Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
304/17.3T8BRG.G1
Relator: MARIA AMÁLIA SANTOS
Descritores: RESPONSABILIDADE MÉDICA
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
PRESCRIÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/20/2018
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- Estamos perante uma responsabilidade civil contratual, quando ela provém da “falta de cumprimento das obrigações emergentes dos contratos, de negócios unilaterais ou da lei”, e extracontratual, também designada de delitual ou aquiliana, quando resulta da “violação de direitos absolutos ou da prática de certos actos que, embora lícitos, causam prejuízo a outrem”
II- A responsabilidade médica tem, em princípio, natureza contratual. Médico e doente estão, no comum dos casos, ligados por um contrato marcadamente pessoal, de execução continuada e, por via de regra, sinalagmático e oneroso.
III- A partir do momento em que a ré Clínica decide intervencionar a A. e esta aceita tal intervenção, estabelece-se, ao menos tacitamente, um contrato de prestação de serviços entre ambos”.
Decisão Texto Integral:
Processo: 304/17.3T8BRG
Comarca de Braga
Relatora: Maria Amália Santos
1ª Adjunta: Ana Cristina Duarte
2º Adjunto: João Diogo Rodrigues
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MARIA, melhor identificada nos autos veio propor ação declarativa sob a forma comum contra CLÍNICA MÉDICO CIRÚRGICA X, e Y SEGUROS - COMPANHIA DE SEGUROS S.A. também ambas melhor identificadas nos autos, formulando contra elas os seguintes pedidos:

(i) Pagamento de uma indemnização não inferior a € 51.000,00 (…), a título de danos não patrimoniais;
(ii) Pagamento de uma indemnização, cujo montante relega para execução de sentença, a título de perdas aquisitivas laborais de IPP e IPG (…)
(iii) Pagamento de despesas médicas, medicamentosas e hospitalares que venha a reclamar;
(iv) Juros respetivos à taxa legal desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.
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Fundamenta a Autora a sua pretensão de indemnização numa atuação negligente da Ré CLÍNICA MÉDICO CIRÚRGICA X, em ato médico que realizou na pessoa da Autora e do qual lhe resultaram lesões, estendendo a responsabilidade à Ré Y Seguros - COMPANHIA DE SEGUROS, uma vez que esta assumiu os riscos do ato médico.
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A ré seguradora veio contestar a acção invocando a ineptidão da petição inicial, a sua ilegitimidade para a acção, a incompetência material do tribunal e a prescrição do direito da A.
Impugna ainda os factos alegados, pugnando pela improcedência total da acção.
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Também a Clínica Médico Cirúrgica X veio contestar a acção, invocando a prescrição do direito da A. e a ilegalidade de dedução de pedidos genéricos e relativos a danos futuros incertos e indeterminados.
Impugna ainda os factos alegados, pugnando pela improcedência total da acção e pela condenação da A como litigante de má-fé.
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Foi então proferida a seguinte decisão:

“Da exceção da prescrição do direito de indemnização da Autora:

(…)
São os seguintes os factos a atender (considerados assentes por acordo das partes expresso nos respetivos articulados e dos documentos juntos aos autos):
- A Autora ao serviço da Associação Cultural Recreativa e Musical P., tomadora de seguro de acidente de trabalho, terá sofrido um acidente de trabalho em 24/12/2000.
- A Associação Cultural Recreativa e Musical P. tinha a sua responsabilidade por acidente de trabalho transferida para a Y Seguros pela apólice ….
- Por força desse acidente correu termos a respetiva ação no Tribunal de Trabalho no âmbito da qual a Y Seguros indemnizou a autora pelos valores fixados.
- Com data de 7 de setembro de 2001, a Y Seguros emitiu uma declaração com o seguinte teor: “A Y Seguros, Companhia de Seguros de Y, S.A., declara que, Maria, morador(a) em …, Aboim da Nóbrega, está abrangido(a) pela Apólice de Seguros de Acidentes de Trabalho nº A … do Tomador de Seguros – As. Cultural, Recreativa e Musical. Mais declara que a Y Seguros, S.A., toma responsabilidade sobre a(o) cirurgia necessário (a) à reabilitação de Maria, vítima de acidente de trabalho abrangido pela referida Apólice, a ser efetuado(a) em Braga a 12-09-2001”.
- No dia 12 de Setembro de 2001, no âmbito da ação por acidente de trabalho, a Autora foi submetida a operação cirúrgica, com aplicação de um parafuso de fixação na Tíbia.
- Consta do documento de fls 12 junto aos autos pela autora, datado de 24 de dezembro de 2001, que “(…) Atualmente está a evoluir bem na fisioterapia, e aguarda marcação de cirurgia para extração do parafuso aplicado.”
- A presente ação deu entrada no dia 19-01-2017 tendo a 1ª Ré sido citada em 25-01-2017 e a 2ª Ré em 26-01-2017.
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Bem analisada a pretensão da Autora, na configuração que lhe dá quanto à causa de pedir e pedidos, cremos não haver dúvidas que a mesma se enquadra no domínio da responsabilidade civil por factos ilícitos, de cariz extracontratual.
Na verdade, não existiu qualquer relação contratual estabelecida entre Autora e Ré Clínica Médico Cirúrgica X, dado que esta interveio a pedido da Ré Seguradora, sem que tivesse sido contratado diretamente com a Autora a prestação de serviços médicos.
Do mesmo modo, não tem a Autora qualquer relação contratual com a Ré Y Seguros - COMPANHIA DE SEGUROS.
O único ponto de ligação entre as partes, sem qualquer conformação jurídica, reside na circunstância de a Autora ter sofrido um acidente de trabalho ao serviço da Associação Cultural Recreativa e Musical P. que tinha a sua responsabilidade por acidentes de trabalho transferida para a Y Seguros pela apólice …, que a indemnizou pelos valores fixados pelo Tribunal de Trabalho. No âmbito da ação laboral a autora foi submetida a uma intervenção cirúrgica em estabelecimento escolhido pela Seguradora que assumiu os riscos da cirurgia.
Sucede que, a Autora afasta declaradamente qualquer direito provindo desta relação laboral, para o qual este tribunal não seria o competente em razão da matéria.
A Autora delimita expressamente o objeto do litígio à atuação negligente da Ré Clínica Médico Cirúrgica X.
Destarte, a lei substantiva aplicável ao caso é a que emerge da responsabilidade civil extracontratual à luz da espécie jurídica figurada nos artigos 483º e seguintes do Código Civil.
Para esta responsabilidade a lei prevê, no seu artigo 498.º do Código Civil, um prazo curto de prescrição, correspondendo este prazo a três anos e se o facto ilícito constituir crime para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo, é este o prazo aplicável.
A factualidade imputada à 1ª Ré, seria subsumível abstratamente ao crime de ofensa à integridade física (art. 143º, do Código Penal), sendo-lhe aplicável o prazo de prescrição de 5 anos (art. 118º, nº1, al. c, do Código Penal).
O momento inicial de contagem do prazo de prescrição deve coincidir com o momento em que a Autora refere que deveria ter sido retirado o parafuso, verificando-se uma omissão por parte da Ré Clínica, a qual lhe causou os danos de que vem reclamar o respetivo ressarcimento.
E esse momento inicial situa-se, pelo menos, na data de 24 de dezembro de 2001, data do documento em que a Autora estriba a afirmação da necessidade de retirada do parafuso que lhe foi colocado na cirurgia de 12 de setembro de 2001.
Os Réus foram citados para a presente ação em 25 e 26 de janeiro de 2017.
Entre a data do conhecimento do facto danoso e a citação dos réus decorreram mais de 15 anos.
Donde, há muito se mostra prescrito o direito de indemnização da Autora.
A prescrição configura um facto impeditivo do direito da Autora, que conduz à absolvição do pedido (arts 576.º, n.º 3 e 579.º do C.P.C.),
Pelo exposto, julgo verificada a prescrição do direito de indemnização da Autora e, em consequência, absolvo as Rés dos pedidos contra si formulados.
Custas pela Autora.
Registe e notifique”.
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Não se conformando com a decisão proferida, dela veio a A interpor o presente recurso de Apelação, apresentando Alegações e formulando as seguintes
Conclusões:

A - Na sua douta sentença o Mmo Sr. Juiz "a quo" concluiu pela absolvição dos RR. do pedido,
B- julgando verificada a prescrição do direito de indemnização da Autora.
C- Contudo, com o devido respeito, que é muito, não concorda a recorrente com tal decisão.
D- Na verdade, o Mmo Juiz a quo entendeu que não havia qualquer relação contratual, mas sim extracontratual, entre a Autora e os RR.
E- Pelo que, há muito havia prescrito o direito peticionado da mesma.
F - Porém, não atendeu o Mmo juiz ao facto de que a prestação de serviço operada pela R. CLÍNICA MÉDICO CIRÚRGICA X, se tratava de uma relação complexa.
G- Com efeito, havia um contrato entre esta R. e a outra R., Y Seguros, tendente a que a Autora fosse operada e tratada medicamente pela R. X.
H- Assim, como se referiu, a prestação de serviços médica é de natureza complexa, ao aceitar ser operada e tratada pela R, X, a Autora, mesmo que verbal e tacitamente, também celebrou um contrato de prestação de serviços com a R. X
1- tendo esta R. aceitado.
J- Pelo que, verificou-se entre a Autora e a R. X, um contrato de prestação de serviços, em que esta última, mediante os seus serviços e capacidade técnica se dispõe, gratuita ou onerosamente, a operar e tratar medicamente o corpo da Autora.
L- Desta forma, conscientemente a R. X aderiu por um lado à proposta contratual da R. Y Seguros e por outro lado à proposta contratual da Autora: que a tratasse.
M- Assim, ao assumir o tratamento da Autora, a R. X obrigou-se contratualmente com a Autora, prestando-lhe os seus serviços, mediante um contrato de prestação de serviços.
N - Desta forma, estamos no campo da responsabilidade contratual.
O - Pelo que, o prazo da Autora, para exercer o direito indemnizatório, é de 20 anos e não de 3 ou 5 anos como se refere na douta sentença.
P - Com efeito, estabeleceu-se uma relação contratual entre Autora e R. X, já que, apesar do contrato celebrado entre a R. Y Seguros e a R. X,
Q - a vontade de consentir que houvesse uma prestação de serviço médico, não está apenas no acordo das RR entre si,
R - a Autora, enquanto ser humano, com vontade e lucidez, também teve que consentir naquela prestação de serviço.
S - Caso contrário, não poderia ser prestado o serviço.
T - Assim, a complexidade reside no facto de, para o mesmo fim serem necessários dois contratos de prestação de serviço,
U - Como se referiu, um, o das RR. entre si, e outro o da Autora com a R. X, uma ao consentir e outra ao aceitar a prestação de serviço.
V - Com efeito, a intervenção médica careceu e carece, salvo em caso limites, de uma relação dupla de vontades, um que quer e outro que aceita, que acabam num simples contrato de prestação de serviço.
X - Com efeito, estamos na área dos direitos, liberdades e garantias, próprios de cada ser humano e não de coisas, em que por falta de vontade e querer, o seu destino fica apenas dependente da vontade do dono da coisa material ou imaterial e de um terceiro contratante.
Z - Sendo obrigatória e irrenunciável a exigência de vontade contratual das partes, doente e médico, independentemente de negócio de terceiros. Art. 25-1 CRP.
Zl - No fundo, a relação doente-médico traduz-se num contrato de prestação de serviço por si, por força da lei. A vontade negocial é obrigatória, está sempre dependente e transforma-se num acordo entre doente e médico, onde aquele aceita os serviços deste e este compromete-se a prestá-los, como em qualquer relação contratual do tipo prestação de serviço.
Z2 - O que impunha decisão diversa da proferida, dado o facto de terem sido incorretamente julgadas.
Z3 - Devendo ser o prazo de prescrição para o exercício do direito peticionado pela Autora de 20 anos, o prazo ordinário de prescrição. Pelo que, o mesmo não prescreveu.
Z4 - Tendo sido violados os arts. 18, 25-1 da Const. Rep. Portuguesa e arts 1154, 70, 562, e 309 C.C. e art. 668 CPC…”.
Pede, a final que a sentença recorrida seja revogada.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente (acima transcritas), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, a questão a decidir é apenas a de saber se a responsabilidade civil da ré Clínica X perante a A é de natureza contratual ou extra-contratual.
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Os factos a considerar para a decisão da causa são os constantes da decisão recorrida (que a recorrente aceita como assentes).
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Considerou-se na decisão sob recurso que, analisada a pretensão da Autora, na configuração que lhe dá quanto à causa de pedir e pedidos, a mesma se enquadra no domínio da responsabilidade civil por factos ilícitos, de cariz extracontratual.
Que não existiu qualquer relação contratual estabelecida entre a Autora e a Ré Clínica Médico Cirúrgica X (doravante apenas por nós denominada Clínica), dado que esta interveio a pedido da Ré Seguradora, sem que tivessem sido contratados diretamente com a Autora os serviços médicos prestados.
Por isso conclui que a lei substantiva aplicável ao caso é a que emerge da responsabilidade civil extracontratual, à luz da espécie jurídica figurada nos artigos 483º e seguintes do Código Civil.
E que para esta responsabilidade a lei prevê, no seu artigo 498.º do Código Civil, um prazo curto de prescrição, correspondendo este prazo a três anos, a menos que o facto ilícito constitua crime para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo, caso em que será esse o prazo aplicável.
Ora, a factualidade imputada à 1ª Ré seria subsumível - na ótica do tribunal recorrido -, abstractamente, ao crime de ofensa à integridade física (art. 143º, do Código Penal), sendo-lhe então aplicável o prazo de prescrição de 5 anos (art. 118º, nº1, al. c, do Código Penal).
Acontece que entre a data do conhecimento do facto danoso e a citação dos réus decorreram mais de 15 anos, donde, no entendimento plasmado na decisão recorrida, há muito se mostra prescrito o direito de indemnização da Autora, tendo-se decidido, assim, pela verificação da prescrição do pretenso direito de indemnização da A. e pela absolvição da ré dos pedidos.
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Discorda a recorrente desse entendimento, advogando que a prestação de serviços médicos é de natureza complexa, e que ao aceitar ser operada e tratada pela Ré X, a Autora, mesmo que verbal e tacitamente, celebra também um contrato de prestação de serviços com a mesma, que o aceita.

Assim, acrescenta, conscientemente a R. X aderiu, por um lado, à proposta contratual da R. Y Seguros, aceitando tratar a A. enquanto sinistrada coberta pelo contrato de seguro, e por outro lado à sua proposta contratual, que foi a de que a tratasse.

Por isso, ao assumir o tratamento da Autora, a R. X obrigou-se contratualmente com ela, prestando-lhe os seus serviços, pelo que estamos no campo da responsabilidade contratual, sendo o prazo para exercer o seu direito indemnizatório de 20 anos e não de 3 ou 5 anos, como se refere na sentença recorrida, não se mostrando, assim, prescrito o seu direito à indemnização reclamada nos autos.
E temos de concordar com a recorrente.
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A questão está em saber, como acima equacionamos, se a responsabilidade civil médica em causa é de natureza contratual, como defende a A, ou extra-contratual, como defendeu a primeira instância.
Muito resumidamente, alega a A. na p.i. que no dia 12 de Setembro de 2001 foi submetida a operação cirúrgica nas instalações da 1ª R. – Clínica X -, tendo tal intervenção cirúrgica sido efectuada sob as ordens, orientações e pessoal técnico daquela, e que fruto de tal intervenção cirúrgica ficou com um parafuso, material de perfuração instalado na tíbia direita.
Ora, a colocação de tal parafuso deveria ter sido temporária; porém, nunca o mesmo foi retirado, apesar da insistência da A. perante as RR., devendo-se a sua permanência no corpo da autora a esquecimento e posterior recusa em retirá-lo, o que lhe causou danos, que descreve e quantifica.
E conclui que a 1ª R. é parte legítima na acção, uma vez que exerceu a sua actividade no âmbito de uma relação contratual com a A. e com a 2ª R., e a 2ª R. também é parte legítima, uma vez que assumiu os riscos da cirurgia, conforme declaração por si prestada.

Ora, decorre das alegações da A. que a mesma invoca, para fundamentar o seu pedido indemnizatório, uma relação contratual estabelecida com a 1ª ré, invocando também uma relação contratual da 1ª com a 2ª (embora sem especificar o tipo de contrato entre elas celebrado).
A decisão recorrida considerou, no entanto, que estamos no campo da responsabilidade civil extra-contratual.
Começamos por dizer que a distinção em causa não é fácil pois que estamos perante duas espécies de responsabilidade civil que podem coexistir, sendo que o mesmo facto pode constituir, ao mesmo tempo, uma violação do contrato e um facto ilícito. Pode, além disso, existir um único dano, produzido por único facto, o qual, além de constituir violação de uma obrigação contratual, pode ser também lesivo do direito absoluto à vida ou à integridade física (cfr. Pinto Monteiro, in “Cláusulas Limitativas e de Exclusão de Responsabilidade Civil”, págs. 430 /431).

Por isso defende o A. citado que numa situação desta natureza deve permitir-se ao lesado, em princípio, a faculdade de optar por uma ou outra espécie de responsabilidade, e até de cumular, na mesma acção, regras de uma e de outra à sua escolha (tese defendida também por Figueiredo Dias e Sinde Monteiro, no BMJ 332º, págs. 39/40; por Rui de Alarcão, “Direito das Obrigações”, pág. 210; e por Vaz Serra, na RLJ ano 102, págs. 313-314).
Almeida Costa defende já (em “Direito das Obrigações”, 10ª ed., págs. 551/552) que o regime da responsabilidade contratual “consome” o da extracontratual (princípio da consunção), o mesmo se passando com Cunha Rodrigues (“Reflexões em Torno da Responsabilidade Civil dos Médicos”, Revista Direito e Justiça da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, vol. XIV, 2000, págs. 191/198) e Miguel Teixeira de Sousa (“Sobre o Ónus da Prova nas Acções de Responsabilidade Civil Médica”, Direito da Saúde e Bioética, Lisboa, 1996, edição da AAFDUL, pág. 137) e o STJ, no Ac. de 22/09/11 (disponível em www.dgsi.pt).

Trata-se, no entanto, de institutos jurídicos distintos, com fundamentos distintos, e reflexos, ao nível das consequências legais deles decorrentes, também distintos. E daí a pertinência da sua distinção.
Estamos perante uma responsabilidade civil contratual, quando ela provém da “falta de cumprimento das obrigações emergentes dos contratos, de negócios unilaterais ou da lei”, e extracontratual, também designada de delitual ou aquiliana, quando resulta da “violação de direitos absolutos ou da prática de certos actos que, embora lícitos, causam prejuízo a outrem” (Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, 9ª ed., pág. 537 e Ac STJ de 27.11.2007, disponível em www.dgsi.pt)
O Código Civil sistematiza também estas duas formas de responsabilidade em lugares distintos: a responsabilidade contratual nos arts. 798º e segs., no capítulo atinente ao cumprimento e não cumprimento das obrigações, e a responsabilidade extracontratual nos arts. 483º e segs. no capítulo das fontes das obrigações, embora sejam os mesmos os elementos constitutivos da responsabilidade civil, provenha ela de um facto ilícito ou de um contrato, ou seja, o facto (controlável pela vontade do homem); a ilicitude; a culpa; o dano; e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Existe, no entanto, como se disse, particular interesse na distinção dos dois institutos, sendo certo que a tutela contratual é a que, em regra, favorece mais o lesado na sua pretensão indemnizatória.
E uma delas é precisamente a respeitante ao prazo de prescrição - 20 anos na responsabilidade contratual (art. 309º) e 3 anos (regra) na delitual (art. 498º) – sendo essa, no fundo, a questão fundamental da divergência das partes no recurso em análise (beneficiando a recorrente, sobremaneira, da consideração da responsabilidade em questão, se ela se situar no âmbito da responsabilidade contratual).
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No caso da responsabilidade civil médica, a distinção entre responsabilidade contratual e extra-contratual também não tem sido pacífica na jurisprudência, como nos dá conta o Ac do STJ de 15.11.2011 (disponível em www.dgsi.pt, cuja orientação seguimos de perto), uma vez que não prevê a nossa lei casos de responsabilidade objectiva ou de responsabilidade civil por factos lícitos danosos, mas apenas a responsabilidade contratual e extracontratual ou aquiliana.
Assim, durante muito tempo, o ressarcimento dos danos causados pelo exercício médico fundou-se apenas no regime delitual, até que se tornou comum o entendimento de que entre médico e doente se celebra, em regra, um negócio jurídico bilateral em que o primeiro se obriga a prestar ao segundo assistência médica mediante retribuição (Moitinho de Almeida ("A Responsabilidade Civil do Médico e o seu Seguro”, publicado na "Scientia Ivrídica", Tomo XXI, 1972, pág. 327 e segs).

Efetivamente, como nos dá conta João Álvaro Dias (“Procriação Assistida e Responsabilidade Médica”, Stvdia Ivridica, n° 21 - BFDC - Coimbra, 1996, págs. 221 e 222), em regra, “a responsabilidade médica tem, em princípio, natureza contratual. Médico e doente estão, no comum dos casos, ligados por um contrato marcadamente pessoal, de execução continuada e, por via de regra, sinalagmático e oneroso. Pelo simples facto de ter o seu consultório aberto ao público e de ter colocado a sua placa, o médico encontra-se numa situação de proponente contratual. Por seu turno, o doente que aí se dirige, necessitando de cuidados médicos, está a manifestar a sua aceitação a tal proposta. Tal factualidade é, por si só bastante para que possa dizer-se, com toda a segurança, que estamos aqui em face dum contrato consensual pois que, regra geral, não se exige qualquer forma mais ou menos solene para a celebração de tal acordo de vontades” (cfr. no mesmo sentido, Henriques Gaspar, “A Responsabilidade Civil do Médico”, in CJ, Ano III, 1978, pág. 341).
Miguel Teixeira de Sousa (“Sobre o Ónus da Prova nas Acções de Responsabilidade Civil Médica”, Direito da Saúde e Bioética, Lisboa, 1996, edição da AAFDUL, pág. 127) defende também que a responsabilidade civil médica “é contratual quando existe um contrato, para cuja celebração não é, aliás, necessária qualquer forma especial, entre o paciente e o médico ou uma instituição hospitalar e quando, portanto, a violação dos deveres médicos gerais representa simultaneamente um incumprimento dos deveres contratuais…”
Estaríamos aqui na presença de um contrato de prestação de serviços, tipificado na lei, no art. 1154º do Código Civil, como “aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho, intelectual ou manual, com ou sem retribuição”.
Claro que a actuação ilícita do médico, causadora de resultados danosos para o doente, pode configurar uma situação de responsabilidade extracontratual. Será o caso, referido por Álvaro Dias (ob. Citada, pag. 226 a 228), do médico prestar assistência a uma pessoa inanimada, se, por força da ilicitude do acto e da culpa do agente, a sua actuação configurar determinado tipo legal de crime (v.g., ofensas corporais, homicídio negligente, prática ilegal de aborto, revelação de sigilo profissional), ou por nulidade do contrato por ilicitude do seu objecto.
Também Miguel Teixeira de Sousa (ob. E local Citados) defende este tipo de responsabilidade quando não existe qualquer contrato entre o médico e o paciente e, por isso, quando não se pode falar de qualquer incumprimento contratual, mas apenas, como se refere no art. 483º, nº 1, do Código Civil, da violação de direitos ou interesses alheios (como são o direito à vida e à saúde)”
Ou seja, estando em causa a eventual violação ilícita de um direito de personalidade (a integridade física do autor) sempre tal ilícito geraria responsabilidade extracontratual.
Será sempre, no entanto, o caso concreto que, analisado em toda a sua envolvência, dirá se se está – em caso de responsabilidade civil médica - perante uma relação contratual ou extracontratual.
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Debruçando-nos agora sobre o caso dos autos, temos como assente (decorrente dos factos alegados pelas partes nos seus articulados e não impugnados) que a Autora sofreu um acidente de trabalho ao serviço da Associação Cultural Recreativa e Musical P., a qual tinha a sua responsabilidade por acidentes de trabalho transferida para a Y Seguros pela apólice …, que a indemnizou pelos valores fixados pelo Tribunal de Trabalho.
E que no âmbito da ação laboral (acção emergente de acidente de trabalho) a autora foi submetida a uma intervenção cirúrgica em estabelecimento escolhido pela Seguradora, que, entre outras, tem a obrigação legal de prestar a assistência médica necessária ao sinistrado em caso de acidente de trabalho abrangido pela apólice de seguro (Artigo 10.º da Lei n.º 100/97 de 13 de Setembro, que aprova o novo regime jurídico dos acidentes de trabalho e das doenças profissionais - em vigor à data da assistência, que prevê que o direito à reparação compreende, nos termos que vierem a ser regulamentados, as seguintes prestações: a) Em espécie: prestações de natureza médica, cirúrgica, farmacêutica, hospitalar e quaisquer outras, seja qual for a sua forma, desde que necessárias e adequadas ao restabelecimento do estado de saúde e da capacidade de trabalho ou de ganho do sinistrado e à sua recuperação para a vida activa).
Ou seja, os cuidados médicos foram prestados à autora pela primeira ré Clínica, na sequência de um acidente de trabalho de que foi vítima, cuidados esses acordados (supostamente por contrato) com a seguradora da sua entidade patronal, e operados na ré Clínica, que assumidamente estabeleceu uma relação contratual com a Cª de Seguros, a cargo de quem estava a reparação do acidente de trabalho que vitimou a A.

Aliás, são as próprias rés que admitem, nas suas contestações, que a ré Clínica interveio nos serviços médicos prestados à A. a pedido da Ré Seguradora, tendo a Autora sido intervencionada cirurgicamente nas instalações da 1ª, por efeito de uma relação existente entre ambas as rés.
Evidência disso mesmo é o próprio doc. 1 junto à petição inicial, de onde resulta que a Ré Seguradora assumiu a responsabilidade (obrigatória, de resto, face ao disposto no artº 10º, alínea a) da LAT) pela “reabilitação de Maria, vítima de acidente de trabalho, abrangido pela referida Apólice, a ser efectuado em Braga a 12.09.2001.”

Pode assim afirmar-se com segurança que existia, na altura da intervenção cirúrgica da A., uma relação contratual de base entre ambas as rés, estando a 1ª obrigada, por força desse contrato, a intervencionar a A.
A questão está agora em saber se entre a A. e a 1ª ré se estabeleceu também uma relação contratual, relacionada agora com a própria cirurgia, tese que a decisão recorrida rejeitou, com o fundamento de que entre ambas não existiu qualquer acordo ou relação contratual.
Mas estamos do lado da recorrente, quando afirma que também aqui se estabeleceu uma relação contratual, de prestação de serviços, entre a Clínica, como prestadora do serviço, e a A, como beneficiária dos mesmos.
Faz todo o sentido o por ela afirmado, de que ao aceitar ser operada e tratada pela Clínica, mesmo que verbal e tacitamente, a A. também celebrou um contrato de prestação de serviços com aquela, pelo que se estabeleceu entre ambas um contrato de prestação de serviços, em que a última, mediante os seus serviços e capacidade técnica se dispôs, onerosamente (a expensas da ré seguradora), a operar e tratar medicamente a Autora.
Como refere Menezes Cordeiro (“Tratado de Direito Civil”, Volume II, Parte Geral, Negócio Jurídico, 4ª Edição, 2014, Almedina, p. 116) são elementos essenciais gerais para a celebração de um negócio jurídico “(…) a capacidade das partes, a declaração ou declarações de vontade e o objecto possível: qualquer negócio jurídico deve, para existir em termos de validade, reunir estes elementos. Os elementos essenciais específicos variam (depois) consoante o tipo negocial considerado…”
Ora, o contrato de prestação de serviços, já acima referido, é legalmente definido como “aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar a outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição.” – art. 1154.º do Código Civil.
Este contrato apresenta a natureza jurídica de bilateral, consensual, de duração continuada e não solene, tendo por objecto a execução de uma actividade humana, intelectual ou manual, fungível ou infungível, a que está agregada, em regra, uma contraprestação ou retribuição pecuniária, como pagamento do serviço prestado (Ac STJ de 01/04/14, disponível em www.dgsi.pt).
O Código Civil define, como modalidades típicas do contrato de prestação de serviços, o mandato, o depósito e a empreitada (art. 1555.º), havendo, no entanto, muitos outros tipos de contratos desta natureza que a lei não previu expressamente, cabendo no tipo geral do artº 1154º todo o tipo de contrato que envolva a prestação ou resultado de um trabalho, intelectual ou manual, com ou sem retribuição (nele se incluindo, como não podia deixar de ser, os serviços médicos prestados por entidades clínicas vocacionadas para o efeito).

No caso dos autos, estamos, sem dúvida, perante um contrato de prestação de serviços (atípico ou geral) incluído no preceito legal citado. A sua formação verificou-se através das declarações de vontade de ambas as partes tendentes à sua celebração, nos moldes acima enunciados – em que a clínica se disponibilizou a operar a A. (a prestar-lhe o resultado do seu trabalho) e esta aceitou a sua prestação (que lhe fizessem a cirurgia).
Houve um encontro de vontades – expressas ou tácitas – no sentido de uma das partes – a Clínica – proporcionar à outra – a A. – o resultado do seu trabalho. E é quanto basta para que o contrato se consolidasse na esfera jurídica de ambas as partes.
Neste mesmo sentido se decidiu no Ac do STJ de 27/11/07 (já mencionado, disponível em www.dgsi.pt) no qual se refere expressamente que “a partir do momento em que o Réu decide intervencionar o A. e este aceita tal intervenção, estabelece-se, ao menos tacitamente, um contrato de prestação de serviços entre ambos” (no mesmo sentido se pronunciou ainda o Ac do STJ de 09 de Dezembro de 2008, disponível em www.dgsi.pt e Carlos Ferreira de Almeida, em “Os contratos civis de prestação de serviço médico”, Direito da Saúde e Bioética, AAFDUL, págs. 85 e segs, particularmente págs. 95 a 99).
A essa luz, mostra-se desnecessária a existência de quaisquer elementos factuais para avaliar e decidir se foi ou não celebrado um acordo directo entre a autora e a ré Clínica - sendo essa falta de elementos que sustentou a tese defendida na 1ª Instância para enveredar e concluir pela responsabilidade civil médica extracontratual.

Conclui-se, portanto, estarmos perante um contrato de prestação de serviços, pelo que estamos no campo da responsabilidade contratual, sendo o prazo da Autora para exercer o seu pretenso direito indemnizatório, de 20 anos (nos termos do artº 309º do CC).
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Decisão:

Pelo exposto, Julga-se procedente a Apelação e revoga-se a decisão recorrida.
Custas (da Apelação) pelas recorridas.
Notifique e D.N.

Relatora: Maria Amália Santos
1ª Adjunta: Ana Cristina Duarte (voto a decisão, mas acompanho a declaração de voto do Exm.º colega João Diogo Rodrigues)
2º Adjunto: João Diogo Rodrigues (junto declaração de voto)


Sumário do acórdão:

I- Estamos perante uma responsabilidade civil contratual, quando ela provém da “falta de cumprimento das obrigações emergentes dos contratos, de negócios unilaterais ou da lei”, e extracontratual, também designada de delitual ou aquiliana, quando resulta da “violação de direitos absolutos ou da prática de certos actos que, embora lícitos, causam prejuízo a outrem”
II- A responsabilidade médica tem, em princípio, natureza contratual. Médico e doente estão, no comum dos casos, ligados por um contrato marcadamente pessoal, de execução continuada e, por via de regra, sinalagmático e oneroso.
III- A partir do momento em que a ré Clínica decide intervencionar a A. e esta aceita tal intervenção, estabelece-se, ao menos tacitamente, um contrato de prestação de serviços entre ambos.
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Voto a decisão, mas não os seus fundamentos, porquanto embora reconheça que a A. funda o seu pedido, em relação à Clínica Médico Cirúrgica X, na responsabilidade contratual, essa eventual responsabilidade deriva, na sua versão, não de qualquer acordo, ainda que tácito, celebrado entre ambas (a A. e a referida Ré), mas da alegada execução imperfeita do contrato de prestação de serviços celebrado entre as Rés; ou seja, de um contrato de prestação de serviços a favor de terceiro, que a A., como beneficiária, tinha o direito a ver integral e perfeitamente cumprido (artigo 444.º, n.º 1 do Código Civil).

João Diogo Rodrigues