Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5010/15.0TBGMR.G1
Relator: CARVALHO GUERRA
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
PRESCRIÇÃO
RENÚNCIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/20/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: 1. As normas dos art.ºs 2º, n.º 1. a) e c) e 4.º da “Convenção de Regularização de Sinistros”, não pretendem estabelecer um prazo de prescrição do direito ao reembolso, que ficaria precludido nos casos em que o acidente ocorreu há mais de três anos mas apenas, como a epígrafe do artigo 4º da Convenção refere, definir o “Âmbito de aplicação” da mesma, estabelecendo a exclusão da sua aplicação nesses casos;
2. e se a Convenção não é aplicável, consequentemente também o não é a dita renúncia às vias judicial e arbitral prevista no seu artigo 2º, podendo o direito ao reembolso ser reclamado através do recurso aos meios normais, designadamente ao judicial, para o que o tribunal comum é competente em razão da matéria.
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Civil do Tribunal da Relação de Guimarães:
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“C.” intentou contra “B.” a presente acção declarativa de condenação sob a forma comum de processo, peticionando a condenação da Ré no pagamento da quantia de euros 19.157,54, acrescida de juros moratórios contados desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Alega, para tanto e em síntese que, no dia 26.10.2005, ocorreu um acidente de viação entre o veículo ligeiro de matrícula …-…-UN e o veículo ligeiro de passageiros de matrícula …-…-QS, traduzido no embate do UN na traseira do QS que levou a que este fosse projectado contra um muro existente na margem direita da via onde o referido embate se deu.
Imputando a responsabilidade pela eclosão do embate à conduta do UN, aduz que, não obstante e porque entre si e o proprietário do QS havia sido celebrado um contrato de seguro vulgarmente denominado por “danos próprios”, foi demandada judicialmente pelo referido proprietário do QS, tendo sido condenada, em 09.02.2015, no âmbito dessa acção judicial, a pagar-lhe a quantia de euros 16.472,18, acrescida de juros moratórios contados desde a sua citação para a referida acção até efectivo e integral pagamento.
Acrescenta que tal pagamento, no valor global de euros19.157,54, ocorreu em 25.03.2015
Demanda a Ré por esta ter incorporado, por fusão, a “D., Seguros SA”, sociedade para a qual o proprietário do UN havia transferido a responsabilidade civil decorrente da circulação deste veículo.
Válida e regularmente citada, contestou a Ré, excepcionando a competência absoluta dos tribunais comuns porquanto, sendo que quer ela quer a demandante subscritoras da Convenção de Regularização de Sinistros, terão renunciado à via judicial de resolução de litígios entre elas emergentes e arguindo encontrar-se “precludido” o direito de regresso da Autora, por terem decorrido mais de 3 anos desde a ocorrência do sinistro que fundamenta a pretensão exercida nesta acção.
Exerceu a Autora o contraditório relativamente às invocadas excepções, entendendo não se verificarem as mesmas e peticionou adicionalmente a condenação da Ré como litigante de má-fé.
Pronunciou-se a demandada sobre tal pedido.
Foi então proferido saneador sentença em que se julgou a não verificação das excepções arguidas pela Ré, se julgou a acção procedente e condenou a Ré no pagamento à Autora da quantia de euros 19.157,54, acrescida de juros moratórios contados à taxa legal desde a citação até integral cumprimento e improcedente o pedido de condenação da Ré como litigante de má fé, dele a absolvendo.
Desta sentença apelou a Ré, que conclui a sua alegação da seguinte forma:
- a sentença recorrida não pode manter-se, uma vez que efectuou uma incorrecta apreciação da Convenção de Regularização de Sinistros subscrita pelas partes;
- de acordo com os princípios gerais previstos na Convenção de Regularização de Sinistros, quaisquer litígios que possam surgir entre seguradoras devem ser dirimidos mediante recurso ao procedimento previsto na Convenção de Regularização de Sinistros;
- uma vez que os danos sofridos pelo segurado pela Autora no acidente não foram regularizados ao abrigo do protocolo IDS, mas sim por força de decisão judicial nesse sentido, não se verifica a exclusão do caso dos autos do âmbito de aplicação da CRS por força do estipulado no artigo 2.º, n.º 1, a) do Anexo 1 da Convenção;
- sem prejuízo do teor do artigo 4.º da Convenção, os princípios gerais previstos no artigo 2.º, enquanto verdadeiras regras de conduta que devem pautar o comportamento das seguradoras, têm aplicabilidade independentemente do caso em concreto em discussão;
- encontram-se, pois, as partes vinculadas aos princípios gerais previstos no artigo 2.º da referida Convenção, nomeadamente o princípio da Renúncia às vias judicial e arbitral, previsto na alínea c) do n.º 1 do artigo 2.º da referida Convenção;
- pelo que qualquer conflito que eventualmente possa surgir entre seguradoras deve ser dirimido mediante recurso ao procedimento previsto na Convenção de Regularização de Sinistros;
- o recurso à presente acção constitui uma violação contratual por parte da Autora que não pode ser tolerada pelo Tribunal, sob pena de, fazendo tábua rasa da Convenção subscrita pelas partes, ele próprio violar o princípio “pacta sunt servanda”, basilar do direito contratual e, desta forma, colocar em causa a segurança jurídica das relações estabelecidas entre as seguradoras subscritoras da Convenção;
- assim e por aplicação analógica do disposto na alínea b) do artigo 96.º do Código de Processo Civil, deve o presente tribunal ser considerado absolutamente incompetente para apreciação e resolução do litígio;
- pelo que, verificando-se a excepção dilatória prevista no artigo 577.º, a) deve ser declarada a absolvição da instância;
- por tudo o exposto, deve a sentença proferida pelo Tribunal a quo ser revogada e substituída por outra que absolva a Recorrente.
A Apelada contra alegou, defendendo a manutenção do julgado.
Cumpre-nos agora decidir.
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Delimitado como se encontra o objecto do recurso pelas conclusões da alegação – artigos 635º, n.º 4 e 640º do Código de Processo Civil – das formuladas pela Apelante resulta que a questão submetida à nossa apreciação consiste em apurar se o tribunal comum carece de competência em razão da matéria para conhecer do objecto desta acção.
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Foram os seguintes os factos dados como assentes:
a) no dia 26 de Outubro de 2005, pelas 23.45 horas, ocorreu um acidente de viação na Estrada Nacional que liga a Penha à Cidade de Guimarães, entre o veículo ligeiro de matrícula …-…-UN, conduzido por E. e o veículo ligeiro de passageiros de matrícula …-…-QS, conduzido por F.;
b) o “QS” circulava pela hemi-faixa direita da via e atrás do “QN”, e no mesmo sentido de marcha, circulava o “UN”;
c) ao aproximar-se de uma curva que se apresentava à respectiva esquerda, o condutor do “UN”, não cuidou de deixar espaço suficiente à frente do seu veículo;
d) e por imperícia, imprevidência e distracção, permitiu que esse veículo logo fosse embater com a sua parte frontal na traseira do “QS;
e) por força deste embate, o “QS” foi projectado contra um muro existente na margem direita da via, resultando desses embates danos na parte da frente e na traseira do veículo, cuja reparação foi orçamentada, respectivamente, em euros 13.489,38 e euros 2.802,10;
f) na data referida em a) a responsabilidade civil emergente dos danos causados a terceiros por via da circulação do veículo de matrícula …-…-UN encontrava-se transferida para a “D. - Companhia de Seguros SA” através de válido contrato de seguro titulado pela apólice nº …;
g) a “D. - Companhia de Seguros SA” foi incorporada, por fusão, na Ré no dia 24 de Janeiro de 2011;
h) na data referida em a) a responsabilidade civil emergente dos danos causados a terceiros por via da circulação do veículo de matrícula …-…-QS encontrava-se transferida para a Autora através de contrato de seguro titulado pela apólice nº …;
i) o contrato referido em h) incluía coberturas facultativas, mormente relativas a alguns danos próprios sofridos por esse veículo automóvel, nomeadamente a cobertura de “perda total do veículo”, para a qual foi acordado o capital de euros 19.850,00;
j) o F., segurado da Autora, participou-lhe o sinistro referido em a) ao abrigo do protocolo IDS (Indemnização Directa ao Segurado);
k) ante o referido em e), a Autora entendeu não se encontrar verificada a situação de perda total do veículo, pelo que veio a declinar a responsabilidade pelos montantes peticionados pelo seu segurado;
l) face à recusa mencionada em k), o F. instaurou contra a aqui Autora a acção declarativa que sob o n.º 4820/12.5TBGMR correu termos pelo extinto 4.º juízo cível do Tribunal Judicial de Guimarães peticionando, pela sua procedência, a condenação da ali demandada no pagamento a seu favor da quantia de euros 29.831,93, acrescida de juros moratórios contados sobre euros 23.455,30 desde a citação até efectivo e integral pagamento;
m) a acção referida em l) foi julgada parcialmente procedente, tendo a ali Ré, aqui Autora, sido condenada, por sentença datada de 09.02.2015, a pagar ao ali Autor a quantia de euros 16.472,18, acrescida de juros moratórios calculados às taxas de juros legais aplicáveis às obrigações comerciais desde a citação até efectivo e integral pagamento;
n) em cumprimento da sentença referida em m) a Autora pagou ao F. o montante global de euros 19.157, 54 em 25.03.2015.
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Estamos claramente perante uma acção em que a Autora pede o reembolso da quantia que pagou a seu segurado para reparação dos danos por este sofridos em consequência de acidente de viação que ocorrera há mais de três anos e em que foi interveniente um veículo segurado na Ré, que lhe deu causa, por força de contrato de seguro que incluía coberturas facultativas, designadamente relativas a alguns danos próprios sofridos por esse veículo automóvel e de condenação por sentença transitada em julgado.
Contestou a Ré excepcionando a competência absoluta dos tribunais comuns porquanto quer ela quer a demandante são subscritoras da Convenção de Regularização de Sinistros, tendo renunciado à via judicial de resolução de litígios entre elas emergentes, defendo encontrar-se “precludido” o direito de regresso da Autora, por terem decorrido mais de 3 anos desde a ocorrência do sinistro que fundamenta a pretensão exercida nesta acção.
Parece-nos que o equívoco da Apelante é evidente.
É ponto assente entre as partes que ambas subscreveram a designada “Convenção de Regularização de Sinistros”, que visa a resolução de todos os litígios que surjam entre os respectivos subscritores e que, no seu artigo 2º, n.º 1. c) consagra o princípio da renúncia às vias judicial e arbitral: “As signatárias obrigam-se a recorrer à presente convenção para resolução de todos os litígios que surjam entre elas, renunciando expressamente ao recurso a qualquer outra via judicial ou arbitral”.
No entanto, logo o artigo 4º, sob a epígrafe “Âmbito de aplicação”, prescreve no alínea a) que “A presente convenção é aplicável a litígios respeitantes a reembolsos entre signatárias emergentes de acidente de viação ocorridos há menos de 3 anos que envolvam o reembolso de danos próprios e/ou pagamentos de verbas pagas a terceiros passivos nos termos previstos no respectivo protocolo, que faz parte integrante da presente convenção como seu Anexo n.º 1”.
Por seu lado, também o artigo 2º, n.º 1, a) do Anexo n.º 1 estipula: “Excluem-se do âmbito de aplicação do presente protocolo acidentes ocorridos há mais de 3 anos à data da entrada da petição inicial.”
Com a sentença recorrida, entendemos que as normas citadas não pretendem estabelecer um prazo de prescrição do direito ao reembolso, como parece ser o entendimento da Apelante, que ficaria precludido nos casos em que o acidente ocorreu há mais de três anos mas apenas, como a epígrafe do artigo 4º da Convenção refere, definir o “Âmbito de aplicação” da mesma, estabelecendo a exclusão da sua aplicação nesses casos; e se a Convenção não é aplicável, consequentemente também o não é a dita renúncia às vias judicial e arbitral prevista no seu artigo 2º, podendo o direito ao reembolso ser reclamado através do recurso aos meios normais, designadamente ao judicial, para o que o tribunal comum é competente em razão da matéria.
Termos em que se acorda em negar provimento ao recurso e se confirma sentença recorrida.
Custas pela Apelante.
Carlos Carvalho Guerra
Maria da Conceição Bucho
Maria Luísa Ramos