Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
505/15.9.T8BCL.G1
Relator: JOSÉ MANUEL ALVES FLORES
Descritores: POSSE
ANIMUS
USUCAPIÃO
FRACCIONAMENTO
OPERAÇÕES URBANÍSTICAS
NORMAS IMPERATIVAS
INTERESSE PÚBLICO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/01/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - A violação dos normativos de natureza urbanística, que previnam o fraccionamento de prédios urbanos sem o devido licenciamento ou loteamento, não obsta à aquisição originária, com base na usucapião, do direito de propriedade sobre a parcela em causa, desde que se verifiquem os pressupostos exigidos para esta.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes na 1ª Secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

1. RELATÓRIO

Os Recorrentes, instauraram a presente acção contra os Recorridos, pedindo que:

a) Se declare que autores são donos e legítimos proprietários do imóvel, condenando o réu a reconhecer aos autores o direito de propriedade sobre o imóvel em causa e parcialmente ocupado pelo réu.
b) Se condene o réu a restituir aos autores a parte do imóvel que ilicitamente ocupa, entregando-o livre de pessoas e bens.
c) Se condene o réu a pagar aos autores €.100,00 por cada mês de ocupação ilegal do imóvel, desde de 30 de Setembro de 2014 até a entregar definitiva do mesmo.

O réu, contestou a acção e simultaneamente deduziu reconvenção.
Termina o seu articulado pedindo que: a)seja declarada a excepção dilatória de ilegitimidade passiva; b) seja o réu absolvido de todos os pedidos contra si formulados.
Em reconvenção, pede que: a) se declare e reconheça a aquisição por usucapião do direito de propriedade do réu/reconvinte sobre a parcela de terreno onde está implantada a casa do mesmo, as áreas, confrontações e demais elementos identificativos a serem fornecidos pela perícia topográfica a efectuar; b) se condene os autores/reconvindos a reconhecer o direito referido; c) se ordene a rectificação da descrição do prédio dos autores/reconvindos, melhor identificado no art. 1.º da petição inicial, junto da Conservatória do Registo Predial, no que diz respeito à área. Pede ainda que os autores/reconvindos sejam condenados em multa e indemnização a atribuir ao réu/reconvinte em montante não inferior a €.3.000,00 por litigância de má fé.
A pedido de ambas as partes, foi admitida a intervir na qualidade de ré/reconvinte a Recorrida A. F..
Esta declarou que fazia seus os articulados apresentados pelo réu.

Na audiência de julgamento, os autores pediram que seja declarada a nulidade da aquisição por usucapião invocada pelos réus, por violação das normas urbanísticas que proíbem os loteamentos ou destaques ilegais (cfr. acta de fls. 266), tendo os réus/reconvintes, defendido que não assiste razão aos autores.

Instruída a causa, e realizada a sua audiência de julgamento, foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo.
“Pelo exposto, o Tribunal decide:

A. Julgar a acção totalmente improcedente e, em consequência, absolver os réus Manuel e A. F. dos pedidos formulados pelos autores José e Maria.
B. Julgar a reconvenção parcialmente procedente e, em consequência:

a. Reconhece-se os réus/reconvintes como proprietários da parcela de terreno de área não concretamente apurada mas sempre superior a 118 m2 e inferior a 154 m2 (e que corresponde à área da construção e ao pátio que se situa entre a construção e as escadas), que fazia parte do prédio identificado em 3) dos factos provados.
b. Condenam-se os autores/reconvindos José e Maria a reconhecer que os réus/reconvintes são proprietários da parcela de terreno de área não concretamente apurada mas sempre superior a 118 m2 e inferior a 154 m2 (e que corresponde à área da construção e ao pátio que se situa entre a construção e as escadas), que fazia parte do prédio identificado em 3) dos factos provados.
c. No mais absolvem-se os autores/reconvindos José e Maria do pedido.
C. Absolvem-se os autores/reconvindos José e Maria do pedido de condenação como litigantes de má fé.
As custas da acção são suportadas pelos autores e as custas da reconvenção são suportadas por autores e os réus, na proporção de 2/3 e 1/3, considerando o desfecho dos vários pedidos formulados pelos réus/reconvintes.”
*
Não se conformando com a decisão, dela apelaram os Autores, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que a seguir se reproduzem:

1. O Tribunal “a quo” deveria, salvo do devido respeito, ter dado como provado que “Antes de 1993, o réu ocupou uma pequena casa situada em parte do prédio identificado em 3), com cerca de 40 m2, por autorização e consentimento dos anteriores proprietários.”, como o revelaram os depoimentos dos AA. e das testemunhas Joana e Tiago.
2. Deste fato provado deriva imediatamente a posse dos RR. foi sempre precária ou mera detenção, pelo que, com dispõe o art.º 1290.º do Código Civil, não podem adquirir para si, por usucapião, o direito possuído.
3. Do mesmo modo, deveria ter sido dado comos provados que “Na data da celebração da escritura de compra e venda referida em 1), o réu solicitou aos autores que o deixassem continuar a habitar na casa referida em 13), pelo estrito período de tempo necessário a que conseguisse reunir as condições financeiras para reconstruir a casa referida em 10), em elevado estado de degradação” e “Nunca até Agosto de 2014, o réu se arrogou proprietário do imóvel, muito pelo contrário, sempre afirmou perante os autores e toda a freguesia que habitava imóvel por consentimento destes e que esperava ter condições financeiras para reparar a sua casa no terreno contíguo, onde pretendia passar a viver”, como o demonstram os depoimentos prestados pelos recorrentes e pela testemunha Joana.
4. Destes factos provados fica assim demonstrado que a posse dos RR. Não tem animus, pelo que também assim não poderiam os RR. adquirir por usucapião.
5. Acresce ainda que é entendimento dos recorrentes não ser permitida ou reconhecida a aquisição por usucapião de uma parcela de terreno de um prédio urbano que contrarie disposições legais imperativas respeitantes ao loteamento ou ao destaque, pois estamos perante uma operação urbanística ilegal.
6. Na verdade, aquisição por usucapião pelos recorridos contraria as normas imperativas contidas nos artigos 4.º, n.º 1 e 2, alínea a) e artigo 6.º n.º 1 alínea d), n.º 4 e 8 do Decreto Lei 555/99, de 16/12, Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, pois reflete uma operação de loteamento da qual resultam dois lotes, sendo um, pertença dos RR., e o outro dos recorrentes, sem que tivesse sido emitido qualquer alvará de loteamento, nem qualquer tipo de licença, não podendo igualmente tratar-se de um destaque legal, porquanto não foi alegado nem provado que a construção existente dispõe de projecto aprovado pela Câmara Municipal B.
7. As normas legais quando ao licenciamento de operações de loteamento ou de destaque são a natureza imperativa, considerando os fins públicos que entidades públicas prosseguem nesta matéria.
8. As normas relativas ao ordenamento do território proíbem os loteamentos ou destaques ilegais, enquanto resultado, também proíbem os meios indirectos de lá chegar, como acontece com a usucapião, se a posse que se invoca contraria disposições legais imperativas como as que disciplinam o loteamento, o destaque ou o fraccionamento de prédios, assim, aquele acto jurídico está ferido de nulidade, atento o disposto nos artigos 294.º e 295.º do Código Civil.
9. Acresce, ainda, que permitir uma operação urbanística ilegal através da usucapião teria a consequência de se estabelecer um prazo de prescrição para as infracções urbanísticas, quando o vício da nulidade que decorre da legislação sobre loteamentos pode ser invocado a todo o tempo e por qualquer pessoa. Com uma decisão dessa natureza, o juiz estaria a impor prazos para a nulidade de actos e para a tomada de medidas de reposição da legalidade urbanística.
10. Por conseguinte, face às limitações impostas à validade destas operações urbanísticas, não podem os actos de posse baseados num facto proibido pelas leis de loteamento permitir uma aquisição por usucapião na medida em que contrários a uma disposição de carácter legal imperativo (artigo 294.º do Código Civil).
11. A aquisição por usucapião pelos recorridos da parcela de terreno de área não concretamente apurada mas sempre superior a 118 m2 e inferior a 154 m2 (e que corresponde à área da construção e ao pátio que se situa entre a construção e as escadas), que fazia parte do prédio inscrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...9, da freguesia de …, o prédio urbano sito no …, composto de casa de rés-do-chão com 45 m2, logradouro com 200 m2, que confronta de norte e sul com Ricardo, nascente Joana e poente com caminho, o qual pela ap. 35/921229, foi averbado a favor de Joana casada com Tiago, por sucessão por morte de Joaquim, viúvo, é dividir este prédio urbano em dois novos prédios ou, melhor, criar um novo prédio, a partir de um prédio já existente e previamente descrito, o que constitui uma verdadeira operação urbanística.
12. Ora, dos autos não resulta que esta operação urbanística tenha sido precedida de qualquer procedimento administrativo que configure um loteamento urbano ou sequer um destaque legalmente admissível.
13. Como tal, não se encontram reunidos, em face do referido regime legal, os pressupostos para que possa ser considerada válida a operação urbanística que decorre a aquisição por usucapião em causa nos autos, pelo que deve a mesma ser considerada nula.
14. Decorre do artigo 202.º do Código Civil que a constituição de relações reais sobre uma coisa e, consequentemente, a aquisição da propriedade por usucapião de uma parcela de um imóvel pressupõe a sua autonomização material e jurídica – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06032014
–, não sendo a nossa ordem jurídica favorável a que sejam objecto de relações jurídicas partes de imóveis sem a sua prévia autonomização.
15. Daí que fosse necessário, enquanto facto constitutivo da pretensão formulada, a alegação e demonstração da observância dos procedimentos legais obrigatórios à regularidade da respectiva operação urbanística que consistiu na criação de um imóvel a partir da divisão de um outro, em concreto, os procedimentos urbanísticos respeitantes aos loteamentos ou destaque por estar em causa uma parcela de terreno urbano onde foi edificada uma casa pelos recorridos.
Nestes termos e nos melhores de direito deve ser concedido provimento ao presente recurso e alterada a douta decisão recorrida nos termos pugnados.

Em contra alegações os Recorridos concluem…

A. Porque face às conclusões vertidas no recurso apresentado pelos recorrentes (pontos 1, 2, 3 e 4), que delimitam o seu objeto, estes somente atacam os factos alegados nas alíneas a), c) e h), pugnando pela sua alteração, no sentido de serem dados como provados, nada mais dizendo sobre todos os demais factos que foram dados como provados e como não provados na douta Sentença.
B. Porque os factos que os recorrentes pretendem inverter (de não provados para provados) assumem-se como incompatíveis com os demais factos dados como provados na douta Sentença, em concreto, nos pontos 12, 13, 14, 18, 20, 26, 27, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35 e 37.
C. Porque os recorrentes atacam os factos dados como não provados nas alíneas a), c) e d), constantes da douta Sentença, com o depoimento de parte por si prestado no decurso da Audiência de Julgamento de 10-01-2017, o qual foi requerido pelos recorridos.
D. Porque o “conjunto de factos” atinente aos “actos de posse sobre a parcela de terreno ainda que não com o animus”, confessado por cada um dos recorrentes, e que foi consignado em ata, no decurso da Audiência de Julgamento de 10-01-2017, não foi alvo de reclamação pelos mesmos.
E. Porque os factos que os recorridos pretendem inverter são favoráveis à sua pessoa, pois foram por si alegados na sua P.I., nunca poderia dar-se como provados os mesmos, porque o seu depoimento não ocorreu nos termos do artigo 466.º do CPC.
F. Porque as passagens concretamente destacadas pelos recorridos quanto ao depoimento prestado pela testemunha Joana, não invalida ou afasta a subsunção jurídica vertida na douta Sentença quanto aos demais factos dados como provados e que não foram postos em causa pelos recorridos, principalmente, o instituto da “inversão do título da posse”, previsto no artigo 1265.º do CC.
G. Entendem os recorridos, no que tange ao recurso sobre matéria de facto, que devem manter-se incólumes todos os factos dados como provados e não provados na douta Sentença, os quais correspondem à realidade histórica, possível de obter através da “reconstrução factual” trazida ao processo através da prova produzida (declarações de parte dos recorridos, depoimento de parte dos recorrentes e testemunhas) e carreada para os autos (documentos e relatório pericial).
H. Porque ao contrário do que os recorrentes defendem, os recorridos entendem que, apesar das normas de natureza administrativa, referentes ao loteamento urbano e ao destaque, serem imperativas, prosseguindo fins e interesses públicos relevantes, a violação de eventuais normas urbanísticas não contende com a aquisição do direito de propriedade por usucapião.
I. Porque para tal acontecer seria necessário que, no nosso direito constituído, existisse uma regra excecional nos diplomas legais que regem os loteamentos, destaques ou fracionamento de prédios rústicos, que dispusesse em contrário, que não há.
J. Porque faltando a consagração expressa de uma exceção, aplica-se a regra geral, que consiste no facto das exceções não comportarem aplicação analógica.
K. Porque a posse/usucapião não é um ato, mas sim uma situação factual, o eventual vício ou nulidade do título não a invalida.
L. Porque à luz dos cânones de interpretação dos artigos 9.º e ss. do CC, e na “unidade do sistema jurídico”, de modo algum se encontra no Regime Jurídico da Urbanização e Edificação qualquer norma que, a título de exceção, impeça a invocação da posse/usucapião, à contrário do que sucede noutros ramos do direito.
M. Porque a posse para fundamentar a usucapião tem que ser pública e com vários anos, pelo que se algo de desvantajoso acontece, também a administração, a sibi imputat.
N. Porque se tais normas do urbanismo impedissem a vigência do instituto da posse/usucapião, seriam inconstitucionais, por violarem o “princípio da proibição do excesso” (artigo 2.º da CRP).
O. Porque a posse/usucapião apenas gerará, com carácter originário, “o direito de propriedade” sobre a área de terreno possuído e tendo como “titular”, o titular do respetivo “senhorio de facto”, tanto prescrito, quanto possuído, não o “conteúdo” concreto desse direito (de uso, fruição e disposição da coisa que lhe pertence), o qual estará cerceado “dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas”, como dispõe o artigo 1305.º do CC.
P. Porque os regimes jurídicos, o “normativismo legal”, por um lado, o instituto da posse/usucapião, e, por outro, das Leis do Urbanismo (nomeadamente, loteamentos, destaques e fracionamento de prédios rústicos), são autónomos, harmonizam-se, entre si, sem contundências de relevância, e têm campos de aplicação diferentes.
Q. Porque a posse/usucapião deverá continuar a ser, como é ancestralmente, a ultima ratio no cadastro da “propriedade imobiliária”, “limites” da sua área e determinação do “respetivo titular”, incumbindo, in casu, a aplicação do Direito Civil aos Tribunais Comuns, e aplicação do Direito Administrativo aos Tribunais
Administrativos.
R. Entendem os recorridos que a douta Sentença não violou qualquer norma jurídica de direito adjetivo ou direito substantivo, estando em conformidade com o ordenamento jurídico, no seu todo.
S. Estando, assim, perante uma douta Sentença, que respeita a trilogia Lei-Direito- Justiça, pelo que, deverá o Tribunal ad quem indeferir todas as pretensões dos recorrentes, vazadas nas suas conclusões, mantendo-se, in totum, o decidido doutamente pelo Tribunal a quo.

2. QUESTÕES A DECIDIR

Nos termos dos Artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo um função semelhante à do pedido na petição inicial.(1) Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas. (2)

As questões enunciadas pelos Recorrentes podem sintetizar-se da seguinte forma:

a) Se deve ser alterada a decisão sobre matéria de facto julgada, nos pontos concretizados pelos Recorrentes nas suas conclusões;
b) Se, em face dessa alteração, se deve admitir modificação dos fundamentos jurídicos da sentença proferida, ou
c) Sempre, apreciar se as alegadas normas urbanísticas do D.L. 555/99 importam também esse mesmo desfecho.

Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.

3. FUNDAMENTAÇÃO
3.1. REAPRECIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO JULGADA

Nos termos do Artigo 640º, nº 1, do Código de Processo Civil,
«Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”
No que toca à especificação dos meios probatórios, incumbe ainda ao recorrente «Quando os meios probatórios invocados tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes” (Artigo 640º, nº 2, al. a) do Código de Processo Civil).

Antes de passarmos à discussão dos argumentos esgrimidos pelos alegantes e pela decisão recorrida e a fim de melhor se perceber o nosso julgamento, interessa frisar que a sua apreciação obedece aos contornos ditados por essa norma e pelo enquadramento que vem sendo feito da intervenção deste instância em sede de recurso, que tenha por objeto o alegado erro de julgamento.
Resulta desta norma, desde logo, que ao apelante se impõem diversos ónus em sede de impugnação da decisão de facto, sendo o primeiro o ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida, o que implica a análise crítica da valoração da prova feita em primeira instância, tendo como ponto de partida a totalidade da prova produzida em primeira instância.
A este propósito, escreveu-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24.5.2016, Maria Amélia Ribeiro, 1393/08, «É ao impugnante que cumpre convencer o Tribunal de recurso que a primeira instância violou as regras de direito probatório aquando da apreciação dos meios de prova. Não basta uma mera contraposição de meios de prova (ainda que não constantes dos indicados na fundamentação do tribunal): é necessário que a parte que recorre proceda, ela própria, a uma análise crítica da apreciação do tribunal a quo, demonstrando em que pontos o Tribunal se afastou do juízo imposto pelas regras legais, dos princípios, das regras da racionalidade e da lógica ou da experiência comum» (sublinhado nosso).
Ana Luísa Geraldes (3) analisa a questão nestes termos: «(…) tal como se impõe que o Tribunal faça a análise crítica das provas (de todas as provas que se tenham revelado decisivas), (…), também o recorrente, ao enunciar os concretos meios de prova que devem conduzir a uma decisão diversa, deve fundar tal pretensão numa análise (crítica) dos meios de prova, não bastando reproduzir um ou outro segmento descontextualizado dos depoimentos. Como é sabido, a prova de um facto não resulta, regra geral, de um só depoimento ou parte dele, mas da conjugação de todos os meios de prova carreados para os autos. E ainda que não existam obstáculos formais a que um determinado facto seja julgado provado pelo Tribunal mediante o recurso a um único depoimento a que seja atribuída suficiente credibilidade, não deve perder-se de vista a falibilidade da prova testemunhal quotidianamente comprovada pela existência de depoimentos testemunhais imprecisos, contraditórios ou, mais grave ainda, afetados por perjúrio.
Neste contexto, é facilmente compreensível que se reclame da parte do recorrente a explicitação da sua discordância fundada nos concretos meios probatórios ou pontos de facto que considera incorretamente julgados, ónus que não se compadece com a mera alusão a depoimentos parcelares e sincopados, sem indicação concreta das insuficiências, discrepâncias ou deficiências de apreciação da prova produzida, em confronto com o resultado que pelo Tribunal foi declarado.
Exige-se, pois, o confronto desses elementos com os restantes que serviram de suporte para a formulação da convicção do Tribunal (e que ficaram expressos na decisão), com recurso, se necessário, às restantes provas, v.g., documentais, relatórios periciais, etc., apontando as eventuais disparidades e contradições que infirmem a decisão impugnada».
Cabe ao apelante atuar numa dupla vertente: (i) rebater, de forma suficiente e explícita, a apreciação crítica da prova feita no tribunal a quo, (ii) tentando demonstrar que a prova produzida inculca outra versão dos factos que atinge o patamar da probabilidade prevalecente. Assim, não chega sinalizar a existência de meios de prova em sentido divergente, cabendo ao apelante aduzir argumentos no sentido de infirmar diretamente os termos do raciocínio probatório adotado pelo tribunal a quo, evidenciando que o mesmo é injustificado e consubstancia um exercício incorreto da hierarquização dos parâmetros de credibilização dos meios de prova produzidos, ou seja, que é inconsistente.

Com acentua Pedro Damião e Cunha, (4) o âmbito da apreciação que pretendem os apelantes, não contende com a ideia de que o Tribunal da Relação deve realizar, em sede de recurso, um novo julgamento na 2ª Instância, prescrevendo-se tão só “ … a reapreciação dos concretos meios probatórios relativamente a determinados pontos de facto impugnados… “ (5).
Assim, o legislador, no art. 662º, nº1 do CPC, “ … ao afirmar que a Relação aprecia as provas, atendendo a quaisquer elementos probatórios… pretende que a Relação faça novo julgamento da matéria de facto impugnada, vá à procura da sua própria convicção, assim se assegurando o duplo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto em crise… “ (6).
Destas considerações, resulta, de uma forma clara, que o âmbito da apreciação do Tribunal da Relação, em sede de impugnação da matéria de facto, estabelece-se de acordo com os seguintes parâmetros:

a) O Tribunal da Relação só tem que se pronunciar sobre a matéria de facto impugnada pelo Recorrente;
b) Sobre essa matéria de facto impugnada, o Tribunal da Relação tem que realizar um novo julgamento;
c) Nesse novo julgamento o Tribunal da Relação forma a sua convicção de uma forma autónoma, mediante a reapreciação de todos os elementos probatórios que se mostrem acessíveis (e não só os indicados pelas partes).
Pode inclusivamente, verificados determinados requisitos, ordenar a renovação da prova (art. 662º, nº2, al a) do CPC) e ordenar a produção de novos meios de prova (al b)) (7).
Dentro destes parâmetros, o Tribunal da Relação, assumindo-se como um verdadeiro Tribunal de Substituição (8), está em posição de proceder à reavaliação da matéria de facto especificamente impugnada pelo Recorrente, pelo que neste âmbito a sua atuação é praticamente idêntica à do Tribunal de primeira Instância, apenas cedendo nos fatores da imediação e da oralidade.
Na verdade, este controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialeticamente na base da imediação e da oralidade.
Efetivamente, a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova (consagrado no artigo 607.º, nº 5 do CPC) que está deferido ao tribunal da 1ª instância, sendo que, na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação vídeo ou áudio, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente imperceptível na gravação/transcrição (9).
Ora, contrariamente ao que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objeto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objetivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.
“O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado” (10).
De facto, a lei determina expressamente a exigência de objetivação, através da imposição da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador (artigo 607.º, nº 4 do CPC).
Todavia, na reapreciação dos meios de prova, a Relação procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção, desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria, com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância (11).
Impõe-se-lhe, assim, que “analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, quer a testemunhal, quer a documental, conjugando-as entre si, contextualizando-se, se necessário, no âmbito da demais prova disponível, de modo a formar a sua própria e autónoma convicção, que deve ser fundamentada” (12) (26).
Importa, porém, não esquecer porque, como atrás se referiu, se mantêm vigorantes os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
Assim, a alteração da matéria de facto só deve ser efetuada pelo Tribunal da Relação quando este Tribunal, depois de proceder à audição efetiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direção diversa, e delimitaram uma conclusão diferente daquela que vingou na primeira Instância.
*
Os Apelantes começam por sindicar a factualidade julgada não assente, no item a., ponto 2.2., da decisão impugnada, em que se julgou não provado o seguinte: Antes de 1993, o réu ocupou uma pequena casa situada em parte do prédio identificado em 3), com cerca de 40 m2, por autorização e consentimento dos anteriores proprietários.
O Tribunal a quo decidiu negativamente essa matéria enunciando essencialmente os seguintes argumentos, que estão inseridos na vasta e exaustiva fundamentação explanada em sede factual.
(…) Assim sendo, considerando que o depoimento de parte do réu não foi comprovado por qualquer meio de prova sólido, e tendo por outro lado um depoimento de Joana, que teve intervenção directa nos factos e que depôs de forma isenta, espontânea e sincera, sendo que não demonstrou qualquer desentendimento ou diferendo com os réus (e quanto à alegada suspeita de que poderia não ter ficado agradada com um alegado namoro da sua filha com um dos filhos dos réus, a sua cara de espanto e admiração quando confrontada com tal, demonstraram o desconhecimento de tal situação), e não foi infirmada por qualquer meio de prova com conhecimento directo dos factos, demos total credibilidade ao seu depoimento e demos os factos por provados, na exacta medida do que declarou e por consequência deram por não provados os factos referidos em a) e b).(…)

Os Autores, passando completamente ao lado da argumentação da sentença, fundam o seu recurso nos recortados trechos da prova pessoal consubstanciada pelas declarações dos Autores e os depoimentos das testemunhas Joana e marido Tiago, tendo estes sido os vendedores, àqueles, do imóvel em causa.
E com efeito, de toda essa prova, com especial enfoque no depoimento da referida Joana, filha do dito proprietário, Joaquim, resulta o que é plausível em face da restante prova produzida e é aquilo que os Recorrentes pretendem ver julgado assente. Aliás essa afirmação é, em parte similar com a que se julgou assente em 12) (e ss.) dos factos provados, onde se admitiu que os Réus ocuparam inicialmente o terreno onde construíram a dita casa com a autorização do mencionado Joaquim, o alegado proprietário à data.
Nessa medida, apesar da singeleza dos argumentos, impõe-se, nos termos do art. 662º, nº 1, alterar a decisão proferida, até pela convicção extraída pela Mª. Juíza a quo, excepto em relação à medida e parcial localização da habitação (a referida em 13)) em causa, que não resultam dos elementos probatórios invocados.
No entanto assiste razão aos Recorridos quando afirmam de irrelevante essa matéria, em face do que já se havia julgado provado e, por sinal, vai além do alegado pelos Recorrentes.

Decide-se, portando, até para conferir coerência à decisão, dar como parcialmente provado essa matéria, ficando apenas na decisão negativa a exacta medida da habitação que habitaram e a sua localização parcial (“em parte”).

De seguida, os Autores colocam em causa a decisão negativa do itens c) e h), do ponto 2.2., que rezam o seguinte: c) Na data da celebração da escritura de compra e venda referida em 1), o réu solicitou aos autores que o deixassem continuar a habitar na casa referida em 13), pelo estrito período de tempo necessário a que conseguisse reunir as condições financeiras para reconstruir a casa referida em 10), em elevado estado de degradação; h) Nunca até Agosto de 2014, o réu se arrogou proprietário do imóvel, muito pelo contrário, sempre afirmou perante os autores e toda a freguesia que habitava imóvel por consentimento destes e que esperava ter condições financeiras para reparar a sua casa no terreno contíguo, onde pretendia passar a viver.
Sobre estes aspectos a decisão em crise enunciou essencialmente o seguinte.
“Relativamente aos factos provados em 32) a 35), e não provados em c), d) e h) a j), foram valorados os depoimentos de parte e os depoimentos das testemunhas conjugadamente. Em concreto quanto ao facto não provado em c) e d), o mesmo apenas resultou do depoimento de parte dos autores mas não foi corroborado por qualquer outro meio de prova consistente (ou sequer com conhecimento directo), e como tal foram tais factos dados como não provados. Com efeito, os autores são os interessados na prova de tais factos e como tal, sendo certo que o depoimento de parte, quando não é confessório, é livremente apreciado pelo tribunal, a verdade é que atendendo ao interesse daqueles no desfecho da causa, os seus depoimentos, sem mais, não são suficientes para dar tais factos como provados.
Por outro lado, do depoimento de MC e MS, vizinhas de autores e réus e pessoas sem qualquer interesse na causa, resultou que os réus actuam como donos da parcela e da casa desde que lá habitam, o que sempre fizeram nos termos dados como provados. Tais depoimentos foram confirmados pelos filhos dos réus e não foram infirmados por nenhum meio de prova sólido. Note-se que L. G. e M. G. são familiares dos autores e não depuseram no sentido de infirmar aqueles depoimentos isentos e desinteressados. Pois ambos apenas sabiam do que se dizia que o tio os deixou ali construir a casa, mas não souberam explicar a que título é que tal ocorreu. Daqui resultaram então provados os factos referidos em 32) a 34).
O facto provado em 35) resultou dos depoimentos de parte dos réus e das testemunhas. Apenas está provado que os autores praticaram actos e posse sobre parte do prédio referido em 3), numa área de 416,50 m2 (porque é essa a área que resulta do relatório pericial como sendo a que está delimitada e corresponde ao prédio dos autores), mas não se provou que os autores ou os seus antecessores usam e fruem como donos o remanescente do prédio que é ocupado pelos réus.
Deu-se como provado que por volta do ano de 1980, Joana autorizou o réu marido a ocupar uma parte do logradouro do prédio referido em 3) e aí construir um barraco em madeira (facto provado em 12)), e como resultou do depoimento da dita Joana, quando ela voltou a Minhotães os réus tinham construído uma casa em tijolo e, desde então, nunca mais ela falou com o réu acerca da entrega da casa/parcela de terreno cedida, nem nunca lho solicitou, como a própria
disse nos seus esclarecimentos «a palavra é muito importante… e eu sempre pensei que ele era um homem de palavra e pensei que ele ia sair… eu nunca disse quando é que muda (?) muda ou não muda (?) …nunca se abordou o assunto se é dado ou emprestado…». Mais disse que quando ia a casa dos réus almoçar/jantar, pagava a refeição por entender que eles não eram ricos.
Ou seja, Joana enquanto foi dona do prédio referido em 3), e depois do referido em 12), nunca exerceu qualquer acto de posse sobre a parcela em discussão, tal como os autores também nunca o fizeram.
Considerando todos os referidos elementos probatórios, apenas há prova segura de que os autores usaram como donos a parte do prédio que todos reconhecem como sua, mas não sobre a parcela em discussão.
Os factos dados como não provados em h) a j) ficaram a dever-se à ausência de prova consistente. Note-se que o facto dado como não provado em h) é contraditório com os factos provados e saiu infirmado pela prova feita de que os réus actuavam como donos. Já no que concerne ao pedido para realização de obras pelos autores ou de autorização para eles próprios as realizarem, apenas os autores depuseram nesse sentido e não foram corroborados por qualquer outra prova com conhecimento directo e como tal foram tais factos dados como não provados. Quanto ao facto não provado em j), o mesmo apenas foi narrado pelos autores, o que por si não é suficiente à prova do mesmo, não havendo qualquer outro meio de prova que o corrobore. E acerca deste facto também depôs M. G. que afirmou que, quando estavam a vindimar, uma filha e genro dos réus estavam em cima do telhado, a mudar o telhado e o autor marido foi la falar com eles, e eles não ligaram, sendo que o autor marido não ficou contente. Ora, considerando tal depoimento não temos prova de que tenha havido qualquer pedido prévio de autorização, e do ocorrido no dia presenciado pela testemunha também não se pode concluir que os autores tivessem pedido autorização para realizar as obras.”
Neste caso, os Autores voltam a impugnar a decisão contestada apenas com a singela remissão para os excertos da prova pessoal que citam a fls. 311, ainda dos Autores e da testemunha Joana.
No que diz respeito à alegada prova decorrente das alegadas declarações de parte, favoráveis ou secundando a sua posição nos autos, como é óbvio, elas não bastaram à luz do Tribunal à quo, que na sua livre apreciação e no seio da prova que referencia, considerou que as mesmas se mostraram incríveis e foram, por isso, preteridas em favor da restante, supra reproduzida, ao abrigo da livre apreciação que lhe assiste, à luz do disposto nos arts. 607º, nº 5, do Código de Processo Civil.
Esta é também a posição de princípio deste Tribunal: não resulta das ouvidas declarações das partes, interessadas no desfecho da lide, nada que nos permita fundar a decisão pretendida apenas nas mesmas, contrariando a decisão devida e exaustivamente esclarecida da primeira instância, cujas regras de sindicância e alteração exigem o cuidado que acima expusemos e que os Recorrentes não tiveram.
Acresce que dos citados trechos do depoimento da testemunha Joana, apenas resulta o que se deu como assente: o Autor terá obtido consentimento para construir, construiu e habitou, até hoje, a casa que edificou no terreno em causa. Para usar a expressão da testemunha “assenhorou-se de tudo”.
No que concerne à altura da venda por si protagonizada, a testemunha, na passagem citada, afirmou apenas que transmitiu ao comprador que lá morava o Réu (sem explicar mais nada, com reafirmou).
Assim, também este outro elemento de prova é claramente insuficiente para demonstrar o pretendido e contrariar a convicção fundada pelo Tribunal recorrido, razão pela qual se indefere esta parte do recurso em apreço.

3.2. FACTOS A CONSIDERAR
1. FACTOS PROVADOS

1) Por escritura pública outorgada no Cartório Notarial, em 14 de Maio de 1993, Joana e marido Tiago declararam vender aos autores e estes declararam comprar, pelo preço de oitocentos contos (€.3.990,38) o prédio urbano que se compõe de casa de rés de chão, destinada a habitação, e logradouro, situado no Lugar de …, freguesia de …, concelho de Barcelos, inscrito na matriz urbana sob o art. 111, com o valor tributável de 12.943$00, descrito na Conservatória sob o n.º 162/Minhotães, e nela inscrito a favor dela vendedora pela respectiva inscrição G1.
2) Está inscrito a favor do autor, na matriz predial urbana de Barcelos com o artigo 444 (com origem no artigo 277), o prédio em propriedade total sem andares nem divisões susceptíveis de utilização independente, composto de casa de rés-do-chão com 3 divisões para habitação, possuindo o terreno a área total de 532 m2 e a área de implantação do edifício 140m2. (fls. 122)
3) Foi inscrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...9, da freguesia de …, o prédio urbano sito no …, composto de casa de rés-do-chão com 45 m2, logradouro com 200 m2, que confronta de norte e sul com Ricardo, nascente Joana e poente com caminho, o qual pela ap. 35/921229, foi averbado a favor de Joana casada com Tiago, por sucessão por morte de Joaquim, viúvo. (fls. 44 e 44v)
4) Pela ap. 22/980102, o prédio referido em 3) foi inscrito a favor dos autores por compra a Joana, tendo tal registo ficado provisório por dúvidas. (fls. 44v)
5) Pela ap. 26/980508, o prédio referido em 3) passou a ter a seguinte descrição: casa de rés-do-chão, com a superfície coberta de 140 m2 e logradouro de 392 m2, que confronta a norte com G. A., de sul com M. J., nascente com Manuel. (fls. 44)
6) Pela ap. 27/980508, a apresentação n.º 22/980102 foi convertida em definitiva. (fls. 44v)
7) A rectificação da descrição referida em 5) foi pedida pelo autor marido que fez tal pedido de rectificação nos seguintes termos: «Rectificação da Descrição … Declara que a diferença de área global do prédio deve-se apenas a lapso manifesto da declarante que inicialmente requereu o registo, ao prestar as suas declarações complementares, como pode verificar-se na requisição de registo respectiva, sendo de facto a actual área a que corresponde à verdade. Declara ainda que o prédio urbano actualmente inscrito no artigo 277, urbano, é composto de casa de rés-do-chão, com três divisões para habitação, tem área coberta de 140 m2 e o logradouro com a superfície de 392 m2, a confrontar de norte com G. A. sul, M. J., nascente, Manuel e poente caminho. Declara também que a diferença de área quanto à globalidade do prédio deve-se a simples erro de medição, e que a casa foi ampliada.» (fls. 50 e 50v)
8) Joaquim, anterior proprietário do prédio identificado em 3), era tio materno do réu marido Manuel.
9) Os réus contraíram matrimónio no dia 09.08.1986, mas já viviam juntos, em condições análogas às dos cônjuges, desde data anterior a 1975. (fls. 37v)
10) Em 1975, os réus e os seus, à data, sete filhos, vieram para Portugal e foram residir para a casa dos pais do réu marido (Artur e Josefa), situada no Lugar do … (actual Rua …), freguesia de …, concelho de Barcelos, a qual confronta a poente com o prédio identificado em 3), local esse onde viveram até por volta do ano de 1981.
11) A casa referida em 10), desde 21.01.1988, é propriedade do réu marido, por efeito de partilha judicial, ocorrida nos autos de inventário obrigatório com o n.º 5/86, que correu termos na extinta 2.ª Secção, do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Barcelos. (fls. 39 a 43)
12) Por volta do ano de 1980, Joana, com a anuência de Joaquim, autorizou o réu marido a ocupar uma parte do logradouro do prédio identificado em 3), em área não concretamente apurada mas sempre superior a 118 m2 e inferior a 154 m2 (e que corresponde à área da construção e ao pátio que se situa entre a construção e as escadas), para aí construir um barraco em madeira e posteriormente habitar e enquanto não arranjasse casa.
13) Nessa sequência, os réus iniciaram entre os anos de 1980 e 1981, na parcela de terreno referida em 12), a construção de uma habitação, em tijolo, com um piso e de construção elementar.
14) Depois de terminada a construção referida em 13), e por volta do ano de 1981, os réus e os filhos mudaram-se da casa identificada em 10), para a casa referida em 13).
15) O logradouro do prédio referido em 3) está dividido, do lado norte/nascente, da parcela identificada em 12), por um muro de suporte onde assenta directamente a cobertura da habitação identificada em 13).
16) O logradouro do prédio referido em 3) está dividido do prédio identificado em 10), também pelo lado nascente, através de rede plastificada com cerca de 1 metro de altura, apoiada em perfis metálicos.
17) A casa identificada em 10) confronta a norte com a parcela e casa referidas em 12) e 13).
18) Por volta de 1982/1983, Joaquim edificou um muro em blocos de cimento com cerca de 1 metro de altura e 15 cm de espessura, que divide o logradouro do prédio referido em 3) da parcela e habitação identificadas em 12) e 13), delimitando a dita parcela e habitação pelo lado sul.
19) O logradouro da habitação referida em 13) e implantada na parcela referida em 12) confronta do lado nascente com a Rua … (estrada camarária n.º 1137-1) e tem o n.º de polícia 238.
20) Depois do referido em 14), os réus passaram a habitar a casa referida em 13) onde se mantêm até ao presente.
21) No interior da habitação referida em 13) nasceram, pelo menos, mais alguns dos filhos que os réus tiveram.
22) Desde o momento referido em 14), a casa referida em 13) possui água canalizada e electricidade, sendo que, posteriormente, e em datas não concretamente apuradas, mas posteriores a 1997, foram instalados o contador da água e o da electricidade, a pedido do réu marido, em local não concretamente apurado do prédio.
23) Desde data não concretamente apurada que a casa referida em 13) possui antena de televisão, a qual foi aí colocada pelo réu marido.
24) A casa referida em 13) tem caixa de correio, sendo que sempre aí os réus e os filhos receberam a correspondência que lhes foi enviada.
25) A ré mulher tem morada fiscal na Rua … desde 24.04.2007 e o réu marido tem morada fiscal no mesmo local, desde 10.10.2011, sendo que o réu marido desde 24.04.2007 e até 10.10.2011, tinha domicílio fiscal no Lugar do …, Minhotães. (fls. 185)
26) Depois do referido em 14), os réus construíram ainda na parcela referida em 12), um anexo, em frente da habitação e unido a esta por um pátio coberto com chapas translúcidas, que ampliou a área habitável, pois no dito anexo foi instalado mais um quarto (quarto dos rapazes), tal como fizeram diversas obras de reparação e melhoramento da casa.
27) Depois do referido em 14) e até ao presente, os réus e os filhos sempre limparam e cuidaram da casa referida em 13).
28) A casa referida em 13), no dia 06.03.1998, serviu de “câmara ardente” de J. O., filho dos réus.
29) Em data não concretamente apurada, por volta do ano de 2007, os réus procederam à mudança do telhado do anexo referido em 26).
30) Ninguém se opôs à mudança do telhado referido em 29), apesar de a mesma ter ocorrido de dia, à vista de todas as pessoas, incluindo os autores.
31) Os réus construíram a casa referida em 13) à vista de todos, incluindo dos autores e seus antecessores, e sem oposição de ninguém incluindo os autores e seus antecessores, e nunca pediram autorização seja a quem for, para realizar obras na casa, nomeadamente as descritas em 26), nem para instalar os contadores, a antena ou a caixa de correio.
32) Desde a construção da casa referida em 13) até ao dia 28.08.2014, nunca os autores e ou os seus antecessores se arrogaram proprietários da “parcela de terreno”, nem da casa referida em 14).
33) Desde a construção da casa referida em 13) as únicas pessoas que se arrogaram proprietárias da casa, foram os réus.
34) Os réus, desde que construíram a casa referida em 13) e foram para lá habitar, sempre actuaram como donos da parcela e da casa, o que sempre fizeram ininterruptamente, à vista de todas as pessoas, sem oposição de ninguém, e na convicção de que utilizam e continuam a utilizar a “parcela de terreno” e a casa que aí se encontra edificada, porque lhes pertence.
35) Os autores, por si e seus antecessores, usam e fruem, uma parte do prédio urbano sito no … (actualmente Rua do …), melhor identificado em 3), numa área de 416,50 m2, há mais de 22 anos, à vista de todas as pessoas, sem a oposição de quem quer que seja, de forma ininterrupta e com a intenção e na convicção de que o mesmo lhes pertence.
36) Por carta registada enviada em 26 de Agosto de 2014, os autores solicitaram ao réu marido que até ao dia 30 de Setembro de 2014, lhes restituísse, livre de pessoas e bens, o imóvel que ocupava no Lugar de …, freguesia de …, conforme carta, registo postal e aviso de recepção. (fls. 14 e 15)
37) O réu, por carta enviada aos autores, em 12 de Setembro de 2014, arrogou-se proprietário do imóvel e, por isso, recusou-se a entregar o prédio. (fls. 15v)
38) Os réus nunca pagaram qualquer imposto ou contribuições sobre a habitação e logradouro referidos em 12) e 13).
39) Para um imóvel com as características do descrito em 13) e 26), quer de área, quer de localização, o valor mensal pela sua ocupação ascende a €.80,00.
40) Antes de 1993, mais precisamente na altura mencionada em 14) supra, o réu ocupou a casa mencionada em 13), situada no prédio identificado em 3) (mais concretamente na sua parcela referida em 12), por autorização e consentimento do referido Joaquim.

2. FACTOS NÃO PROVADOS

a) Que a casa mencionada em 40), supra estava situada (apenas) em parte do prédio identificado em 3) e tinha cerca de 40 m2.
b) Por volta de 1980, Joaquim doou verbalmente ao réu marido uma parcela de terreno com 128 m2 do logradouro do prédio referido em 3).
c) Na data da celebração da escritura de compra e venda referida em 1), o réu solicitou aos autores que o deixassem continuar a habitar na casa referida em 13), pelo estrito período de tempo necessário a que conseguisse reunir as condições financeiras para reconstruir a casa referida em 10), em elevado estado de degradação.
d) O réu informou também os autores que, certamente, ao fim de 2 anos desocuparia o terreno destes.
e) A casa identificada em 10) tem actualmente o n.º de polícia 252.
f) O muro referido em 18) tem cerca de 11,50 metros lineares.
g) Todos os contractos de fornecimento destes bens públicos essenciais sempre estiveram e estão em nome do réu marido.
h) Nunca até Agosto de 2014, o réu se arrogou proprietário do imóvel, muito pelo contrário, sempre afirmou perante os autores e toda a freguesia que habitava imóvel por consentimento destes e que esperava ter condições financeiras para reparar a sua casa no terreno contíguo, onde pretendia passar a viver.
i) O comportamento réu sempre foi revelador de que o imóvel era e é dos autores, nomeadamente, reclamando-lhes a realização de obras e pedindo-lhes autorização para nele fazer obras.
j) Recentemente, o réu solicitou aos autores autorização para reconstruir o telhado daquela habitação, o que os autores não concederam.

3.3. DO DIREITO APLICÁVEL

No item 4 das suas conclusões, os Recorrentes defendem que os factos que pretendiam ver julgados assentes colocavam em causa o animus da posse em que se fundou a usucapião que o Tribunal recorrido aceitou como causa de aquisição do direito de propriedade invocado pelos Reconvintes.
Todavia, em relação aos factos não provados, que assim se mantêm (c) e h)), está prejudicado o seu conhecimento com esse relevo e, no que respeita ao que se apurou do item a), não resulta nada de fundamental que coloque em causa a decisão de facto e de direito proferida, já que se considerou que ocorreu inversão do título de posse e excedeu em 20 anos a actuação dos Reconvintes que permitiu a consagrada aquisição originária do direito em crise.
Por estas razões, carece de qualquer sustento o recurso dos Autores, nesta parte.

Contudo, além disso, os Autores defendem que as normas imperativas de cariz urbanístico insertas no D.L. 555/99 (arts. 4º, nºs 1 e 2, al. a) e 6º, nºs 1, al. d), 4 e 8) (13), não permitem que se reconheça o direito de propriedade deferido aos Reconvintes, por que se trata de normas de natureza imperativa.
Antes de mais, convém precisar que o D.L. 555/99, entrou em vigor apenas em 2.10.2001 (14), ou seja, numa altura em que estavam a terminar os 20 anos de posse invocados na sentença impugnada.
Antes dele vigoram sim outros diplomas que incidiram sobre essa matéria (cf. D.Ls. nº 289/73, 400/84 e 448/84), alguns inclusive legalizando fraccionamentos similares (Lei nº 91/95)

Posto isto, ainda que se entendesse que os factos em apreço teriam posto em causa algum dos interesses públicos previstos nessas normas, a argumentação dos Recorrentes carece de original sustento, quando defende a existência de uma nulidade que fulminaria a propriedade em causa.
Desde logo, a invocação do art. 294º (15), do Código Civil, parte de uma confusão evidente entre o que é um negócio jurídico, o tipo de ato visado por essa norma e a actuação dos Reconvintes, que subjaz à forma de aquisição em causa.
O instituto da usucapião previsto no art. 1287º, do Código Civil, é, com efeito, conceptualmente, a antítese desse outro – fundado numa convenção bilateral ou unilateral - pois assenta apenas e só na mera actuação duradoura do adquirente, prevista no art. 1251º, do mesmo Código, e claramente não pode ser afectada por esse vício, de nulidade (16), como bem defendem os Reconvintes. (17)
Além disso, essa forma originária de aquisição do direito de propriedade (art. 1316º, do C.C.), importa que os seus efeitos se retrotraem ao início da posse, no caso, 1980/1981, como decorre do art. 1317º, al. c) (18), do Código Civil, que entendemos que não foi revogada ou derrogado por aquele D.L. 555/99 (cf. art. 7º, nº 2, deste Código).
Julgamos, tal como defende a decisão em crise, que essa falta de licença não poderia nunca afectar a aquisição do direito propriedade em questão, uma vez que ele se funda na usucapião que, como já referimos, constitui uma forma de aquisição que decorre do decurso do “tempo” e consubstancia uma aquisição originária: o novo titular recebe o seu direito independentemente do direito do titular antigo, não lhe podem ser opostas as excepções de que seria passível o direito daquele titular. (19)
Como se defende Fernando Baptista, em jurisprudência do Tribunal da Relação do Porto (20) - “Sendo a usucapião uma forma de aquisição originária (ex novo) do direito real - rompendo, por isso, com todas as limitações legais que tenham a coisa possuída por objecto, tornando o direito imune dos vícios que anteriormente pudesse ter, a aquisição do direito de propriedade por usucapião pode incidir sobre uma parcela de um terreno, mesmo em violação das normas respeitantes a fraccionamento de terrenos.”
De acordo com o que sabiamente enuncia José Gonzalez (21), esta não se limita a reconhecer a utilização predial pré-existente, pois também sana eventuais vícios relativos à titularidade sobre o edifício ou conjunto imobiliário em causa. O que se explica em virtude de a usucapião pressupor o decurso de um determinado prazo (longo), dentro do qual os legítimos titulares poderiam ter reagido contra a situação possessória adversamente constituída – é pois a inércia que, em última análise, justifica a extraordinária eficácia da usucapião.

Além disso, contrariamente ao que defende o Recorrente, como acentua o citado Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 6.4.2017 (22), não se argumente (…) com o interesse público que as leis referentes ao loteamento visam satisfazer. É que também as regras da usucapião são determinadas por razões de interesse público consistente na defesa da paz pública e por - como assinalam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, in Código Civil Anotado, vol. III, pag 65 - «ponderosas razões de ordem económico-social».
Nem se afirme, por outro lado (como neste último douto Acórdão, citando um tratadista sobre esta problemática), que, diferentemente das normas sobre loteamento, os interesses subjacentes à usucapião não afectam terceiros, reduzindo-se apenas aos próprios interessados, em cada caso concreto. Porque isso é esquecer, salvo o devido respeito, que a usucapião também pode ser invocada «pelos credores e por terceiros com legítimo interesse na sua declaração, ainda que o devedor a ela tenha renunciado», como explicita o artº 305º nº 1 do C. Civil, aplicável ao instituto da usucapião por força do estatuído no artº 1292º do mesmo Código.
Mais grave, porém, a nosso ver, é tais argumentos abstraírem por completo da realidade económica e social do nosso País onde, especialmente no interior Norte e Centro, uma boa parte das partilhas entre maiores, nomeadamente de imóveis constitutivos do acervo das heranças, ainda é ou era feita «de boca» e posteriormente «legalizada» com suporte na usucapião.
Imagine-se o que seria agora, passados 30, 40 ou mais anos, os herdeiros intervenientes nessas partilhas ou os seus sucessores virem questionar judicialmente essas divisões materiais da propriedade com fundamento na invalidade do respectivo fraccionamento.
Ora, a usucapião serve também, além do mais, para «“legalizar” situações de facto ilegais» mantidas durante longos períodos de tempo – como se diz na sentença da 1ª instância – inclusive até a apropriação ilegítima ou ilícita de uma coisa.
Nesta medida, julgamos, tal como a instância recorrida, que nada obsta ao reconhecimento da propriedade que os Recorrentes colocam agora em crise, pelo que improcede a sua apelação.
Sintetizando:
- A violação dos normativos de natureza urbanística que previna o fraccionamento de prédios urbanos sem o devido licenciamento ou loteamento não obsta à aquisição originária, com base na usucapião, do direito de propriedade sobre a parcela em causa, desde que se verifiquem os pressupostos exigidos para esta.

4. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se, pois, a sentença recorrida.
Custas pelos apelantes, em partes iguais (art. 527º, n.º 1, do C. P. Civil).
Guimarães, 1.2.2018

Relator – Des. José Manuel Flores
1º - Des. Sandra Melo
2º - Des. Heitor Gonçalves


1. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2017, pp. 106.
2. Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 107.
3. Em Impugnação e reapreciação da decisão da matéria de facto –In http://www.cjlp.org/materias/Ana_Luisa_Geraldes_Impugnacao_e_Reapreciacao_da_Decisao_da_Materia_de_Facto.pdf
4. Ac. deste Tribunal da Relação de Guimarães, de 14.6.2017, in http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/ac11179ce0357230802581990046e40b?OpenDocument
5. Abrantes Geraldes, In “Recursos no Novo Código de Processo Civil“, pág. 133;
6. Ac. do Stj de 24.9.2013 (relator: Azevedo Ramos) publicado na DGSI e comentado por Teixeira de Sousa, in “Cadernos de Direito Privado”, nº 44, págs. 29 e ss.;
7. Pode inclusivamente, verificados determinados requisitos, ordenar a renovação da prova (art. 662º, nº2, al a) do CPC) e ordenar a produção de novos meios de prova (al b));
8. Abrantes Geraldes, In “Recursos no Novo Código de Processo Civil“, pág. 266 “ A Relação actua como Tribunal de substituição quando o recurso se funda na errada apreciação dos meios de prova produzidos, caso em que se substitui ao tribunal de primeira Instância e procede à valoração autónoma dos meios de prova. Confrontada com os mesmos elementos com que o Tribunal a quo se defrontou, ainda que em circunstâncias não totalmente coincidentes, está em posição de formular sobre os mesmos um juízo valorativo de confirmação ou alteração da decisão recorrida… “;
9. De facto, “é sabido que, frequentemente, tanto ou mais importantes que o conteúdo das declarações é o modo como são prestadas, as hesitações que as acompanham, as reacções perante as objecções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória, etc.”- Abrantes Geraldes in “Temas de Processo Civil”, II Vol. cit., p. 201) “E a verdade é que a mera gravação sonora dos depoimentos desacompanhada de outros sistemas de gravação audiovisuais, ainda que seguida de transcrição, não permite o mesmo grau de percepção das referidas reacções que, porventura, influenciaram o juiz da primeira instância” (ibidem). “Existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores” (Abrantes Geraldes in “Temas…” cit., II Vol. cit., p. 273).
10. Miguel Teixeira de Sousa in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, p. 348.
11. Cfr. acórdãos do STJ de 19/10/2004, CJ, STJ, Ano XII, tomo III, pág. 72; de 22/2/2011, CJ, STJ, Ano XIX, tomo I, pág. 76; e de 24/9/2013, disponível em www.dgsi.pt.
12. Cfr. Ac. do S.T.J. de 3/11/2009, disponível em www.dgsi.pt.
13. Redacção vigente até 2007 - Estão isentas de licença ou autorização: a) As obras de conservação; b) As obras de alteração no interior de edifícios não classificados ou suas fracções que não impliquem modificações da estrutura resistente dos edifícios, das cérceas, das fachadas e da forma dos telhados; c) Os destaques referidos nos n.os 4 e 5. (actual al. d)) 2 - Podem ser dispensadas de licença ou autorização, mediante previsão em regulamento municipal, as obras de edificação ou demolição que, pela sua natureza, dimensão ou localização, tenham escassa relevância urbanística. 3 - As obras referidas na alínea b) do n.º 1, bem como aquelas que sejam dispensadas de licença ou autorização nos termos do número anterior, ficam sujeitas ao regime de comunicação prévia previsto nos artigos 34.º a 36.º 4 - Os actos que tenham por efeito o destaque de uma única parcela de prédio com descrição predial que se situe em perímetro urbano estão isentos de licença ou autorização, desde que cumpram, cumulativamente, as seguintes condições: a) As parcelas resultantes do destaque confrontem com arruamentos públicos; b) A construção erigida ou a erigir na parcela a destacar disponha de projecto aprovado quando exigível no momento da construção. 5 - Nas áreas situadas fora dos perímetros urbanos, os actos a que se refere o número anterior estão isentos de licença ou autorização quando, cumulativamente, se mostrem cumpridas as seguintes condições: a) Na parcela destacada só seja construído edifício que se destine exclusivamente a fins habitacionais e que não tenha mais de dois fogos; b) Na parcela restante se respeite a área mínima fixada no projecto de intervenção em espaço rural em vigor ou, quando aquele não exista, a área de unidade de cultura fixada nos termos da lei geral para a região respectiva. 6 - Nos casos referidos nos n.os 4 e 5, não é permitido efectuar, na área correspondente ao prédio originário, novo destaque nos termos aí referidos por um prazo de 10 anos contados da data do destaque anterior. 7 - O condicionamento da construção bem como o ónus do não fraccionamento, previstos nos n.os 5 e 6 devem ser inscritos no registo predial sobre as parcelas resultantes do destaque, sem o que não pode ser licenciada ou autorizada qualquer obra de construção nessas parcelas. 8 - O disposto neste artigo não isenta a realização das operações urbanísticas nele previstas da observância das normas legais e regulamentares aplicáveis, designadamente as constantes de plano municipal e plano especial de ordenamento do território e as normas técnicas de construção. 9 - A certidão emitida pela câmara municipal constitui documento bastante para efeitos de registo predial da parcela destacada.
14. DL n.º 555/99, de 16.12, entrou em vigor apenas em 02 de Outubro de 2001, face à suspensão da vigência operada pela Lei n.º 13/2000, de 20 de Julho e depois às alterações e republicação operadas pelo DL n.º 177/2001, de 04 de Junho: Cf. art. 1º, da Lei 13/2000: 1 — É suspensa a vigência do Decreto-Lei n.o 555/99, de 16 de Dezembro, até ao dia 31 de Dezembro de 2000, inclusive, sendo repristinada a legislação referida no artigo 129.º do diploma e a respectiva regulamentação, que passam a aplicar-se aos processos em curso; art. 130º, na redacção do D.L. nº 177/2001, de 4.6. - O presente diploma entra em vigor 120 dias após a data da sua publicação.
15. Os negócios celebrados contra disposição legal de carácter imperativo são nulos, salvo nos casos em que outra solução resulte da lei.
16. Cf., além do Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, de 16.2.2017, citado pelos Reconvintes, o recente Ac. do S.T.J., de 6.4.2017 in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2017:1578.11.9TBVNG.P1.S1. No mesmo sentido: o Ac. do mesmo Supremo Tribunal de Justiça, de 5.5.2016, in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/f9c1f475a617a1ac80257fab002d12b4?OpenDocument
17. Cf. nesse sentido o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 6.4.2017, citado – (…) Só que a não fixação de um prazo para a sua arguição «não afecta os direitos que hajam sido adquiridos por usucapião» (PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, in Código Civil Anotado, vol. I, pag 263). «A possibilidade da sua invocação perpétua (da nulidade) pode, porém, ser precludida pela verificação da prescrição aquisitiva (usucapião)». (MOTA PINTO, in Teoria Geral do Direito Civil, pag 470). No mesmo sentido se pronunciando o Prof. CASTRO MENDES, in Teoria Geral do Direito Civil, vol. II, pag. 291, nota 731. E esta era também a doutrina já sufragada no domínio do anterior Código Civil, relativamente às nulidades absolutas. Como então ensinava o Prof. MANUEL DE ANDRADE: «o princípio de que a nulidade absoluta pode, por via de acção, ser invocada a todo o tempo, não prevalece sobre a doutrina da prescrição aquisitiva» (Teoria Geral da Relação Jurídica, vol.II, pag 418). Daí que, no caso, a eventual nulidade da operação de loteamento ou destaque não pudesse afectar os actos de posse praticados pelos 1ºs R.R. sobre a parcela de terreno com a área de 2.100m2 em litígio nos autos e, consequentemente, obstar à sua consolidação por usucapião. Só assim não poderia suceder se alguma norma dos diversos e sucessivos diplomas legais sobre a matéria do loteamento urbano, desde o Dec. Lei nº 46 673, de 29 de Novembro de 1965, até, pelo menos, àquele supramencionado Decreto-Lei n.º 448/91, de 29-11, tivesse vindo impedir a possibilidade de invocação da usucapião sobre os lotes de terreno resultantes de loteamento ilegal. isto porque, como decorre do artº 1287 º do C. Civil: «A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião» (sublinhado nosso). Mas nenhum desses diplomas, repete-se, o fez. De modo que a eventual nulidade decorrente de ilegal fraccionamento do prédio não constituía nem poderia constituir, por si só, fundamento para recusar a usucapião. Ademais até, porque, como decorre dos art.ºs 1259º e 1296º do C. Civil, o facto de a posse não ser titulada ou de boa fé apenas influi no prazo necessário à verificação da usucapião [Neste sentido, MANUEL HENRIQUE MESQUITA, in Direitos Reais (sumários das Lições ao Curso de 1966-1967), pag 98]. A nulidade (substancial ou formal) do título, ou até a falta de título, não maculam a posse, como posse boa para usucapião: apenas podem interferir com o tempo exigível para a posse ser posse prescricional (DURVAL FERREIRA, in Posse e Usucapião, 3ª ed. pag. 501). Ou - como se afirma no Acórdão deste Supremo Tribunal, de 27-6-2006, in CJ/STJ, Tomo 2/2006, pag. 133 - invocada a usucapião como forma de aquisição, justamente porque de aquisição originária se trata, irrelevam quaisquer irregularidades precedentes e eventualmente atinentes à alienação ou transferência da coisa para o novo titular, sejam vícios de natureza formal ou substancial.
18. O momento da aquisição do direito de propriedade é: a) (…) c) No caso de usucapião, o do início da posse; (…)
19. José de Oliveira Ascensão, in Direito Civil, Reais, 4ª Ed., ps. 294/295.
20. Acórdão da Relação do Porto de 21-1-2006 (Relator: Fernando Baptista)
21. In USUCAPIAO E AUGI'S (AREAS URBANAS DE GENESE ILEGAL), Universidade Lusíada de Lisboa, p. 404
22. Cf. o respectivo sumário: I - A usucapião é um modo de aquisição originária do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo (arts. 1287.º e 1316.º do CC) que depende apenas da verificação de dois elementos: a posse e o decurso de certo lapso de tempo, que varia em função da natureza do bem (móvel ou imóvel) sobre que incide e de acordo com os caracteres da mesma posse. Quando invocada, os seus efeitos retrotraem-se à data do início da posse (art. 1288.º do CC), adquirindo-se o direito de propriedade no momento do início da mesma posse (art. 1317.º, al. c), do CC). II - A usucapião serve, além do mais, para “legalizar” situações de facto “ilegais”, mantidas durante longos períodos de tempo, inclusive até a apropriação ilegítima ou ilícita de uma coisa. III - A eventual nulidade decorrente de ilegal fraccionamento de um prédio não constitui, por si só, fundamento para recusar a usucapião, porquanto nenhum dos diversos e sucessivos diplomas legais sobre a matéria do loteamento urbano, veio impedir a possibilidade de invocação da usucapião sobre os lotes de terreno resultantes do loteamento ilegal. IV - Os negócios celebrados contra disposição legal de carácter imperativo são, em regra, nulos (art. 294.º do CC), podendo a nulidade ser, em princípio, invocada a todo o tempo por qualquer interessado e até ser declarada oficiosamente pelo tribunal (art. 286.º do CC); porém, a não fixação de um prazo para a sua arguição não afecta os direitos que hajam sido adquiridos por usucapião. V - Entender que a posse, baseada em acto ou facto proibido por normas imperativas do loteamento urbano (ou do destaque), é insusceptível de conduzir à aquisição da propriedade por usucapião abstrai da realidade económica e social do nosso país, onde especialmente no interior norte e centro, uma boa parte das partilhas entre maiores, nomeadamente de imóveis constitutivos dos acervos das heranças, ainda é ou era feita “de boca” e posteriormente “legalizada” com suporte na usucapião. VI - Por conseguinte, tendo a posse dos réus sobre a parcela de terreno em litígio nos autos se consolidado por usucapião e não resultando provado que a mesma tenha sido “destinada à construção” nem imediata nem subsequentemente à concretização da divisão física do prédio original, mas antes que se encontra há mais de 20 anos a ser utilizada como parque de estacionamento automóvel, não pode deixar de se reconhecer aos réus/reconvintes o direito de propriedade sobre tal parcela.