Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3383/16.7T8VCT.G1
Relator: EDUARDO AZEVEDO
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
CONTRATO DE SEGURO
OBJECTO DE SEGURO
TRABALHO AGRÍCOLA
TRABALHADOR INDEPENDENTE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/31/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
1- Com a Lei 159/99 o legislador pretendeu através do seguro de acidentes de trabalho garantir, sem qualquer distinção, aos trabalhadores independentes e respectivos familiares, em caso de acidente de trabalho, indemnizações e prestações em condições idênticas às dos trabalhadores por conta de outrem e seus familiares, pelo que sem afastar a possibilidade do trabalhador exercer a actividade objecto do contrato de seguro para si próprio ou para o seu agregado familiar.

2- A apólice de acidentes de trabalho de um trabalhador independente nas actividades de acabamentos e agrícolas cobre o risco de acidente com a utilização de uma motosserra.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães

Nos presentes autos emergentes de acidente de trabalho de C. S., sendo seguradora X Portugal - Companhia de Seguros, Sa foram realizados exame médico e tentativa de conciliação que se frustrou.

Na fase contenciosa, sob patrocínio do MºPº, foi pedida a condenação no pagamento de:

“do capital de remição correspondente à pensão de €169,36, com início no dia 16/9/2016;
a quantia de €1.082,56 de indemnização pelos períodos de incapacidade temporária;
a quantia de €14,65 de taxas moderadoras;
a quantia de €36,75 de despesas de deslocação para curativos;
a quantia de €30,00 de despesas de deslocação ao GML e a este tribunal;
juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa de 4%.”.

Para tanto alegou, em súmula: no dia 28.07.2016, na actividade de acabamentos e trabalhos agrícolas, como trabalhador independente sofreu acidente; ainda que o acidente ocorresse quando trabalhava em benefício próprio e no âmbito da sua vida privada, ainda assim, está abrangido pelo contrato de seguro, com trabalhador independente, que celebrou; e sofreu incapacidade temporária absoluta e parcial e incapacidade permanente, bem com suportou despesas em transportes.

A seguradora contestou alegando, em síntese e no que ora interessa, que aquando o acidente a actividade exercida não era contemplada pelo contrato de seguro outorgado que, além do mais, não cobre o risco profissional emergente de acidente de trabalho por conta própria, com utilização de máquinas.

Elaborou-se saneador fixando-se os factos assentes e da base instrutória bem como determinando-se que a incapacidade fosse fixada em apenso.

Neste, realizado exame por junta médica, foi proferido despacho a decidir que o beneficiário “se encontra curado, com uma IPP de 3%, tendo tido as incapacidades temporárias fixadas pelo GML.”.

Realizou-se audiência de discussão e julgamento, decidindo-se a matéria de facto.

Proferiu-se sentença pela qual:

“Condenar a R. seguradora a pagar ao A.:

- o capital de remição correspondente à pensão de €169,36, com início no dia 16/9/2016;
- a quantia de €1.082,56 de indemnização pelos períodos de incapacidade temporária;
- a quantia de €14,65 de taxas moderadoras;
- a quantia de €36,75 de despesas de deslocação para curativos;
- a quantia de €30,00 de despesas de deslocação ao GML e a este tribunal;
- juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa de 4%, sendo que, quanto à pensão, os juros são calculados sobre o capital de remição.”.

A seguradora recorreu.

Conclusões:

1. Resultando dos autos a confissão por parte do A. de que, na altura do acidente se encontrava na sua residência a cortar lenha, com recurso a uma máquina industrial “motosserra”, e para consumo próprio, não poderá o acidente sofrido pelo A. em 28.07.2016 ser considerado como acidente de trabalho, nos termos previstos no DL 159/99 de 11 de Maio, e bem assim no artigo 8.º, n.º 1 da NLAT (Lei n.º 98/2009 de 4 de Setembro), não podendo a ora Recorrente assumir a responsabilidade pela reparação dos danos sofridos por via do contrato de seguro do ramo de acidentes de trabalho por conta própria celebrado com o A., ora Recorrido (cfr. apólice de seguro n.º (...), junta aos autos a fls….);
2. De facto, para que se possa aplicar o regime legal dos acidentes de trabalho previsto na LAT, será forçoso aplicar os requisitos necessários e essenciais para que haja lugar a indemnização por parte da entidade empregadora, nomeadamente que haja prestação de serviço, devendo o beneficiário dessa prestação ser pessoa diversa do prestador do referido serviço e, ainda, que a referida prestação possa ser considerada lucrativa;
3. No âmbito do regime legal previsto para os trabalhadores independentes, só se poderá considerar acidente de trabalho, aquele que, uma vez ocorrido fora do local de trabalho ou do local onde é prestado o serviço, se enquadre numa das alíneas previstas no citado artigo 6.º do DL 159/99, de 11/05;
4. Devendo haver nomeadamente um elemento de conexão ininterrupto entre a prestação/execução dos serviços por parte do trabalhador e a ocorrência do acidente;
5. Veja-se que, de facto, conforme resulta da proposta de seguro junta aos autos a fls…, a profissão declarada pelo A. aquando da contratação do seguro com a Recorrente foi de “actividades de acabamento (código …)”, constando da “Descrição dos trabalhos a segurar: Actividades de acabamentos e agrícolas”, tendo o A. declarado ainda expressamente não utilizar máquinas do tipo industrial – tudo cfr. proposta de seguro junta aos autos.
6. Razão pela qual, o contrato de seguro outorgado entre o A. e a ora Recorrente não contemplou a cobertura do risco profissional emergente de acidentes de trabalho por conta própria, com utilização de máquinas (cfr. Pontos 4 e 7 dos Factos Provados);
7. Com efeito, e como parece à Recorrente evidente (salvo o devido respeito), a cobertura dos riscos associados ao manuseamento de máquinas – tal como uma motosserra como, in casu, se verificou – originaria sempre o pagamento de uma taxa agravada sobre o prémio de seguro a suportar pelo tomador/pessoa segura (aqui A.), atento o risco profissional acrescido que, de tal utilização, decorre, o que, no caso em apreço, não sucedeu, atentas as declarações prestadas pelo A., enquanto tomador de seguro, aquando da contratação da apólice em apreço nos autos.
8. Para que o regime previsto na LAT se aplique aos trabalhadores independentes, é necessário reunir as condições semelhantes previstas para os trabalhadores por contra de outrem, nomeadamente, que se encontre a desempenhar uma actividade remunerada, bem como, que a mesma seja desempenhada em benefício de terceira pessoa.
9. Segundo as declarações prestadas pelo A. aquando da contratação do seguro com a Apelante, o ora Recorrido é um prestador de serviços, sendo requisito essencial da prestação de serviços, que uma das partes se obrigue perante outra a proporcionar certo resultado de trabalho.
10. Ora, será imperativo, assim, o desempenho de uma actividade remunerada, sendo certo que, cortar lenha para benefício próprio não constitui desempenho de actividade a favor de terceira pessoa, mediante qualquer valor.
11. A actividade que o A. desempenhava aquando do acidente em apreço nos autos não se pode considerar incluída no âmbito da cobertura contratual de acidentes de trabalho celebrada com a ora Recorrente, motivo pelo qual, não podemos concluir que o acidente em apreço possa consubstanciar acidente de trabalho, uma vez que desvirtua o conceito previsto no artigo 6.º do DL 159/99, de 11/05, e no artigo n.º 8 da LAT.
12. De todo e qualquer contrato decorrem direitos e deveres para as partes envolvidas, devendo o mesmo assentar num verdadeiro equilíbrio das prestações devidas como contrapartida de determinado benefício.
13. De facto, uma das grandes “traves mestras” da actividade seguradora assenta precisamente na análise do risco e na consequente adequação dos prémios de seguro às circunstâncias concretas de cada caso, de modo a que seja possível assegurar uma razoável proporcionalidade entre o risco assumido pelo segurador, e o prémio de seguro a suportar pelo tomador.
14. Esta relação entre o risco a assumir pela companhia de seguros e o prémio a suportar pelo tomador, configura precisamente uma das características principais do contrato de seguro: trata-se de um negócio jurídico bilateral, na medida em que dele resultam obrigações recíprocas para ambas as partes contratantes.
15. Não obstante a clara tendência de se sacrificar a posição contratual das Seguradoras, no pressuposto de que estas figuram, na verdade, como sendo o “lado forte” do contrato, na medida em que, em regra, encontram-se numa posição economicamente mais favorecida, não será admissível impor às Seguradoras a aceitação ou o pagamento de todo e qualquer risco/prejuízo, ainda que não contratados, no pressuposto que estes possam ser inerentes à celebração de um contrato de seguro.
16. A violação do equilíbrio contratual conseguido através da estipulação de determinadas condições específicas para cada tipo de contrato, designadamente em contrapartida do prémio de seguro suportado pelo tomador, permitiria uma efectiva ameaça ao importantíssimo papel social e económico desempenhado pelas Companhias de Seguro.
17. Efectivamente, aquando da celebração do contrato de seguro em apreço nos autos, a Recorrente procedeu à respectiva análise do risco e à consequente adequação do prémio de seguro às circunstâncias concretas declaradas pelo tomador/pessoa segura (aqui A.), de forma a ser possível assegurar uma razoável proporcionalidade entre o risco assumido pelo segurador, e o prémio de seguro a suportar pelo tomador e/ou segurado.
18. Sendo certo que, em virtude da celebração do contrato de seguro, ficou a Seguradora obrigada ao pagamento dos encargos provenientes de eventuais acidentes de trabalho sofridos pelo segurado (aqui A.) em consequência do exercício da actividade profissional descrita na apólice.
19. Todavia, não terá a Companhia Seguradora, aqui Apelante, pretendido incluir no contrato de seguro especificamente designado para acidentes de trabalho, abranger também a esfera pessoal e particular do Segurado.
20. Ora, no domínio contratual as partes acordam previamente sobre o risco e a natureza dos trabalhos e demais circunstâncias tidas como influentes na avaliação do risco concreto;
21. Sendo certo que, estando em causa um contrato de seguro de acidentes de trabalho (celebrado e garantido pela ora Recorrente), tem o mesmo por escopo abranger os riscos profissionais exclusivamente decorrentes do exercício da actividade laboral da pessoa segura, ficando, assim, evidentemente excluídos os riscos inerentes aos actos da vida pessoal/ privada do A., os quais poderiam, no limite, estar cobertos por um seguro de acidentes pessoais e não de acidentes de trabalho, como in casu, se verifica.
22. Razão pela qual, salvo o devido respeito por melhor e douta opinião em contrário, não poderá a ora Recorrente aceitar a caracterização do acidente em apreço como de trabalho, violando a douta sentença recorrida, ao condenar a Ré no pagamento dos montantes supra referidos, o equilíbrio contratual das partes;
23. Salvo o devido respeito, ao decidir do modo como decidiu, o douto Tribunal a quo interpretou, de modo equivocado e/ou incorrecto, o âmbito de aplicação das normas legais constantes dos artigos 8.º, n.º 1 da NLAT (Lei n.º 98/2009 de 4 de Setembro), e bem assim no artigo 6.º do DL 159/99 de 11 de Maio, devendo pelo exposto ser concedido provimento ao presente recurso, sendo a … sentença proferida nos autos revogada, absolvendo-se a ora Recorrente dos pedidos formulados pelo A., …”.”

Contra-alegou-se.

Conclusões:

“A cobertura do seguro de acidentes de trabalho dos trabalhadores independentes, nos termos do art. 1º do DL nº 159/99, não torna exigível que a actividade prestada seja remunerada nem que o trabalhador labore por conta de outrem.
Uma motosserra não pode ser considerada uma máquina industrial, nem se imagina um trabalhador agrícola no Século XXI a cortar lenha sem uma motosserra.

Nestes termos,
Deve ser negado provimento ao recurso e em consequência manter-se a douta sentença recorrida.”.

Cumpre decidir.

Averiguar-se-á se o sinistro deve beneficiar do regime dos acidentes de trabalho e é abrangido pelos riscos cobertos no contrato de seguro.

Os factos considerados assentes na sentença:

1 - O A. nasceu a 8/7/1963.
2 - Desempenha a actividade profissional de acabamentos e trabalhos agrícolas, por conta própria.
3 - Celebrou com a R. seguradora contrato de seguro, do ramo de acidentes de trabalho, titulado pela apólice …, pelo montante anual de €8.064,72 (documentos de fls. 30 a 36, que aqui se dão por integralmente reproduzidos).
4 - No dia 28/7/2016, pelas 10,00 horas, o A. encontrava-se a cortar lenha com uma motosserra quando foi por esta atingido na mão esquerda, o que lhe provocou esfacelo de D3, com secção do extensor e perda significativa de pele.
5 – Em consequência deste evento, o A. encontra-se curado, com uma IPP de 3%, tendo tido as incapacidades temporárias fixadas pelo GML.
6 - E gastou as seguintes quantias:
- €14,65 em taxas moderadoras;
- €36,75 em deslocações para tratamento;
- €30,00 em deslocações ao GML e a este Tribunal.
7 - O evento referido em 4), ocorreu quando o A. se encontrava na sua residência, a cortar lenha para consumo próprio.”.

Posto isto

Não está em causa o tipo de contrato de seguro, sua natureza e respectivo fim: do ramo de acidentes de trabalho; os riscos cobertos respeitam a actividade do recorrido enquanto trabalhador independente de acabamentos e agrícolas.

A recorrente igualmente não questiona que aos trabalhadores por conta própria, isto é trabalhadores independentes que sofreram acidente ao prestarem a outrem o resultado da sua actividade aplica-se o regime de acidentes de trabalho em conformidade com as situações típicas previstas nos artºs 283º, 284º do CT, 4º da Lei 7/2009, de 12.02 e 3º da Lei 98/2009, de 04.09.

De resto, como se expende no acórdão do TRL de 15.12.2016 (procº 72/12.5TTBRR-4; www.dgsi,pt):

“… a aplicação do regime legal de reparação de acidentes de trabalho consignado nos Artº 283º do CT e na Lei 98/2009 de 4/09, não pressupõe a prévia existência de um contrato de trabalho.

Muito embora essas sejam as situações típicas, decorre do regime legal aplicável que o mesmo se aplica, desde logo, também às situações referidas no nº 3 do Artº 3º da LAT – nenhuma delas se reportando a contratos de trabalho-, que aqui não cuidaremos de equacionar por desnecessidade prática.

Segundo o disposto no nº 1 do Artº 3º, o regime é aplicável aos trabalhadores por conta de outrem, de qualquer actividade, seja ou não explorada com fins lucrativos.

Ora, trabalhadores por conta de outrem são, efetivamente, e em primeira mão, aqueles que exercem funções ao abrigo de contrato de trabalho. Mas também trabalham por conta de outrem os que exercem funções ao abrigo de um contrato de prestação de serviços (vg., no mandato), distinguindo-se uns e outros, não por esta característica, mas sim pela existência de subordinação jurídica inerente apenas ao primeiro.

Tratando-se de trabalhador por conta de outrem, mas não juridicamente subordinado, o regime é-lhe ainda aplicável por força de quanto se dispõe no Artº 4º/1-c) da Lei7/2009 de 12/02 (lei que aprovou o Código do Trabalho) [1], presumindo-se que o trabalhador está na dependência económica da pessoa em proveito da qual presta serviços (Artº 3º/2 da Lei 98/2009 de 4/09).

Dispõe-se ali que o regime relativo a acidentes de trabalho e doenças profissionais, previsto nos Artº 283º e 284º do CT, com as necessárias adaptações, se aplica, igualmente a prestador de trabalho, sem subordinação jurídica, que desenvolve a sua actividade na dependência económica, nos termos do Artº 10º do CT – prestação de trabalho, por uma pessoa a outra, sem subordinação jurídica, sempre que o prestador de trabalho deva considerar-se na dependência económica do beneficiário da atividade.

Assume aqui uma especial relevância a já mencionada presunção constante do nº 2 do Artº 3º da LAT – presume-se que o trabalhador está na dependência económica da pessoa em proveito da qual presta serviços.

A presunção visa claramente estas situações de prestação de trabalho sem subordinação jurídica, estabelecendo que, nesses casos, se presume a dependência.

Deste modo, basta ao sinistrado laboral alegar e provar que presta trabalho a outrem e que, no âmbito de tal prestação, sofreu um acidente qualificável como de trabalho.
O beneficiário da prestação tem sobre si o encargo de convencer que o prestador não está na sua dependência económica, dada a presunção enunciada acima.”.
Tem-se como certo ainda que “o trabalhador por conta própria deve efectuar um seguro que garanta o pagamento das prestações previstas nos artigos indicados no número anterior e respectiva legislação regulamentar”(artº 4ª da Lei 7/2009).

Mas a recorrente não aceita que o acidente sofrido pelo sinistrado em actividade de cortar lenha na sua residência para consumo próprio seja abrangido por tal contrato que celebrou com aquele, assim beneficiando das prestações previstas na Lei 98/2009 para o regime típico dos acidentes de trabalho, como refere “ficando, assim, evidentemente excluídos os riscos inerentes aos actos da vida pessoal/ privada do A., os quais poderiam, no limite, estar cobertos por um seguro de acidentes pessoais e não de acidentes de trabalho, como in casu, se verifica”.

Contudo sem razão.

Na sentença decidiu-se esta questão de forma que se aceita:

“Diz a Lei 98/2009, de 4/9 (actual LAT), no seu artº. 1º[2º]:

“O trabalhador e os seus familiares têm direito à reparação dos danos emergentes dos acidentes de trabalho e doenças profissionais nos termos previstos na presente lei”.

O conceito essencial de acidente de trabalho encontra-se plasmado no artº. 8º, nº. 1, da mesma lei, sendo que é todo aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e que produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de ganho ou de trabalho ou a morte. O artº. 9º vem elencar depois todo um conjunto de situações que cabem ainda dentro do conceito de acidente de trabalho, embora não obedeçam a algum dos requisitos da formulação do nº. 1.
Por seu lado, o D.L. 159/99, de 11/5 estabelece que os trabalhadores independentes devem efectuar um seguro que garanta as prestações previstas na presente lei, considerando-se trabalhadores independentes aqueles que exerçam uma actividade por conta própria.

No nosso caso, o sinistrado exercia a actividade profissional de acabamentos e trabalhos agrícolas, tal como declarou na proposta de seguro que veio a formalizar a celebração do respectivo contrato.
O acidente que o vitimou ocorre quando se encontrava na sua residência, a cortar lenha com uma motosserra, para consumo próprio.
Entende a R. seguradora que estes trabalhos que o sinistrado estava a executar não se enquadram na actividade coberta pelo seguro.
Afigura-se-nos, com todo o respeito por opinião contrária, que não tem razão.

Conforme se decidiu no Ac. da Rel. de Coimbra de 10/2/05 (relator Sr. Dr. Serra Leitão, in www.dgsi.pt):

“…o critério fundamental para aferir da abrangência do seguro infortunístico laboral, perante um sinistro que atinge um trabalhador independente, será dado pela actividade que ele no momento exercia. Se ela se integra no âmbito da sua profissionalidade e pela qual ele estava seguro, então independentemente de estar a laborar para si ou para outrem, com remuneração ou sem ela, o sinistro de que eventualmente venha a ser vítima, estará a coberto do contrato de seguro que celebrou.”

Com efeito, embora o D.L. 159/99, de 11/5, tenha operado uma distinção entre trabalhadores independentes cuja produção se destina exclusivamente ao consumo próprio e aqueles que por via de regra laboram para outrem, mediante em regra contratos de prestação de serviços, certo é que essa distinção apenas releva para efeitos de obrigatoriedade ou não de seguro.

Permite, assim, a lei que trabalhadores independentes, que não laborem por conta de outrem e cuja a actividade não seja de todo remunerada, possam beneficiar das prestações previstas na LAT, desde que tenham celebrado o competente seguro, que neste caso não será obrigatório.

O que nos leva a concluir que a única condição fundamental para que haja lugar à reparação por acidente de trabalho, é que o evento danoso ocorra no exercício de uma actividade relacionada com a profissão que foi declarada para efeitos de seguro, sendo irrelevante a qualidade em que o trabalhador se encontrava a desempenhar essa actividade: de forma gratuita ou onerosa, no local de trabalho habitual ou noutro local (que pode mesmo ser o domicílio), no âmbito da prestação normal da actividade ou num evento extraordinário.

Ou dito de forma mais clara, é apenas necessário que a actividade que estava a ser desenvolvida se enquadre dentro da profissionalidade declarada para efeitos de seguro.

Ora, cortar lenha com uma motosserra enquadra-se claramente nas funções normalmente desempenhadas por um trabalhador agrícola, não se podendo afirmar que o utensílio utilizado pelo A. é uma “máquina industrial” de todo alheia à actividade declarada. Muito pelo contrário, pois que não se vê como poderia o sinistrado, nestes tempos modernos, proceder ao corte de lenha que não fosse através da utilização de uma qualquer máquina, como a referida nos autos.

E sendo este o único critério a atender, como vimos supra, terá que se concluir, sem mais, que o sinistro que vitimou o A. é um acidente de trabalho abrangido pela apólice que subscreveu junto da R. seguradora.”

Efectivamente com a Lei 159/99, como se escreve no preambulo e sem fazer-se qualquer distinção, o legislador pretendeu através do seguro de acidentes de trabalho “garantir aos trabalhadores independentes e respectivos familiares, em caso de acidente de trabalho, indemnizações e prestações em condições idênticas às dos trabalhadores por conta de outrem e seus familiares.”. E não deixou de prever também, como resulta ainda do preambulo, que se aplicasse o regime do seguro dos acidentes de trabalho aos trabalhadores independentes “cuja produção se destine exclusivamente ao consumo ou utilização por si próprio e pela sua família”.

Daí que no seu artº 1º, sob a epígrafe “obrigatoriedade de seguro” refira no nº 2 que “são dispensados de efectuar este seguro os trabalhadores independentes cuja produção se destine exclusivamente ao consumo ou utilização por si próprio e pelo seu agregado familiar” e logo determina no artº 2º, sem uma vez mais distinguir qualquer situação, que “o seguro de acidentes de trabalho dos trabalhadores independentes rege-se, com as devidas adaptações, pelas disposições da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, e diplomas complementares, salvo no que adiante especificamente se refere”.

O que quer dizer, para fazer operar a cobertura dos riscos previstos no tipo de contrato em análise a actividade prestada em que ocorre o acidente não tem que ser remunerada e o sinistrado labore ou trabalhe por conta de outrem, visando o DL 159/99, apenas, “regulamentar o seguro obrigatório de acidentes de trabalho para os trabalhadores independentes, pretendendo-se, assim, garantir aos trabalhadores independentes e respectivos familiares, em caso de acidente de trabalho, indemnizações e prestações em condições idênticas às dos trabalhadores por conta de outrem e seus familiares”.

E assim será, segundo o acórdão do TRE de 12.07.2011 (procº 259/08.5TTFAR.E1; www.dgsi.pt) citado na resposta ao recurso, que também destrinça devidamente a problemática suscitada no recurso e com o qual se concorda integralmente:

“Como decorre do artigo 3.º da Lei n.º 100/97, de 13-09 (LAT) – Lei dos Acidentes de Trabalho e das Doenças Profissionais –, os trabalhadores independentes devem efectuar um seguro que garanta as prestações previstas na referida lei, nos termos que vierem a ser regulamentados (n.º1), considerando-se como tal os trabalhadores que exerçam uma actividade por conta própria (n.º 2).

O mencionado seguro de acidentes para trabalhadores independentes consta do Decreto-Lei n.º 159/99, de 11 de Maio.

Como se dá conta no preâmbulo deste diploma, através do seguro de acidentes de trabalho pretende-se garantir aos trabalhadores independentes e respectivos familiares, em caso de acidente de trabalho, indemnizações e prestações em condições idênticas às dos trabalhadores por conta de outrem e seus familiares.

E o carácter obrigatório do seguro não abrange os trabalhadores cuja produção se destine exclusivamente ao consumo ou utilização por si próprio e pela sua família.

É o que resulta expressamente do artigo 1.º do diploma legal em referência, que sob a epígrafe “Obrigatoriedade de seguro”, estipula:

«1. Os trabalhadores independentes são obrigados a efectuar um seguros de acidentes de trabalho que garanta, com as devidas adaptações, as prestações definidas na Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, para os trabalhadores por conta de outrem e seus familiares.
2. São dispensados de efectuar este seguro os trabalhadores independentes cuja produção se destine exclusivamente ao consumo ou utilização por si próprio e pelo seu agregado familiar».

Daqui decorre que o legislador estendeu aos trabalhadores independentes (considerando-se como tal os que exercem uma actividade por conta própria e desde que a mesma não se destine exclusivamente ao consumo e utilização por si próprio e pelo seu agregado familiar) os benefícios emergentes da Lei dos acidentes de trabalho e das doenças profissionais (Lei n.º 100/97, de 13-09), fazendo todavia depender a atribuição de tais benefícios da efectivação (obrigatória) de um contrato de seguro.

A norma citada prevê dois tipos de situações: (i) a, diremos, genérica, do trabalhador que exerce a actividade por conta própria – mas não destrinçando a lei que a mesma actividade tenha ou não que ser remunerada e tenha ou não que ser prestada a outrem –, em que é obrigatória a celebração do contrato de seguro; (ii) a do trabalhador independente, cuja produção se destina exclusivamente ao seu consumo ou do seu agregado familiar, caso em que a celebração do contrato de seguros se torna meramente facultativa.

Como já se deixou implícito, a situação típica, normal, é a de um trabalhador independente que exerce a actividade para outrem e que em contrapartida lhe é pago o resultado dessa actividade (v.g. em regime de contrato de prestação de serviços, ou outro).

Todavia, a actividade desse trabalhador independente pode não se esgotar aí: ele pode, por exemplo, fazer um trabalho esporádico a outrem de modo gracioso, ou pode até realizar um trabalho para si mesmo e/ou para o seu agregado familiar.

Ora, tais situações, segundo se entende, caem no âmbito da letra da lei do seguro de acidentes para trabalhadores independentes (Decreto-Lei n.º 159/99, de 11-05), maxime no n.º 1 do artigo 1.º, uma vez que aí não se distingue se a actividade tem ou não que ser remunerada ou se tem ou não que se prestada exclusivamente a outrem.

Mas tal interpretação insere-se também no espírito da lei: se o que se pretende com o seguro obrigatório de acidentes de trabalho para trabalhadores independentes é garantir a estes e seus familiares os benefícios que emergem da Lei 100/97, em condições idênticas às dos trabalhadores por conta de outrem e seus familiares, mal se compreenderia que se no trabalho por si desenvolvido o trabalhador independente exercesse uma actividade quer para outrem, quer para si mesmo ou para o agregado familiar, caso sofresse um acidente nesta última situação, o mesmo não fosse considerado acidente de trabalho e, como tal, o trabalhador e seus familiares ficassem sem direito às indemnizações e prestações previstas na lei dos acidentes de trabalho.

Naturalmente que a situação já se apresenta distinta se o trabalhador independente apenas realiza a actividade/produção para si próprio e/ou agregado familiar: aí compreende-se que o «risco» corra por conta do trabalhador e, por isso, que não exista a obrigatoriedade da celebração do contrato de seguro. Contudo, celebrado este, não pode o mesmo deixar de abranger qualquer eventual acidente sofrido pelo trabalhador.

Assim, e em jeito de conclusão, acompanhamos os acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 10-02-2005 (CJ, 2005, I, pág. 60) e do Tribunal da Relação do Porto de 08-09-2008 (CJ, 2008, IV, 229), quando neles se afirma que a actividade constitui o critério fundamental para aferir da abrangência do seguro infortunístico laboral que atinge um trabalhador independente: se aquela «…se integra no âmbito da sua profissionalidade e pela qual ele estava seguro, então independentemente de estar a laborar para si ou para outrem, com remuneração ou sem ela, o sinistro de que eventualmente venha a ser vítima, estará a coberto do contrato de seguro que celebrou (salvo naturalmente as hipóteses de invalidade deste)».

(…)
Face ao que se deixou supra analisado, o referido acidente não pode deixar de ser caracterizado como de trabalho.

Com efeito, volta-se a sublinhar, não afastando a lei do seguro de acidentes de trabalho para trabalhadores independentes a possibilidade do trabalhador exercer a actividade/”produção” objecto do contrato de seguro para si próprio ou para o seu agregado familiar, forçoso é concluir que, no caso, existindo entre as partes um contrato de seguro de acidentes de trabalho e tendo o Autor sofrido um acidente no exercício da (sua) actividade de pedreiro, a reparar a sua casa, o mesmo ocorreu no local e no tempo de trabalho e o mesmo produziu directamente lesão de que resultou redução da capacidade de trabalho do Autor, pelo que é acidente de trabalho [cfr. artigo 1.º da Apólice Uniforme para Trabalhadores Independentes, Regul/ISP 1/200 (Norma 14/99-R), de 7-01)].”.

Dito isto conclui-se também que para os trabalhadores independentes como aqueles que se encontram em iguais circunstâncias dos autos não “é necessário reunir as condições semelhantes previstas para os trabalhadores por contra de outrem, nomeadamente, que se encontre a desempenhar uma actividade remunerada, bem como, que a mesma seja desempenhada em benefício de terceira pessoa”.

Quando ocorreu o acidente, o recorrido estava a praticar actos da vida privada, indefectivelmente relacionados com as actividades declaradas para efeitos de cobertura de riscos do seguro (de acabamentos e agrícolas) e que, como se constata, têm uma aplicação pratica significativamente vasta (cfr ainda Classificação Portuguesa das Actividades Económicas no seu código (...) quanto ao directamente declarado para os acabamentos).

Sendo assim os efeitos desse acidente estão, em princípio, abrangidos pelo regime dos acidentes de trabalho e daí pela apólice de seguro dos autos.

Ficando deste modo prejudicado tudo o que no recurso se afirma sobre o conceito de acidente de trabalho extraído directamente do artº 8º da Lei 98/2009 temos que a recorrente não aduz argumentação que logre rebater a posição adoptada na sentença.

Por sua vez é incorrecto afirmar que na sentença concluiu-se que “o acidente sofrido pelo A. preenche efectivamente o conceito de acidente de trabalho previsto … e no artigo 6.º do DL 159/99, de 11/5”. Nem podia. Este artº 6º, a par do artº 9º da Lei 98/2009 e com o mesmo objectivo, assim tutelando os mesmo interesses, cuida apenas da extensão do conceito de acidente de trabalho nas circunstâncias aí previstas que nem vêm ao caso aludir, pelo que não faz sentido afirmar que “tal como se pode retirar da leitura do preceito em causa, só se poderá considerar acidente de trabalho aquele que, uma vez ocorrido fora do local de trabalho ou do local onde é prestado o serviço, se enquadre numa das alíneas previstas no citado artigo 6.º do DL 159/99, de 11/05”.

O recorrente também não pode permitir-se invocar a análise de risco que efectuou e presidiu à celebração do contrato e a eliminação da proporcionalidade entre o risco assumido e o prémio de seguro (equilíbrio contratual), chamando à colação o disposto nos artºs 51º e 52º do pelo DL 72/2008, de 16.04. Ainda outras vicissitudes da celebração do contrato para significar qualquer desequilíbrio contratual por ter aceitado a apólice unicamente por o recorrido ser um prestador de serviços e “o beneficiário do trabalho (ou resultado) do trabalhador independente terá(ia) de ser forçosamente pessoa distinta do próprio trabalhador ou prestador de serviços”, isto é, para o caso dos acidentes tipo previstos na Lei 98/2009. Do mesmo modo, que “a actividade que o A. desempenhava aquando do acidente em apreço nos autos não se pode considerar incluída no âmbito da cobertura contratual de acidentes de trabalho celebrada com a ora Recorrente”. Ademais sem que a lide tenha sido estruturada para tanto e estarmos perante um regime com praticamente duas décadas de vigência.

Por último não colhe ainda o argumento da recorrente de que o seguro não cobre este acidente dado estar a ser utilizada uma motosserra e o sinistrado ter declarado no questionário técnico pré-contratual que não utilizava máquinas de tipo industrial.

Não se define o que seja máquina industrial. Não foi dada a conhecer qualquer cláusula que excluísse a cobertura do seguro se a mesma fosse utilizada nas actividades declaradas na apólice. Estas são vastas. O seu exercício não se compadece do recurso apenas a qualquer meio que actue mecanicamente por aplicação única do trabalho humano, ou seja, por mera força física permanente para executar-se o trabalho. Não se demonstra, como a recorrente afirma, que “a cobertura dos riscos associados ao manuseamento de máquinas – tal como uma motosserra como, in casu, se verificou – originaria sempre o pagamento de uma taxa agravada sobre o prémio de seguro a suportar pelo tomador/pessoa segura (aqui A.), atento o risco profissional acrescido que, de tal utilização, decorre, o que, no caso em apreço, não sucedeu, atentas as declarações prestadas pelo A., enquanto tomador de seguro, aquando da contratação da apólice em apreço nos autos.”.

Ora, o mais que pode dizer-se é que só seria considerada uma máquina industrial o instrumento que fosse desadequado aos propósitos a atingir pelas actividades inscritas no seguro, nomeadamente por ser susceptível de conseguir uma produtividade de tal ordem que não fosse harmonizável com a organização económica de um trabalhador independente.

Por isto na sentença escreveu-se com propósito que “cortar lenha com uma motosserra enquadra-se claramente nas funções normalmente desempenhadas por um trabalhador agrícola, não se podendo afirmar que o utensílio utilizado pelo A. é uma “máquina industrial” de todo alheia à actividade declarada. Muito pelo contrário, pois que não se vê como poderia o sinistrado, nestes tempos modernos, proceder ao corte de lenha que não fosse através da utilização de uma qualquer máquina, como a referida nos autos.”.

Neste exposto tem de se concluir que se o sinistro se deveu à utilização da motosserra a cobertura do risco previsto no contrato de seguro celebrado entre as partes não deve ser excluída.

Pelo que se deixa dito julgar-se-á o recurso improcedente.

Sumário, da única responsabilidade do relator

1- Com a Lei 159/99 o legislador pretendeu através do seguro de acidentes de trabalho garantir, sem qualquer distinção, aos trabalhadores independentes e respectivos familiares, em caso de acidente de trabalho, indemnizações e prestações em condições idênticas às dos trabalhadores por conta de outrem e seus familiares, pelo que sem afastar a possibilidade do trabalhador exercer a actividade objecto do contrato de seguro para si próprio ou para o seu agregado familiar.
2- A apólice de acidentes de trabalho de um trabalhador independente nas actividades de acabamentos e agrícolas cobre o risco de acidente com a utilização de uma motosserra.

Decisão

Acordam os Juízes nesta Relação em julgar improcedente o recurso assim confirmam a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
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O acórdão compõe-se de 16 folhas com os versos não impressos.
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31.10.2018

Eduardo Azevedo
Vera Maria Sottomayor
Antero Veiga