Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
301/18.1T8VNF-C.G1
Relator: ROSÁLIA CUNHA
Descritores: QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
INSOLVÊNCIA CULPOSA
ADMINISTRADORES DE DIREITO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/05/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Nas alíneas a) a i), do nº 2, do art. 186º, do CIRE, tipifica-se taxativamente um conjunto de situações que, quando se verifiquem, integram uma presunção iuris et de iure de que a insolvência é culposa
Uma vez demonstrado o facto nelas enunciado, fica, desde logo, estabelecido o juízo normativo de culpa do administrador, sem necessidade de demonstração do nexo causal entre a omissão dos deveres constantes das diversas alíneas do n.º 2 e a situação de insolvência ou o seu agravamento. Destarte, a simples ocorrência de alguma das situações elencadas nas diversas alíneas do nº 2 do sobredito art. 186º conduz inexoravelmente à qualificação de insolvência como culposa.

II - O art. 186º, nº 1, do CIRE, para efeitos de qualificação da insolvência como culposa, alude à atuação do devedor ou dos seus administradores de direito ou de facto.
Com esta previsão o legislador não visou excluir a responsabilidade dos administradores de direito que não exerçam as funções de facto e restringi-la aos gerentes de facto.
Pelo contrário, a finalidade a lei foi alargar a responsabilização, incluindo quer os gerentes de facto quer os de direito, nos casos em que as funções de gerência não estão reunidas na mesma pessoa.

III – Em caso de insolvência culposa, o tribunal tem sempre que emitir uma condenação que abarque a matéria elencada nas als. a) a e), do nº 2, do art. 189º, do CIRE.

IV - Da conjugação do disposto na al. e), do nº 2, com o nº 4, do art. 189º, do CIRE, resulta que a al. e) não pode ser interpretada no sentido de que o valor da indemnização é fixo e que corresponde sempre ao montante dos créditos não satisfeitos pois tal interpretação levantaria problemas de constitucionalidade por violação do princípio da proporcionalidade e da proibição do excesso.

V - Na fixação do montante indemnizatório deve ponderar-se o grau de ilicitude e culpa do afetado, que deverá responder na medida em que o prejuízo possa/deva ser atribuído ao ato ou atos determinantes dessa culpa.
Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência na 1ª seção cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

RELATÓRIO

Nos autos de insolvência relativos à sociedade X, Unipessoal, Lda., foi proferida sentença declaratória da sua insolvência.
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Em sede de assembleia de apreciação de relatório foi declarado aberto o incidente de qualificação de insolvência.
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O sr. Administrador de Insolvência apresentou parecer no qual se pronunciou no sentido de a insolvência ser qualificada como culposa e de tal qualificação dever afetar a gerente J. J..
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O Ministério Público pugnou igualmente pela qualificação da insolvência como culposa e considerou que tal qualificação deve afetar a gerente J. J..
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Citada, a gerente da insolvente deduziu oposição.
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Os autos principais foram encerrados por insuficiência da massa insolvente.
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Foram fixados os temas da prova e o objeto do litígio.
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Procedeu-se a julgamento e a final foi proferida sentença com o seguinte teor decisório:

“Nestes termos e pelos fundamentos expostos, decido:

- qualificar a insolvência da sociedade “X, Unipessoal, Lda.” como culposa, nos termos do artº 186º, nº 1, nº 2, al. h) e n.º 3, al. a)do CIRE;
- determinar a afectação pela referida qualificação da gerente de direito J. J. [artº 189º, nº 2,al. a), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas];
- fixar em 2anos o período de inibição da gerente para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa [artº 189º, nº 2, al. c), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas];
- condenar a gerente a indemnizar os credores da devedora declarada insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do respectivo património [artº 189º, nº 2, al. e), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas].

Determino, ainda, o registo da inibição para o exercício do comércio junto da Conservatória do Registo Civil, com base em comunicação electrónica ou telemática da secretaria, acompanhada de extracto desta sentença [arts. 189º, nº 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, e 69º, nº 1, al. l), do Código de Registo Civil].”
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A gerente da insolvente J. J. não se conformou e interpôs o presente recurso de apelação, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:

1 -. Escutando os supra transcritos depoimentos prestados em audiência de julgamento quer pela Demandada/Apelante, J. J., quer pelas 3 testemunhas, M. L., F. C., M. C., particularmente nas partes indicadas com precisão no corpo das alegações, e compaginando os mesmos com a supra citada prova documental que se encontra junta aos autos,
2 - É manifesto que a Demandada/Apelante, nunca exerceu de facto as funções de gerente daquela rudimentar unidade industrial que albergava, para além da sua Mãe, cerca de 10 antigas trabalhadoras de pequenas unidades de confecção que, sucessivamente, foram sendo declaradas insolventes.
3 - É manifesto que a própria indicação do nome da Demandada/Apelante para “gerente de direito” da rudimentar unidade industrial que viria a ser declarada insolvente, traduziu um acto simulado na medida em que desde o inicio o que foi solicitado à Demandada/Apelante foi o favor de fazer de conta que era gerente da sociedade, mas sem qualquer intervenção directa e efectiva na gestão da empresa.
4 - É manifesto que a indicação do nome da Demandada/Apelante como “gerente de direito” da empresa e a aceitação da mesma traduziu tão só, por um lado um dever de gratidão e amor filial para com a sua Mãe, e por outro, um dever de gratidão e uma desinteressada e benevolente ajuda às demais 8 ou 9 colegas da senhora sua Mãe que, desde há anos, vinham sobrevivendo juntas e em comunhão de esforços para evitarem serem lançadas no desemprego.
5 - Por tudo quanto supra se invocou e que, por brevidade e economia processual se deve ter por integralmente reproduzido:

- Deve ser retirada ou eliminada do elenco da matéria de facto declarada “Provada” as als. e), i), l), m) e n) da relação dessa matéria de facto declarada Provada, as quais, e no que à Demandante/apelante diz respeito, deverão transitar para o elenco da matéria de facto declarada “Não Provada”;

Do mesmo passo,

- E atendendo ainda à supra invocada e supra citada prova documental e á supra citada e até transcrita prova testemunhal, deve ser levada à relação da matéria de facto “Provada” a factualidade que está incluída nas als. a), b), c), d), f), g), i) e j) da relação da matéria de facto declarada “Não Provada”.

6 - Tais alterações aqui propugnadas e reclamadas no que concerne à impugnação da decisão respeitante à matéria de facto e muito particularmente da inclusão da apontada factualidade na relação da matéria de facto “Provada” e da apontada factualidade no elenco da matéria de facto “Não Provada” impõe-se, salvo o devido respeito, dada a obrigação de análise critica da prova imposta ao julgador pelo disposto nos arts. 607º nº 4 do CPC, e o dever de apreciação e valoração da prova segundo as regras da experiencia comum e, no caso, do estado de necessidade com que foi confrontada a Demandada/Apelante em face da situação de carência e extrema dependência e necessidade de trabalho daquelas 10 pessoas que se estabeleceram em regime de verdadeira “auto-gestão” para se manterem activas e socialmente úteis.
7 - Padecendo a douta decisão aqui impugnada, pelos fundamentos supra invocados, na parte impugnada respeitante à questão de facto no que concerne às acima citadas alineas do elenco da matéria de facto, conforme o também supra explicado e demonstrado:
a) Do vicio de erro de julgamento, na medida em que, a decisão do Tribunal relativamente à matéria de facto impugnada, vai contra o que é razoável extrair dos supra citados documentos que se encontram nos autos, tal como vai contra o que se pode extrair dos depoimentos supra citados, designadamente, na partes identificadas e até transcritas, e tudo devidamente conjugado com as regras da experiência comum .
8 - Tal vício de erro de julgamento que afectou a fundamentação e sobretudo o conteúdo da decisão relativa à matéria de facto impugnada, deve ter como consequência que este Tribunal “ad quem”, em obediência ao disposto nos arts. 607º nº 4 e 662º nº 1 do C.P.Civil, e tendo em conta tudo o supra invocado, altere a mesma segundo o que e quanto a cada uma, foi especificadamente proposto e reclamado pela Demandada/Apelante.

ISTO POSTO E SEM PRESCINDIR,

9 - E do que fica dito, pode-se, desde já concluir que a Demandada/Apelante, que apenas formal e aparentemente ficou com o titulo de “gerente de direito”, mas que efectivamente nunca exerceu as funções correspondentes a tal nomeação, tendo-se limitado a corresponder a um pedido da senhora sua Mãe e das demais colegas de trabalho da mesma, não contribuiu, quer para a desorganização que se manifestou na contabilidade daquela pequena e rudimentar unidade industrial, tal como não partiu dela o retardar do encerramento da unidade produtiva.
10 - A Demandante/Apelante, atentas as sua especiais ligações familiares e de dependência emocional e afectiva quer da senhora sua Mãe, quer das sua familiares directas, quer das suas vizinhas , todas elas trabalhadoras que a conheciam desde a idade de criança, não conseguiu recusar dar a mão a quem, numa situação de extrema necessidade, lhe pediu auxilio para tentarem manter os postos de trabalho e, desse modo, manterem-se activas e válidas, quer no âmbito de captação de rendimentos para as respectivas famílias, quer no âmbito da sua actividade social, com repercussões directas no próprio estado de saúde, quer físico ,quer psíquico das mesmas.
11 - Não foi possível apurar, e também ao caso não interessa, porque não foi a própria Mãe da Demandante/Apelante quem assumiu a gerência da sociedade insolvente.
12 - O certo é que, e como na douta Sentença proferida no tribunal “a quo” expressamente se reconheceu, a efectiva e verdadeira gerente da sociedade insolvente sempre foi a Dª F. C..
13-Ficou também bem expresso e igualmente claro que a Dª F. C. e as suas 8 ou 9 colegas e amigas de mais de 20 anos de “caminhar juntas” actuavam naquela rudimentar unidade industrial dentro de um verdadeiro sistema de “auto-gestão”.
14 - A filha, aqui Demandada/Apelante, ajudou mas nunca comandou nem dirigiu a gestão dessa unidade rudimentar.
15 - Em bom rigor a sua indicação e a colocação do seu nome como “gerente de direito” da sociedade representou um acto simulado dado que, nem quem a indicou, nem ela própria, queriam que ela exercesse efectivamente tais funções.
16-A lei estipula a nulidade do negócio simulado, no caso simulação inocente – animus decipiendi - o que significa, consequentemente, que a simulação pode ser arguida por qualquer interessado e declarada oficiosamente, tal como que o vicio do negócio simulado pode ser invocado a todo o tempo, tanto por meio de acção como de excepção e que não pode ser sanado por confirmação da declaração.
17 - Ora, como se viu e está demonstrado no processo, a Demandada/Apelante não tinha interesse nem vontade de ser gerente daquela rudimentar unidade industrial, tendo-se limitado a fazer o favor de substituir a senhora sua cunhada, a qual, aliás, também não tinha sido a verdadeira gerente da mesma rudimentar unidade industrial.
18 - Na sentença recorrida não se atendeu, na sua integralidade, à situação factual reflectida nos autos na parte em que ficou evidenciado o mero favor e a falta de vontade da Demandada/Apelante para ser “gerente de direito” da sociedade.
19 - A Demandada/Apelante, para além de ter invocado e demonstrado que não era gerente de facto, também invocou e demonstrou que apenas aparentemente ficou sendo “gerente” da sociedade.
20 - Explicou e provou que quem comandava os destinos daquela rudimentar unidade industrial era a sua Mãe e as demais colegas de trabalho.
21 - E sempre que ela tentou fazer jus ao titulo de “gerente de direito”, quem efectivamente geria e administrava a empresa – a sua Mãe e as trabalhadoras, quem ali auferia salário – opunha-se ao exercício de qualquer poder ou até influencia e impediu a concretização das sugestões da Demandada/Apelante.
22 - Esta, afinal e na realidade, não era gerente de coisa nenhuma, nada mandava e nada riscava, nada contratava e nada distratava.
23-Havia acorrido a um pedido e a um favor e havia aceite que o seu nome fosse, simuladamente, indicado como “gerente de direito” da sociedade.
24 - A qualificação como culposa do exercício da gerência ou administração de uma empresa acarreta efeitos substantivos que afectam directamente direitos, liberdades e garantias ou direitos de natureza análogo que gozam de um especial regime de protecção oponível a todos, particulares e entidade pública, inclusive tribunais, como é o caso da liberdade do exercício da profissão e da liberdade da iniciativa ou actividade económica.
25 - Tão gravosas consequências na esfera jurídico pessoal da pessoa afectada e no núcleo essencial dos direitos de personalidade não é compatível com o ficcionar do exercício das funções de gerente ou com a mera enunciação que, estando indicada ou nomeada como “gerente de direito”, já pode ser responsabilizada por actos que, efectivamente, nunca praticou.
26 - Os Princípios Constitucionais que directamente regulam e protegem os direitos, liberdade e garantias tal como os direitos de natureza análoga dos cidadãos–arts.2º,18ºe20ºdaConstituição–não são compatíveis com a criação e imputação de responsabilidades a quem, estando aparentemente nomeada e indicada como “gerente de direito”, nem essa mera qualidade quis assumir ou teve condições factuais para assumir.
27-Daí que, sempre salvo o devido e merecido respeito, parece óbvio que, no caso descrito nos autos, não só é impossível divisar qualquer conduta dolosa ou com culpa grave da Demandada/Apelante, como, ainda muito menos é possível ficcionar que da circunstancia da mesma ter sido indicada como “gerente de direito” da sociedade insolvente resulta ou pode ser extraído qualquer tipo de nexo de causalidade entre essa mera e simulada circunstancia e a situação de insolvência, em que aquela rudimentar unidade industrial já então se encontrava e que persistiu até que quem comandava a mesma – as 10 trabalhadoras aqui se incluindo a Mãe da Demandada/Apelante – mandou o contabilista emitir os documentos para o fundo de desemprego e requereu a sua declaração de insolvência.
28-A Demandada/Apelante, como foi possível perceber na audiência de julgamento, nem como mera “gerente de direito” conseguiu actuar (art. 350º nº2, 1ª parte do CC).
29 - Parece evidente que, nas descritas circunstancias da indicação do nome da Demandada/Apelante para, aparentemente, constar como, simulada, “gerente de direito”, não podem ser extraidos os requisitos objectivos, nem os requisitos subjectivos, e muito menos algum nexo de causalidade que, da sua não actuação e da circunstancia em que aquela rudimentar unidade industrial se encontrava em 2015 e assim permaneceu até Dezembro de 2017 pudesse resultar.
30-E isto pela singela razão que, afinal e na realidade, nem “gerente de direito” a Demandada/Apelante era da sociedade insolvente: A Demandada/Apelante não era verdadeira e real “gerente de direito” e, muito menos era “gerente de facto” da sociedade.
31 - Não devendo ser atingida pelos nefastos efeitos substantivos que estão automaticamente associados à qualificação da insolvência como culposa.

SEM PRESCINDIR E POR MERA CAUTELA DE PATROCINIO,.

32 - Como se viu e é indubitável, a demandada/Apelante nunca exerceu de facto as funções de gerente e também não era verdadeira e real “gerente de direito”.
33 - Quem exercia tais funções, algo mitigadas pelo sistema de “auto-gestão” em que aquela rudimentar e muito pequena empresa desenrolava o seu dia a dia, como unidade comandada pelas próprias trabalhadora era a senhora, Dª F. C..
34 - Sendo certo que a Demandada/Apelante não contribuiu para o aumento do passivo da insolvente, não podendo assim ser condenada a indemnizar os credores da insolvente com o seu património da forma como foi, porque, conforme está provado nos autos, não foi ela quem provocou qualquer aumento do passivo da Insolvente.

AINDA SEM PRESCINDIR,

35 - Caso se entendesse não ser de excluir a responsabilidade da Demandada/Apelante, nos termos alegados nos capítulos anteriores, por não lhe serem aplicáveis aqueles normativos, o que não se aceita nem concede, sempre a Sentença recorrida devia ter tido em atenção, na fixação dos critérios para a quantificação, a “culpa”, que é inexistente, da afectada, o principio da proporcionalidade, responsabilizando-a apenas e só na medida em que a sua conduta tivesse causado – o que não aconteceu agravamento na situação da insolvência.
36 - Atribuindo o nº 4 do art. 189º do CIRE, o significado relevante de permitir ao julgador referenciar factores que, em razão das circunstâncias do processo, devam mitigar o recurso, puro e simples, a meras operações aritméticas de passivo menos resultado do activo, abre espaço para uma reflexão atinente ao grau de culpa atribuído aos atingidos pela qualificação da insolvência.
37 - Tendo em conta que a criação deste normativo se inspirou na Lei Espanhola, e porque o regime que emerge da aplicação conjugada do artº 186 e 189 do CIRE é um regime severo, tal dispositivo deve ser interpretado no sentido de salvaguardar o principio da proporcionalidade.
38 - Assim sendo, conjugando o teor das alíneas a) e e) do nº 2 e o nº4 do artigo 189 do CIRE, verifica-se que na fixação da indemnização deve ser ponderada a culpa da afectada, que deverá responder na medida em que o prejuízo possa/deva ser atribuído ao acto ou actos dessa culpa.
39 - Facto este que se não fosse suficiente para eximir na integra a recorrente de qualquer responsabilidade subjectiva na insolvência, deveria pelo menos, mitigar fortemente aquele grau de eventual ilicitude e culpa.
40 - Assim sendo, na fixação do critério da quantificação da indemnização devia o douto tribunal, entre outros, ter tido em atenção o facto de a da Demandada/Apelante ter sido motivada a aceitar que o seu nome fosse colocado como aparente “gerente de direito” da sociedade pelas supra identificadas e demonstradas razões de ajuda, gratidão, amor filial e solidariedade para com as trabalhadoras e colegas da senhora sua Mãe.
41 - Ou seja, motivos socialmente compreensíveis e denotando um total desprendimento de interesses económicos e solidariedade para com 10 pessoas que se encontravam em situação de desemprego iminente.
42 – Devendo, também por isso, ser revogada a decisão proferida e em seu lugar nova e diferente decisão que, nos critérios para a quantificação da indemnização, tenha em conta estas descritas e comprovadas circunstancias, particularmente, sempre tenha em atenção os princípios constitucionais da
proporcionalidade, e o grau, que é nulo, de ilicitude da conduta e a culpa, que se crê inexistente, da Demandada/Apelante.

Pelo que,
43 - Salvo o devido respeito, a Sentença recorrido, violou e, ou, interpretou erradamente, para além das normas legais supra citadas, a aplicação conjugada do disposto nos arts. 2º, 18º, 20º da Constituição e ainda os arts. 240º, 285, 289, e 350º do cod civil e os arts. 607 nº 4 do CPC e o art. 186º “ a contrario” e 189º nº 4 do CIRE.”
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O Ministério Público contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida, tendo formulado as seguintes conclusões:

“1ª O tribunal “ a quo” não cometeu qualquer erro de apreciação e valoração das provas ou erro de julgamento quanto aos concretos factos impugnados pela apelante nas suas alegações.
2ª. A factualidade dada como assente revela em toda a sua plenitude o nexo de causalidade existente entre a conduta do recorrente e a insolvência que veio a ser declarada, sendo linear o preenchimento do estatuído no artº 186º, nº 1, nº 2, al. h) e 3º, al. a) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas;
3ª. O gerente de direito, por ter poderes e competência para praticar todos os atos pertinentes à realização do escopo social da insolvente e, como tal, manifestar a sua vontade, deve ser responsabilizado no incidente de qualificação da insolvência;
4ª. O artº 189º, nº 2, al. a), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, não visa excluir a responsabilização daquele mas sim alargar a qualificação da insolvência a quem pratique (de facto) atos de administração/gestão sem estar legalmente nomeado como titular do cargo que exerce;
5ª. A condenação da apelante na obrigação do dever de indemnizar os credores da devedora dos créditos não satisfeitos resulta de imposição legal (artigo 189º, nº 2, al. e) do CIRE).
6ª. A douta sentença recorrida deve ser mantida nos seu precisos termos.”
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente nos próprios autos, com efeito devolutivo.
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Foram colhidos os vistos legais.

OBJETO DO RECURSO

Nos termos dos artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC, o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações dos recorrentes, estando vedado ao Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso, sendo que o Tribunal apenas está adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objeto do recurso.
Nessa apreciação o Tribunal de recurso não tem que responder ou rebater todos os argumentos invocados, tendo apenas de analisar as “questões” suscitadas que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Por outro lado, o Tribunal não pode conhecer de questões novas, uma vez que os recursos visam reapreciar decisões proferidas e não analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes.

Neste enquadramento, as questões relevantes a decidir, elencadas por ordem de precedência lógico-jurídica, são as seguintes:

I – alteração da matéria de facto;
II – inexistência de pressupostos legais para a declaração da insolvência como culposa;
III – fixação da indemnização devida aos credores.

FUNDAMENTAÇÃO

FUNDAMENTOS DE FACTO

Na 1ª instância foram considerados provados os seguintes factos:

a) X, Unipessoal, Lda., sociedade comercial por quotas de responsabilidade limitada, com o NIPC ... e a sede na Rua …, concelho de Vila Nova de Famalicão, iniciou atividade em 02-02-2012, tendo-se dedicado, com carácter de regularidade e intuito lucrativo, à indústria de “confeção têxtil”, com o capital social de 1,00€;
b) A sociedade tinha, inicialmente, como única sócia C. M..
c) J. J. foi nomeada como gerente de direito em 31/7/2015, nomeação essa registada em 02/8/2015, aquando da aquisição da quota única da sociedade;
d) Porque a sociedade X, Unipessoal, Lda. não cumpria generalizadamente as suas obrigações vencidas, designadamente, a obrigação de pagar às suas trabalhadoras I. M., M. A., S. G., M. G., M. E., A. F. e A. P., os créditos salariais a que tinham direito, e que na sua globalidade ascendiam a 71.031,39€, foi pelas mesmas requerida a insolvência daquela em 22-01-2018, a qual foi decretada por sentença publicada no portal “Citius” em 27-02-2018.
e) A gerente da sociedade insolvente não cuidou da organização da contabilidade desta em correspondência com a realidade.
f) A contabilidade da insolvente contém inscritos valores contraditórios ou incongruentes entre si, os quais, no contexto económico vivido, se configuram de verificação impossível - face às regas da experiência comum - atenta a concreta atividade desenvolvida pela insolvente, designadamente: - a última informação contabilística existente, reportada ao mês de Dezembro de 2017 (mês 13, que em termos de processamento, corresponde ao período de apuramento de resultados), conforme balancete geral desse período, contém mencionada a existência de um saldo devedor da conta “111 - Caixa” de Euros 135,124.57, valor este que não foi apreendido no processo de insolvência por inexistir;
g) A existência deste saldo na contabilidade, num valor materialmente relevante (superior ao volume de negócios da sociedade insolvente nos anos de 2016 e 2017), e sem que o mesmo exista, deturpa, por completo, a análise da situação financeira da sociedade insolvente (ao apontar uma grande liquidez que não existia);
h) A violação da obrigação de manter a contabilidade organizada prejudicou de forma relevante a compreensão da situação patrimonial e financeira por evidenciar valores de activos inexistentes;
i) A atuação animada de culpa grave por parte da gerente da sociedade insolvente, no que tange desconformidade da contabilidade, decorreu no limite temporal de três anos antecedentes a 15-01-2018 (data em que foi requerida a insolvência pelas várias credoras) e foi causal e determinante da criação do estado de insolvência.
j) Desde pelo menos os princípios de 2015 que a sociedade insolvente se encontrava incapacitada de cumprir as suas obrigações vencidas, ao ponto de não pagar sistematicamente as contribuições para a Segurança Social que, no período compreendido entre janeiro de 2015 e dezembro de 2017, atingiram o valor global de 67.986,06€ (valor a que acrescem juros de mora e custas);
k) A sociedade deixou de pagar os impostos, coimas e custas devidos à Autoridade Tributária e Aduaneira, que se venceram a partir de 7-3-2017 e que totalizaram 36.806, 71€, dos quais se destacam o IVA do 4º trimestre de 2016 e de todo o ano de 2017 num total de 24,672,00€;
l) A não apresentação à insolvência conduziu, além do mais, a um avolumar de dívidas ao Instituto da Segurança Social, IP em pelo menos €59013,81, valor das contribuições reclamadas deduzidos do valor das contribuições dos meses de janeiro a maio de 2015 e à Autoridade Tributária e Aduaneira;
m) A sociedade insolvente manteve-se durante mais de 2 anos em situação de incumprimento com a Autoridade Tributária e Aduaneira e com o Instituto da Segurança Social, IP, o que agravou não só a sua situação financeira (pelo acumular de dívidas com estes credores), como dificultou ou impossibilitou o ressarcimento dos demais credores (atenta a natureza privilegiada daqueles créditos);
n) A atuação animada de culpa grave por parte da gerente da sociedade insolvente em não a apresentar à insolvência, foi causal e determinante do agravamento do estado de insolvência, ao ponto de impedir qualquer viabilização da atividade da empresa;
o) O Administrador da Insolvência logrou apreender para a massa bens móveis no escasso valor de 1.100,00€;
p) No processo de insolvência foram reclamados, conhecidos e reconhecidos pelo Administrador de Insolvência créditos no valor global de Euros 208.260,71€;

E, ainda, que:

q) A gerente acedeu ao pedido que lhe foi dirigido no sentido de viabilizar a empresa, por forma a salvaguardar os postos de trabalho das trabalhadoras que eram pessoas com carências económicas e com dificuldade em conseguirem outro posto de trabalho compatível com a idade e habilitações;
r) A oponente acedeu ao pedido, convencida que as previsões de angariação de novos clientes e trabalho mais lucrativo para a empresa iriam permitir a viabilização da mesma;
s) A Oponente não recebia qualquer remuneração em razão do exercício da gerência da sociedade;
t) A Oponente, que trabalhava por conta de outrem como assalariada e com horário de trabalho fixo, assim continuou enquanto era gerente da sociedade;
u) E sempre foi, como trabalhadora por conta de outrem, designadamente das empresas:
a) “X Indústrias de Plásticos, S.A.”, onde trabalhou desde 31/12/2014 até 20/01/2017;
b) “C. C. Lda.” onde trabalhou entre Fevereiro de 2017 e até Junho desse mesmo ano;
c) “Y-Industria e Comércio, S.A.” onde trabalha desde 10/07/2017, e até ao dia de hoje, que a Oponente, sem conseguir estar sempre presente nas instalações da empresa, mas confiando nas informações que lhe eram prestadas pela encarregada geral e pelas trabalhadoras com quem contactava, ia seguindo o evoluir do negócio da sociedade;
v) As trabalhadoras prometiam-lhe que a produção iria aumentar e que a margem de rentabilidade do negócio do trabalho a feitio que aquela pequena confecção de vestuário produzia iria igualmente aumentar, tornando a pequena empresa rentável e sustentável no futuro;
w) A sociedade tinha apenas 1 cliente – W- Unipessoal, Lda. – trabalhando 100% a feitio para esse mesmo cliente;
x) O preço do trabalho a feitio das peças entregues e contratadas com essa única cliente foi sendo sucessivamente diminuído, dado que a cliente impunha tal condição para continuar a fornecer encomendas e a “dar trabalho”;
y) Em meados de 2016, essa cliente deixou de fornecer encomendas, cessando a sua relação comercial com a sociedade Insolvente;
z) Repentinamente, a Oponente viu que a empresa não tinha trabalho e anunciou que teria de encerrar a empresa e despedir todas as trabalhadoras que então eram em número de 12;
aa) Todavia, as trabalhadoras novamente resistiram a tal intenção da Oponente e fizeram diligências para que a sociedade encontrasse um outro cliente;
bb) Passaram, então, a trabalhar também 100% a feitio para uma outra empresa denominada de “Z-S.A.”, a qual lhes passou a entregar trabalho para a confeção a feitio de roupa para senhora, quando antes a confeção consistia em confecionar, também a feitio, roupa para criança;
cc) Tal mudança teve um período de adaptação com uma produção que não acompanhava os custos;
dd) Em face dos primeiros atrasos de pagamento das cotizações à Segurança Social, surgiram os primeiros processos executivos instaurados contra a sociedade pela Segurança Social, que conduziram à penhora do saldo da conta bancária;
ee) A Oponente, que havia diligenciado a celebração de acordos - PERES – com a Segurança Social, por forma a pagar os valores em dívida em prestações mensais, deixou de poder utilizar a conta bancária da sociedade que havia sido objeto de penhora e se encontrava bloqueada;
ff) Os pedidos e a pressão das trabalhadoras para que continuasse levaram-na a acreditar que esse mau período iria ser ultrapassado e que a empresa iria conseguir equilibrar a produção e equilibrar as receitas com as despesas;
gg) A própria representante da nova cliente, para quem a empresa insolvente passou a trabalhar, também em exclusividade e a feitio, prometeu-lhe que ajudaria na formação das trabalhadoras para que as mesmas conseguissem aumentar a capacidade e qualidade produtiva;
hh) Sem poder estar no dia a dia nas instalações da empresa, a Oponente continuou a iludir-se e a deixar-se influenciar pelos conselhos, quer da encarregada geral – sua Mãe –, quer das demais trabalhadoras daquela pequena confeção;
ii) A contabilidade passou a fazer os lançamentos contabilísticos por caixa ou através da caixa social, o que provocou desfasamento entre os pagamentos de despesas e custos da empresa efetivamente realizados e os pertinentes lançamentos dos recibos na contabilidade;
jj) Ficaram por lançar na contabilidade da sociedade diversos valores e despesas efetivamente pagas aos credores, designadamente:
i. Na conta 62412 - custos de eletricidade – o valor em divida ali assinalado como €.1.981,75, não estava e não está correto, dado que em dívida estava então apenas o valor de €480,00;
ii. O senhorio do armazém não emitiu recibos respeitantes aos pagamentos que lhe eram efetuados pela Oponente, pelo que o saldo de caixa aumentava no valor exatamente proporcional à falta de entrega de tais recibos;
iii. Na conta 245 – contribuições para a Segurança Social – erradamente constava como estando em divida o valor de €.111.545,10, quando este era no montante de € 66.476,59;
iv. Resulta daqui uma diferença de falta de lançamento dos recibos de pagamentos à Segurança Social na contabilidade da insolvente e que deveriam ter sido lançados a crédito na caixa social de € 45.068,51;
kk) A oponente procurou salvaguardar os postos de trabalho;
ll) Enganou-se e foi enganada nas previsões feitas a propósito das probabilidades de a empresa conseguir aguentar durante algum tempo com prejuízos, para depois melhorar a sua rentabilidade produtiva e a sua rentabilidade económica, angariando receita que cobrisse aqueles prejuízos e que a fizesse singrar com resultados positivos;
mm) Celebrou acordos de pagamento em prestações das dívidas à segurança social, tendo realizados alguns pagamentos;
nn) As promessas que lhe foram feitas não chegaram a ser cumpridas e não conseguiu que a única cliente aceitasse o aumento do preço do trabalho a feitio que a empresa vinha praticando, tal como não conseguiu o necessário aumento da produtividade no fabrico das peças de roupa encomendadas;
oo) Tudo contra a sua vontade e em derrota do esforço e empenho que sempre colocou para salvar a empresa e salvaguardar os postos de trabalho.
*

Não foram considerados provados os seguintes factos:

a) A Oponente nunca tenha recebido qualquer proveito, lucro ou mera gratificação em razão de ter aceitado colaborar com o pedido de ajuda que lhe foi dirigido para ser a titular da quota social da sociedade;
b) Os contactos com a contabilidade da empresa fossem escassos;
c) A Oponente desconhecesse que não estavam a ser entregues na contabilidade todos os documentos, respeitantes aos pagamentos que a mesma ia fazendo, em regra a dinheiro, ou então a partir da sua própria conta bancária;
d) A oponente não conseguisse contactar diretamente com o respetivo contabilista, pedindo à mãe, encarregada geral, que entregasse no escritório daquele os recibos comprovativos dos pagamentos realizados;
e) A oponente desconhecesse ou não pudesse evitar que a contabilidade fizesse os lançamentos contabilísticos por Caixa ou através da caixa social, por causa da penhora e bloqueio da conta bancária da sociedade, provocada pela Segurança Social;
f) A Oponente tivesse dado instruções para que todos os recibos e comprovativos dos pagamentos efetuados com dinheiro ou efetuados através de cheques ou transferências que realizava a partir da sua conta bancária, fossem entregues na contabilidade;
g) A Oponente tivesse descoberto só muito mais tarde que grande parte desses recibos e documentos comprovativos dos pagamentos efetuados acabaram por não chegar ao escritório onde era organizada a contabilidade da sociedade;
h) Tenham existido pagamentos feitos às trabalhadoras, já no final do contrato, nem que estes não tenham sido lançados na contabilidade da insolvente;
i) A oponente desconhecesse a desconformidade na contabilidade, por ter confiado que estavam a ser entregues pela encarregada geral ou até por quem com a mesma mais diretamente colaborava e trabalhava, na contabilidade, todos os comprovativos dos pagamentos que semana a semana eram feitos e os quais têm de abater ao dito saldo devedor da caixa social;
j) A oponente tenha aplicado o dinheiro que ganhava no seu emprego, como trabalhadora por conta de outrem nos pagamentos realizados à Segurança Social.

FUNDAMENTOS DE DIREITO

Cumpre apreciar e decidir.

I – Alteração da matéria de facto

Dispõe o artigo 662.º, n.º 1, do CPC, que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
A norma em questão alude a meios de prova que imponham decisão diversa da impugnada e não a meios de prova que permitam, admitam ou apenas consintam decisão diversa da impugnada.

Por seu turno, o art.º 640.º do C.P.C. que tem como epígrafe o “ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”, dispõe que:

1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”

Como se escreveu no Acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães, de 19.6.2019 (in www.dgsi.pt):

Importa referir que no nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da liberdade do julgador ou da prova livre, consagrado no n.º 5 do artigo 607º do CPC (…), segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em conformidade com a convicção que tenha formado acerca de cada um dos factos controvertidos, salvo se a lei exigir para a prova de determinado facto formalidade especial, ou aqueles só possam ser provados por documento, ou estejam plenamente provados, quer por documento, quer por acordo ou confissão das partes.

Sobre a reapreciação da prova impõe-se assim toda a cautela para não desvirtuar, designadamente o princípio referente à liberdade do julgador na apreciação da prova, bem como o princípio de imediação que não podem ser esquecidos no convencimento da veracidade ou probabilidade dos factos. Não está em causa proceder-se a novo julgamento, mas apenas examinar a decisão da primeira instância e respetivos fundamentos, analisar as provas gravadas, se for o caso, e procedendo ao confronto do resultado desta análise com aquela decisão e fundamentos, a fim de averiguar se o veredicto alcançado pelo tribunal recorrido quanto aos concretos pontos impugnados assentou num erro de apreciação.

Em suma, a alteração da matéria de facto pelo Tribunal da Relação tem de ser realizada ponderadamente, em casos excecionais, pontuais e só deverá ocorrer se, do confronto dos meios de prova indicados pelo recorrente com a globalidade dos elementos que integram os autos, se concluir que tais elementos probatórios, evidenciando a existência de erro de julgamento, sustentam, em concreto e de modo inequívoco, o sentido pretendido pelo recorrente. Tal sucede quando a convicção do tribunal de 1.ª instância assentou em erro tão flagrante que o mero exame das provas gravadas revela que a decisão não pode subsistir.

Tendo por base estes critérios, analisemos então se a matéria de facto deve ser alterada nos termos pretendidos pela recorrente.

A recorrente pretende que as als. e), i), l), m) e n) sejam retiradas dos factos provados e passem a integrar os factos não provados.
Alicerça tal pretensão nas declarações de parte, nos depoimentos das testemunhas inquiridas e nos documentos juntos aos autos, entendendo que tais elementos probatórios têm de levar à conclusão que a aludida matéria não se mostra provada.

As als. e), i), l), m) e n) têm a seguinte redação:

e) A gerente da sociedade insolvente não cuidou da organização da contabilidade desta em correspondência com a realidade.
i) A atuação animada de culpa grave por parte da gerente da sociedade insolvente, no que tange desconformidade da contabilidade, decorreu no limite temporal de três anos antecedentes a 15-01-2018 (data em que foi requerida a insolvência pelas várias credoras) e foi causal e determinante da criação do estado de insolvência.
l) A não apresentação à insolvência conduziu, além do mais, a um avolumar de dívidas ao Instituto da Segurança Social, IP em pelo menos €59013,81, valor das contribuições reclamadas deduzidos do valor das contribuições dos meses de janeiro a maio de 2015 e à Autoridade Tributária e Aduaneira;
m) A sociedade insolvente manteve-se durante mais de 2 anos em situação de incumprimento com a Autoridade Tributária e Aduaneira e com o Instituto da Segurança Social, IP, o que agravou não só a sua situação financeira (pelo acumular de dívidas com estes credores), como dificultou ou impossibilitou o ressarcimento dos demais credores (atenta a natureza privilegiada daqueles créditos);
n) A atuação animada de culpa grave por parte da gerente da sociedade insolvente em não a apresentar à insolvência, foi causal e determinante do agravamento do estado de insolvência, ao ponto de impedir qualquer viabilização da atividade da empresa;

Atendendo aos critérios supra enunciados, vejamos então se esta matéria de facto deve ser dada como não provada.

O tribunal a quo fundamentou a sua convicção quanto aos factos ora impugnados nos seguintes termos:

“Os factos que se fizeram verter nas alíneas e), f), g), h) e i), resultaram, desde logo, da posição assumida pela Requerida no seu articulado de oposição e do teor das suas declarações de parte. Ela mesma anuiu que a contabilidade formalmente apresentada estava em desconformidade com a realidade financeira da sociedade. Por outro lado, aquelas desconformidades resultam da análise do balancete analítico junto a fls. 15 verso e seguintes e do seu confronto com as dívidas reclamadas e reconhecidas ao ISS, IP e à Fazenda Nacional (veja-se a documentação também junta pelo Administrador da Insolvência) e com os bens apreendidos no apenso respectivo e com a inexistência de apreensão de qualquer quantia supostamente disponível em caixa. Cremos que não existem dúvidas de que a contabilidade estava absolutamente desconforme, tal como claramente explicou o Administrador da Insolvência, ouvido em juízo. De forma concreta, sabedora, contextualizada e falando sempre de um modo certeiro e sem rebuço, o Administrador da Insolvência soube explicitar como a contabilidade evidenciava valores que não traduziam, de todo em todo, a situação económica da empresa e, concretamente, as suas disponibilidades financeiras. Não podemos deixar de reter que a desorganização da contabilidade já vinha de um período anterior à assunção das funções de gerente por parte da requerida. Isso mesmo foi confirmado pelo sr. Dr. N. S.. No entanto, ainda que assim seja (como parece que foi), essa circunstância não invalida a conclusão de que a requerida incumpriu dever de apresentar uma contabilidade regular no concreto período da sua gerência, bem devendo saber que esse era um dever que lhe cabia a ela e que não era delegável em qualquer uma das trabalhadoras, nem que a encarregada geral fosse sua mãe.
O período temporal de incumprimento da obrigação de manter a contabilidade organizada resulta da análise e da conjugação das datas vertidas nos autos e que se reportam à nomeação da gerente, à desconformidade da contabilidade e a causalidade decorre da presunção inilidível da verificação do facto índice (h) e i)). Os factos vertidos nas alíneas j), k), l) e m) resultam da análise dos créditos reconhecidos ao ISS e à Fazenda Nacional e que demonstram que a requerida cessou, de forma contínua, pagamentos que lhes eram devidos, o que é, quanto a nós, mais grave no que toca ao IVA cobrado e que deveria ser entregue e o não foi. Estes factos não foram postos em causa pela junção dos comprovativos remetidos pelo ISS e pela AT que comprovam a existência de acordos de pagamento e de pagamentos, relativos a períodos anteriores e que são, diremos nós, absolutamente pontuais. Das declarações prestadas pelo Administrador da Insolvência resulta, aliás, que a sociedade não tinha capacidade para assumir os compromissos mais básicos desde o ano de 2015.
Quanto aos factos vertidos na alínea n):

Relembremos que, segundo o nosso mais recente e ponderado entendimento, teria que haver prova do nexo causal entre o comportamento presumido gravemente culposo da gerente em não se apresentar à insolvência para a causa ou agravação da situação de insolvência.
Ora, da não apresentação à insolvência – decorrente, segundo alega, a requerida da sua própria ignorância, dado que determinou o encerramento do estabelecimento, nada mais fazendo – resultou um avolumar de dezenas de milhares de euros de dívidas fiscais.
A crença injustificada de que tudo melhoraria não obsta a que se deva considerar que a inércia da gerente (ainda que decorrente de uma esperança infundada trazida pelas próprias trabalhadoras), ela sim responsável, implicou um avolumar de dívidas que se mostrou decisivo para o descalabro financeiro da requerida.”
O tribunal procedeu à audição integral das declarações da gerente e de todos os depoimentos prestados na audiência de julgamento. Analisou também os diversos documentos juntos aos autos. Revistos todos os meios de prova produzidos, formula este Tribunal da Relação uma convicção em tudo coincidente à do Tribunal a quo.
Com efeito, a fundamentação constante da sentença recorrida é clara e consistente, tendo o tribunal a quo esclarecido como formou a sua convicção, como valorou a prova, como a articulou, e qual a análise crítica a que a submeteu.
E assim, atentos todos os depoimentos prestados, ponderando as razões de facto expostas pela recorrente em confronto com as razões de facto consideradas na decisão, após audição integral das declarações e depoimentos e análise dos elementos documentais, formamos convicção coincidente com a convicção do tribunal recorrido.
Destarte, porque os elementos probatórios não impõem de forma alguma decisão diversa, inevitável é manter a decisão proferida pelo tribunal a quo relativa à matéria de facto no que concerne às alíneas e), i), l), m) e n) que se devem considerar como provadas, na parte em que contêm factos. Com efeito, necessário será expurgar de tais alíneas a matéria conclusiva e os conceitos de direito que aí constam, matéria que adiante se analisará.
*
A recorrente pretende que as als. a), b), c), d), f), g), i) e j) sejam retiradas dos factos não provados e passem a integrar os factos provados.
Alicerça tal pretensão nas declarações de parte, nos depoimentos das testemunhas inquiridas e nos documentos juntos aos autos, entendendo que tais elementos probatórios têm de levar à conclusão que a aludida matéria se mostra provada.

As als. a), b), c), d), f), g), i) e j) têm a seguinte redação:

a) A Oponente nunca tenha recebido qualquer proveito, lucro ou mera gratificação em razão de ter aceitado colaborar com o pedido de ajuda que lhe foi dirigido para ser a titular da quota social da sociedade;
b) Os contactos com a contabilidade da empresa fossem escassos;
c) A Oponente desconhecesse que não estavam a ser entregues na contabilidade todos os documentos, respeitantes aos pagamentos que a mesma ia fazendo, em regra a dinheiro, ou então a partir da sua própria conta bancária;
d) A oponente não conseguisse contactar diretamente com o respetivo contabilista, pedindo à mãe, encarregada geral, que entregasse no escritório daquele os recibos comprovativos dos pagamentos realizados;
f) A Oponente tivesse dado instruções para que todos os recibos e comprovativos dos pagamentos efetuados com dinheiro ou efetuados através de cheques ou transferências que realizava a partir da sua conta bancária, fossem entregues na contabilidade;
g) A Oponente tivesse descoberto só muito mais tarde que grande parte desses recibos e documentos comprovativos dos pagamentos efetuados acabaram por não chegar ao escritório onde era organizada a contabilidade da sociedade;
i) A oponente desconhecesse a desconformidade na contabilidade, por ter confiado que estavam a ser entregues pela encarregada geral ou até por quem com a mesma mais diretamente colaborava e trabalhava, na contabilidade, todos os comprovativos dos pagamentos que semana a semana eram feitos e os quais têm de abater ao dito saldo devedor da caixa social;
j) A oponente tenha aplicado o dinheiro que ganhava no seu emprego, como trabalhadora por conta de outrem nos pagamentos realizados à Segurança Social.

Na sentença consta a seguinte fundamentação:

Quanto aos factos dados como não provados, os mesmos resultam de não ter existido, quanto a eles, prova suficiente.
Se a requerida não obteve qualquer vantagem durante o tempo que mediou entre a sua nomeação e a declaração de insolvência, desconhece-se em absoluto.
Quanto ao desconhecimento que invoca relativo à desorganização da contabilidade, temos para nós que, ouvidas as suas próprias declarações e as da mãe, recorrendo às regras da experiência comum e sendo a requerida economista, afigura-se-nos implausível que tivesse poucos contactos com a contabilidade ou que desconhecesse qual o destino dos documentos relativos a pagamentos realizados. Ademais, fácil teria sido chamar a depor o contabilista da sociedade, sendo que nada se apurou quanto às dificuldades de contacto entre a gerente e este ou quanto à decisão tomada para se usar a conta de caixa ou qual a influência da penhora da conta bancária na gestão contabilística da sociedade.
Por outro lado, apesar de não ser presença diária, a requerida deslocava-se à sociedade, não se nos afigurando plausível que a sua descoberta quanto a total desorganização da contabilidade tivesse ocorrido muito mais tarde.
Aliás: sendo a sociedade uma pequena laboração, com apenas um cliente e poucos encargos, não se vislumbra que existisse assim tanta dificuldade em perceber a (des)organização a que chegara.
Por outro fim, nenhuma prova foi feita de pagamentos realizados com dinheiro próprio da requerida durante o período de laboração.”

Também quanto a esta matéria, depois de analisada toda a prova documental constante dos autos e as declarações e depoimentos prestados, se conclui que estes elementos probatórios não impõem decisão diversa da que foi tomada em 1ª instância, não havendo prova bastante da veracidade dos factos impugnados, os quais, pelas razões aduzidas na sentença que supra se enunciaram, com as quais se concorda por espelharem o que resulta da prova produzida, não impõem decisão diversa.
Assim sendo, a matéria das alíneas a), b), c), d), f), g), i) e j) dadas como não provadas não se pode considerar provada, concluindo-se pela improcedência da apelação quanto a tal questão.
*
Eliminação de matéria conclusiva e/ou de direito dos factos provados

Dispunha o artigo 646º, nº 4, do anterior CPC, que se têm por não escritas as respostas do tribunal sobre questões de direito.
Pese embora esta norma não tenha transitado expressamente para o atual Código de Processo Civil, o comando ínsito na mesma mantém-se incólume e em plena vigência face à correta interpretação das regras processuais vigentes.
Com efeito, nos termos do art. 607º, nº 4, do CPC vigente, devem constar da fundamentação da sentença os factos julgados provados e não provados.
De tal norma decorre naturalmente que da sentença, na parte relativa ao acervo factual, só podem constar factos, e não juízos conclusivos, conceitos normativos e matéria de direito. Como referido no Acórdão da Relação de Évora, de 28.6.2018 (in www.dgsi.pt), na seleção dos factos em sede decisão da matéria de facto deve atender-se à distinção entre factos, direito e conclusão, acolher apenas o facto simples e afastar de tal decisão os conceitos de direito e as conclusões que mais não são que a lógica ilação de premissas, atendendo a todos os factos relevantes, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito.
Por isso, se a matéria factual selecionada na sentença não respeitar estes limites tem de ser expurgada de todos os elementos que integrem matéria de direito, juízos de valor ou conclusivos e afirmações que se insiram na análise das questões jurídicas que definem o objeto da ação e suscetíveis de conduzir, só por si, ao desfecho da ação.
Neste mesmo sentido, veja-se o Acórdão do STJ, de 28.9.2017, (in www.dgsi.pt) segundo o qual “muito embora o art. 646.º, n.º 4, do anterior CPC tenha deixado de figurar expressamente na lei processual vigente, na medida em que, por imperativo do disposto no art. 607.º, n.º 4, do CPC, devem constar da fundamentação da sentença os factos julgados provados e não provados, deve expurgar-se da matéria de facto a matéria susceptível de ser qualificada como questão de direito, conceito que, como vem sendo pacificamente aceite, engloba, por analogia, os juízos de valor ou conclusivos.

Ora, no caso em apreço, está em causa a qualificação da insolvência como culposa.
Como tal não podem constar da matéria de facto juízos valorativos que só por si determinam o desfecho da ação.

Face a esta orientação, a al. h) cuja redação é:

A violação da obrigação de manter a contabilidade organizada prejudicou de forma relevante a compreensão da situação patrimonial e financeira por evidenciar valores de ativos inexistentes;

contém matéria de direito e conclusiva, que deve ser eliminada, pelo que passará a ter a seguinte redação:

h) A não manutenção da contabilidade organizada prejudicou a compreensão da situação patrimonial e financeira por evidenciar valores de ativos inexistentes.

Em consonância com o expendido, o segmento da al. i) dos factos provados onde consta que a atuação animada de culpa grave foi causal e determinante da criação do estado de insolvência integra matéria conclusiva e de direito que tem de ser eliminada dos factos provados. Trata-se de uma conclusão a que se tem de chegar em sede de subsunção jurídica, aplicando o direito aos factos provados, não podendo ser incluída em sede de apuramento do acervo factual.

Assim sendo, altera-se a al. i) a qual passará a ter a seguinte redação:

i) A atuação por parte da gerente da sociedade insolvente, no que tange à desconformidade da contabilidade, decorreu no limite temporal de três anos antecedentes a 15-01-2018 (data em que foi requerida a insolvência pelas várias credoras).

A alínea n) tem a seguinte redação:

n) A atuação animada de culpa grave por parte da gerente da sociedade insolvente em não a apresentar à insolvência, foi causal e determinante do agravamento do estado de insolvência, ao ponto de impedir qualquer viabilização da atividade da empresa;

Esta alínea não contém qualquer facto, mas sim matéria de direito e conclusiva, razão pela qual, face ao que atrás se referiu, tem de ser eliminada dos factos provados.

Em face das alterações ora introduzidas, e para mais fácil compreensão, reproduz-se aqui a matéria de facto a considerar na decisão a proferir:

a) X, Unipessoal, Lda., sociedade comercial por quotas de responsabilidade limitada, com o NIPC ... e a sede na Rua …, concelho de Vila Nova de Famalicão, iniciou atividade em 02-02-2012, tendo-se dedicado, com carácter de regularidade e intuito lucrativo, à indústria de “confeção têxtil”, com o capital social de 1,00€;
b) A sociedade tinha, inicialmente, como única sócia C. M..
c) J. J. foi nomeada como gerente de direito em 31/7/2015, nomeação essa registada em 02/8/2015, aquando da aquisição da quota única da sociedade;
d) Porque a sociedade X, Unipessoal, Lda. não cumpria generalizadamente as suas obrigações vencidas, designadamente, a obrigação de pagar às suas trabalhadoras I. M., M. A., S. G., M. G., M. E., A. F. e A. P., os créditos salariais a que tinham direito, e que na sua globalidade ascendiam a 71.031,39€, foi pelas mesmas requerida a insolvência daquela em 22-01-2018, a qual foi decretada por sentença publicada no portal “Citius” em 27-02-2018.
e) A gerente da sociedade insolvente não cuidou da organização da contabilidade desta em correspondência com a realidade.
f) A contabilidade da insolvente contém inscritos valores contraditórios ou incongruentes entre si, os quais, no contexto económico vivido, se configuram de verificação impossível - face às regas da experiência comum - atenta a concreta atividade desenvolvida pela insolvente, designadamente: - a última informação contabilística existente, reportada ao mês de Dezembro de 2017 (mês 13, que em termos de processamento, corresponde ao período de apuramento de resultados), conforme balancete geral desse período, contém mencionada a existência de um saldo devedor da conta “111 - Caixa” de Euros 135,124.57, valor este que não foi apreendido no processo de insolvência por inexistir;
g) A existência deste saldo na contabilidade, num valor materialmente relevante (superior ao volume de negócios da sociedade insolvente nos anos de 2016 e 2017), e sem que o mesmo exista, deturpa, por completo, a análise da situação financeira da sociedade insolvente (ao apontar uma grande liquidez que não existia);
h) A não manutenção da contabilidade organizada prejudicou a compreensão da situação patrimonial e financeira por evidenciar valores de ativos inexistentes.
i) A atuação por parte da gerente da sociedade insolvente, no que tange à desconformidade da contabilidade, decorreu no limite temporal de três anos antecedentes a 15-01-2018 (data em que foi requerida a insolvência pelas várias credoras).
j) Desde pelo menos os princípios de 2015 que a sociedade insolvente se encontrava incapacitada de cumprir as suas obrigações vencidas, ao ponto de não pagar sistematicamente as contribuições para a Segurança Social que, no período compreendido entre janeiro de 2015 e dezembro de 2017, atingiram o valor global de 67.986,06€ (valor a que acrescem juros de mora e custas);
k) A sociedade deixou de pagar os impostos, coimas e custas devidos à Autoridade Tributária e Aduaneira, que se venceram a partir de 7-3-2017 e que totalizaram 36.806, 71€, dos quais se destacam o IVA do 4º trimestre de 2016 e de todo o ano de 2017 num total de 24,672,00€;
l) A não apresentação à insolvência conduziu, além do mais, a um avolumar de dívidas ao Instituto da Segurança Social, IP em pelo menos €59013,81, valor das contribuições reclamadas deduzidos do valor das contribuições dos meses de janeiro a maio de 2015 e à Autoridade Tributária e Aduaneira;
m) A sociedade insolvente manteve-se durante mais de 2 anos em situação de incumprimento com a Autoridade Tributária e Aduaneira e com o Instituto da Segurança Social, IP, o que agravou não só a sua situação financeira (pelo acumular de dívidas com estes credores), como dificultou ou impossibilitou o ressarcimento dos demais credores (atenta a natureza privilegiada daqueles créditos);
o) O Administrador da Insolvência logrou apreender para a massa bens móveis no escasso valor de 1.100,00€;
p) No processo de insolvência foram reclamados, conhecidos e reconhecidos pelo Administrador de Insolvência créditos no valor global de Euros 208.260,71€;

E, ainda, que:

q) A gerente acedeu ao pedido que lhe foi dirigido no sentido de viabilizar a empresa, por forma a salvaguardar os postos de trabalho das trabalhadoras que eram pessoas com carências económicas e com dificuldade em conseguirem outro posto de trabalho compatível com a idade e habilitações;
r) A oponente acedeu ao pedido, convencida que as previsões de angariação de novos clientes e trabalho mais lucrativo para a empresa iriam permitir a viabilização da mesma;
s) A Oponente não recebia qualquer remuneração em razão do exercício da gerência da sociedade;
t) A Oponente, que trabalhava por conta de outrem como assalariada e com horário de trabalho fixo, assim continuou enquanto era gerente da sociedade;
u) E sempre foi, como trabalhadora por conta de outrem, designadamente das empresas:
a) “X Indústrias de Plásticos, S.A.”, onde trabalhou desde 31/12/2014 até 20/01/2017;
b) “C. C. Lda.” onde trabalhou entre Fevereiro de 2017 e até Junho desse mesmo ano;
c) “Y-Industria e Comércio, S.A.” onde trabalha desde 10/07/2017, e até ao dia de hoje, que a Oponente, sem conseguir estar sempre presente nas instalações da empresa, mas confiando nas informações que lhe eram prestadas pela encarregada geral e pelas trabalhadoras com quem contactava, ia seguindo o evoluir do negócio da sociedade;
v) As trabalhadoras prometiam-lhe que a produção iria aumentar e que a margem de rentabilidade do negócio do trabalho a feitio que aquela pequena confeção de vestuário produzia iria igualmente aumentar, tornando a pequena empresa rentável e sustentável no futuro;
w) A sociedade tinha apenas 1 cliente – W- Unipessoal, Lda. – trabalhando 100% a feitio para esse mesmo cliente;
x) O preço do trabalho a feitio das peças entregues e contratadas com essa única cliente foi sendo sucessivamente diminuído, dado que a cliente impunha tal condição para continuar a fornecer encomendas e a “dar trabalho”;
y) Em meados de 2016, essa cliente deixou de fornecer encomendas, cessando a sua relação comercial com a sociedade Insolvente;
z) Repentinamente, a Oponente viu que a empresa não tinha trabalho e anunciou que teria de encerrar a empresa e despedir todas as trabalhadoras que então eram em número de 12;
aa) Todavia, as trabalhadoras novamente resistiram a tal intenção da Oponente e fizeram diligências para que a sociedade encontrasse um outro cliente;
bb) Passaram, então, a trabalhar também 100% a feitio para uma outra empresa denominada de “Z-S.A.”, a qual lhes passou a entregar trabalho para a confeção a feitio de roupa para senhora, quando antes a confeção consistia em confecionar, também a feitio, roupa para criança;
cc) Tal mudança teve um período de adaptação com uma produção que não acompanhava os custos;
dd) Em face dos primeiros atrasos de pagamento das cotizações à Segurança Social, surgiram os primeiros processos executivos instaurados contra a sociedade pela Segurança Social, que conduziram à penhora do saldo da conta bancária;
ee) A Oponente, que havia diligenciado a celebração de acordos - PERES – com a Segurança Social, por forma a pagar os valores em dívida em prestações mensais, deixou de poder utilizar a conta bancária da sociedade que havia sido objeto de penhora e se encontrava bloqueada;
ff) Os pedidos e a pressão das trabalhadoras para que continuasse levaram-na a acreditar que esse mau período iria ser ultrapassado e que a empresa iria conseguir equilibrar a produção e equilibrar as receitas com as despesas;
gg) A própria representante da nova cliente, para quem a empresa insolvente passou a trabalhar, também em exclusividade e a feitio, prometeu-lhe que ajudaria na formação das trabalhadoras para que as mesmas conseguissem aumentar a capacidade e qualidade produtiva;
hh) Sem poder estar no dia a dia nas instalações da empresa, a Oponente continuou a iludir-se e a deixar-se influenciar pelos conselhos, quer da encarregada geral – sua Mãe –, quer das demais trabalhadoras daquela pequena confeção;
ii) A contabilidade passou a fazer os lançamentos contabilísticos por caixa ou através da caixa social, o que provocou desfasamento entre os pagamentos de despesas e custos da empresa efetivamente realizados e os pertinentes lançamentos dos recibos na contabilidade;
jj) Ficaram por lançar na contabilidade da sociedade diversos valores e despesas efetivamente pagas aos credores, designadamente:
i. Na conta 62412 - custos de eletricidade – o valor em dívida ali assinalado como €.1.981,75, não estava e não está correto, dado que em dívida estava então apenas o valor de €480,00;
ii. O senhorio do armazém não emitiu recibos respeitantes aos pagamentos que lhe eram efetuados pela Oponente, pelo que o saldo de caixa aumentava no valor exatamente proporcional à falta de entrega de tais recibos;
iii. Na conta 245 – contribuições para a Segurança Social – erradamente constava como estando em divida o valor de €.111.545,10, quando este era no montante de € 66.476,59;
iv. Resulta daqui uma diferença de falta de lançamento dos recibos de pagamentos à Segurança Social na contabilidade da insolvente e que deveriam ter sido lançados a crédito na caixa social de € 45.068,51;
kk) A oponente procurou salvaguardar os postos de trabalho;
ll) Enganou-se e foi enganada nas previsões feitas a propósito das probabilidades de a empresa conseguir aguentar durante algum tempo com prejuízos, para depois melhorar a sua rentabilidade produtiva e a sua rentabilidade económica, angariando receita que cobrisse aqueles prejuízos e que a fizesse singrar com resultados positivos;
mm) Celebrou acordos de pagamento em prestações das dívidas à segurança social, tendo realizados alguns pagamentos;
nn) As promessas que lhe foram feitas não chegaram a ser cumpridas e não conseguiu que a única cliente aceitasse o aumento do preço do trabalho a feitio que a empresa vinha praticando, tal como não conseguiu o necessário aumento da produtividade no fabrico das peças de roupa encomendadas;
oo) Tudo contra a sua vontade e em derrota do esforço e empenho que sempre colocou para salvar a empresa e salvaguardar os postos de trabalho.

II – Inexistência de pressupostos legais para a declaração da insolvência como culposa

Vejamos então se se verificam os pressupostos legais relativos à declaração da insolvência como culposa.
Como decorre do art. 185º, do CIRE, a insolvência pode ser qualificada como culposa ou fortuita.
O incidente de qualificação constitui uma fase do processo de insolvência que se destina a averiguar quais as razões que conduziram à situação de insolvência e, consequentemente, se essas razões foram puramente fortuitas ou correspondem antes a uma atuação negligente ou mesmo com intuitos fraudulentos do devedor (Acórdão da Relação do Porto, de 23.4.2018, in www.dgsi.pt)

O art. 186º do mesmo diploma legal define os casos de insolvência culposa pelo que a noção de insolvência fortuita encontra-se por exclusão de partes, sendo fortuita a insolvência que não se possa qualificar como culposa à luz dos critérios definidos no art. 186º, do CIRE.

Dispõe o art. 186º do CIRE o seguinte:

1 - A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
2 - Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;
b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas;
c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação; d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
e) Exercido, a coberto da personalidade coletiva da empresa, se for o caso, uma atividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa;
f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse direto ou indireto;
g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;
h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;
i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no n.º 2 do artigo 188.º
3 - Presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido:
a) O dever de requerer a declaração de insolvência;
b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.
4 - O disposto nos n.os 2 e 3 é aplicável, com as necessárias adaptações, à atuação de pessoa singular insolvente e seus administradores, onde a isso não se opuser a diversidade das situações.
5 - Se a pessoa singular insolvente não estiver obrigada a apresentar-se à insolvência, esta não será considerada culposa

No nº 1 do art. 186º consta a definição de insolvência culposa a qual tem como requisitos:

1) o facto inerente à atuação, por ação ou omissão, do devedor ou dos seus administradores, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência;
2) a culpa qualificada (dolo ou culpa grave);
3) e o nexo causal entre aquela atuação e a criação ou o agravamento da situação de insolvência.

Esta definição geral aplica-se a qualquer insolvente, seja ele pessoa coletiva ou singular.
Nas alíneas a) a i), do nº 2, do art. 186º, do CIRE, tipifica-se taxativamente um conjunto de situações que quando se verifiquem integram uma presunção iuris et de iure de que a insolvência é culposa.
Bem se compreende que assim seja pois aí se elenca uma série de comportamentos que afetam negativamente, e de forma muito significativa, o património do devedor, e eles próprios apontam, de modo inequívoco, para a intenção de obstaculizar ou dificultar gravemente o ressarcimento dos credores, justificando-se, por isso, que se estabeleça uma presunção inilidível de que a insolvência é culposa quando tais comportamentos se verifiquem.
No caso das várias alíneas do nº 2, do art. 186º, uma vez demonstrado o facto nelas enunciado, fica, desde logo, estabelecido o juízo normativo de culpa do administrador, sem necessidade de demonstração do nexo causal entre a omissão dos deveres constantes das diversas alíneas do n.º 2 e a situação de insolvência ou o seu agravamento. Destarte, a simples ocorrência de alguma das situações elencadas nas diversas alíneas do nº 2 do sobredito art. 186º conduz inexoravelmente à atribuição de carácter culposo à insolvência, ou seja, à qualificação de insolvência como culposa (Acórdãos da Relação de Guimarães, de 29.6.2010 e 1.6.2017 in www.dgsi.pt).

Em suma, e como se escreve no Acórdão desta Relação de Guimarães, de 1.6.2017, (in www.dgsi.pt)Esta previsão legislativa emerge da circunstância de a indagação do carácter doloso ou gravemente negligente da conduta do devedor, ou dos seus administradores, e da relação de causalidade entre essa conduta e o facto da insolvência ou do seu agravamento, de que depende a qualificação da insolvência como culposa, se revelar muitas vezes extraordinariamente difícil.
Assim, e em ordem a possibilitar essa qualificação, o legislador consagrou um conjunto tipificado (e taxativo) de factos graves e de situações que exigem uma ponderação casuística, temporalmente balizadas pelo período correspondente aos três anos anteriores à entrada em juízo do processo de insolvência.
Neste âmbito temporal, e perante a prova dos aludidos factos índice, previstos no nº 2 do citado art. 186º, a lei não presume apenas a existência de culpa, mas também a existência da causalidade entre a actuação e a criação ou o agravamento do estado de insolvência, para os fins previstos no nº 1 do art. 186º do CIRE.”
Neste mesmo sentido entendeu o Acórdão do STJ de 15.2.2018 (in www.dgsi.pt) que “o nº 2 do art. 186º do CIRE estabelece presunções iuris et de iure, quer da existência de culpa grave, quer do nexo de causalidade do comportamento do insolvente, para a criação ou agravamento da situação de insolvência.”

No nº 3, do art. 186º, do CIRE, estabelecem-se meras situações de presunção iuris tantum de culpa grave do administrador ou gerente que incumpriu algum dos deveres mencionados nas alíneas a) e b), ou seja, o dever de requer a declaração de insolvência e a obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.
Tratando-se de presunções iuris tantum, as mesmas são ilidíveis por prova em contrário, nos termos do art. 350.º, n.º 2, do CC.
Significa isto que, uma vez constatada a omissão de algum dos deveres enunciados nas ditas alíneas, a lei faz presumir a culpa grave do administrador ou gerente.
Mas porque a culpa grave, assim presumida, por si só não é suficiente para qualificar a insolvência como culposa, por faltar um dos requisitos previstos no nº 1 do citado art. 186º, necessário se torna demonstrar o nexo de causalidade entre aquela omissão culposa e a criação ou o agravamento da situação de insolvência.
E bem se compreende, nestas situações, a necessidade de verificação deste requisito, ou seja, que foram essas omissões que provocaram a insolvência ou a agravaram.
É que o administrador ou gerente pode ter atuado com culpa grave mas em nada ter contribuído para a criação ou o agravamento da situação de insolvência” (Acórdão da Relação de Guimarães, de 29.6.2010, in www. dgsi.pt).

Diversamente da noção geral constante do nº 1, as presunções das diversas alíneas dos nº 2 e 3, do art. 186º, apenas se aplicam a insolvente que não seja pessoa singular, salva a hipótese prevista no nº 4.

Feito o enquadramento jurídico relativo à qualificação da insolvência como culposa, revertamos agora ao caso concreto.
Nas suas alegações de recurso, a recorrente invoca que nunca exerceu as funções de gerente, nem de facto nem de direito, as quais eram exercidas por F. C., e invoca ainda a existência de um ato simulado.
Estas duas questões não foram suscitadas no tribunal recorrido e, como tal, não foram objeto de apreciação da sentença. Trata-se de questões que surgem pela primeira vez nas alegações de recurso.

Como escreve António Santos Abrantes Geraldes (in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª ed., pág. 119) “a natureza do recurso, como meio de impugnação de uma anterior decisão judicial, determina outra importante limitação ao seu objeto decorrente do facto de, em termos gerais, apenas poder incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se o tribunal ad quem com questões novas.
Na verdade, os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas, e não analisar questões novas, salvo quando (...) estas sejam de conhecimento oficioso (...). Seguindo a terminologia proposta por Teixeira de Sousa, podemos concluir que tradicionalmente temos seguido um modelo de reponderação que visa o controlo da decisão recorrida, e não um modelo de reexame que permita a repetição da instância no tribunal de recurso.”

Como se escreveu no Acórdão desta Relação de 8.11.2018 (in www.dgsi.pt)por definição, a figura do recurso exige uma prévia decisão desfavorável, incidente sobre uma pretensão colocada pelo recorrente perante o Tribunal recorrido. Só se recorre de uma decisão que analisou uma questão colocada pela parte e a decidiu em sentido contrário ao pretendido (...). A única exceção a esta regra, como bem se compreende, são as questões de conhecimento oficioso, das quais o Tribunal tem a obrigação de conhecer, mesmo perante o silêncio das partes. Não sendo uma situação de conhecimento oficioso, não pode o Tribunal superior apreciar uma questão nova, por pura ausência de objeto: em bom rigor, não existe decisão de que recorrer. É um caso de extinção do recurso por inexistência de objeto.
O não exercício da gerência e a existência de ato simulado são questões novas que não podem ser apreciadas em sede de recurso.
É verdade que um negócio simulado é nulo (art. 240º, nº 2, do CC) e que a nulidade pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal (art. 286º, do CC).
Porém, para que tal declaração oficiosa ocorra é necessário que dos factos provados decorra a existência de alguma nulidade. Ora, percorrendo o elenco dos factos provados, não é possível concluir de forma alguma pela verificação de uma nulidade.
Por tal motivo, no concreto caso em apreço, não se pode considerar que a invocação pela primeira vez em sede recurso de ato simulado constitua questão de conhecimento oficioso, sendo antes uma questão nova.
Assim, este Tribunal da Relação não irá conhecer das referidas questões, por impossibilidade legal.
*
No que respeita ao não exercício de facto das funções de gerente, tal questão foi suscitada na 1ª instância e aí apreciada.
Por isso, em sede de recurso, pode tal matéria ser apreciada, o que se fará adiante.
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Vejamos, então, se, face ao acervo factual provado, é possível concluir pela inexistência de insolvência culposa, como pretendido pela recorrente.

A sentença considerou preenchida a previsão do art. 186º, nº 2, al. h) do CIRE a qual se refere ao incumprimento em termos substanciais da obrigação de manter contabilidade organizada ou à manutenção de uma contabilidade fictícia ou de uma dupla contabilidade ou à prática de irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor.
A recorrente considera que não era ela que exercia as funções de gerente de facto e entende que, por isso, não pode ser responsabilizada pela qualificação da insolvência como culposa.
O art. 186º, nº 1, do CIRE, para efeitos de qualificação da insolvência como culposa, alude à atuação do devedor ou dos seus administradores de direito ou de facto.

Sobre esta matéria acompanhamos na íntegra os argumentos expendidos no Acórdão da Relação de Coimbra, de 11.12.2012 (in www.dgsi.pt) onde se considerou:

“Pensamos que, com esta previsão o legislador não visa excluir os administradores de direito que não exerçam as funções de facto, (...) mas, ao invés, veio estender a qualificação a actos praticados por administradores de facto.
Assim, por via desta importante previsão, a qualificação abrange quer os administradores de direito, ou seja, os administradores legalmente designados constantes do contrato de sociedade e do registo comercial; e os administradores de facto, entendidos estes como as pessoas que praticam actos de administração sem que se encontrem legalmente nomeados como titulares do cargo que exercem. (...)
De facto, os administradores da sociedade devem observar os deveres fundamentais previstos no artigo 64.º do CSC, são responsáveis perante a sociedade nos termos previstos no artigo 72.º, mormente quando não tenham exercido o direito de oposição conferido na lei, e tal responsabilidade não pode ser excluída por cláusula em contrário do contrato que, se ali foi inserta, é nula por força do disposto no artigo 74.º do referido diploma legal.”

Ora, no caso em apreço, é evidente que a recorrente é gerente de direito, como resulta do facto provado c), tendo sido nomeada como gerente em 31.7.2015 e estando tal nomeação registada desde 2.8.2015.
Como tal, detendo a recorrente a qualidade de gerente de direito é manifesto que a insolvência que seja declarada culposa a tem de abranger, ainda que a gerência de facto seja exercida por terceiro. Na verdade, a finalidade da lei foi alargar a responsabilização, incluindo quer os gerentes de facto quer os de direito, nos casos em que as funções de gerência não estão reunidas na mesma pessoa, e não restringi-la aos gerentes de facto, com exclusão dos gerentes de direito.
*
No caso em análise provou-se que a recorrente J. J. é gerente da sociedade insolvente desde 31.7.2015 – cf. facto provado c).
Provou-se que a gerente não cuidou da organização da contabilidade em correspondência com a realidade, tendo a contabilidade valores contraditórios ou incongruentes entre si, mencionando a existência de um saldo devedor de € 135 124,57 que não existia. Tal saldo inexistente é superior ao volume de negócios da sociedade nos anos de 2016 e 2017. A não manutenção da contabilidade organizada prejudicou a compreensão da situação patrimonial e financeira por evidenciar valores de ativos inexistentes. Provou-se ainda que a atuação por parte da gerente da sociedade insolvente, no que tange à desconformidade da contabilidade, decorreu no limite temporal de três anos antecedentes a 15-01-2018 (data em que foi requerida a insolvência pelas várias credoras) – cf. factos provados e), f), g), h) e i).
A contabilidade de uma sociedade destina-se, no essencial, a dar uma imagem correta e transparente da real situação económica e financeira da sociedade.
Ora, no caso, a discrepância entre o saldo contabilístico e a realidade é na ordem dos € 135 000, valor este que não tem existência física. Trata-se de um valor muito relevante na medida em que corresponde ao volume de negócios da sociedade dos anos de 2016 e 2017.
Por conseguinte, a sobredita irregularidade não pode deixar de cair na previsão da alínea h) do n.º 2 do artigo 186º.
E, como supra se explanou, uma vez verificado o preenchimento de uma das alíneas do nº 2 do art. 186º, do CIRE, tal conduz inexoravelmente à atribuição de carácter culposo à insolvência.
Perante esta conclusão torna-se irrelevante analisar a questão da violação do dever de apresentação à insolvência, o qual, nos termos do art. 186º, nº 3, do CIRE, apenas faria presumir a existência de culpa grave da atuação da gerente, presunção esta que se mostra prejudicada face ao preenchimento do disposto na alínea h) do n.º 2 do artigo 186º, do mesmo diploma legal, que, sem mais, leva à qualificação da insolvência como culposa.

III – Fixação da indemnização devida aos credores

Na sentença, a propósito da indemnização, decidiu-se:

“condenar a gerente a indemnizar os credores da devedora declarada insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do respectivo património [artº 189º, nº 2, al. e), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas].”

A recorrente discorda desta condenação, considerando que na quantificação da indemnização devia o tribunal ter tido em atenção o facto da apelante ter sido motivada a aceitar que o seu nome fosse colocado como aparente “gerente de direito” da sociedade por razões de ajuda, gratidão, amor filial e solidariedade para com as trabalhadoras e colegas da sua mãe, motivos socialmente compreensíveis e denotando um total desprendimento de interesses económicos e solidariedade para com 10 pessoas que se encontravam em situação de desemprego iminente.

Vejamos então em que termos deve ser fixada a indemnização.

Dispõe o art. 189º, do CIRE que:

1 - A sentença qualifica a insolvência como culposa ou como fortuita.
2 - Na sentença que qualifique a insolvência como culposa, o juiz deve:
a) Identificar as pessoas, nomeadamente administradores, de direito ou de facto, técnicos oficiais de contas e revisores oficiais de contas, afetadas pela qualificação, fixando, sendo o caso, o respetivo grau de culpa;
b) Decretar a inibição das pessoas afetadas para administrarem patrimónios de terceiros, por um período de 2 a 10 anos;
c) Declarar essas pessoas inibidas para o exercício do comércio durante um período de 2 a 10 anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa;
d) Determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelas pessoas afectadas pela qualificação e a sua condenação na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos.
e) Condenar as pessoas afetadas a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças dos respetivos patrimónios, sendo solidária tal responsabilidade entre todos os afetados.
3 - A inibição para o exercício do comércio tal como a inibição para a administração de patrimónios alheios são oficiosamente registadas na conservatória do registo civil, e bem assim, quando a pessoa afetada for comerciante em nome individual, na conservatória do registo comercial, com base em comunicação eletrónica ou telemática da secretaria, acompanhada de extrato da sentença.
4 - Ao aplicar o disposto na alínea e) do n.º 2, o juiz deve fixar o valor das indemnizações devidas ou, caso tal não seja possível em virtude de o tribunal não dispor dos elementos necessários para calcular o montante dos prejuízos sofridos, os critérios a utilizar para a sua quantificação, a efetuar em liquidação de sentença.

Da conjugação do disposto na al. e), do nº 2, com o nº 4, do art. 189º, do CIRE, resulta que a al. e) não pode ser interpretada no sentido de que o valor da indemnização é fixo e que corresponde sempre ao montante dos créditos não satisfeitos pois tal interpretação levantaria problemas de constitucionalidade por violação do princípio da proporcionalidade e da proibição do excesso.

Sobre esta matéria refere o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 280/2015, (publicado na II série, do DR, de 16.6.2015) que “esses efeitos jurídicos são cumulativos e automáticos, como claramente decorre do proémio do n.º 2 do artigo 189.º, pelo que, uma vez proferida tal decisão, não pode o juiz deixar de aplicar todas essas medidas. Não obstante, a determinação do período de tempo de cumprimento das medidas inibitórias previstas nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 189.º do CIRE (inibição para a administração de patrimónios alheios, exercício de comércio e ocupação de cargo de titular de órgão nas pessoas coletivas aí identificadas) e, naturalmente, a própria fixação do montante da indemnização prevista na alínea e) do n.º 2 do mesmo preceito legal, deverá ser feita em função do grau de ilicitude e culpa manifestado nos factos determinantes dessa qualificação legal” (sublinhado nosso).
Significa isto que, embora o tribunal, em caso de insolvência culposa, tenha sempre que emitir uma condenação que abarque a matéria elencada nas als. a) a e), do nº 2, do art. 189º, do CIRE, na fixação do montante indemnizatório deve ponderar o grau de ilicitude e culpa do afetado, que deverá responder na medida em que o prejuízo possa/deva ser atribuído ao ato ou atos determinantes dessa culpa.
Com efeito, e como se escreveu no sumário do Acórdão da Relação de Coimbra, de 16.12.2015 (in www. dgsi.pt), “no que respeita ao “quantum” indemnizatório, atento o disposto no nº 4 do preceito, fica aberta a porta à possibilidade do juiz ter em consideração factores que, designadamente em razão das circunstâncias do processo, devam mitigar o recurso a meras operações aritméticas de passivo menos resultado do activo, nesta sede podendo/devendo ser ponderados o grau de ilicitude e culpa manifestadas nos factos determinantes da qualificação de insolvência.”

No caso em apreço, a insolvência foi declarada culposa em virtude de a gerente permitir a manutenção de uma contabilidade sem correspondência com a realidade, na qual constava um saldo no valor de € 135 124,57 que não existia na realidade.
Dos factos provados em q) e ss resulta que a culpa da gerente é diminuta pois a mesma acedeu a um pedido no sentido de viabilizar a empresa para salvaguardar os postos de trabalho das trabalhadoras que eram pessoas com carências económicas e com dificuldades em conseguirem um outro posto de trabalho; a gerente não recebia qualquer remuneração pelo exercício das funções de gerente; as trabalhadoras convenceram-na a não encerrar a empresa para não as despedir o que a fez acreditar que o mau período iria ser ultrapassado e iria ser possível o equilíbrio das despesas e receitas da empresa; a gerente, que não estava presente diariamente na empresa, deixou-se iludir e influenciar pelos conselhos da encarregada geral, que era sua mãe, e das demais trabalhadoras; a gerente fez acordos de pagamentos em prestações das dívidas à segurança social.
Deste conjunto de factos resulta claramente uma culpa diminuta.
Face a esta culpa diminuta e ao facto de a insolvência ter sido declarada culposa por existência de uma contabilidade adulterada, sem correspondência com a realidade, entende-se que a indemnização devida aos credores deve ser fixada na diferença entre o valor que deveria estar corretamente inscrito na contabilidade reportada a dezembro de 2017 e o valor que erradamente constava na contabilidade de € 135 124,57, reportada a esse mesmo mês de dezembro de 2017, montante indemnizatório a quantificar em sede de liquidação de sentença.

DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação parcialmente procedente e, em consequência:

A) revogam a 4ª parte do segmento decisório da sentença e condenam a gerente a indemnizar os credores da devedora declarada insolvente, até às forças do respetivo património, no montante correspondente à diferença entre o valor que deveria estar corretamente inscrito na contabilidade reportada a dezembro de 2017 e o valor que erradamente constava na contabilidade de € 135 124,57, reportada a esse mesmo mês de dezembro de 2017, montante indemnizatório a quantificar em sede de liquidação de sentença.
B) Quanto ao mais, mantêm a sentença recorrida.

Custas da apelação pela apelante na proporção de 2/3.
Notifique.
*
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Guimarães, 5 de março de 2020

(Relatora) Rosália Cunha
(1ª Adjunta) Lígia Venade
(2º Adjunto) Jorge Santos