Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
538/18.3PBVCT.G1
Relator: FÁTIMA FURTADO
Descritores: CRIME DE BURLA
ILÍCITO CIVIL
DOLO IN CONTRAHENDO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/08/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I. São elementos típicos do crime de burla simples:
- A «astúcia» empregue pelo agente;
- O «erro ou engano» da vítima devido ao emprego da astúcia;
- A «prática de atos» pela vítima em consequência do erro ou engano em que foi induzida;
- O «prejuízo patrimonial» da vítima ou de terceiro, resultante da prática dos referidos atos;
- Nexo de causalidade adequada entre os quatro elementos referidos nas quatro alíneas antecedentes, através de sucessivas relações de causa e efeito, ou seja, que da astúcia resulte o erro ou engano, do erro ou engano resulte a prática de atos pela vítima e da prática desses atos resulte o prejuízo patrimonial;
- A existência de dolo genérico, traduzido no dolo do tipo, que se refere ao conhecimento e vontade referidos a todos os pressupostos do tipo objetivo, e no dolo da culpa, traduzido na consciência, por parte do arguido, de que com a sua conduta sabe que atua contra direito, com consciência da censurabilidade da conduta.
Bem como o dolo adicional (específico) constituído pela intenção do agente obter um acréscimo para o seu património ou de terceiro (sem que se torne necessária a verificação do enriquecimento).
II. Nem sempre é fácil de determinar a fronteira entre o crime de burla e o simples ilícito civil, designadamente na modalidade de dolo in contrahendo.
É um indício fundamental da fraude constitutiva da burla que o propósito de enganar se verifique ab initio, precedendo ou sendo contemporâneo do negócio.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães.
(Secção Penal)

I. RELATÓRIO
No processo comum singular nº 538/18.3PBVCT, da Instância Local Criminal de Viana do Castelo, J1, da comarca de Viana do Castelo, foi submetido a julgamento o arguido J. C., com os demais sinais dos autos.

A sentença, proferida a 12 de maio de 2021 e depositada no mesmo dia, tem o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto e sem mais considerações, decide-se julgar improcedente a acusação e improcedente o pedido cível formulado e, em consequência:
- absolve-se o arguido J. C. da prática do crime de burla, p. e p. pelo art.217º, nº.1 do C.P., pelo qual vinha acusado; e,
- absolve-se o demandado do pedido contra ele formulado pelo demandante.
Sem custas criminais.
Sem custas cíveis.
Deposite.
Notifique.»
*
Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso, apresentando a competente motivação que remata com as seguintes conclusões:

«i. Nos presentes autos, por sentença datada de 12 de Maio de 2021, foi o arguido J. C. absolvido a prática do crime de burla, p. e p. pelo art.217.º, nº.1 do C.P., pelo qual vinha acusado.
ii. Não podemos, no entanto, conformar com a douta decisão, pretendendo-se que seja reapreciada a aplicação do Direito aos factos feitos na douta sentença proferida no que concerne ao crime de burla, previsto e punido, pelo artigo 217.º, n.º 1 do Código Pena.
iii. Da factualidade exposta, e dada como provada, resulta que o arguido nunca quis cumprir o acordado, e de forma astuciosa, levou o ofendido ao engano que lhe provocou o respectivo prejuízo patrimonial.
iv. Pretendeu assim o arguido, na prática, alcançar um lucro ilícito (e não o lucro do negócio), formulado ab initio, o seu propósito de enganar, ardilosamente, o ofendido em questão.
v. Não se pode descurar que na sentença em crise resulta provado que o arguido trocou mensagens com o ofendido através da plataforma X, entre os dias 2-2-2018 e, pelo menos, 6-3-2018; e na sequência de tal troca de mensagens, em 5-2-2018, o arguido forneceu o NIB da conta número ..................20, do Banco ..., titulada pela sua filha, B.V., para a qual deveria ser efectuado o pagamento da quantia de €560,00 (quinhentos e sessenta euros), a título de pagamento do identificado grelhador, acrescida de metade das despesas de transporte.
vi. Assim sendo, o engenho e astúcia utilizado pelo arguido determinou o erro e engano do ofendido que aceitou contratar com o arguido julgando que existia de parte a parte vontade de contratar, e nessa medida, cumpriu a sua obrigação de pagamento do preço acordado.
vii. É, precisamente, o convencimento sobre uma determinada verdade assegurada pelo arguido, manobrando em equívoco sobre pressupostos que não eram verdadeiros, que levou o ofendido à decisão que lhes provocou prejuízo patrimonial com o seu correspondente benefício, sendo seguro, como se deu por provado, que apenas por existir esse erróneo convencimento é que aquele actuou como exposto.
viii. Estão assim demonstrados, os pressupostos que compõe o crime de burla, tal como foram supra definidos, pelo que nenhuma dúvida se coloca, a nosso ver, quanto ao facto de o arguido ter cometido um crime de burla, p.p. pelo artigo 217.º do Código Penal.
ix. Destarte, fundamenta a Mm.ª Juiz a quo a sua decisão na circunstância de, aparentemente, a factualidade imputada ao arguido cair no âmbito do Direito Civil, mormente no instituto do incumprimento contratual.
x. Ora, não se pode olvidar, que os incumprimentos contratuais, bastantes vezes, são o instrumento para o cometimento do crime de burla, quando acompanhados de uma reserva mental antecedente.
xi. E, no caso concreto, a reserva mental do arguido, ou seja, o propósito originário de receber o pagamento e não efetuar a contraprestação devida está descrito no ponto 3 dos factos provados “3- Na sequência de tal troca de mensagens, em 5-2-2018, o arguido forneceu o NIB da conta número ..................20, do Banco ..., titulada pela sua filha, B.V., para a qual deveria ser efectuado o pagamento da quantia de €560,00 (quinhentos e sessenta euros), a título de pagamento do identificado grelhador, acrescida de metade das despesas de transporte;”.
xii. Salvo o devido respeito, que é muito, tal raciocínio choca com as mais elementares regras da experiência comum, segundo o ponto de vista de um homem médio que proceda à sua leitura, e contraria também as evidências plasmadas nos factos provados e não provados, bem como com o que consta depois na fundamentação de direito.
xiii. Pelo tudo o exposto, julgamos que o Tribunal a quo deveria ter decidido pela condenação da arguida pelo crime de burla p.p. pelos artigos 217º nº 1, do Código Penal, tal como vinha acusado.
xiv. Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença ora recorrida e, em consequência, condenar o arguido J. C. em conformidade pela prática de um crime de burla, p. e p. pelo artigo 217.º, n.º 1 do Código Penal.»
*
O recurso foi admitido para este Tribunal da Relação de Guimarães com o regime e efeito próprios.
O arguido respondeu, alegando a extemporaneidade do recurso e pugnando, se assim não se entender, pela sua improcedência.
Nesta Relação, o Exmo. Senhor Procurador-Geral adjunto emitiu douto parecer, acompanhando a motivação elaborada pelo Ministério Público na 1ª instância e concluindo pela sua procedência.
Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

Conforme é jurisprudência assente, o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respetiva motivação, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (1).
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1. Questão a decidir

Face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, a questão a decidir circunscreve-se a saber se os factos apurados permitem a subsunção jurídica da conduta do arguido ao crime de burla, previsto e punível pelo artigo 212.º, n.º 1 do Código Penal.
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2. FACTOS PROVADOS

Segue-se a enumeração dos factos provados, não provados e respetiva motivação, constantes da sentença recorrida.

«FACTOS PROVADOS:
1- A mando do arguido e no interesse do mesmo, a sua filha, B.V., no dia 29-1-2018, pelas 20.56h., registou o anúncio com o ID nº……4, referente a um grelhador a gás, marca Junex, pelo valor de €500,00 (quinhentos euros), na plataforma do site denominado “X”, com endereço www.X.pt, e com o título “vendo usado”;
2- O demandante J. R. vendo o dito anúncio, ficou interessado e trocou mensagens com o arguido através da referida plataforma, entre os dias 2-2-2018 e, pelo menos, 6-3-2018;
3- Na sequência de tal troca de mensagens, em 5-2-2018, o arguido forneceu o NIB da conta número ..................20, do Banco ..., titulada pela sua filha, B.V., para a qual deveria ser efectuado o pagamento da quantia de €560,00 (quinhentos e sessenta euros), a título de pagamento do identificado grelhador, acrescida de metade das despesas de transporte;
4- Porquanto estivesse convencido da existência do aludido grelhador, que constava no citado anúncio, no dia 6-2-2018, o demandante J. R. efectuou um depósito em numerário no montante de €560,00 (quinhentos e sessenta euros), no Banco ..., balcão de Viana do Castelo, sito no Passeio …, 11 A, para a conta id. em 3.;
5- Após, o arguido, fez do montante referido em 4. coisa sua, não tendo entregue o aludido grelhador ao demandante;
6- O arguido agiu de forma livre e consciente;
7- O arguido tem antecedentes criminais, tendo já sido condenado pela prática, em: - 17-2-2010, de um crime de desobediência, em pena de multa; - 4-10-2011, de um crime de burla, em pena de multa; - 12-2008, de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, em pena de multa; e, - 1-7-2013, de um crime de dano qualificado, em pena de prisão, suspensa na sua execução;
8- E foi, entretanto, condenado pela prática, em 18-6-2018, de um crime de abuso de confiança, em pena de multa;
9- O arguido exerce a actividade de técnico de frio, auferindo rendimento de valor não concretamente apurado, contando ainda com a ajuda económica da filha, supra referida;
10- É considerado pelas pessoas das suas relações como habitualmente pacato, trabalhador e bem comportado;
11- O demandante ficou aborrecido com a situação supra descrita;
12- É comerciante de produtos de cabeleireiro, tendo um estabelecimento comercial onde os revende.
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FACTOS NÃO PROVADOS:

- Não provado que em data não concretamente apurada, o arguido tenha formulado o propósito de usar o site da internet X como meio de comunicação e divulgação de produtos, criando a aparência de que estaria a vender artigos, com quem contactasse, não fornecendo, após tais contactos, os produtos que anunciara, obtendo, assim, contraprestações monetárias;
- Não provado que tenha sido em execução do desígnio supra referido que o arguido tenha actuado pela forma descrita em 1.;
- Não provado que o grelhador referido em 1. tenha sido anunciado pelo valor de €560,00 (quinhentos e sessenta euros);
- Não provado que a troca de mensagens referida em 2. tenha ocorrido entre 29-1-2018 e 14-2-2018;
- Não provado que o valor referido em 4. tenha sido creditado na conta referida em 3. através de transferência bancária da conta bancária nº.PT50 …………3, e que esta estivesse domiciliada no balcão referido em 4.;
- Não provado que, aquando dos factos descritos de 1. a 4., fosse já intenção do arguido não entregar o aludido grelhador;
- Não provado que após os factos descritos supra em 4. e 5., o arguido tenha deixado desde então de contactar com o ofendido, por haver já concretizado os seus propósitos;
- Não provado que o arguido tenha agido na persecução de um plano por si previamente gizado, com a intenção de obter para si um beneficio que sabia ilegítimo, bem sabendo que a única forma de o conseguir seria criando a aparência, junto do ofendido J. R., de que se tratava de um verdadeiro anúncio de venda de um artigo usado, com o fito de, desta forma, conseguir aumentar o seu património, não ignorando que podia causar, como causou, a J. R. um prejuízo em montante equivalente, nunca inferior a €560,00 (quinhentos e sessenta euros);
- Não provado que o arguido tenha agido de forma deliberada e bem soubesse que a sua conduta era proibida e penalmente punida;
- Não provado que o demandante necessitasse do grelhador e que fosse uma surpresa para a cônjuge do mesmo;
- Não provado que, por via da falta de entrega do indicado grelhador o demandante tenha ficado ansioso ao ponto de, por vários dias, não tenha conseguido dormir e, quando conseguia, acordasse sobressaltado, com pesadelos que o acompanhassem o resto do dia, triste e angustiado, por ter sido enganado e que os 560 euros pagos ao demandado representassem, para si e para a sua economia doméstica, um valor muito substancial;
- Não provado que, em virtude do comportamento do demandado, o demandante se tenha visto obrigado a contar à sua cônjuge o sucedido, que tal tenha provocado discussões e mal-estar entre o casal e que tal tenha agravado o seu estado emocional de ansiedade e tristeza;
- Não provado que, como consequência directa e necessária da conduta do demandado, o demandante se tenha sentido ofendido na sua honra e dignidade moral, ludibriado, ansioso, triste e angustiado; - Não provado que em virtude dos factos praticados pelo demandado, o demandante tenha perdido grande parte da confiança nas transacções comerciais via electrónica, que faça com que ande em permanente estado de ansiedade e que tal se revele particularmente gravoso dado o facto referido em 12.;
- Não provado que fosse prática do demandante fazer compras via electrónica de vários produtos nacionais e internacionais, por ser economicamente mais viável e compensatório;
- Não provado que a conduta do demandado tenha provocado no demandante uma lesão profunda do seu sentimento de confiança nas transacções comerciais via electrónica e que tal, consequentemente, lhe tenha provocado e provoque ainda um grande sofrimento emocional;
- Não provada a restante matéria factual alegada em 12º, 13º e 14º do pedido cível de fls.137 e ss., que, por brevidade, aqui se dá por reproduzida.
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MOTIVAÇÃO:

Relativamente aos factos provados e não provados, baseou o tribunal a sua convicção, para além do corelacionamento de toda a prova produzida:
- no teor e análise dos documentos juntos aos autos, designadamente, de fls.14 (id. titular da conta bancária), 15 (dados do CC da filha do arguido, titular da conta), 16 (crc da filha do arguido), 34 a 41 (5 a 10 – cópias do anúncio e mensagens trocadas), 96 e s. (cópia do talão de depósito em numerário), 101 a 103 (extrato bancário), 116 e s. (extrato bancário) e 184 a 188 (crc do arguido;
- no teor das declarações do demandante J. R., que descreveu a forma como se desenrolaram os factos, como precisava de um grelhador (tem uma barraca, faz festas), viu o anúncio, o preço era bom e combinou a compra (500 euros e os portes a meias com o vendedor, cabendo-lhe a ele 60 euros), trocando mensagens e falando pelo telefone com um homem, que se identificou como J.; aludiu a ter feito o depósito em dinheiro na conta da qual lhe foram fornecidos os dados, sendo que, tendo visto que não era em nome do vendedor, falou com ele e o mesmo lhe disse que era da sua filha; mencionou os contactos havidos para entrega do grelhador e como foi sendo adiada a sua entrega, que não veio a acontecer; aludiu a pesquisas que fez posteriormente e ao que conseguiu apurar (o arguido faria uns trabalhos para uma empresa de material de frio que também teria este tipo de material); e,
- no teor dos depoimentos prestados pelas testemunhas inquiridas, sendo que:
- B. V., filha do arguido, relatou o que sabia, confirmando ser titular da conta para a qual foi creditado o valor em causa, relativo à venda pelo pai de um grelhador, referindo que depois de a receber entregou tal quantia ao pai; disse que foi ela quem pôs o anúncio do grelhador no X, a pedido do pai; tentaram arranjar forma de levar o grelhador “para cima”, ficando o pai de tratar com a transportadora; depois o pai comentou com ela que o senhor teria desistido do grelhador; deu conta de que o grelhador existia e o pai queria vendê-lo, pensando que entretanto foi vendido a outra pessoa e que o pai não terá devolvido o dinheiro ao senhor, desconhecendo o motivo, mas aflorando problemas económicos do mesmo, a quem vai ajudando como pode; referiu já ter posto outros anúncios para o pai e nunca correram mal, mencionando que até já tinha ela ido entregar coisas assim vendidas pelo pai no Algarve; referiu ainda que o pai ficou incomodado com isto, queria devolver o dinheiro, mas não conseguiu, atestando ainda o seu habitual bom comportamento; e,
- S. M. e M. S., familiares do demandante, deram conta do que sabiam, como o demandante tem uma barraquinha das festas, encomendou o grelhador e não o recebeu, mencionando que ainda actualmente não tem nenhum grelhador para o efeito que pretendia, possuindo uma loja de produtos de cabeleireiro, fazendo outros negócios, tendo-se sentido enganado e “chateado” com o sucedido.
Ora, analisada a prova, conjugado o teor dos documentos juntos com as declarações e depoimentos indicados, valorados todos de forma contextualizada e segundo as regras de experiência comum e do normal acontecer, ficou o tribunal convencido apenas, com a necessária segurança, quanto aos factos que apurou, ou seja, que de facto houve aquele negócio entre arguido e demandante, com vista à venda pelo primeiro e compra pelo segundo do grelhador anunciado no X, tendo sido depositado o preço pelo demandante e depois o dito grelhador não foi enviado pelo arguido (desconhecendo-se, com certeza, qual o motivo para tal) e sendo certo que, pelo menos até 6-3-18 (cfr. fls.39), ou seja, um mês depois do pagamento do preço, se mantiveram os contactos entre aqueles (sendo que nestes últimos contactos de facto resulta que o demandante referiu que já não queria o grelhador).
Assim, ficou o tribunal convencido de que de facto este “negócio” ocorreu, desenrolando-se nos moldes que, objectivamente, estão espelhados no teor dos documentos juntos e supra indicados, corroborados que foram, no essencial, pelas palavras do demandante e da testemunha B. V., filha do arguido, sem que no entanto e após o recebimento do valor do grelhador em causa tenha sido entregue ao demandante o mesmo.
Já relativamente aos factos não provados teve o tribunal em consideração a ausência de prova capaz de levar a concluir pela sua verificação, sendo certo que, quanto a valor, datas e forma de pagamento, diferentes dos alegados, foi produzida prova (documental) em contrário destes; quanto à alegada e eventual intenção ou propósito inicial do arguido, nenhuma prova se produziu que pudesse levar a afirmá-lo, para lá de qualquer dúvida razoável (até porque o demandante nada de concreto sabia e a filha do arguido afirmou a existência do dito grelhador e o sério propósito do pai em enviá-lo); e, quanto aos restantes factos, atendeu-se também à ausência de prova nesse sentido produzida (salientando-se ainda que, quanto à alegada compra do demandante para surpreender a cônjuge e aos alegados problemas em contar-lhe, nem o próprio o afirmou).»
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3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

O recorre insurge-se com a absolvição do arguido do crime de burla, previsto e punível pelo artigo 217.º, n.º 1 do Código Penal, argumentando que da factualidade dada como provada na sentença resultam todos os elementos típicos de tal ilícito, designadamente que o arguido nunca quis cumprir o acordado com o ofendido e, de forma astuciosa, levou-o ao engano que lhe provocou o respetivo prejuízo patrimonial.
Limitando expressamente o seu recurso à reapreciação da aplicação do Direito aos factos, no que concerne à subsunção jurídica da apurada conduta do arguido.
Vejamos.

O arguido vinha acusado da prática do crime de burla, previsto e punível pelo artigo 217º, nº 1 do Código Penal, que prescreve:
«Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa».

São pois os seguintes, os elementos típicos do crime de burla simples:
- Elementos objetivos -
a) A «astúcia» empregue pelo agente;
b) O “erro ou engano” da vítima devido ao emprego da astúcia;
c) A «prática de atos» pela vítima em consequência do erro ou engano em que foi induzida;
d) O «prejuízo patrimonial» da vítima ou de terceiro, resultante da prática dos referidos atos;
e) Nexo de causalidade adequada entre os quatro elementos referidos nas quatro alíneas antecedentes, através de sucessivas relações de causa e efeito, ou seja, que da astúcia resulte o erro ou engano, do erro ou engano resulte a prática de atos pela vítima e da prática desses atos resulte o prejuízo patrimonial;
- Elemento subjetivo -
f) A existência de dolo genérico, traduzido no dolo do tipo, que se refere ao conhecimento e vontade referidos a todos os pressupostos do tipo objetivo, e no dolo da culpa, traduzido na consciência, por parte do arguido, de que com a sua conduta sabe que atua contra direito, com consciência da censurabilidade da conduta.
Bem como o dolo adicional (específico) constituído pela intenção do agente obter um acréscimo para o seu património ou de terceiro (sem que se torne necessária a verificação do enriquecimento).
Assim, no tocante aos elementos objetivos, o primeiro será logo constituído pelo erro ou engano sobre factos, astuciosamente provocado pelo agente, que dessa forma manipula o sujeito passivo, determinando-o à prática dos atos de que decorre o prejuízo patrimonial. É contudo necessário que se verifique sempre um nexo causal entre aquelas circunstâncias, ou seja, que o engano seja a efetiva causa da situação de erro em que se encontra a vítima e, por sua vez, esse estado de erro seja a causa da prática, pelo burlado, dos atos de que decorrem os prejuízos patrimoniais. Aferindo-se esses nexos de causalidade nos termos da teoria da causalidade adequada (cfr. artigo 10º, nº 1 do CP), isto é, tendo em conta as circunstâncias concretas do caso, nas quais se incluem as próprias caraterísticas do burlado (2).
Sendo precisamente todo este processo, globalmente considerado e unificado pelas sucessivas relações de causa efeito, o verdadeiro pressuposto da responsabilização do agente, na medida em que lhe dá aquilo que se designa por “domínio do erro”, face à necessária participação da vítima na saída de valores ou de coisas da esfera fáctica do sujeito passivo. «Melhor dizendo, no quadro da compreensão da burla como um delito contra o património, num tal “domínio-do-erro” terá de ancorar o fundamento da imputação do resultado à conduta» (3).
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Vejamos agora o que sucede no caso em apreço.

Os factos considerados apurados na sentença recorrida revelam objetivamente que o arguido publicitou a venda de um grelhador a gás na internet, no site da X, pelo preço de 500,00 € e, quando contactado por J. R., interessada na sua compra, trocaram mensagens através da referida plataforma, entre os dias 02.02.2018 e, pelo menos, 06.03.2018.
Na sequência do que, em 05.02.2018, o arguido forneceu o NIB de uma conta bancária titulada pela sua filha (B. V.), para a qual deveria ser efetuado o pagamento da quantia de 560,00 €, a título de pagamento do preço do identificado grelhador, acrescido de metade das despesas de transporte.
Todo este comportamento convenceu o ofendido que o arguido tinha efetivamente para vender o grelhador publicitado, pelo que efetuou um depósito em numerário, no montante de 560,00 €, na conta indicada. Ato que lhe veio a causar prejuízo patrimonial correspondente ao montante em dinheiro transferido e enriquecimento do arguido, posto que este nunca lhe chegou a enviar o prometido grelhador nem lhe devolveu o dinheiro.
Contudo, já nada consta na factualidade considerada como apurada sobre a intenção do arguido (antecipada, ou pelo menos contemporânea do negócio) de conseguir um enriquecimento ilegítimo e causar prejuízo patrimonial a J. R., através da criação da aparência, junto deste, de que se tratava de um verdadeiro anúncio de venda de um artigo usado. Pelo contrário, já que o circunstancialismo fático descrito na acusação e referente à aludida intenção do agente foi expressamente incluído pelo Tribunal a quo nos Factos Não Provados.
Não tendo o recorrente impugnado a decisão sobre a matéria de facto com base em errada apreciação e valoração da prova, em conformidade com o estabelecido no artigo 412.º do Código de Processo Penal, o que impede este Tribunal de recurso de tal conhecer.
Por outro lado, também não enferma a decisão recorrida do vício decisório do erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410.º, nº 2, al. c), igualmente do Código de Processo Penal, esse sim, já passível de apreciação oficiosa nesta instância, embora apenas suscetível de se evidenciar em face do texto da sentença recorrida (por si só ou conjugada com as regras da experiência comum), mas sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos.
O Tribunal a quo teve o cuidado de consignar na motivação factual que a testemunha B. V., filha do arguido, que a pedido do pai pôs o anúncio de venda do grelhador na plataforma X, «deu conta de que o grelhador existia e o pai queria vendê-lo», «ficando o pai de tratar com a transportadora; depois o pai comentou com ela que o senhor teria desistido do grelhador (…), pensando que entretanto foi vendido a outra pessoa e que o pai não terá devolvido o dinheiro ao senhor, desconhecendo o motivo, mas aflorando problemas económicos do mesmo»
Por sua vez, o ofendido J. R., como também consta da sentença, «aludiu a pesquisas que fez posteriormente e ao que conseguiu apurar o arguido faria uns trabalhos para uma empresa de material de frio que também teria este tipo de material [grelhador a gás])»
Sendo certo que, como igualmente se pode ler na motivação «pelo menos até 6-3-18 (cfr. fls.39), ou seja, um mês depois do pagamento do preço, se mantiveram os contactos entre aqueles [o arguido e o ofendido] (sendo que nestes últimos contactos de facto resulta que o demandante [ofendido] referiu que já não queria o grelhador).»
Ora, no contexto probatório que é retratado na motivação, a atuação objetiva do arguido, ainda que por referência às regras da experiência comum, não assume de forma evidente a intenção que lhe é assacada no recurso. Permitindo perfeitamente tal prova e as mesmas regras da experiência a conclusão retirada na sentença, de que «quanto à alegada e eventual intenção ou propósito inicial do arguido, nenhuma prova se produziu que pudesse levar a afirmá-lo, para lá de qualquer dúvida razoável (até porque o demandante nada de concreto sabia e a filha do arguido afirmou a existência do dito grelhador e o sério propósito do pai em enviá-lo)».
Note-se, a propósito, que como a jurisprudência há muito tem vindo a afirmar – de que é exemplo o Acórdão do STJ de 03.02.2005, proferido no proc. nº 04P4745 (4) – «A linha divisória entre a fraude, constitutiva da burla, e o simples ilícito civil, uma vez que dolo in contrahendo cível determinante da nulidade do contrato se configura em termos muito idênticos ao engano constitutivo da burla, inclusive quanto à eficácia causal para produzir e provocar o acto dispositivo, deve ser encontrada em diversos índices indicados pela Doutrina e pela Jurisprudência, tendo-se presente que o dolo in contrahendo é facilmente criminalizável desde que concorram os demais elementos estruturais do crime de burla.». Sendo um indício fundamental da fraude constitutiva da burla que o propósito de enganar se verifique ab initio, precedendo ou sendo contemporâneo do negócio.
Propósito este que a sentença recorrida incluiu nos Factos Não Provados, para tal fornecendo uma explicação lógica e racional, assente na prova produzida, perfeitamente satisfatória para qualquer homem médio que leia a sentença.
De tudo assim decorrendo, em síntese conclusiva, que a conduta do arguido, nos termos em que consta dos factos tidos como provados na sentença recorrida, não é enquadrável no crime de burla, previsto e punível pelo artigo 217.º, nº 1 do Código Penal, por não se ter apurado o elemento subjetivo do tipo.
Improcedendo o recurso.
***
III. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães, em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público.
Sem tributação, por dela estar isento o recorrente.
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Guimarães, 8 de novembro de 2021
(Elaborado e revisto pela relatora)

Fátima Furtado
Armando Azevedo


1. Cfr. artigo 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, v.
2. Cfr. Cavaleiro de Ferreira, in parecer publicado na S.J., XIX, 1970, 301 ss. e Lopes de Almeida, A. C. Lopes do Rego, Guilherme da Fonseca, J. Marques Borges e M. Varges Gomes, Crimes contra o património em geral (notas ao CP, artigos 313 a 333), Rei dos Livros, Lisboa, 1983, p. 12 ss.
3. In A. M. Almeida Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Editora, 1999, p. 299.
4. Relatado por Simas Santos, disponível em www.dgsi.pt.