípios gerais (art.ºs 562º, 566º, n.º 1, 801º, n.º 2 e 808º, n.º 1), para além de ser defensável a aplicação analógica do n.º 1 do art.º 1222º, no que se refere à imposição desta sequência, às hipóteses de compra e venda.
34. Assim para se decidir como decidiu e obter a pretendida resolução impunha-se que a recorrente tivesse provado que as rés estavam em mora e que, por força desta, desaparecera o seu interesse na manutenção do contrato, ou então que a convertera incumprimento definitivo, nos termos que se assinalaram (artº 342º, n.º 1, do CC), facto que não foi alegado nem resultou dado como provado na sentença.

Sem conceder e caso não se entenda e decida pelo enquadramento realizado,
35. Na esteira da decisão recorrida é sabido que esta matéria é também objeto de regulação no âmbito das relações de consumo, de acordo com a legislação de defesa do consumidor (Lei n.º 24/96, de 31.07 e, em especial, D.L. n.º 67/03, de 08.04, com as alterações introduzidas pelo D.L. n.º 84/2008, de 21.05,) normas especiais relativamente às regras gerais do Código Civil previstas para o contrato de compra e venda, derrogando aquelas com as quais se revelem incompatíveis no seu campo de aplicação – o da relação de consumo.
36. Face à factualidade apurada, estamos, de facto, perante um contrato de compra e venda de bem de consumo (automóvel – art. 1º-B, al. b), do D.L. 67/2003), celebrado entre e um consumidor ou comprador não profissional (autor comprador – art. 1º-B, al. a), do D.L. n.º 67/2003) e um profissional (réu vendedor – art. 1º-B, al. c), do D.L. n.º 67/2003), ou seja entre uma pessoa singular que adquire a fornecedor profissional bens para uso não profissional (cfr. art. 2º, n.º 1, da Lei de Defesa do Consumidor).
37. Nesta medida, considerou o Tribunal a quo que era este regime específico que deveria ser aplicado em primeira linha e só subsidiariamente as regras previstas no Código Civil para o mesmo tipo contratual e supra mencionadas.
38. Sendo assim, e sempre sem conceder com o antes alegado, conforme decorre do disposto no art. 2º, n.º 1, do D.L. n.º 67/2003, de 08.04, o vendedor profissional está obrigado a entregar ao consumidor bens que sejam conformes com o contrato de compra e venda celebrado (cfr. ainda arts. 3º e 4º da LDC), presumindo-se (presunção iuris tantum) essa mesma falta de conformidade, em qualquer um dos casos previstos nas diversas alíneas do n.º 2 daquele art. 2º.
39. O vendedor profissional é responsável perante o consumidor por qualquer falta de conformidade que exista no momento da entrega do bem; sendo que, em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor tem direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato (art. 3º, n.º 1 e 4º, nº 1, do D.L. n.º 67/2003).

Porém,
40. o Tribunal a quo decidiu de forma errada e fez errada interpretação do factos e aplicação da Lei ao decidir pela condenação “mais gravosa”, ou seja a da resolução do contrato e correspondente devolução do montante pago.
41. De facto, não se mostram reunidos os requisitos legais necessários à resolução do contrato em presença, uma vez que os defeitos invocados pelo autor, visíveis à data da aquisição do veículo, não eram e não são de molde a pôr em causa as características e segurança do veículo.
42. Por tal razão na procedência do presente recurso deve, em substituição da decretada resolução do contrato, cumpre antes, e ao invés do decidido na sentença recorrida, proferir decisão a determinar a reparação dos defeitos ou, sem conceder, a redução adequada do preço da aquisição.
43. Pese os meios conferidos pelo D.L. n.º 67/2003, de 08.04, ao comprador consumidor, para reagir contra a venda de uma coisa defeituosa, não terem qualquer hierarquização ou precedência na sua escolha esta está limitada pela impossibilidade do meio ou pelo abuso de direito.
44. No caso em presença, consideramos que existe impossibilidade do meio utilizado e que a resolução do contrato se nos afigura que colide com o princípio da boa fé contratual e se traduz em abuso de direito (art. 334º, do C. Civil).
45. Pois, temos como demonstrado que a viatura esteve para reparar no Stand do réu, sem que se conseguisse corrigir as desconformidades que a mesma apresentava, porém sem culpa da Recorrente pois não substitui o elemento com defeito por não ter tido autorização da Ré Y, sendo que o defeito não é grave e não pôs em causa a circulação, em segurança, do referido veículo, tendo a A. feito uso do mesmo por milhares de quilómetros ao longo dos anos decorridos desde a compra - cfr. factos provados sentença.
46. Não estão, pois, reunidos todos os pressupostos para a imediata resolução do contrato de compra e venda de bem de consumo, pelo que deve a sentença ser alterada e proferida decisão que, no limite condene na reparação/ substituição do componente defeituoso ou e ainda sem conceder na redução adequada do preço.

Por último e sem conceder no supra alegado,
47. Caso não assim não se decida e se mantenha a decisão de resolução do contrato nos termos efectuados na sentença, sempre deve ser levada em consideração a desvalorização do veículo durante o período em que o mesmo esteve na posse do autor.

Concretizando,
48. A decisão decretada pela sentença recorrida condenando na restituição integral do preço pago pelo autor (€ 26.750,00) configura um enriquecimento injustificado, porquanto o autor ainda circulou com o veículo e deu-lhe destino que se desconhece durante cerca de 5 anos, pelo que, em face da desvalorização do mesmo, o seu valor comercial ascende a quantia não superior a € 10.500,00.

Ora,
49. manda o disposto no art. 433º, do C. Civil que a resolução do contrato, na falta de disposição especial, tem como efeito legal a aplicação do regime da nulidade e da anulabilidade, salvo o disposto nos artigos seguintes.
50. Por seu lado, o n.º 1 do art. 434º do C. Civil, prescreve que a resolução tem efeito retroativo, salvo se a retroatividade contrariar a vontade das partes ou a finalidade da resolução. E o n.º 2 do mesmo preceito legal, prescreve que nos contratos de execução continuada ou periódica, a resolução não abrange as prestações já efetuadas, exceto se entre estas e a causa de resolução existir um vínculo que legitime a resolução de todas elas.
51. O art. 289º, n.º 1, do C. Civil, estipula que tanto a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efeito retroativo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.
52. Em face destes preceitos, numa primeira análise, o autor teria de devolver o veículo comprado e o réu teria de devolver o preço contratual daquele, como decidido na sentença, porém não deverá ser assim no caso concreto dos autos.
53. Na verdade, muito ou pouco, o autor acabou por beneficiar do uso do referido veículo, circulando e utilizando o mesmo (pelo menos até hoje – cfr. pontos 44 e 58 dos factos provados), e essa utilidade decorreu e foi proporcionada pela compra e venda em causa, pelo que deveria devolver o veículo no estado da aquisição (art. 289º, n.º 1, do C. Civil), designadamente com o mesmo número de quilómetros e sem qualquer desgaste adicional, o que não se pode verificar, como é óbvio.
54. Desta forma, a devolução integral do preço contratual liquidado pelo autor e a correspondente devolução do veículo por este, com o uso e desgaste entretanto sofrido, envolveria, de facto, um enriquecimento sem causa (art. 473º, do C. Civil) por parte do autor e, outrossim, violador da boa fé contratual.
55. Como Calvão da Silva “no reembolso ao consumidor do preço por força da resolução potestativa do contrato ou da actio quanti minoris, a eventual utilização do produto pelo consumidor pode justificar uma redução do valor a restituir (cfr. o espirito do art. 434º, n.º 2, do Código Civil).”
56. Nesta medida, não acompanhamos a argumentação que, neste particular, é realizada na sentença recorrida, quando designadamente concluiu que o réu teria de devolver integralmente o preço pago pelo autor, por conta da aquisição do veículo em apreço.
57. Pelo que fica dito, e tal como o decido pela jurisprudência em casos análogos, em termos habituais, conquanto o comprador continuaria com o uso e fruição do respetivo veículo, o vendedor apenas estaria vinculado a restituir o valor do veículo reportado à data do trânsito em julgado da competente decisão judicial que determine tal restituição.
58. O autor não deixou de poder usar e fruir do veículo em causa – cfr. factos provados
59. Por conseguinte, e sempre sem conceder do antes alegado, que assiste fundamento e razão ao recorrente, neste segmento do seu recurso, pelo que importará , na procedência do mesmo, alterar a decisão recorrida e apenas condenar o réu vendedor, em consequência da resolução do contrato de compra e venda em apreço, a restituir o valor que o veículo detinha em 2015, a fixar (liquidar) nos termos do disposto no art. 609º, n.º 2, do C. P. Civil, ainda que sempre limitado ao valor inicialmente pago pelo autor de € 26.750,00.
60. A decisão recorrida fez errada interpretação e aplicação, alem do mais, dos arts. 913º, nº 1 e 905º e segs., 801.º, n.º 2, 913º, 914º, 342º, n.º 1, 433º, 434.º, 473º, 298 e 344º todos do C.C e arts. 609º do CPC e 3º e 4º do DL 67/2003.
Termina entendendo que deve ser dado provimento ao presente recurso, alterando-se a sentença recorrida conforme as conclusões.

A Chamada Y Portugal, S.A. veio, nos termos do disposto na al. a) do n.º 2 do artº. 634º do NCPC, manifestar a sua adesão aos fundamentos alegados pela Ré X, Automóveis, Lda., designadamente o referido nas suas Conclusões [transcrição]:

“47. Caso não assim não se decida e se mantenha a decisão de resolução do contrato nos termos efetuados na sentença, sempre deve ser levada em consideração a desvalorização do veículo durante o período em que o mesmo esteve na posse do autor.
48. A decisão decretada pela sentença recorrida condenando na restituição integral do preço pago pelo autor (€ 26.750,00) configura um enriquecimento injustificado, porquanto o autor ainda circulou com o veículo e deu-lhe destino que se desconhece durante cerca de 5 anos, pelo que, em face da desvalorização do mesmo, o seu valor comercial ascende a quantia não superior a € 10.500,00. (…)
53. Na verdade, muito ou pouco, o autor acabou por beneficiar do uso do referido veículo, circulando e utilizando o mesmo (pelo menos até hoje – cfr. pontos 44 e 58 dos factos provados), e essa utilidade decorreu e foi proporcionada pela compra e venda em causa, pelo que deveria devolver o veículo no estado da aquisição (art. 289º, n.º 1 do C. Civil), designadamente com o mesmo número de quilómetros e sem qualquer desgaste adicional, o que não se pode verificar, como é óbvio.
54. Desta forma, a devolução integral do preço contratual liquidado pelo autor e a correspondente devolução do veículo por este, com o uso e desgaste entretanto sofrido, envolveria, e facto, um enriquecimento sem causa (art. 473º do C. Civil) por parte do autor e, outrossim, violador da boa fé contratual.”
O que, nesta sede, se requer, devendo o douto Acórdão aproveitar à Ré Y PORTUGAL, nos termos em que o mesmo lhe seja favorável.
Termina requerendo que seja admitida a adesão da Chamada Y PORTUGAL, S.A. ao recurso apresentado pela Ré X, Automóveis, Lda., na parte em que o interesse seja comum e lhe seja favorável.

A Autora apresentou contra-alegações, pretendendo que seja negado provimento ao recurso, com as legais consequências.

O recurso foi admitido por despacho de 28/01/2021 (refª. 46401534).
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, não podendo o Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, tendo por base as disposições conjugadas dos artºs 608º, nº. 2 (aplicável “ex vi” do artº. 663º, n.º 2 in fine), 635º, nº. 4, 637º, nº. 2 e 639º, nºs 1 e 2 todos do Novo Código de Processo Civil (doravante designado NCPC), aprovado pela Lei nº. 41/2013 de 26/6.

Nos presentes autos, o objecto do recurso interposto pela Ré, delimitado pelo teor das suas conclusões, circunscreve-se à apreciação das seguintes questões:

I) – Da responsabilidade da Ré X, Automóveis, Lda. e da Chamada Y Portugal, S.A.;
II) – Do direito de resolução do contrato de compra e venda pela Autora;
III) – Da desvalorização do veículo durante o período em que o mesmo esteve na posse da Autora.

Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos [transcrição]:

1. A Autora é dona e legítima possuidora de um veículo automóvel, da marca K, modelo Civic Tourer Elegance Navi, 1.6 diesel, 120cv, com a matrícula QP.
2. A 1ª Ré é dona de um concessionário da marca K, comercializando e prestando serviços de reparação e manutenção de veículos automóveis de tal marca.
3. A A. comprou o referido veículo à 1ª Ré, novo, para seu uso pessoal, no dia 1 de Dezembro de 2015, pelo preço de €26.750,00, pago a pronto.
4. A A. optou comprar um veículo da marca K, pois já antes tinha tido uma viatura automóvel de tal marca, durante 23 anos, que nunca apresentou problemas mecânicos ou elétricos, e, por isso, confiava na mesma.
5. A. optou comprar no estado de novo, para evitar ter quaisquer aborrecimentos ou transtornos com defeitos, reparações e vistorias, circunstâncias que os veículos com mais antiguidade e quilometragem têm mais probabilidade de apresentar.
6. Tal escolha da A. foi ainda determinada pelo facto de a 1ª Ré conceder, como concedeu, uma garantia de 5 anos ao veículo em apreço, nos termos constantes do documento junto a fls. 15, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
7. Dois meses após a compra do referido veículo, mais concretamente no dia 13/02/2016 (sábado), encontrava-se a A. a circular com o mesmo, quando no “painel de instrumentos” por cima do volante acendeu-se uma “luz indicadora de avaria no motor” e apareceu inscrita a menção “verificar sistema”.
8. De imediato, a A. encostou o seu veículo e contactou telefonicamente a 1ª Ré para saber como proceder face a tais “avisos”, tendo a mesma informado que, na situação descrita, deveria desligá-lo, aguardar 15 minutos para o “motor arrefecer” e, voltar a ligá-lo.
9. A A. assim fez, aguardou 15 minutos, mas o referido sinal não desapareceu.
10. A A., decorrido tal período de 15 minutos, voltou a contactar telefonicamente a 1ª Ré para relatar que os “avisos” não tinham desaparecido, mas sem sucesso, pois já ninguém a atendeu.
11. No dia útil seguinte, mais concretamente no dia 15/02/2016, segunda-feira, a A. conduziu o veículo em causa até à oficina da 1ª Ré, para reparação de tal problema.
12. Neste dia o veículo tinha dois meses e percorrido 4480 quilómetros, distância que marcava no respetivo conta-quilómetros.
13. A A. conduziu o veículo até à oficina da 1ª Ré, não só por causa da mensagem que aparecia no painel de instrumentos “verificar sistema”, mas ainda porque o manual do veículo em causa, referia, como refere, que se a luz indicadora de avaria se acender ou ficar a piscar “o sistema de controlo das emissões e o motor poderão ser danificados”, bem como, referia e refere que “se a luz indicadora de avaria piscar novamente ao voltar a ligar o motor, conduza até ao concessionário mais próximo a uma velocidade de 50km/h ou inferior. Solicite uma inspeção ao veículo”.
14. A 1ª Ré informou a A. que no final desse mesmo dia, 15/02/2016, a viatura em apreço já teria o problema para que alertavam os sinais supra identificados no ponto 7 resolvido, altura em que aquela o foi recolher, tendo verificado que os mesmos desapareceram do painel de instrumentos.
15. No dia 4/04/2016, quando a A. conduzia o veículo em apreço, este voltou a apresentar os “avisos” supra descritos no ponto 7.
16. Nesse dia, a A. voltou a conduzir o veículo em apreço à oficina para reparação de tal problema, contava o mesmo com quatro meses e tinha percorrido apenas 7775 quilómetros, distância que marcava no respetivo conta-quilómetros.
17. A 1ª Ré disse à A. que no final desse mesmo dia, 04/04/2016, a viatura em apreço já teria o problema para que alertavam os sinais supra identificados em 7 resolvidos, altura em que aquela o foi recolher, tendo verificado que os mesmos desapareceram do painel de instrumentos.
18. No dia 15/06/2016, quando a A. conduzia o veículo em apreço voltaram a surgir os “sinais” supra identificados em 7., motivo pelo qual, aquela conduziu-o novamente à oficina da 1ª Ré para reparação, tendo a mesma dito que, desta feita, iria “reiniciar o sistema”, e o problema iria ficar resolvido.
19. No final do dia 15/06/2016, a A. foi recolher o seu veículo à oficina da 1ª Ré, tendo verificado que os sinais em causa haviam desaparecido do painel de instrumentos.
20. Nos dias 08/09/2017, 11/09/2016 e 20/09/2016, quando a A. conduzia o veículo em apreço, o mesmo voltou a apresentar os “avisos” supra identificados no ponto 7.
21. Nesses dias, a A. conduziu o veículo em apreço à oficina da 1ª Ré para reparação de tal problema, e no final dos mesmos recolheu-o, verificando sempre que os sinais em causa haviam desaparecido do painel de instrumentos.
22. No dia 20/09/2016, o chefe da oficina da 1ª Ré, Sr. F., contatou telefonicamente a A. a informar que a marca K lhe iria enviar um “sensor melhorado” no fim-de-semana seguinte para resolver definitivamente o problema da viatura para que alertavam os avisos supra identificados no ponto 7.
23. No dia 12/10/2016, a A., conduziu o veículo em apreço à oficina da 1ª R. para colocar o “sensor melhorado”.
24. Nos dias 26/12/2017 e 12/01/2017, o veículo voltou a apresentar os “sinais” supra identificados no ponto 7., a A. voltou a conduzi-lo à oficina da 1ª Ré ambos os dias, tendo esta feito uma “reprogramação/reaprendizagem” do sensor colocado em 12/10/2016.
25. No final de ambos os dias, a A. voltou a recolher a sua viatura, tendo verificado que os sinais em causa haviam desaparecido do painel de instrumentos.
26. No dia 22/04/2017, o veículo voltou a apresentar os sinais supra identificados no ponto 7 supra e no dia 28/04/2017 a A. voltou a conduzi-lo à oficina da 1ª Ré, onde permaneceu das 9h00 às 17:30, mas foi devolvido com os mesmos no painel de instrumentos.
27. Nesse dia (28/04/2017), a 1ª Ré pediu a A. que voltasse a levar o veículo à sua oficina no dia 09/05/2017 para tirar fotografias ao motor e ao sensor, o que ela fez, bem como para reparar o problema que o veículo apresentava.
28. No dia 09/05/2017 ao instalar o veículo nas suas máquinas, mais concretamente, no elevador, para o levantar e tirar fotografias, a 1ª Ré danificou a embaladeira, amolgando-a, por baixo da porta do condutor, mas entregou o veículo sem que o mesmo apresentasse os sinais supra identificados no ponto 7.
29. No dia 07/07/2017, o veículo voltou a apresentar os sinais supra identificados no ponto 7, a A. voltou a levá-lo a oficina, e recolheu-o no final do dia, tendo verificado que tais “sinais” haviam desparecido do painel de instrumentos.
30. No dia 09/08/2017, o veículo voltou a apresentar os mesmos “sinais”, a A. voltou a levá-lo a oficina da 1ª Ré, o veículo foi observado por um engenheiro, o “sensor trocado” e, a A. recolheu-o no final do dia, altura em que verificou que tais sinais haviam desparecido do painel de instrumentos.
31. No dia 04/09/2017, a A. conduziu novamente o veículo à oficina da 1ª Ré para que esta reparasse os danos que havia causado na embaladeira no dia 09/05/2017, o que foi feito.
32. Nos dias 13/11/2017, 11/12/2017, 19/12/2017, 26/12/2017, 19/01/2018, 25/01/2018, 01/02/2018, 05/02/2018, 09/02/2018, 13/04/2018, 12/06/2018 (contando nesta última data com 50.870km) o veículo apresentou os sinais supra identificados no ponto 7., sendo que, de todas essas vezes, a A. levou-o à oficina da 1ª Ré para reparação e recolheu-o no final de cada um desses dias sem que os tais sinais aparecessem no painel de instrumentos.
33. Acontece que, após ter sido sujeito a mais de vinte intervenções na oficina da 1ª Ré, sempre para resolver o problema para que alertavam os sinais supra identificados no ponto 7., sem que as mesmas tenham alcançado sucesso definitivo.
34. Tal sucede porque o veículo da A. padece de uma incapacidade de regeneração do filtro de partículas diesel e dos orifícios das sondas de oxigénio do veículo, o que torna impossível a viabilidade de utilização do veículo.
35. O que a A., só veio a tomar conhecimento por carta enviada pela “K – Y Portugal, S.A.”, em finais de Maio de 2018 – cfr. doc. de fls. 23 e 24, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
36. Para tentar resolver o problema do veículo para que alertam os sinais supra identificados no ponto 7, a 1ª Ré já sujeitou o veículo às seguintes intervenções: reinício do sistema, troca de sensores, regeneração de sensores, colocação de sensores melhorados, reaprendizagem dos sensores, verificações técnicas com recolha de dado e fotografias.
37. Sem que, tenha alguma vez tido sucesso de forma definitiva, pois, aproximadamente, de dois em dois meses, o filtro de partículas diesel e os orifícios das sondas de oxigénio do veículo ficam colmatados com fuligem, gerando os sinais de alerta supra identificados em 7. no painel de instrumentos, e o veículo não pode ser, normalmente, utilizado, sob pena de avaria do sistema de emissões e do motor.
38. Após receber a carta acima referida em 35., em Junho de 2018, a A. solicitou uma reunião com os responsáveis da 1ª R. e com os representantes da K.
39. Tal reunião foi marcada para o dia 29 de Junho de 2018, sendo que a A. compareceu na mesma na esperança de que lhe fosse efetivamente proposta uma solução para o problema do seu veículo, seja através da substituição por um veículo idêntico ou através do reembolso do dinheiro que havia despendido com a compra.
40. Todavia, a única solução que lhe foi proposta, após vistoriar, mais uma vez, o veículo nas instalações da 1ª Ré, foi que esta colocasse um aditivo a cada 5 depósitos de gasóleo, a ser suportado por si (A.), com o objetivo de dilatar o espaço de tempo entre avarias.
41. A A. foi ainda informada pela 1ª Ré, que teria de suportar as reparações que se afigurassem necessárias daí para a frente, pois a K já não as irias suportar mais.
42. A situação referida em 34. determina que logo que os sinais supra identificados no ponto 7. apareçam, e o veículo não possa mais ser utilizado, sob pena de o sistema de controlo das emissões e o motor poderem ficar danificados.
43. Por via de toda esta situação, a Autora sofreu, como continua a sofrer, muitos incómodos, transtornos, chatices, aborrecimentos e perdas no seu tempo de lazer, nomeadamente em deslocações para tentar resolver esta situação, recolha de elementos, documentos, testemunhas, envio de cartas, consultas na Deco, em advogado e reuniões com a Ré.
44. A Autora ficou limitada de utilizar o referido veículo na sua plenitude, pois sempre que surgem os “avisos” identificados no ponto 7. já não pode dirigi-lo para onde quer e tem de imediato de se deslocar ao concessionário/oficina, em velocidade não superior a 50km/h.
45. A Autora teve ainda que despender tempo nas mais de 20 deslocações que teve de efetuar com o veículo automóvel à oficina reparadora para averiguar a causa da deficiência que o mesmo apresentava e apresenta, bem como, ficou privada do seu veículo nesses dias, o que condicionou o seu horário e agenda.
46. Com a proposta que lhe foi apresentada para “resolver” o problema do seu veículo a expensas suas, para espaçar o surgimento da avaria, a Autora sentiu-se enganada, ludibriada, incomodada, desgostosa e passou muitas noites sem dormir, sofreu nervosismo, ansiedade.
47. A 1ª Ré é, além do mais, concessionária, em Viana do Castelo, da Marca de automóveis K comercializando os mesmos, bem assim como explorando uma oficina de reparação automóvel.
48. Neste estabelecimento comercializa, como concessionária, veículos automóveis da marca K, que é representada em Portugal pela sociedade Y Portugal, SA.
49. A sociedade Y Portugal, SA dedica-se à importação para o território português de veículos novos da marca K, peças sobresselentes, acessórios e respectivos equipamentos e sua distribuição, através de uma rede comercial constituída por concessionários independentes a qual a 1ª Ré integra.
50. É também por intermédio da Y Portugal, SA que a K é representada no território nacional para efeitos de garantia legal e/ou contratual de que beneficiam as viaturas novas comercializadas na referida rede de concessionários, como é o caso da viatura objecto dos presentes autos.
51. A 1ª ré, se autorizada pela K e pelo seu representante nacional efectua reparações “ao abrigo da garantia”, tal como qualquer outro concessionário da marca no território nacional.
52. A 1ª Ré, após análise do sistema e prestando um serviço de limpeza conhecido como “regeneração do filtro“ bem como por simpatia comercial a substituição dos sensores de medição do oxigénio.
53. Por uma questão de política comercial como usual, a 1ª Ré, não se opõe ao exercício de direitos de reparação ou mesmo substituição por parte de adquirentes por via da invocação da má utilização desses veículos a não ser que possua já dados concretos, suficientemente sólidos e precisos que lhe permitam concluir nesse sentido.
54. Por essa razão a 1ª Ré para excluir qualquer possibilidade de defeito do componente, consultou os serviços técnicos da K, que garantiram estar, no veículo da A., tudo em conformidade com as definições do produtor do veículo.
55. A 1ª Ré substituiu a sonda de oxigénio e promoveu diversas sessões de regeneração activa – em oficina com aumento mecânico da temperatura e limpeza térmica do filtro partículas e sua regeneração.
56. A A. recebeu todas as informações sobre as regras e normas de uso do veículo, conforme documento de garantia junto a fls. 15, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
57. O veículo não foi adquirido apenas para uso pessoal da autora uma vez que o mesmo é, mormente, conduzido pelo seu cônjuge que o utiliza durante o dia, designadamente para levar/ buscar a Autora ao seu local de trabalho.
58. A Autora deu ao veículo, o uso habitual e por isso, faz, de forma habitual, percursos no meio urbano.
59. A 1.ª Ré, apenas por cortesia comercial, efetuou por diversas vezes a limpeza ao DPF, sem custos para a Autora.
60. A autora adquiriu a viatura com dois tipos de garantia, a legal (geral) e a contratual (H+2).
61. A marca K, tal como o seu importador em Portugal, aqui 2.ª Ré, dá 3 anos de garantia ou 100.000km, em todos os seus veículos, ao consumidor final.
62. A marca K, assim como o seu importador em Portugal, oferece uma garantia suplementar de 2 anos, perfazendo um total de 5 anos de garantia.
63. Em certo tipo de componentes, como a estrutura e o chassi, a garantia pode chegar até aos 12 e 10 anos, respetivamente, tudo cf. doc. de fls. 55, denominado Contrato de Garantia Suplementar entregue a todos os clientes, juntamente com o Manual de Manutenção e Garantia.

Por outro lado, na sentença recorrida foram considerados não provados os seguintes factos [transcrição]:

a) Fruto do uso inadequado do veículo automóvel aqui em análise, face as características técnicas e parâmetros de utilização definidos pela marca para o mesmo, ou uso exclusivo do veículo a velocidades ou percursos que não permitem o catalisador existente e o DPF atingirem temperaturas entre os 600 e os 800º C, não é possível ao sistema efectuar a regeneração de partículas e o DFP e os orifícios dondas oxigénio ficam colmatados por fuligem, sem possibilidade de regeneração e leitura da densidade de oxigénio.
b) O que leva a que exista inviabilidade de utilização do veículo e a luz indicadora de anomalia bem como de DFP se iluminem indicando um hipotético problema no DFP.
c) Inexiste qualquer defeito e a luz avisadora apenas se acende por uso do veículo inadequado pela A., ou seja provêm de uma utilização inadequada do veículo automóvel aqui em análise, face as características técnicas e parâmetros de utilização definidos pela marca para o mesmo.
d) A A. fez habitualmente uso do veículo a baixas velocidades e quase exclusivamente em circuito urbano, razão pela qual inclusive, aquando da compra da viatura foi aconselhada a adquirir uma viatura a gasolina e não gasóleo dado que as primeiras não tem DFP e assim são compatíveis com uma utilização quase exclusivamente em percursos urbanos ou curtos como a A. pretendia.
e) Não cumprindo as normas constantes do manual de instruções e recomendações da marca e que lhe foram efectuadas pessoalmente pelo responsável de oficina da 1ª Ré.
f) A 1ª Ré circulou com o veículo em percursos e velocidades aconselháveis e verificou que o veículo atingia as supra referidas temperaturas efetuava a regeneração das partículas.
g) O companheiro da A. encontra-se reformado.
h) Dado que o funcionário da 1.ª Ré conhecia os hábitos e rotinas da aqui Autora aconselhou-a a adquirir uma viatura a gasolina e não a gasóleo dado que a primeira não possui DPF (Diesel Particulate Filter), sendo assim mais compatível com uma utilização em percursos urbanos e/ou curtos, como eram os da Autora.
i) A Autora, contrariamente ao que lhe havia sido sugerido, insistiu na aquisição de um veículo a gasóleo, argumentando que tinha intenção de usar a viatura para realizar viagens de automóvel de longo curso, dado que o marido estava agora reformado, tendo por isso o casal maior disponibilidade para viajar.
j) O ocorrido com o veículo da A. deve-se a uma caraterística intrínseca a este e a outras viaturas a gasóleo que cumprem a norma Euro6.
k) Tais ocorrências devem-se a uma incorreta utilização do veículo, por parte da aqui Autora, que foi aconselhada a adquirir uma viatura a gasolina, sem filtro de partículas, aquando da compra do veículo ou a fazer uma utilização da mesma, conforme as suas caraterísticas específicas.
l) A Autora foi alertada para tal facto, de todas as vezes que levou o veículo ao concessionário.
*
Apreciando e decidindo.

I) – Da responsabilidade da Ré X, Automóveis, Lda. e da Chamada Y Portugal, S.A.:
Alega a Ré/recorrente que a garantia contratual que, à data dos factos, cobria a viatura da A. é da responsabilidade da Chamada Y, por intermédio da qual a marca K é representada em Portugal, e não do concessionário que a comercializou, a ora recorrente, argumentando que é a K (produtor do veículo) e o seu representante em Portugal (a Chamada Y) que respondem e são responsáveis, quer quanto aos defeitos de fabrico, quer quanto à garantia de que beneficiam os veículos daquela marca.
Por esse motivo, defende a recorrente que devia a Chamada Y ser condenada, como peticionado pela A. [al. c) e d) do petitório], e não a recorrente, enquanto concessionário, a eliminar o defeito e/ou a substituir a viatura da A. por outra viatura, nova, da mesma marca, modelo, versão e ano.
Porém, salvo melhor opinião, entendemos que não lhe assiste razão.
Desde logo, por duas ordens de razões: a primeira, porque “in casu” o veículo da A. beneficia não só de uma garantia determinada ope legis, como ainda de uma garantia contratual; e a segunda, porque a recorrente nem sequer impugnou o facto provado 6 de ela própria ter concedido ao veículo da A. uma garantia contratual de 5 anos.
Ora, estando provado que a recorrente, como concessionária da marca K, vendeu à A. um bem (veículo automóvel) para uso pessoal desta, contra o pagamento do respectivo preço (€ 26.750,00), dúvidas não subsistem – como resulta da sentença sob escrutínio e foi aceite pela recorrente – que estamos perante um contrato de compra e venda de bem de consumo em que a A. tem a posição de consumidor, a Ré a qualidade de vendedora/concessionária da marca K e a Chamada é a representante do produtor (K) em território nacional.
Por outro lado, resultando também provado que o veículo da A. padece de uma incapacidade de regeneração do filtro de partículas diesel e dos orifícios das sondas de oxigénio, o que torna impossível a viabilidade de utilização do veículo, não subsistem dúvidas – conforme consta clara e detalhadamente explanado na sentença recorrida e foi aceite pela recorrente - que o mesmo padece de defeito ou falta de conformidade com o contrato.
Em observância de tal factualidade e ilações, a sentença sob censura ancorou juridicamente a decisão tomada no regime legal do contrato de compra e venda constante do Código Civil (artºs 913º e segs.), e ainda mais especificamente, na Lei nº. 24/96 de 31/7 (Lei de Defesa do Consumidor, doravante designada LDC), em articulação com o regime jurídico de venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas instituído pelo DL 67/2003 de 8/4, alterado e republicado pelo DL 84/2008 de 21/5. O que a recorrente também aceitou, embora defendendo uma interpretação diversa dos respectivos preceitos legais.
Acontece que, quer ao abrigo do regime legal do contrato de compra e venda constante do Código Civil, quer da Lei de Defesa do Consumidor em articulação com o regime jurídico de venda de bens de consumo, a vendedora, “in casu” a recorrente, confere garantia legal ao comprador sobre o bem objecto de compra e venda.
Efectivamente, os artºs 913º e 905º e segs. do Código Civil asseguram que, ocorrendo defeitos da coisa vendida, assiste ao comprador o direito de exigir ao vendedor a reparação da coisa, a sua substituição, a redução do preço, a resolução do contrato e a indemnização por danos sofridos.
E os artºs 2º, nº. 1 e 3º, nº. 1 do DL 67/2003 de 8/4 asseguram que: “O vendedor tem o dever de entregar ao consumidor bens que sejam conformes com o contrato de compra e venda” e que “o vendedor responde perante o consumidor por qualquer falta de conformidade que exista no momento em que o bem lhe é entregue”.
Neste contexto, tanto ao abrigo do disposto nos artºs 913º e 905º e segs. do Código Civil, como ao abrigo do disposto nos artºs 2º, nº. 1 e 3º, nº. 1 do regime jurídico de venda de bens de consumo, resulta claro que a vendedora, ora recorrente, é responsável perante o comprador, aqui A./recorrida, por qualquer falta de conformidade que exista no bem entregue, “in casu” o veículo automóvel em discussão.
Ademais, tal como já adiantado supra, também por garantia contratual é a Ré/recorrente responsável perante a A., pois do facto provado 6, não impugnado pela recorrente, resulta que esta concedeu à A., para além da garantia legal a que sempre teve direito, uma garantia contratual de 5 anos.
Ainda relacionado com esta matéria e na sequência do que é referido na sentença recorrida, analisando o regime jurídico aplicável ao contrato de compra e venda do veículo em causa e de acordo com a jurisprudência já consolidada, é aplicável ao presente contrato, em primeira linha, o regime jurídico da venda de bens de consumo previsto no DL 67/2003 de 8/4, alterado e republicado pelo DL 84/2008 de 21/5, em conjugação com a Lei n.º 24/96 de 31/7 (Lei de Defesa do Consumidor) e só subsidiariamente as regras previstas no Código Civil para o mesmo tipo contratual (cfr. acórdãos do STJ de 1/10/2015, relator Abrantes Geraldes, proc. n.º 279/10.0TBSTR e de 31/05/2016, relatora Maria Clara Sottomayor, proc. n.º 721/12.5TCFUN, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).
Cumpre salientar que o mencionado DL 67/2003 de 8/4 foi publicado para proceder à “transposição para o direito interno da Directiva nº. 1999/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio, relativa a certos aspectos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas, com vista a assegurar a protecção dos interesses dos consumidores” (artº. 1º, n.º 1 do citado diploma legal).
Consequentemente, não será aqui aplicado o regime da compra e venda de coisa defeituosa prevista nos artºs 913º e segs. do Código Civil, que se mantém em vigor para a compra e venda de coisa defeituosa em que não seja aplicada a protecção do consumidor, por o respectivo negócio não se poder considerar como celebrado por um consumidor ou comprador não profissional com um vendedor profissional, nos termos do artº. 2º, nº. 1 da referida Lei nº 24/96 e artº. 1º-A, nº. 1 do mencionado DL 67/2003.
A razão de ser da introdução desta regulamentação mais protectora do comprador/consumidor consiste em haver o legislador considerado o comprador - que seja consumidor – a parte mais fraca no respectivo negócio de compra e venda.
Ora, de acordo com o prescrito no artº. 4º da Lei nº. 24/96 de 31/7, os bens e serviços destinados ao consumo devem ser aptos a satisfazer os fins a que se destinam e a produzir os efeitos que se lhes atribuem, segundo as normas legalmente estabelecidas, ou, na falta delas, de modo adequado às legítimas expectativas do consumidor.

Segundo o regime estabelecido no DL 67/2003 de 8/4, que regula a venda de bens de consumo, cuja aplicação não foi posta em causa, o vendedor tem o dever de entregar ao comprador/consumidor bens que sejam conformes com o contrato de compra e venda celebrado (artº. 2º, nº. 1). Por sua vez, o nº. 2 do artº. 2º elenca determinados “factos-índice” demonstrativos de não conformidade, de tal forma que, se comprovados, presume-se a desconformidade com o contrato (presunção juris tantum), tais como:

a) a desconformidade com a descrição que deles é feita pelo vendedor ou não possuírem as qualidades do bem que o vendedor tenha apresentado ao consumidor como amostra ou modelo;
b) não serem adequados ao uso específico para o qual o consumidor os destine e do qual tenha informado o vendedor quando celebrou o contrato e que o mesmo tenha aceitado;
c) não serem adequados às utilizações habitualmente dadas aos bens do mesmo tipo;
d) não apresentarem as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar, atendendo à natureza do bem e, eventualmente, às declarações públicas sobre as suas características concretas feitas pelo vendedor, pelo produtor ou pelo seu representante, nomeadamente na publicidade ou na rotulagem.

Assim, a coisa é defeituosa quando esteja afectada por vícios materiais ou vícios físicos, ou seja, por defeitos intrínsecos da coisa, inerentes ao seu estado material, em desconformidade com o contratado, uma vez que não corresponde às características acordadas ou legitimamente esperadas pelo comprador/consumidor (cfr. acórdão da RL de 26/09/2019, proc. nº. 2042/17.8T8OER, disponível em www.dgsi.pt).
De acordo com o disposto no artº. 3º, nº. 1 do citado DL 67/2003, o vendedor profissional é responsável perante o consumidor por qualquer falta de conformidade que exista no momento da entrega do bem.
Por sua vez, o comprador/consumidor, em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, tem direito a que aquela conformidade seja reposta, sem encargos para si, por meio de reparação ou de substituição, assim como poderá optar pela redução adequada do preço ou mesmo resolver o contrato (artº. 4º, nº. 1 do DL 67/2003).
Por outro lado, nos termos do disposto no artº. 12º, n.º 1 da LDC (Lei nº. 24/96 de 31/7), o consumidor tem direito à indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento de bens ou prestações de serviços defeituosos.
Resulta dos factos provados acima transcritos que em 1/12/2015 a A. comprou à Ré um veículo automóvel da marca K, novo, para seu uso pessoal, pelo preço de € 26.750,00, pago a pronto, que teve de ser levado, pelo menos 24 vezes, à oficina da Ré para reparação do mesmo tipo de avaria, o que sucede porque aquele veículo padece de uma incapacidade de regeneração do filtro de partículas diesel e dos orifícios das sondas de oxigénio.
Resulta, ainda, da factualidade apurada que o problema se mantém e que todas as intervenções levadas a cabo no veículo não foram aptas a colmatar definitivamente este problema de funcionamento do filtro de partículas, tendo sido proposta à A. uma única solução que não resolve definitivamente o problema, mas apenas dilata o intervalo de tempo em que esta avaria surge, a expensas suas. Esta anomalia de que padece o veículo da A. determina que logo que os “sinais de alerta” da avaria apareçam no painel de instrumentos, o veículo não possa mais ser utilizado, sob pena de o sistema de controlo das emissões e o motor poderem ficar danificados, devendo de imediato deslocar-se à oficina do concessionário, em velocidade não superior a 50km/h, ficando assim a A. limitada na utilização do veículo na sua plenitude.
Dúvidas não restam, pois, que o veículo vendido pela Ré à A. não apresenta as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que a A. podia razoavelmente esperar.
Como bem se refere na sentença recorrida, a demonstração desse circunstancialismo fáctico, revelador do mau funcionamento do veículo (pois não é suposto que o filtro de partículas não cumpra a sua função), integra o facto-índice da transcrita al. d) do nº. 2 do artº. 2º do DL 67/2003, que faz presumir a não conformidade do veículo vendido pela Ré com o contrato celebrado entre esta e a Autora.
Refere, ainda, a recorrente, transcrevendo a sentença sob escrutínio, que o ónus da prova de que existe um defeito da coisa vendida em regra cabe ao comprador (artº. 342º do Código Civil), sendo que provado o defeito da coisa, então e só então, estabelece o artº. 799º do Código Civil a presunção de culpa do vendedor se a coisa entregue padecer de defeito, cabendo por sua vez a este a prova de que o defeito não provém de culpa sua.
Ora, estribando-se em tal transcrição, retira a recorrente a ilação de que não pode ser responsabilizada pelo defeito do veículo (cuja existência não contesta), pois afastou a presunção de culpa, ao demonstrar (com base em factualidade provada que não indica) que tal defeito não provém de culpa sua, mas sim de culpa do fabricante/produtor, sendo a recorrente/vendedora, no caso concreto, completamente alheia à garantia de funcionamento prestada pela marca K, na qualidade de produtor do veículo automóvel.
Por isso, a recorrente defende que apenas a Chamada Y poderá ser responsabilizada no âmbito da garantia de funcionamento prestada.
Acontece que a ilação extraída pela recorrente da referida transcrição da sentença recorrida incorre em vício de raciocínio.
Senão, vejamos.
Na verdade, compete ao comprador/consumidor alegar e provar o defeito de funcionamento da coisa, isto é, a sua desconformidade com o contrato, na terminologia do referido DL 67/2003 de 8/4, e que esse defeito existia à data da entrega (artº. 342º, nº. 1 do Código Civil).
Simplesmente, para garantir ao consumidor um mínimo de protecção, a lei estabeleceu presunções de não conformidade (artº. 2º, nº. 2 do DL 67/2003), as quais, abrangendo situações correntes “valem como regras legais de integração do negócio jurídico, destinadas a precisar o que é devido contratualmente na ausência ou insuficiência de cláusulas que adrede fixem as características e qualidades da coisa a entregar ao consumidor em execução do programa negocial adoptado pelas partes”, como observa Calvão da Silva, in Venda de Bens de Consumo, 4ª ed., pág. 83.
Ademais, considerando a dificuldade da prova da existência do defeito à data da entrega, quando ele se manifesta ao longo de um período de tempo relativamente longo (dentro de 2 ou 5 anos a contar da entrega), a lei favorece o consumidor, determinando que a falta de conformidade verificada dentro dos referidos prazos, faz presumir que o defeito já existia à data da entrega (artº. 3º, nº. 2 do DL 67/2003), competindo, então, ao vendedor ilidir a presunção de não conformidade, mediante a demonstração de que a falta de conformidade resulta de facto imputável à A., nomeadamente a incorrecta utilização do veículo, ou que, atentas as circunstâncias, o defeito não existia na data da entrega.
Portanto, e resumindo, cabe à A. (consumidor) alegar e provar o defeito existente à data da entrega da coisa (no caso, da entrega do veículo automóvel), embora essa prova se encontre muito facilitada pelas mencionadas presunções legais.
Ou seja, bastará ao consumidor alegar e provar os factos-índice da presunção de desconformidade com o contrato e que eles se manifestaram dentro do prazo da garantia legal imposta pelo citado DL 67/2003 para os bens móveis (2 anos), ficando, assim, dispensada a demonstração da anterioridade da falta de conformidade do bem no momento da entrega (artº. 3º, n.º 2 do citado DL 67/2003) – cfr. acórdão do STJ de 20/03/2014, relator Moreira Alves, proc. nº. 783/11.2TBMGR, disponível em www.dgsi.pt).
E uma vez provada a existência do defeito (facto provado 34), recai sobre a vendedora, ora recorrente, o ónus de provar o facto concreto, posterior à entrega, que gerou a falta de conformidade, designadamente a prova do mau uso ou do uso incorrecto do bem por parte do consumidor; ou seja, incumbirá à vendedora, para afastar a sua responsabilidade, alegar e provar que a causa do mau funcionamento é posterior à entrega da coisa vendida e imputável ao comprador (designadamente por falta de diligência ou violação de deveres de cuidado), a terceiro ou devida a caso fortuito – o que não sucedeu “in casu”.
De facto, apesar de a recorrente ter alegado o mau uso e o uso incorrecto do bem por parte da A., não provou a correspondente factualidade (cfr. factos não provados das alíneas a) a f) e k). Como bem se refere na sentença recorrida “não resulta da facticidade apurada que as avarias observadas ao nível do filtro de partículas provenham de uma utilização inadequada do veículo automóvel aqui em análise, face às características técnicas e parâmetros de utilização definidos pela marca para o mesmo, uma vez que a A. fez habitualmente uso do veículo a baixas velocidades e quase exclusivamente em circuito urbano e, é evidente, pois ressalta à saciedade dos factos provados, que a A. prestou a devida atenção à luz indicadora de avaria porquanto levou sempre o veículo à oficina da 1ª Ré logo que a mesma surgia no painel de instrumentos”.
A prova que é exigida à recorrente para afastar a presunção de culpa que sobre si recai enquanto vendedora e se exonerar da responsabilidade, é a de que a causa concreta do mau funcionamento do veículo é posterior à entrega e imputável ao consumidor (e não ao produtor), a terceiro ou devida a caso fortuito (cfr. Pedro Martinez, Cumprimento Defeituoso, pág. 473; Calvão da Silva, Compra e Venda de Coisas Defeituosas, pág. 62 a 65; acórdão da RC de 1/03/2016, proc. nº. 1684/08.7TBCBR, disponível em www.dgsi.pt).
Isto porque, a eventual prova efectuada pela recorrente de que a desconformidade é da responsabilidade do produtor, apenas tem a virtualidade de estender também a este a responsabilidade pelos danos sofridos pela Autora.
Aliás, é precisamente este o entendimento que se retira da citação que a recorrente faz de Luís Manuel Teles de Menezes de Leitão, in Direito das Obrigações, Vol. III, Contratos em Especial, pág. 130 e 131, ou seja: “dado que a garantia se refere apenas ao vendedor, o art.º 921º não abrange os casos em que a garantia é prestada pelo fabricante, situação que é qualificada por alguns autores como promessa ao público, e por outros como contrato unilateral de garantia, mas que, em qualquer caso institui uma relação direta entre produtor e consumidor, à qual o vendedor permanece estranho e que não exclui nem limita as garantias por ele prestadas”.
E não outro entendimento diverso, que sustente que a recorrente, provada a responsabilidade do fabricante/produtor, se possa eximir da responsabilidade pelo defeito do veículo em apreço, como esta pretende fazer crer.
Acresce referir que o Código Civil não contém um regime próprio sobre a responsabilidade directa do produtor, a qual foi objecto de legislação específica, através do DL 383/89 de 6/11, que transpôs para o ordem jurídica interna a Directiva nº. 85/374/CE do Conselho, de 25 de Julho de 1985, em matéria de responsabilidade decorrente de produtos defeituosos.
No entanto, porque este diploma não afasta a responsabilidade decorrente de outras disposições legais (artº. 13º), significa que não revogou o direito comum, antes o complementa, assegurando uma maior eficácia na protecção do consumidor, mas tal só acontece quando exista uma relação contratual directa entre o consumidor e o produtor.
Sobre a natureza jurídica da responsabilidade do produtor com pessoas que com ele não contratam directamente, debatem-se na doutrina duas teses: por um lado, a tese contratualista, através das figuras do contrato com protecção acessória de terceiros, contrato de garantia, liquidação do dano de terceiro, da acção directa; por outro, a tese extracontratual, segundo a qual a responsabilidade civil do produtor é uma responsabilidade aquiliana objectiva.
Foi esta a solução que veio a ser consagrada no DL 383/89 de 6/11, cujo artº. 1º prescreve que o produtor é responsável, independente de culpa, pelos danos causados pelos defeitos dos produtos que põe em circulação (cfr. Calvão da Silva, Da Responsabilidade Civil do Produtor, pág. 352 e Compra e Venda de Coisas Defeituosas, pág. 177 e segs.; Mota Pinto, C.J. Ano X - Tomo III, pág. 19 e segs.; Pedro Partinez, Direito das Obrigações, pág.148; Santos Júnior, Da Responsabilidade Civil de Terceiro por Lesão do Direito de Crédito, pág. 172).
Trata-se, em bom rigor, de uma objectividade relativa e não absoluta, face às causas de exclusão e de redução da responsabilidade (artºs 5º e 7º), que visam alcançar uma justa repartição dos riscos do lesado e produtor, cabendo a este ilidir qualquer das presunções legais estabelecidas. Porém, a lei apenas cobre os danos em coisas diversas do produto defeituoso (art. 8º).
A Lei nº. 24/96 de 31/7 (LDC), alterada pelo DL 67/2003 de 8/4, ao conferir ao consumidor o direito à reparação da coisa ou à sua substituição está a pressupor uma relação contratual directa com o fornecedor remetendo a responsabilidade objectiva do produtor para os “termos da lei” (artº. 12º, nº. 2), ou seja, para o DL 383/89 de 6/11.
O DL 67/2003 de 8/4 veio consagrar, pela primeira vez, medidas jurídicas relativas às garantias voluntariamente assumidas pelo vendedor, fabricante ou por qualquer intermediário (artº. 9º), bem como a responsabilidade directa do produtor perante o consumidor, pela reparação ou substituição da coisa defeituosa (artº. 6º).
Com efeito, em relação ao produtor do bem, prevê o artº. 6º, nº. 1 daquele diploma legal que “Sem prejuízo dos direitos que lhe assistem perante o vendedor, o consumidor que tenha adquirido coisa defeituosa pode optar por exigir do produtor a sua reparação ou substituição, salvo se tal se manifestar impossível ou desproporcionado tendo em conta o valor que o bem teria se não existisse falta de conformidade, a importância desta e a possibilidade de a solução alternativa ser concretizada sem grave inconveniente para o consumidor”, pretendendo-se com este preceito e com a extensão das garantias previstas no artº. 9º – como se afirma no preâmbulo – “estender ao domínio da qualidade a responsabilidade do produtor pelos defeitos de segurança, já hoje prevista no DL nº. 383/89 de 6 de Novembro”.
O mencionado artº. 6º, nº. 1 do DL 67/2003 faculta ao consumidor, sem prejuízo dos direitos que lhe assistem perante o vendedor, a chamada “acção directa” contra o produtor ou seu representante, a fim de reclamar a reparação ou substituição da coisa defeituosa, mas já não a anulação ou resolução do contrato.
Conforme se refere no acórdão da RC de 1/03/2016 supra citado, o regime previsto no artº. 6º do DL 67/2003 de 8/4 «através da “acção directa” (…) pretende estender a responsabilidade contratual do produtor perante terceiros, configurando, segundo determinado entendimento, na esteira do direito francês, uma cessão da garantia por vícios emergentes do contrato firmado entre o produtor e o primeiro adquirente, aos adquirentes sucessivos da coisa defeituosa.
Daí que, no quadro legislativo vigente, a responsabilidade civil do produtor perante terceiros assuma uma dupla natureza, conforme os respectivos pressupostos: por um lado, a natureza de responsabilidade delitual objectiva, por outro, a natureza de responsabilidade contratual (acção directa).»
Quer isto dizer que o produtor está obrigado à reparação ou substituição do bem, independentemente da causa da avaria ou da culpa, mas não está obrigado à resolução ou anulação do contrato, pelo que se não vê, em qualquer caso, fundamento legal para o peticionado nas alíneas a) e b) – resolução do contrato de compra e venda celebrado entre a A. e a Ré e restituição à A. do valor que esta pagou pela compra do veículo - relativamente à Chamada Y (cfr. acórdão da RL de 26/09/2019 acima referido).
Aliás, pedindo a A., a título principal, a resolução do contrato de compra e venda e a condenação da Ré a restituir-lhe o valor que pagou pela compra da viatura em causa [alíneas a) e b) do petitório] e, a título subsidiário, a substituição do veículo automóvel da A. por outra viatura, nova, da mesma marca, modelo, versão e ano, ou a condenação da Ré a reparar definitivamente a avaria do referido veículo [alíneas c) e d)] e sendo julgado procedente o pedido principal (como ocorreu na sentença recorrida), fica prejudicado o pedido subsidiário, que só pode ser apreciado no caso de improceder o principal.
Neste contexto, por falta de fundamento legal e factual, não pode ser revogada a sentença recorrida e substituída por uma outra que condene apenas a Chamada Y na eliminação do defeito e/ou substituição da viatura em apreço, que constituem pedidos subsidiários formulados pela A. no contexto acima referido, improcedendo, nesta parte, o recurso interposto pela Ré.
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II) – Do direito de resolução do contrato de compra e venda pela Autora:

Defende a recorrente que o credor não tem, em princípio, o direito de resolver o negócio em consequência da mora do devedor, mas tão só o de exigir o cumprimento da obrigação e a indemnização pelos danos sofridos, já que o direito potestativo de resolução só é concedido no caso de impossibilidade culposa, como sustenta o artº. 801º, nº. 2 do Código Civil.
Sucede que não é isso que prescreve tal preceito legal, mas o contrário como segue: “Tendo a obrigação por fonte um contrato bilateral, o credor, independentemente do direito à indemnização, pode resolver o contrato e, se já tiver realizado a sua prestação, exigir a restituição dela por inteiro”.
Deste modo, é destituída de qualquer fundamento a argumentação da recorrente no sentido de que a A. não tem direito à resolução com base no preceituado no artº. 801º, nº. 2 do Código Civil.
Entende, ainda, a recorrente que só se pode pôr termo ao contrato quando não for viável recorrer à eliminação do defeito ou à substituição da prestação, o que sustenta nos artºs 913º e 914º do Código Civil, concluindo que para se decidir como decidiu o Tribunal “a quo” e obter a pretendida resolução, impunha-se que a A./recorrida tivesse provado que a Ré e a Chamada estavam em mora e que, por força desta, desaparecera o seu interesse na manutenção do contrato, ou então que a convertera em incumprimento definitivo, nos termos que se assinalaram (artº. 342º, n.º 1 do Código Civil), facto que não foi alegado nem resultou provado na sentença sob censura.
Acontece que a recorrente sustenta tal tese no regime geral da compra e venda, quando é certo que, no caso “sub judice”, por estar em causa um contrato de compra e venda de bem destinado ao consumo, se aplica a legislação de defesa do consumidor que dispõe de normas especiais relativamente às regras gerais do Código Civil previstas para o contrato de compra e venda, que derrogam aquelas normas gerais com as quais se revelem incompatíveis no seu campo de aplicação – o da relação de consumo - o que, aliás, a própria recorrente reconhece nas suas alegações (cfr. acórdão da RG de 1/02/2018, proc. nº. 783/15.3T8FAF, disponível em www.dgsi.pt).
Significa isto que as normas especiais da Lei nº. 24/96 de 31/7 (LDC) e do DL 67/2003 de 8/4 (regime jurídico da venda de bens de consumo), ao preverem que os meios que o comprador que for consumidor tem ao seu dispor para reagir contra a venda de um objecto defeituoso, não têm qualquer hierarquização ou precedência na sua escolha e que tal escolha apenas está limitada pela impossibilidade do meio ou pelo abuso de direito, derrogam o regime geral da compra e venda.
Perante um objecto defeituoso sobre que incide uma compra e venda integrada numa relação de consumo, o consumidor tem um leque de meios de reacção previstos no artº. 4º, nº 1 do Decreto-Lei 67/2003 de 8/4.
Este preceito estipula que em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor tem direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato.
E o seu nº 5 prescreve que o consumidor pode exercer qualquer dos direitos referidos nos números anteriores, salvo se tal se manifestar impossível ou constituir abuso de direito, nos termos gerais.
Deste modo, de acordo com este preceito legal, a escolha do meio legal para ser usado pelo consumidor em caso de desconformidade do objecto com o contrato, deixou de estar hierarquizado como resultava da Directiva nº. 1999/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio e que o DL 67/2003 transpôs para o nosso direito interno.
Sendo que tal divergência em relação ao teor da Directiva é legal por o conteúdo desta constituir o mínimo de protecção legal aos consumidores, imposta pela mesma, mas os Estados Membros ficam com a liberdade de estabelecer regime mais favorável aos consumidores, o que é o caso do regime da não hierarquização – artº. 8º, nº. 2 da Directiva.

Esta foi a opção do legislador português, ao transpor a referida Directiva, de estabelecer um regime mais favorável aos consumidores, precisamente por serem a parte mais fragilizada da relação contratual, como aliás é reconhecido pela recorrente que, a propósito desta regulamentação de protecção do consumidor, refere nas suas alegações o seguinte: “a razão de ser desta regulamentação, claramente mais protetora do consumidor consiste em haver o legislador considerado o comprador – que seja consumidor – a parte mais fraca no respetivo negócio de compra e venda”.

Sobre esta matéria refere-se na sentença recorrida o seguinte:
«Ao contrário do regime civilístico que regula a venda de coisa defeituosa, o Dec. Lei nº 67/2003 de 8/4, no seu artº 5, não impõe qualquer hierarquização dos diversos direitos que assistem ao consumidor no precedente art. 4º, de onde resulta que, no caso de negócio de bem de consumo, não se impõe ao comprador que, em primeiro lugar, peticione a reparação/substituição e, só na ausência dessa reparação ou substituição do bem, possa vir peticionar a resolução/anulação do contrato. [Neste sentido veja-se Ac. STJ de 5/5/2015, proc. nº 1725/12; Ac. do TRC de 01/03/2016, relator Jorge Arcanjo, proc. nº 1684/08.7TBCBR.C1, disponíveis em www.dgsi.pt; em sentido contrário, vide Calvão da Silva, Venda de Bens de Consumo, 3ª ed., págs. 82 e 86].
No entanto, o exercício destes direitos, ainda que não hierarquizados, deve sempre obedecer aos ditames da boa fé, não podendo constituir um exercício abusivo do direito, conforme dispõe o art. 4º, nº 5 do D.L. 67/2003, ou seja não é admissível que o comprador, por um qualquer defeito da coisa, de pequena importância face ao bem, peticione a resolução do contrato.»
Partilhamos desta posição defendida na decisão recorrida de que, em prol do direito de protecção do consumidor, conferido pelo DL 67/2003 de 8/04, este possa optar imediatamente por qualquer um dos direitos que lhe são conferidos pelo disposto no n.º 1 do artº. 4º do citado diploma legal, designadamente pela resolução do contrato, salvo se tal se revelar impossível ou constituir abuso de direito, nos termos gerais (cfr. artº. 4º, n.º 5 do DL 67/2003 e artº. 334º do Código Civil).
No fundo, podemos dizer, como já atrás se referiu, que os meios conferidos pelo DL 67/2003 de 8/04 ao comprador/consumidor, para reagir contra a venda de uma coisa defeituosa, não têm qualquer hierarquização ou precedência na sua escolha; esta apenas está limitada pela impossibilidade do meio ou pelo abuso de direito (cfr. acórdãos do STJ de 5/05/2015, relator João Camilo, proc. nº. 1725/12.3TBBRG, da RC de 1/03/2016, da RG de 1/02/2018 e da RL de 26/09/2019 acima referidos, todos disponíveis em www.dgsi.pt).

Todavia, ainda que assim se não entenda, a verdade é que, analisado o presente caso, e face à factualidade dada como provada, evidente se torna que mesmo que se defenda uma hierarquização dos meios legais de reacção ao dispor da A. - direito à reparação/substituição do componente defeituoso ou redução do preço antes do direito à resolução, como defende a recorrente - este caminho também já foi percorrido.
Para tanto, basta ver os factos dados como provados nos pontos 3, 7, 11, 13 a 34 e 38 a 42 - isto porque de tal factualidade apurada resulta a realidade de que a Ré/recorrente não consegue reparar com sucesso o veículo em apreço.
Com efeito, foram, pelo menos, 24 as vezes que a A. levou o veículo à oficina da recorrente para que esta o reparasse, sendo que a mesma o sujeitou a todo o tipo de intervenções, mas sempre sem sucesso definitivo. O veículo continuou sempre a apresentar o mesmo defeito.
Sendo que foi a própria recorrente quem pôs termo às reparações do veículo a expensas dela, propondo como única “solução” para o veículo em causa que a A. colocasse um aditivo a cada 5 depósitos de combustível, a ser suportado por si (Autora), com vista a dilatar o espaço de tempo entre avarias.
Deste modo, a A. não só deu, pelo menos, 24 oportunidades à recorrente para resolver definitivamente o defeito do seu veículo, correspondente a todas as vezes que o conduziu à oficina da recorrente para reparação, como ainda foi esta quem não quis conceder mais oportunidades à Autora.
Neste contexto, vir agora a recorrente defender a reparação dos defeitos do veículo, ou a redução adequada do preço da aquisição em substituição da decretada resolução do contrato, consubstancia o abuso de direito previsto no artº. 334º do Código Civil, na modalidade de venire contra factum proprium.
Nesta conformidade, naufragam os argumentos aduzidos pela recorrente para substituir o direito à resolução do contrato da A./recorrida, pelo alegado direito à reparação/substituição do componente defeituoso do veículo, escorados no regime geral da compra e venda constante do Código Civil.
Alega, também, a recorrente que não se mostram reunidos os requisitos legais necessários à imediata resolução do contrato em discussão, uma vez que os defeitos invocados pela A., visíveis à data da aquisição do veículo, não eram e não são de molde a pôr em causa as características e segurança do veículo, considerando, ainda, que existe “in casu” impossibilidade do meio utilizado e que a resolução do contrato colide com o princípio da boa fé contratual e se traduz em abuso de direito, ao não se lançar mão de outros meios legais, menos gravosos.
Todavia, com todo o respeito, entendemos que não assiste razão à recorrente, em face da factualidade dada como provada nos pontos 33 a 42 e 44, a qual demonstra de forma clara e inequívoca que o veículo, ao contrário do alegado pela recorrente, padecia, e padece, de um defeito grave, na medida em que o mesmo inviabiliza a sua utilização e põe em causa a sua segurança, podendo a qualquer momento ocorrer a destruição integral do motor (provocando eventualmente o seu descontrolo), como resulta nas conclusões do relatório pericial junto aos autos.
Por outro lado, o abuso de direito exige o exercício de qualquer direito por forma anormal quanto à intensidade ou à sua execução, de modo a poder comprometer o gozo dos direitos de terceiros e a criar uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito por parte do seu titular e as consequências que os outros têm que suportar. Só haverá abuso de direito se o seu titular exceder ostensivamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Ora, a A. não só não comprometeu o direito de terceiros, pois deu todas as oportunidades à recorrente para reparar de forma definitiva o seu veículo, como ainda recorreu à resolução do contrato, porque a recorrente para além de não conseguir efectivamente reparar o veículo, recusou-se, a partir da reunião realizada em 29/06/2018, a fazê-lo a expensas suas.
Assim, perante os argumentos expendidos pela recorrente supra enunciados e concluindo, consideramos que não existe qualquer impossibilidade do meio utilizado nem a pretendida resolução do contrato de compra e venda celebrado entre a A. e a Ré se nos afigura que colida com o princípio da boa fé contratual ou se traduza em abuso de direito, nos termos do artº. 334º do Código Civil.
Na realidade, temos como demonstrado que a A. teve de levar a viatura, pelo menos 24 vezes, à oficina da Ré/recorrente para que esta reparasse o mesmo tipo de avaria, sem que conseguisse resolver definitivamente o defeito que a mesma apresentava, apesar de ter sido sujeita a todo o tipo de intervenções, continuando a viatura a apresentar sempre o mesmo defeito, com a agravante de que a única “solução” técnica proposta pelas demandadas para, tão só, dilatar o espaço de tempo entre avarias, e assim reduzir as deslocações à oficina, foi a colocação de um aditivo a cada 5 depósitos de gasóleo, a ser suportado pela Autora.
Com efeito, o veículo da A. continua a padecer do mesmo defeito, que é grave, na medida em que inviabiliza a utilização do referido veículo e pode determinar, a qualquer momento, a destruição integral do motor, colocando definitivamente em causa a circulação, em segurança, do veículo, o que, a nosso ver, torna inexigível a manutenção do contrato, atenta a natureza do mesmo e de acordo com os ditames de boa fé, tanto mais que as inúmeras tentativas de reparação da avaria pela Ré excederam em muito o período temporal legal previsto no artº. 4º, nº. 2 do DL 67/2003 de 8/4, situação esta que se arrastou por mais de 2 anos.
Estão, pois, reunidos todos os pressupostos para a imediata resolução do contrato de compra e venda de bem de consumo celebrado entre a A. e a Ré/recorrente, sendo certo que igualmente não resulta dos autos que a Ré vendedora tenha manifestado vontade em proceder à substituição do veículo em causa por outro de características similares ou, mesmo até, que tenha aceitado reduzir o preço que a A. pagou pelo referido veículo.
Improcede, também nesta parte, o recurso interposto pela Ré.
*
III) – Da desvalorização do veículo durante o período em que o mesmo esteve na posse da Autora:

Neste âmbito, pretende a recorrente que, caso se decida manter a decisão de resolução do contrato nos termos plasmados na sentença sob escrutínio, seja levada em consideração a desvalorização do veículo durante o período em que o mesmo esteve na posse da A., invocando o instituto do enriquecimento sem causa.
Para tanto, argumenta que a decisão recorrida, condenando na restituição integral do preço pago pela A. (€ 26.750,00), configura um enriquecimento injustificado, porquanto a A. ainda circulou com o veículo e deu-lhe destino que se desconhece durante cerca de 5 anos, pelo que, em face da desvalorização do mesmo, o seu valor comercial ascende a quantia não superior a € 10.500,00.
Ora, a resolução do contrato, na falta de disposição especial, tem como efeito legal, nos termos do artº. 433º do Código Civil, a aplicação do regime da nulidade e da anulabilidade, salvo o disposto nos artigos seguintes.
Por seu lado, o nº. 1 do artº. 434º do mesmo Código prescreve que a resolução tem efeito retroactivo, salvo se a retroactividade contrariar a vontade das partes ou a finalidade da resolução. E o seu nº. 2 prescreve que nos contratos de execução continuada ou periódica, a resolução não abrange as prestações já efectuadas, excepto se entre estas e a causa de resolução existir um vínculo que legitime a resolução de todas elas.
O artº. 289º, nº. 1 do mesmo diploma legal estipula que tanto a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.
Em face destes preceitos, numa primeira análise, a A. teria de devolver o veículo comprado e a Ré/recorrente teria de devolver o preço contratual daquele.
Porém, muito ou pouco, a A. acabou por beneficiar do uso do veículo, circulando e utilizando o mesmo – tendo-se apurado que em 12/06/2018 (data da última deslocação à oficina da Ré para reparação da avaria, que consta provada nos autos) já havia percorrido 50.870 Km - e essa utilidade decorreu e foi proporcionada pela compra e venda em causa, pelo que deveria devolver o veículo no estado da aquisição, ou seja, novo, com zero quilómetros percorridos e sem qualquer desgaste adicional, o que não se pode verificar, como é óbvio.
Desta forma a devolução do preço contratual pedida pela A. e a correspondente devolução do veículo por esta, com o uso e desgaste entretanto sofridos, envolveria, de facto, um enriquecimento sem causa por parte do autor (artº. 473º do Código Civil), violador da boa fé contratual (no mesmo sentido, cfr. acórdãos do STJ de 5/05/2015 acima referido e de 30/09/2010, relatora Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, proc. n.º 822/06.9TBVCT, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).
No acórdão do STJ de 30/09/2010 supra citado, aquele tribunal superior já se pronunciou sobre uma questão idêntica, tendo concluído que: “não sendo possível ao autor restituir o automóvel tal como lhe foi entregue ( nº 1 do art. 289º do Código Civil ), a recorrente só pode ser condenada a restituir o valor que o veículo tiver à data do trânsito em julgado desta decisão, cuja determinação igualmente se remete para liquidação, conforme o disposto no nº 2 do art. 661º do Código de Processo Civil, até ao limite dos € 12.500,00 pedidos, acrescidos dos juros, à taxa legal, que se vencerem até efectivo e integral pagamento”.
Também o Prof. Calvão da Silva defende idêntica posição (in Venda de Bens de Consumo, 4ª ed. pág. 109) onde refere: “no reembolso ao consumidor do preço por força da resolução potestativa do contrato ou da actio quanti minoris, a eventual utilização do produto pelo consumidor pode justificar uma redução do valor a restituir (cfr. o espírito do art. 434º, nº 2 do Código Civil )”.
Nesta medida, não acompanhamos a argumentação que, neste particular, é expendida na sentença recorrida, quando designadamente concluiu que a Ré teria de ser condenada a restituir à Autora o valor pago pela compra do veículo, no montante de € 26.750,00.
Como vimos, resultou apurado nos autos que o veículo, apesar dos defeitos referidos no ponto 34 dos factos provados, em 12/06/2018 (cerca de 2 anos e meio depois da compra) já tinha percorrido 50.870 Km, com o uso e desgaste inerentes à sua utilização.
Por outro lado, apesar de se ter provado que os referidos defeitos inviabilizam a normal utilização do veículo, não ficou demonstrado nos autos que a A., desde então, tivesse mantido o veículo imobilizado em qualquer lugar, sem o poder utilizar.
Pelo que fica dito, e tal como foi decidido pela jurisprudência em casos análogos (cfr. acórdãos do STJ de 5/05/2015 e de 30/09/2010 e acórdão da RG de 1/02/2018 acima referidos), em termos habituais, conquanto o comprador continuaria com o uso e fruição do respectivo veículo, o vendedor apenas estaria vinculado a restituir o valor do veículo reportado à data do trânsito em julgado da decisão judicial que determine tal restituição.
Nesta parte, terá de proceder o recurso de apelação interposto pela Ré, alterando-se a sentença recorrida no sentido de que o valor que a Ré vendedora terá de restituir à Autora, em consequência da resolução do contrato de compra e venda em apreço, será o valor que o veículo tiver à data do trânsito em julgado da decisão que determine essa restituição, a fixar em posterior liquidação nos termos do artº. 609º, nº. 2 do NCPC, ainda que sempre limitado ao valor inicialmente pago pela A. de € 26.750,00.
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SUMÁRIO:

I) - Ao contrato de compra e venda de bem de consumo são aplicáveis, em primeira linha, o regime jurídico da venda de bens de consumo previsto no DL 67/2003 de 8/4 (que transpôs para o direito interno a Directiva nº. 1999/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio), alterado e republicado pelo DL 84/2008 de 21/5, em conjugação com a Lei n.º 24/96 de 31/7 (Lei de Defesa do Consumidor) e, subsidiariamente, as regras previstas no Código Civil para o mesmo tipo contratual.
II) - Segundo o regime estabelecido no DL 67/2003 de 8/4, que regula a venda de bens de consumo, o vendedor profissional tem o dever de entregar ao comprador/consumidor bens que sejam conformes com o contrato de compra e venda celebrado (artº. 2º, nº. 1). Por sua vez, o nº. 2 do artº. 2º elenca determinados “factos-índice” demonstrativos de não conformidade, de tal forma que, se comprovados, presume-se a desconformidade com o contrato (presunção juris tantum).
III) - Por sua vez, o comprador/consumidor, em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, tem direito a que aquela conformidade seja reposta, sem encargos para si, por meio de reparação ou de substituição, assim como poderá optar pela redução adequada do preço ou mesmo resolver o contrato (artº. 4º, nº.1 do DL 67/2003).
IV) - No âmbito do DL 67/2003 de 8/4 é ao comprador/consumidor que cabe o ónus de alegar e provar o defeito de funcionamento da coisa, isto é, a sua desconformidade com o contrato, e que esse defeito existia à data da entrega da coisa, embora disponha de presunções legais de não conformidade que facilitam tal prova (artº. 2º, nº. 2). Ou seja, bastará ao consumidor alegar e provar os factos-índice da presunção de desconformidade com o contrato e que eles se manifestaram dentro do prazo da garantia legal imposta por aquele diploma legal (2 ou 5 anos a contar da entrega), para se presumir que o defeito já existia à data da entrega (artº. 3º, nº. 2).
V) - Uma vez provada a existência do defeito, recai sobre o vendedor, para afastar a sua responsabilidade, o ónus de ilidir a presunção de não conformidade, mediante a alegação e prova de que a falta de conformidade resulta de facto imputável ao comprador (nomeadamente do mau uso ou da incorrecta utilização do bem por parte do consumidor), a terceiro ou devida a caso fortuito, ou que, atentas as circunstâncias, o defeito não existia na data da entrega.
VI) - O Código Civil não contém um regime próprio sobre a responsabilidade directa do produtor, a qual foi objecto de legislação específica, através do DL 383/89 de 6/11, que transpôs para o ordem jurídica interna a Directiva nº. 85/374/CE do Conselho, de 25 de Julho de 1985, em matéria de responsabilidade decorrente de produtos defeituosos.
VII) - A Lei nº. 24/96 de 31/7 (Lei de Defesa do Consumidor), alterada pelo DL 67/2003 de 8/4, ao conferir ao consumidor o direito à reparação da coisa ou à sua substituição está a pressupor uma relação contratual directa com o fornecedor remetendo a responsabilidade objectiva do produtor para os “termos da lei” (artº. 12º, nº. 2), ou seja, para o DL 383/89 de 6/11.
VIII) - O DL 67/2003 de 8/4 veio consagrar, pela primeira vez, medidas jurídicas relativas às garantias voluntariamente assumidas pelo vendedor, fabricante ou por qualquer intermediário (artº. 9º), bem como a responsabilidade directa do produtor perante o consumidor, pela reparação ou substituição da coisa defeituosa (artº. 6º), facultando ao consumidor, sem prejuízo dos direitos que lhe assistem perante o vendedor, a chamada “acção directa” contra o produtor ou seu representante, a fim de reclamar a reparação ou substituição da coisa defeituosa, mas já não a anulação ou resolução do contrato.
IX) - Em prol do direito de protecção do consumidor, conferido pelo DL 67/2003 de 8/4, os meios que o comprador consumidor tem ao seu dispor para reagir contra a venda de um bem defeituoso, previstos no artº. 4º, n.º 1 do citado diploma legal, não têm qualquer hierarquização ou precedência na sua escolha, estando apenas esta escolha limitada pela impossibilidade do meio ou pelo “abuso de direito” (artº. 4º, n.º 5 do DL 67/2003).
X) - Em caso de compra e venda de veículo automóvel, a devolução integral do preço contratual liquidado pelo comprador e a correspondente devolução do veículo por este, com o uso e desgaste entretanto sofrido, envolveria um enriquecimento sem causa por parte do comprador, violador da boa fé contratual.

III. DECISÃO

Em face do exposto e concluindo, acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar parcialmente procedente o recurso de apelação interposto pela Ré X, Automóveis, Lda. e, em consequência, revogar parcialmente a sentença recorrida, condenando-se a Ré a restituir à Autora, por força da resolução do contrato de compra e venda, o valor que o identificado veículo tiver à data do trânsito em julgado da decisão que determine essa restituição, a liquidar posteriormente, nos termos do disposto no artº. 609º, nº. 2 do NCPC, até ao montante de € 26.750,00.
No mais, decide-se manter a sentença recorrida.

Custas a suportar por ambas as partes, provisoriamente na proporção de metade para a Autora e metade para a Ré, sendo oportunamente repartidas na proporção do respectivo decaimento, após a liquidação da importância que vier a ser definitivamente fixada.
Notifique.
Guimarães, 13 de Maio de 2021
(processado em computador e revisto, antes de assinado, pela relatora)

Maria Cristina Cerdeira (Relatora)
Raquel Baptista Tavares (1ª Adjunta)
Margarida Almeida Fernandes (2ª Adjunta)