Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
112/14.3GBMDL.G1
Relator: DOLORES SILVA E SOUSA
Descritores: RECONSTITUIÇÃO
VALORAÇÃO DE PROVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/11/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONCEDIDO PARCIAL PROVIMENTO
Sumário: A valoração da reconstituição realizada com recurso aos meios previstos no artº 152º, nº 2, do CPP, meios audiovisuais, no caso, com recurso a registo fotográfico, que visou a dinâmica do acto processual e fixou o tempo para efeitos de visualização futura, não traduz violação do preceituado no artº 357º, nº 3, do CPP.
Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães.
Secção criminal.

I-Relatório.
No Processo Comum Colectivo nº 112/14.3GBMDL da Comarca de Bragança, Instância Central Cível e Criminal, Juiz 3, foi submetido a julgamento o arguido Luciano M., melhor identificado a fls. 587 dos autos.
O Acórdão de 22 de Setembro de 2015, depositado no dia seguinte, tem o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, este Tribunal decide:
1. Absolver o arguido Luciano M. da prática em autoria material e em concurso efetivo de três crimes de Abuso Sexual de Crianças, previstos e punidos pelo artigo 171.º, n.º3, alínea b), do Código Penal.
2. Absolver o arguido Luciano M. da prática em autoria material, e em concurso efetivo, de dois crimes de Abuso Sexual de Crianças Agravado, previstos e punidos pelo artigo 171.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal.
3. Condenar o arguido Luciano M. pela prática, em autoria material e em concurso efetivo, de um crime de Abuso Sexual de Crianças, previsto e punido pelo artigo 171.º, n.º1, do Código Penal, na pessoa de C..., na pena de dois anos de prisão.
4. Condenar o arguido Luciano M. pela prática, em autoria material e em concurso efetivo, de um crime de Abuso Sexual de Crianças, previsto e punido pelo artigo 171.º, n.º1, do Código Penal, na pessoa de E..., na pena de dois anos de prisão.
5. Em cúmulo jurídico das penas parcelares supra referidas, condenar o arguido Luciano M. na pena única de três anos e seis meses de prisão.
6. Condenar o arguido no pagamento das custas, fixando em três unidades de conta a taxa de justiça devida.
7. Manter a medida de coação de obrigação de permanência na habitação com acompanhamento de meios de controlo à distância aplicada ao arguido Luciano M..»
*
Inconformado com a decisão veio o arguido interpor recurso, apresentando a motivação de fls. 655 a 660 (fax), original a fls. 662 a 672, que remata com as seguintes conclusões:
«1. O tribunal valorou prova proibida, na medida em que a reconstituição de facto levada a cabo pelo arguido, além de não estar na presença de defensor, só poderão ser entendidas como resultado das declarações do mesmo.
2. Por força do disposto no artigo 357º do C.P.P. a leitura ou reprodução destas declarações não é permitida sem consentimento prévio do arguido ou a solicitação deste, o que não se verificou.
3. Violou pois nesta parte o douto acórdão o disposto no artigo 357° ao tê-lo feito e ao ter considerado prova fundamental dos factos que deu como provados.
4. Incorre o douto acórdão em contradição insanável entre a fundamentação e a decisão (art. 410º nº 2 b) do C.P.P.) na medida em que a fundamentação deveria conduzir a uma decisão contrária àquela que foi tornada.
5. Da análise aos exames periciais juntos aos autos, das declarações do arguido e das vítimas e de outras testemunhas resulta contradição insanável na medida em que os exames periciais não comprovam nem indiciam a autoria do recorrente, nem tão pouco atestam lesões ou sequelas recentes e compatíveis temporalmente com os factos.
6. No mais, aludem também à pouca credibilidade das vítimas que em declarações para memória futura mereceram por parte do perito a conclusão de inverosímeis sendo de registar a total ausência de sinais/lesões/sequelas/indicadores deste tipo de crime e por ultimo o depoimento da testemunha progenitor da menor Erica que veio esclarecer que a menor já havia sido abusado pelo padrasto.
7. A sufragar tudo isto, não podemos olvidar o depoimento da própria vítima que inocenta o arguido dando o dito por não dito, corroborando a analise clínica medico legal efectuada sobre os factos e a sua personalidade
8. Entendemos igualmente verificar-se erro notório na apreciação da prova (art. 410° n° 2 c) do C.P.P.) uma vez que o tribunal efectuou urna apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.
9. Pois que, dos relatórios de perícia médico legais realizados às vítimas não resulta quem tenha sido o seu autor, nem tal se pode depreender.
10. De facto, do relatório à menor que apresentava soluções de continuidade cicatrizadas tão pouco consta data provável das lesões/sequelas e foi declarado pelo pai da mesma que esta já havia sido vítima de abuso sexual por parte do padrasto.
11. O douto acórdão de todo o modo, contra as regras da lógica dá como provado nos pontos 11 e 12 que as soluções de continuidade cicatrizadas, foram consequência de actos levados a cabo pelo recorrente, o que não podemos conceder, atenta a prova em sentido contrário
12. Deveria pois, em obediência ao principio “in dubio pro reo”, ser o arguido absolvido da prática dos crimes pelos quais foi condenado.
Sem, prescindir,
13. O douto tribunal violou o disposto no artigo 50° do C.P. ao não decidir pela suspensão da execução da pena de prisão.
14. A nosso ver, todo o circunstancialismo relativo às razões de prevenção apontam para um juízo de prognose favorável que poderia e deveria ter levado o tribunal a optar pela suspensão da execução da pena de prisão.
15. O recorrente é pessoa de idade avançada, sendo este o primeiro contacto com a justiça, não possuindo quaisquer antecedentes criminais.
16. Sofre sentimento de vergonha desde a sua reclusão.
17. Não existem processos pendentes ou notícia de que o arguido possa estar envolvido noutras actividades delituosas.
18. A reclusão de que está a ser alvo, permitiu-lhe interiorizar desvalor da conduta, e tem em nosso entendimento a virtualidade de o dissuadir da prática de novos crimes.
19. E pessoa estimada no meio em que insere, tendo a situação causado surpresa.
20. Não pode pois, concluir-se por um juízo de prognose desfavorável com os elementos constantes dos autos, nomeadamente lançando mão apenas do facto do recorrente não ter confessado a prática dos crimes que se lhe imputavam.
21. Violou pois o douto acórdão o disposto no artigo 50º do C.P
Normas jurídicas violadas Artigos 357º do C.P.P., 410º nº 2 b) e c) do C.P.P. e artigo 50º do C.P.»
*
Admitido o recurso a fls. 674, veio o MP oferecer a sua resposta conforme fls. 677 a 693, tendo sumariado as seguintes conclusões:
«I – Não houve qualquer valoração de prova proibida, nomeadamente, da reconstituição, pois a mesma foi realizada no respeito dos pressupostos e procedimentos a que está vinculada, obtida de forma legal e válida, sendo certo que a mesma não foi posta em causa e o arguido prescindiu da presença de advogado.
II – Não foram tidas em conta as declarações que o arguido prestou aquando da realização da reconstituição, tendo o Tribunal “a quo” valorado somente as fotografias conjugadas com as declarações que o mesmo prestou perante o Mmo JIC, aquando do 1º interrogatório judicial, não havendo assim violação do art. 357º do C.P.P.
III – O tribunal não deu como provado que o arguido tivesse mantido relações de cópula com qualquer uma das menores, pura e simplesmente deu como provado que o arguido manteve com as menores actos sexuais de relevo, pelo que não existe qualquer contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão.
IV – Não houve por parte do Tribunal “a quo” “…a imputação grosseira que o resultado do exame efectuado à menor diga respeito a uma conduta menos própria por parte do arguido”, não existindo qualquer erro na apreciação da prova.
V - O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que simples censura do facto e ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição - art.º 50.º n.º 1 do Código Penal. Não é o caso dos autos, pois o arguido negou os factos;
não mostrou qualquer arrependimento; a idade das menores, 8 e 10 anos e, o facto do arguido não ter evidenciado capacidade de análise critica face à natureza dos factos em discussão que assumem uma gravidade assinalável.
VI – Assim são prementes as exigências de prevenção geral, pela fortíssima repulsa com que tais crimes são encarados pela sociedade e elevadas às exigências de prevenção especial, face á completa falta de arrependimento do arguido – particularmente chocante, face à idade das menores e à falta de revelação de qualquer juízo crítico ou de autocensura, não fazem concluir que simples censura do facto e ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Assim, deverá o presente recurso ser julgado não provido e improcedente, mantendo-se, em conformidade com o exposto, os termos da decisão recorrida.»
*
Nesta Relação, o Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer no sentido da improcedência do recurso.

Foi cumprido o artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


*

II- Fundamentação.

1. É pacífico que, para além das matérias de conhecimento oficioso [v.g. nulidades insanáveis, da sentença ou vícios do art. 410º n.º 2, do citado diploma legal], são apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar [v. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Tomo III, 2ª ed., pág. 335 e Ac. do STJ de 20/12/2006, Processo n.º 06P3661, in dgsi.pt].
Assim, no caso em apreço, são as seguintes as questões a decidir:
- Averiguar da violação do artigo 357º, do CPP.
- Analisar o acórdão em recurso a fim de verificar se padece dos vícios da contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão ou, de erro notório na apreciação da prova.
- Averiguar da suspensão da pena de prisão aplicada ao arguido, aqui recorrente.

*
2. Factualidade.
Segue-se a enumeração dos factos provados, não provados e respectiva motivação.
«A) Factos Provados
Discutida a causa resultaram provados os seguintes factos:
1. C..., nascida a .. de .. de 2005, está registada como sendo filha de Francisco M. e de Maria C..
2. E..., nascida a .. de .. de 2003, está registada como sendo filha de André F. e de Elisabete C..
3. O arguido não ignorava a idade de C..., em virtude de ser vizinho dos pais da menor desde a data do nascimento daquela.
4. O arguido não ignorava a idade de E..., em virtude de ser vizinho dos pais da prima da menor desde a data do nascimento da primeira.
5. Em data não concretamente determinada, mas situada no período compreendido entre os anos de 2011 e 2012, o arguido, por forma não concretamente apurada, acolheu C... e E... na sua residência, sita na rua …, desacompanhadas de qualquer adulto ou criança, explorando a relação de confiança que tinha com as crianças e a respetiva família.
6. O arguido, C... e E... permaneceram nas escadas de acesso do rés do chão ao piso superior onde, no seu interior, se situa o quarto do arguido.
7. Nesse local, o arguido pediu a C... e a E..., que vestiam saias, que levantassem tal indumentaria para poder visionar a zona genital das mesmas, o que fizeram, tirando também as cuecas que trajavam a solicitação do arguido, por não serem capazes de se autodeterminarem, tendo o arguido baixado por sua vez as calças e as cuecas.
8. Nas aludidas escadas, E..., ainda sem cuecas, sentou-se no colo do arguido, sofrendo assim a menor o contacto do pénis do arguido na respetiva zona genital.
9. Nesse momento, o arguido ainda beijou E... junto à zona genital desta.
10. Ato contínuo, a menor C..., ainda sem cuecas, sentou-se no colo do arguido, e assim sofreu o contacto do pénis do arguido na respetiva zona genital.
11. Realizado exame médico legal à menor E..., foi verificado que a mesma tinha “soluções de continuidade cicatrizadas, incompleta às 7 horas no esquema do mostrador do relógio, apresentando uma permeabilidade com comprimento do dedo indicador da perita” .
12. Ao agir da forma supra descrita, querendo manter atos de natureza sexual com C... e E..., não obstante ser conhecedor das suas idades, o arguido agiu com o propósito de satisfazer os seus desejos libidinosos, insensível à falta de maturidade sexual das menores devido à sua tenra idade, ciente que violava o desenvolvimento, liberdade e autodeterminação sexual das mesmas e que com isso prejudicava a sua saúde física e psicológica.
13. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e conscientemente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal e que por isso incorria em responsabilidade criminal.
14. Luciano M. nasceu em M…, localidade onde viveu a maior parte da sua vida.
15. Luciano M. é oriundo de um agregado familiar de modesta condição socioeconómica que fazia da agricultura fonte de subsistência, integrou uma família composta pelos progenitores e nove descendentes dos quais é o segundo por ordem de nascimento.
16. Com exceção de algumas privações decorrentes das limitações económicas da família (de que, por ser dos filhos mais velhos, o arguido sentiu de forma mais intensa) Luciano M. não identifica outros constrangimentos ou anomalias no seu processo de crescimento e socialização.
17. Embora Luciano M. tenha iniciado a escolaridade em idade própria, viria a abandoná-la sem haver concluído o 4º ano (obteria tal habilitação em idade adulta) dado o significativo absentismo que registava, atenta a priorização das atividades agrícolas que serviam se suporte económico da família.
18. Foi na agricultura, desde muito novo, que Luciano M. se ocupou até aos 27 anos de idade, altura em que contraiu matrimónio e se autonomiza do agregado de origem.
19. Nesta altura, Luciano M. migra para Lisboa, em busca de melhores condições de vida, aproveitando o facto de ter familiares a residir na capital do país e a promessa de oportunidades de trabalho.
20. Em Lisboa Luciano M. trabalhou inicialmente na construção civil e, mais tarde, como operário indiferenciado em tarefas de manutenção de aviões no aeroporto da Portela e finalmente, até à aposentação, ocorrida há cerca de 12 anos, como empregado de armazém.
21. Do matrimónio de Luciano M., que perduraria por cerca de 30 anos, tem 2 filhas, atualmente com 49 e 41 anos de idade, aproximadamente, já autonomizadas.
22. Há cerca de 25 anos que, na sequência da rutura da relação conjugal e do divórcio entretanto concretizado, Luciano M. regressou a M..., inicialmente para casa dos progenitores e, mais tarde, tendo construído habitação própria, passando a viver sozinho.
23. Luciano M. não voltou a constituir família, de acordo com o próprio porque durante muito tempo acalentou a esperança de refazer a relação com a ex-mulher (entretanto falecida) mas também porque, dado que os irmão mais novos entretanto também se haviam autonomizado, lhe coube assumir os cuidados com os pais nos últimos anos de vida destes.
24. Em M…, ao longo dos últimos anos, Luciano M. tem-se ocupado em tarefas agrícolas, nas propriedades que herdou da família de origem bem como outras que entretanto adquiriu. Estas atividades – que por razões de saúde, próprias da idade (problemas cardíacos, circulatórios, hipertensão e problemas dermatológicos entre outros) tem vindo progressivamente a delegar em terceiros – têm servido, a par da pensão de reforma que aufere (cerca de 350 €/mês) de suporte à sua subsistência.
25. Embora a maior parte dos seus familiares resida no sul do país – incluindo a filha mais velha com quem não se relaciona, por iniciativa da mesma, desde o divórcio –, Luciano M. dispõe de apoio familiar próximo, designadamente por parte de um irmão residente no C… e um outro a viver em Bragança.
26. Luciano M. mantém ainda relação estreita com a filha mais nova a residir na área metropolitana do Porto.
27. No meio residencial Luciano M. apresenta adequada inserção, sendo indivíduo estimado e considerado, tendo os factos dos autos sido acolhida com surpresa.
28. A medida de coação de obrigação de permanência na habitação imposta a Luciano M. tem sido executada sem registo de qualquer incidente.
29. Luciano M. apresenta um discurso do qual ressalta acentuada penosidade resultante, por um lado, da privação da liberdade que lhe foi imposta e, por outro, do sentimento de vergonha associado ao contacto com o sistema de justiça, sendo enfatizado pelo próprio um percurso de vida sem registo de qualquer incidente desta natureza.
30. Luciano M. apresenta, em abstrato e face à tipologia de crime de que se encontra acusado, um discurso de condenação, de rejeição e de consciência do ilícito.
31. O arguido não tem antecedentes criminais.

B) Factos não provados
Não se provaram todos os demais factos que se não compaginam com a factualidade apurada, designadamente e no essencial não se provou que:
a) A factualidade descrita nos pontos 4. a 10. dos factos provados aconteceu na sequência de um plano gizado pelo arguido em data anterior àquela em que os mesmos ocorreram para satisfazer os seus desejos libidinosos.
b) A factualidade descrita no pontos 4. e 5. dos factos provados teve lugar no período compreendido entre o mês de dezembro de 2013 e o dia 3 de junho de 2014.
c) Nas circunstâncias referidas no ponto 5. dos factos provados quando C... e E... estavam a brincar uma com a outra na rua, em M..., o arguido chamou-as para casa dele dizendo-lhes «venham para minha casa», o que ambas aceitaram por pensarem tratar-se de convite inofensivo.
d) As escadas referidas no ponto 6. dos factos provados situavam-se no interior da casa.
e) Foi o arguido que, nas circunstâncias descritas nos pontos 8. e 10., dos factos provados solicitou que C... e E... se sentassem no colo dele.
f) Nas circunstâncias descritas nos pontos 8. e 10. dos factos provados o arguido tinha o pénis ereto.
g) Pouco depois dos factos descritos nos pontos 5. a 9. dos factos provados, o arguido encaminhou C... e E... para o quarto dele.
h) Já no interior do quarto, o arguido ordenou à menor C... que se deitasse na cama de barriga para cima, tirando-lhe a roupa toda da cintura para baixo.
i) No interior do quarto o arguido despiu-se completamente e exibiu o seu pénis já ereto às menores.
j) Ato contínuo, o arguido deitou-se em cima da menor C..., friccionando o pénis ereto na vagina dela, sem preservativo, ao que a criança começou a gritar, solicitando-lhe para parar, o que o arguido ignorou.
l) O arguido manteve, assim, atos sexuais de relevo, com contactos no seu pénis ereto na zona da vagina da menor C..., aí o friccionando, na presença da E....
m) Após o que, o arguido nutriu desejo de manter uma relação sexual com E....
n) Nesse momento, a menina tirou a roupa, ficando nua, e deitou-se na cama com as pernas abertas.
o) Ato contínuo, o arguido deitou-se por cima da menor E..., introduzindo o pénis ereto na sua vagina e mantendo cópula com esta.
p) Da mesma forma, a menor C... assistiu ao ato sexual perpetrado pelo arguido com a sua prima.
q) Numa outra ocasião, na execução do plano previamente gizado, no período compreendido entre o Natal de 2013 e a data da denúncia, o arguido acolheu a menor C... na sua residência, sita na Rua…, desacompanhada de qualquer adulto ou criança, explorando a relação de confiança que tinha com a criança e com a sua família.
r) Já na sua habitação, o arguido despiu-se e ordenou à menor que também tirasse a roupa e que se deitasse, assim visando excitar-se.
s) Ato contínuo, contra a vontade da visada, o arguido abeirou-se da criança e encostou-lhe o pénis ereto na região da válvula e ai o friccionou por diversas vezes, obrigando a criança a sofrer esses contactos.
t) C... ofereceu-lhe então resistência, tentando afastar-se, no entanto, o arguido prosseguiu os seus intentos libidinosos da forma descrita até ejacular.
u) Em consequência da conduta do arguido, poderá vir a comprometer-se o equilíbrio desenvolvimental e emocional de C... e E....
v) Na factualidade descrita nos pontos 5. a 10. dos factos provados, o arguido agiu com a intenção e manter cópula com C... e E....

C) Valoração e análise crítica da prova
A convicção do Tribunal relativamente aos factos considerados provados e não provados fundou-se na apreciação crítica da prova produzida em audiência, de harmonia com o princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 127.º do CPP, o qual impõe uma valoração de acordo com critérios lógicos e objetivos que determinem uma convicção racional, objetivável e motivável.
De salientar, ainda, que, no cotejo e apreciação da prova produzida e globalmente ponderada, o Tribunal teve igualmente presente a circunstancia de, por regra, nos crimes sexuais como os dos autos, a prova se exaurir com as declarações do arguido e da pessoa ofendida, complementada tão só através da apreciação de alguma prova pericial que se tenha no processo e do depoimento das testemunhas as quais, não sendo, por regra e pela natureza do crime, presenciais, aportam ao tribunal factos meramente indiciadores do que cada um percecionou como sendo reveladores da culpabilidade ou da inocência do acusado, da verdade ou da falsidade do que foi denunciado pela vítima.
Em concreto, o Tribunal baseou a sua convicção a partir da valoração do seguinte acervo probatório:
» Em sede de audiência de julgamento e já nas suas declarações finais, o arguido, que durante a produção de prova se remeteu ao silêncio, negou a prática de qualquer dos factos que lhe são imputados, referindo que, relativamente à reconstituição que fez na Polícia Judiciária, se limitou a fazer o que os inspetores lhe ordenavam por estar cansado uma vez que já era muito tarde.
» Consideraram-se as declarações do arguido, documentadas em registo áudio, e reproduzidas em audiência de julgamento, prestadas perante a Mm.ª Juiz de Instrução Criminal, em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, nos termos do disposto no artigo do 141.º, n.º4, alínea b) do CPP. Relativamente a estas declarações, foram valoradas pelo Tribunal, em detrimento do que em sentido contrário o arguido depois veio a depor. De facto, da audição de tais declarações, surge evidenciada logo no início das mesmas a forma como o arguido, de forma espontânea, coerente e objetiva confessou parte da factualidade que lhe era imputada e negou a restante factualidade, sem ainda saber em pormenor que prova havia nos autos relativamente a tais factos, e, saliente-se, ainda sem ser confrontado pela Mm.ª Juíza de Instrução com qualquer elemento dos autos (nomeadamente suas eventuais anteriores declarações). E assim, o Tribunal não teve dúvidas de que tais declarações (às quais infra se fará referência mais detalhada) foram mais credíveis do que as prestadas pelo mesmo em sede de julgamento, sendo relevante a circunstância de estas últimas apenas terem ocorrido - por vontade do próprio arguido - após a produção de toda a restante prova, como já se referiu.
» Consideraram-se as declarações para memória futura prestadas por E... e C..., reproduzidas em audiência de julgamento.
» Foi valorada a prova pericial, concretamente considerou-se o teor dos seguintes exames periciais: folhas 201 a 203 (relatório da perícia de natureza sexual referente a C...), folhas 206 a 208 (relatório da perícia de natureza sexual referente a E...), folhas 454 a 457 (relatório de exame médico-legal de psiquiatria forense da Infância e da Adolescência referente a E...) e folhas 479 a 481 (relatório de exame médico-legal de psiquiatria forense da Infância e da Adolescência referente a C...), sendo considerado o que decorre do artigo 163.º, n.ºs 1 e 2, do CPP, nos termos do qual presume-se subtraído à livre apreciação do julgador o juízo de natureza técnica, científica ou artística, podendo o julgador divergir desse juízo desde que fundamente tal divergência e a sua convicção o suporte.
» Considerou-se o auto da reconstituição levada a cabo pelo arguido em sede de inquérito, junto a folhas 67. Cumpre aqui salientar que a reconstituição do facto é um dos meios de prova típicos previstos no CPP, de que se lança mão “quando houver necessidade de determinar se um facto poderia ter ocorrido de uma certa forma” e que “consiste na reprodução, tão fiel quanto possível, das condições em que se afirma ou se supõe ter ocorrido o facto e na repetição do modo de realização do mesmo” (cf. n.º 1 do art. 150.º daquele diploma legal). A reconstituição desde que tenha sido obtida de forma legal e válida (o que ocorre no caso em apreço, dado que o arguido expressamente autorizou a sua realização e não foi assistido no ato por defensor por ter prescindido da presença do mesmo), constitui meio de prova processualmente admissível e, tal como os demais para os quais a lei não fixa um valor pré-determinado, depois de sujeita ao contraditório, há-de ser valorada de acordo com a regra da livre apreciação da prova, ou seja, “segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente” Neste sentido Ac. STJ 05.01.2005, relatado por Henriques Gaspar, no proc. 04P3276, in www.dgsi.pt., e com respeito pela regra do art. 357.º, n.º2, conjugado com o art. 356.º, n.º8, ambos do CPP. Só assim não será se tivesse sido colocada em causa a legalidade da reconstituição dos factos, o que não ocorreu no caso em apreço Neste sentido Ac. do T.R.Coimbra, de 22.09.2010, relatado por Eduardo Martins, no proc. 65/06.1GHCTB.C1, in www.dgsi.pt..
Porque a reconstituição se destina a reproduzir tão fielmente quanto possível as condições em que o facto ocorreu, é admissível que nela intervenha o arguido, sendo nesse caso imprescindível, para que possa valer como meio de prova, que ele a tal se disponha de forma inteiramente livre, sem quaisquer constrangimentos.
O contributo que o arguido preste, dentro desse condicionalismo, para a reconstituição do facto confunde-se com todos os outros colhidos para o mesmo fim, incorporando-se num meio de prova autónomo, com valor próprio e distinto dos contributos parcelares que o conformaram, e ficando, por isso, fora do âmbito de proteção do direito ao silêncio que venha posteriormente a exercer durante o julgamento Neste sentido vide Acórdãos citados nas notas anteriores.. Ainda se deve referir que, no caso dos autos, não obstante tal diligência não ter sido determinada por juiz ou magistrado do Ministério Público, tal não o impõe o artigo 150.º, n.º2 do CPP, sendo que a mesma foi levada a cabo pela Polícia Judiciária, órgão a quem competia a investigação específica do tipo de crimes em causa.
» Foram inquiridas as seguintes testemunhas: André F. (pai de E...), Elisabete C. (mãe de E...), Madalena C. (avó de E... e de C...), E... Isabel P., C... Patrícia B., Francisco M. (pai da C...), Maria C., Teresa F. (professora do ensino básico da C...), José M. (Presidente da Junta de A…), Luís M. (Inspetor da Polícia Judiciária), Luís R. (especialista adjunto da Polícia Judiciária) e Fernando A. (agricultor, vizinho e conhecido do arguido).
» Foram tomadas declarações ao Perito em Psiquiatria Forense, Dr. Justino M., que prestou esclarecimentos relativos ao relatório do exame pericial médico-legal de psiquiatria forense da Infância e da Adolescência por si elaborado, junto a fls. folhas 479 a 481, referente a C....
» A prova documental é a vertida nos autos, que infra se detalhará sempre que se justificar pelo seu relevo probatório relativamente a determinados factos, sendo os que contribuíram para a formação da convicção do Tribunal, umas vezes pela credibilidade que o próprio teor só por si revela e, outras, em conjugação com outros meios de prova, sendo que todos eles apresentam um teor que se afigura verídico e não foram postos em crise por qualquer outro meio de prova. Aqueles, cujo âmbito conceitual normativo é delimitado pelo artigo 363.º do Código Civil, implicam que se considerem provados os factos materiais deles constantes, enquanto a autenticidade dos documentos ou a veracidade do seu conteúdo não forem, fundadamente, postos em causa.
*
Tendo sido da valoração crítica, conjugada e ponderada da globalidade do supra mencionado acervo probatório que o Tribunal logrou formar firme convicção de veracidade sobre os factos julgados provados, cumpre, agora, analisar criticamente, a prova produzida em detalhe nos seus aspetos essenciais, quer quanto à factualidade que resultou provada quer também quanto aos factos não provados. Vejamos.
Relativamente à factualidade vertida nos pontos 1. a 4. dos factos provados, relevou o teor das certidões de assento de nascimento de fls.146, relativa a C... e de fls.149, relativa a E..., para dar como provada as respetivas datas de nascimento e filiação. O conhecimento por parte do arguido da idade de cada uma das menores resulta manifesto, não só da aparência física das mesmas constatada em audiência de julgamento, mas também da circunstância de ambas terem residido na mesma aldeia que aquele nos seus primeiros anos de vida (cf. depoimentos de André L. Matias, Madalena P., Francisco P. e Maria C.), bem como do verbalizado pelo arguido em sede de primeiro interrogatório judicial (onde referiu a idade aproximada de cada uma delas).
No que concerne às circunstâncias de tempo em que a factualidade descrita nos pontos 5. a 10. ocorreu, urge esclarecer o trilho percorrido pelo tribunal para concluir no sentido apurado. Em sede de primeiro interrogatório judicial, diligência que teve lugar no dia 16.10.2014 (vide folhas 102), o arguido referiu que os factos por si relatados tinham ocorrido há cerca de quatro anos atrás. Por sua vez, Madalena C. referiu que era hábito as suas netas E... e C..., que costumavam andar sempre juntas, irem até ao quintal da casa do arguido, o que aconteceu até ao dia em que o irmão da segunda, de nome Jorge – o qual à data tinha quatro anos e atualmente tem sete anos - vir ter consigo dizendo que a C... estava dentro da casa daquele; que por esse motivo foi ver o que se passava, mas quando chegou apenas viu as meninas sentadas num banco com o arguido no exterior da casa, tendo este se queixado que elas lhes tinham tirado dinheiro. Mais referiu que logo de imediato proibiu as meninas de entrarem mais em casa do arguido e que este a partir dessa data cortou relações consigo. Da prova produzida não foi possível recolher qualquer outro elemento que apontasse com mais precisão para a data em que os factos em causa ocorreram. Certo é que, atentos estes dois elementos probatórios - que o tribunal acolheu como verdadeiros e não se excluem mutuamente -, os factos não poderiam ter ocorrido no lapso de tempo referido na acusação, mas sim sempre entre o ano de 2011 (há quatro anos atrás como em outubro de 2014 referiu o arguido) e o ano de 2012 (atenta a idade que tinha o neto de Madalena P. quando esta testemunha proibiu as netas de voltarem a frequentar a casa do arguido, o que, segundo a mesma, aquelas respeitaram).
Que o arguido residia sozinho na data da prática dos factos resulta inequívoco do teor do relatório social junto a folhas 541 a 543 e do depoimento de Elisabete Matias, que depôs no mesmo sentido.
Focando-nos agora mais detalhadamente na factualidade vertida nos pontos 5. a 10., a mesma resultou assim apurada da conjugação do auto de reconstituição, realizado pelo arguido em sede de inquérito, cujo relatório se encontra junto a folhas 67 a 74, com as declarações do mesmo em sede de primeiro interrogatório judicial e dos depoimentos de Luís M. e de Luís F..
Concretizando, foi valorado positivamente o que decorre do referido auto, essencialmente o teor do relatório fotográfico junto ao mesmo, uma vez que foi corroborado pelas declarações do arguido em sede de primeiro interrogatório judicial. De facto, perscrutando as fotografias daquele auto percebe-se de imediato com clareza, quer os comportamentos do arguido e das menores (e a sua natureza) ali vertidos quer a sequência dos mesmos, nos termos em que resultaram apurados. Mas, ao ouvir as primeiras declarações do arguido durante o primeiro interrogatório judicial, o Tribunal não ficou com qualquer dúvida de que o que resulta daquelas fotografias relata no essencial o decurso dos factos, uma vez que tais declarações são coincidentes (e esclarecem) com o teor do referido relatório fotográfico. De facto, se atentarmos nas declarações do arguido perante a Mmª JIC, este, confrontado na altura apenas os factos então indiciados, os quais, à data, consistiam apenas nos que supra resultaram não provados (vide fls.103 a 106 – descrição dos factos que foram dados a conhecer ao arguido no interrogatório deste), expressivamente insurge-se de imediato contra aqueles, negando-os, começando logo por dizer que “nem entraram em casa nem nada, foi no fundo das escadas”, “para cima e para o quarto é mentira”, “elas andavam na rua e sentei-me e elas junto a mim”, “gostava de saber como aumentaram isso”.
Ora, logo destas primeiras declarações se percebe claramente que o arguido confirmou que as menores estiveram com ele, em sua casa, embora apenas nas escadas de acesso à mesma, e negou os factos ue lhe foram dados a conhecer dizendo “para cima e para o quarto é mentira”.
Mas depois, logo de seguida, o arguido concretizou relativamente ao que disse ter ocorrido na zona das escadas, que (referindo-se a uma das meninas) lhe disse “estás com as calças todas mijadas. Ela baixou as calças e eu disse para ir para casa”. Mas, continuou dizendo que “levantaram as saias”, “disseram mostra lá tu também”, “não fiz nada, elas é que se encostaram a mim”, “elas começaram a pedir para mostrar o sexo, só baixei um bocadinho as calças, não mostrei nada”. Já no final da referida diligência, a instâncias do seu ilustre defensor, o arguido ainda esclareceu que “baixou as calças um bocadinho para as pôr a andar”, “uma sentou-se nas suas pernas, tinha descido as suas calças um bocadinho quando roçou, ela sentou-se na perna (…) foi só uma, a mais nova, era mais meiguinha,as miúdas estavam atiradiças”.
É certo que o arguido em audiência de julgamento negou todos os factos que lhe foram imputados, justificando que na reconstituição se limitou a colocar as bonecas tal como lhe disseram para fazer (referindo-se aos agentes policiais que ali estavam), porque estava muito cansado e queria livrar-se deles. Contudo, o arguido não convenceu o Tribunal com esta justificação uma vez que Luís M., inspetor que esteve presente na reconstituição referiu, de forma espontânea, objetiva e desinteressada, referiu que o arguido se apresentava calmo, assumiu as posições que entendeu durante a diligência, a qual foi levada a cabo numas escadas para assim se melhor esclarecer como os atos aconteceram A circunstância de não se tratar das escadas da casa do arguido, mas as das instalações da Polícia Judiciária, é inócua uma vez que para a concretização da reconstituição a lei apenas exige uma reprodução tão fiel quanto possível (cf. artigo 150.º, n.º1 do CPP), bastando-se assim, com um cenário que apresente aptidão potencial para contribuir para o esclarecimento de como os factos ocorreram (vide Santos Cabral, in Código de Processo Penal Anotado, Almedina, 2014, p.629).. Mais esclareceu esta testemunha que a diligência teve lugar na hora que consta no respetivo auto (19.00 horas). De igual modo, Luís F., especialista adjunto da Policia Judiciária que também esteve presente no ato referiu, de forma objetiva e revelando conhecimento do declarado, que o arguido apresentou durante a diligência um discurso articulado e que era quem ia indicando a forma como decorreram os factos – que a diligência foi efetuada numas escadas das instalações onde se encontravam para se adequar o cenário – e que foi descrevendo de forma natural, sem qualquer reação de nervosismo, como entendia, o desenrolar dos factos sem que algum dos presentes tivesse qualquer intervenção ou lhe sugerisse o que quer que fosse. Acresce ainda salientar que o arguido referiu na audiência de julgamento que o que disse perante a senhora Juíza de Instrução é que era a verdade.
O Tribunal também não descurou a circunstância de as menores, quer em sede de declarações para memória futura quer em audiência de julgamento, não terem referido que vivenciaram tais factos. Contudo, nos termos que infra se detalharão aquando da motivação dos factos não provados, tais depoimentos não mereceram qualquer credibilidade ao tribunal e, por tal motivo, não foram considerados, nem sequer parcialmente.
Logo, valorando essencialmente o desenvolvimento dos factos que decorre do relato fotográfico constante do auto de reconstituição, conjugado com as declarações do arguido prestadas perante a Mmª JIC – as quais, sem margem para dúvidas são esclarecedoras do relatado nas referidas fotografias –, constituindo dois meios probatórios que se “encaixam” um no outro, o tribunal não teve dúvidas em considerar que os factos decorreram nos termos dados como provados. É certo que ainda se poderia considerar as declarações que o arguido prestou aquando da referida diligência probatória, contudo, perante o referido acerbo probatório tal revela-se desnecessário, até porque não se ignora a existência de orientação, quer doutrinal quer jurisprudencial, de que apenas os atos materiais praticados na reconstituição e os correspondentes resultados factuais são atendíveis em sede probatória e não as declarações que o arguido tenha proferido no decurso da mesma Em sentido contrário, ou seja de que as declarações do arguido podem ser valoradas por se enquadrarem num meio de prova autónomo que é a reconstituição, vide Santos Cabral, in Código de Processo Penal Anotado, Almedina, 2014, p.637 e Ac. do STJ de 5.01.2005, Coletânea de Jurisprudência, 181, Tomo I/2005. .
De acrescentar que a prova de que o arguido acolheu as menores explorando a relação de confiança que tinha com as mesmas e a respetiva família é facto notório que decorre do conjunto dos meios probatórios já supra referidos.
A factualidade vertida no ponto 10. decorre inequivocamente do teor do relatório pericial do exame médico legal realizado a E... e junto a folhas 201 a 203.
A consciência da ilicitude por parte do arguido nos termos apurados sai provada, atentando no facto de se tratarem de comportamentos axiologicamente relevantes, isto é, qualquer cidadão colocado na posição do arguido sabe que não pode ter contactos com carácter sexual iguais aos que manteve com E... e C... com menores de 14 anos.
A vontade do arguido em praticar os atos que praticou e o contexto libidinoso e importunante dos mesmos resulta do teor, manifestamente sexual dos mesmos e da forma velada como o arguido as concretizou - na sua casa.
A factualidade apurada relativa ao percurso e condições de vida do arguido resultou essencialmente do relatório social junto a folhas 541 a 543, salientando-se que as fontes desse relatório nele mencionadas se afiguram idóneas para o efeito e o mesmo foi elaborado por entidade por entidade pública isenta e competente (DGRSP) e, por via disso, merecedora de credibilidade, não tendo o teor de tal relatório sido infirmado por qualquer outro elemento de prova (vide pontos 14. a 30. dos factos provados). Relativamente a tal factualidade considerou-se, ainda, o depoimento de Fernando A., na parte em que depôs sobre a boa inserção do arguido na sua comunidade.
Relativamente à ausência de antecedentes criminais do arguido, foi considerado o certificado do registo criminal do mesmo, junto a folhas 528.
*
Os factos julgados não provados resultam da falta de produção de prova consistente sobre a veracidade dos mesmos, além de que quanto a alguns, nos termos já supra expostos, resultaram provados factos contrários.
Urge salientar, embora já supra se tenha mencionado, que, como é sabido, a prova da ocorrência dos crimes de natureza sexual é uma prova que assume particularidades, na medida em que a prova direta, em regra, só resulta das declarações do arguido e da vítima, sendo – também em regra geral, repete-se – no mais a prova uma prova indireta. Daí que, como se expressa, por exemplo, no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22 de Abril de 2009 Relatado pelo Desembargador Esteves Marques e disponível para consulta em www.trc.pt., “assuma especial relevância o depoimento da vítima, desde que, como é evidente, o mesmo seja credível e esteja em sintonia com as regras da experiência comum, pois só nesse caso é suscetível de formar convicção do julgador”.
No caso dos autos a prova direta produzida corresponde exatamente à regra geral supra enunciada: prova direta emergente somente, das declarações do arguido que, quer em sede de primeiro interrogatório quer em audiência de julgamento, negou a prática dos factos julgados não provados e dos depoimentos de C... e E....
E... no essencial, de viva voz e em depoimento presencial em audiência de julgamento, negou ter mantido qualquer ato sexual com o arguido. Porém, da audição das declarações para memória futura, antes prestadas em fase de inquérito, pela mesma E... resulta uma versão diametralmente oposta: aí aquela revelou ter mantido atos sexuais com o arguido, os quais descreveu com pormenor e circunstanciadamente.
Por sua vez, C..., que em audiência de julgamento relatou com pormenor atos de natureza sexual que manteve com o arguido por cinco vezes, todos eles em casa deste, referindo que no primeiro desses encontros estava consigo a sua prima E... - também esta, segundo a menor, vítima de atos de natureza sexual por parte do arguido -, em sede de declarações para memória futura prestadas em sede de inquérito negou que qualquer um deles tenha ocorrido.
A questão que se coloca é, pois, a da credibilidade destas duas testemunhas. Perante versões tão contraditórias, que cada uma das menores apresentou, em que cada uma nega o por si anteriormente relatado, e por sua vez se contrariam entre si, qual das versões apresentadas por estas testemunhas é reveladora da verdade ou de factos verdadeiros?
A decisão desta questão não prescinde, antes convoca, a consideração de toda a demais prova produzida.
E podemos já adiantar que a corroboração de uma ou de outra dessas versões, quer com elementos probatórios diretos, quer com elementos probatórios indiretos ou meramente circunstanciais, não aconteceu.
De facto, nenhuma testemunha revelou conhecimento da prática das imputadas relações sexuais, nem revelou facto indireto que isso permitisse ao Tribunal apurar com segurança. Das perceções diretas das testemunhas que são familiares das menores sobre os acontecimentos pouco se pode extrair para além do referido. Acresce dizer, relativamente a Teresa V. professora da C... há cerca de três anos, que o por si relatado se reporta a perceções do que a própria menor lhe terá relatado, sendo certo que este relato coincide (parcialmente) com uma das versões apresentadas pela menor nos termos já supra mencionados. Por fim José F., limitou-se a relatar o que lhe foi dado a conhecer pela testemunha anterior e que, na sequência de tal, comunicou o facto à GNR.
Acresce ainda ter presente os relatórios referentes às perícias de psiquiatria forense da Infância e da Adolescência realizadas a ambas as menores, dos quais resulta inequívoco que ambas não se apresentaram credíveis em termos de depoimento, apesar do perito realçar que as mesmas têm capacidade para testemunhar e que tal falta de credibilidade não invalida a existência de abusos sexuais sobre as mesmas. Justino G., perito do INML, confirmou o teor do seu relatório de fls. 479 a 481, tendo reafirmado o seu juízo técnico vertido no sentido da perícia realizada a C... e confirmado as conclusões a que chegou no mesmo.
É certo que, relativamente a E..., o Tribunal dispõe de outro elemento de prova, ou seja o relatório de perícia de natureza sexual (cf. fls.206 a 208). Aquando da realização desse exame, em 11.07.2014, aquela apresentava os vestígios que aí são descritos, mais concretamente a nível da região genital e peri-genital: “Hímen: Soluções de continuidade cicatrizadas: incompleta às 7 horas no esquema do mostrador de relógio. Soluções de continuidade recentes: não apresenta.”. Temos assim, a existência de lesões compatíveis com relações sexuais anteriores de E..., tomando-se em consideração o que resulta deste relatório, mas não o seu autor, nem se as mesmas foram efetivamente produzidas da forma descrita na acusação. Aliás sobre a não prova de que foi o arguido quem manteve relação sexual de cópula com E..., além do que já se expressou, não pode ser alheio também o facto revelado pela testemunha André L., seu pai, que referiu que a mesma tinha sido abusada sexualmente pelo padrasto, o qual já foi julgado, após o que a menina passou a viver consigo.
Que as escadas onde a factualidade dada como provada ocorreu eram no interior da residência do arguido resultou não provado, atento o depoimento de Fernando A., que descreveu o acesso da rua à casa do arguido: através de um pátio, murado e não visível do exterior quando o portão de acesso ao mesmo está fechado, no qual existem umas escadas pelas quais se acede ao piso superior da casa, no qual se situa uma cozinha e, descendo dois degraus, os quartos, nomeadamente o do arguido.
Por fim, no que concerne aos demais factos considerados não provados, foram deste modo considerados por nenhuma prova cabal ter sido feita que levasse o Tribunal a considerá-los verídicos.
Em conclusão, sempre se dirá que, ponderando o conjunto da prova produzida, nada permite ajuizar com o mínimo de rigor que os factos julgados não provados tiveram existência real. »
*
3.- Apreciação do recurso.
3.1. - Averiguar da violação do artigo 357º, do CPP.
Sustenta o recorrente que o tribunal a quo valorou prova proibida, na medida em que a reconstituição de facto levada a cabo pelo arguido é resultado das declarações deste e, assim, por força do disposto no artigo 357º do C.P.P. a leitura ou reprodução destas declarações não é permitida sem consentimento prévio do arguido ou a solicitação deste, o que não se verificou; e conclui que o tribunal a quo violou o disposto no artigo 357° ao ter considerado a reconstituição prova fundamental dos factos que deu como provados.
Vejamos.
Dispõe o artigo 150º do CPP:
«1 - Quando houver necessidade de determinar se um facto poderia ter ocorrido de certa forma, é admissível a sua reconstituição. Esta consiste na reprodução, tão fiel quanto possível, das condições em que se afirma ou se supõe ter ocorrido o facto e na repetição do modo de realização do mesmo.
2 - O despacho que ordenar a reconstituição do facto deve conter uma indicação sucinta do seu objecto, do dia, hora e local em que ocorrerão as diligências e da forma da sua efectivação, eventualmente com recurso a meios audiovisuais. No mesmo despacho pode ser designado perito para execução de operações determinadas.»
Por sua vez, dispõe o artigo 357º do CPP, que:
1 - A reprodução ou leitura de declarações anteriormente feitas pelo arguido no processo só é permitida:
a) A sua própria solicitação e, neste caso, seja qual for a entidade perante a qual tiverem sido prestadas; ou
b) Quando tenham sido feitas perante autoridade judiciária com assistência de defensor e o arguido tenha sido informado nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do n.º 4 do artigo 141.
2 - As declarações anteriormente prestadas pelo arguido reproduzidas ou lidas em audiência não valem como confissão nos termos e para os efeitos do artigo 344.
3 - É correspondentemente aplicável o disposto nos n.ºs 7 a 9 do artigo anterior.
Na sua motivação da decisão de facto o tribunal a quo escreveu em que medida valorou a reconstituição do facto efectuada e cujo auto consta a fls. 69 a 74, do seguinte modo:
» Em sede de audiência de julgamento e já nas suas declarações finais, o arguido, que durante a produção de prova se remeteu ao silêncio, negou a prática de qualquer dos factos que lhe são imputados, referindo que, relativamente à reconstituição que fez na Polícia Judiciária, se limitou a fazer o que os inspetores lhe ordenavam por estar cansado uma vez que já era muito tarde.
(…)
» Considerou-se o auto da reconstituição levada a cabo pelo arguido em sede de inquérito, junto a folhas 67. Cumpre aqui salientar que a reconstituição do facto é um dos meios de prova típicos previstos no CPP, de que se lança mão “quando houver necessidade de determinar se um facto poderia ter ocorrido de uma certa forma” e que “consiste na reprodução, tão fiel quanto possível, das condições em que se afirma ou se supõe ter ocorrido o facto e na repetição do modo de realização do mesmo” (cf. n.º 1 do art. 150.º daquele diploma legal). A reconstituição desde que tenha sido obtida de forma legal e válida (o que ocorre no caso em apreço, dado que o arguido expressamente autorizou a sua realização e não foi assistido no ato por defensor por ter prescindido da presença do mesmo), constitui meio de prova processualmente admissível e, tal como os demais para os quais a lei não fixa um valor pré-determinado, depois de sujeita ao contraditório, há-de ser valorada de acordo com a regra da livre apreciação da prova, ou seja, “segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente” Neste sentido Ac. STJ 05.01.2005, relatado por Henriques Gaspar, no proc. 04P3276, in www.dgsi.pt., e com respeito pela regra do art. 357.º, n.º2, conjugado com o art. 356.º, n.º8, ambos do CPP. Só assim não será se tivesse sido colocada em causa a legalidade da reconstituição dos factos, o que não ocorreu no caso em apreço Neste sentido Ac. do T.R.Coimbra, de 22.09.2010, relatado por Eduardo Martins, no proc. 65/06.1GHCTB.C1, in www.dgsi.pt..
Porque a reconstituição se destina a reproduzir tão fielmente quanto possível as condições em que o facto ocorreu, é admissível que nela intervenha o arguido, sendo nesse caso imprescindível, para que possa valer como meio de prova, que ele a tal se disponha de forma inteiramente livre, sem quaisquer constrangimentos.
O contributo que o arguido preste, dentro desse condicionalismo, para a reconstituição do facto confunde-se com todos os outros colhidos para o mesmo fim, incorporando-se num meio de prova autónomo, com valor próprio e distinto dos contributos parcelares que o conformaram, e ficando, por isso, fora do âmbito de proteção do direito ao silêncio que venha posteriormente a exercer durante o julgamento Neste sentido vide Acórdãos citados nas notas anteriores.. Ainda se deve referir que, no caso dos autos, não obstante tal diligência não ter sido determinada por juiz ou magistrado do Ministério Público, tal não o impõe o artigo 150.º, n.º2 do CPP, sendo que a mesma foi levada a cabo pela Polícia Judiciária, órgão a quem competia a investigação específica do tipo de crimes em causa.
(…)
Focando-nos agora mais detalhadamente na factualidade vertida nos pontos 5. a 10., a mesma resultou assim apurada da conjugação do auto de reconstituição, realizado pelo arguido em sede de inquérito, cujo relatório se encontra junto a folhas 67 a 74, com as declarações do mesmo em sede de primeiro interrogatório judicial e dos depoimentos de Luís M. e de Luís F..
Concretizando, foi valorado positivamente o que decorre do referido auto, essencialmente o teor do relatório fotográfico junto ao mesmo, uma vez que foi corroborado pelas declarações do arguido em sede de primeiro interrogatório judicial. De facto, perscrutando as fotografias daquele auto percebe-se de imediato com clareza, quer os comportamentos do arguido e das menores (e a sua natureza) ali vertidos quer a sequência dos mesmos, nos termos em que resultaram apurados. Mas, ao ouvir as primeiras declarações do arguido durante o primeiro interrogatório judicial, o Tribunal não ficou com qualquer dúvida de que o que resulta daquelas fotografias relata no essencial o decurso dos factos, uma vez que tais declarações são coincidentes (e esclarecem) com o teor do referido relatório fotográfico. De facto, se atentarmos nas declarações do arguido perante a Mmª JIC, este, confrontado na altura apenas os factos então indiciados, os quais, à data, consistiam apenas nos que supra resultaram não provados (vide fls.103 a 106 – descrição dos factos que foram dados a conhecer ao arguido no interrogatório deste), expressivamente insurge-se de imediato contra aqueles, negando-os, começando logo por dizer que “nem entraram em casa nem nada, foi no fundo das escadas”, “para cima e para o quarto é mentira”, “elas andavam na rua e sentei-me e elas junto a mim”, “gostava de saber como aumentaram isso”.
Ora, logo destas primeiras declarações se percebe claramente que o arguido confirmou que as menores estiveram com ele, em sua casa, embora apenas nas escadas de acesso à mesma, e negou os factos que lhe foram dados a conhecer dizendo “para cima e para o quarto é mentira”.
Mas depois, logo de seguida, o arguido concretizou relativamente ao que disse ter ocorrido na zona das escadas, que (referindo-se a uma das meninas) lhe disse “estás com as calças todas mijadas. Ela baixou as calças e eu disse para ir para casa”. Mas, continuou dizendo que “levantaram as saias”, “disseram mostra lá tu também”, “não fiz nada, elas é que se encostaram a mim”, “elas começaram a pedir para mostrar o sexo, só baixei um bocadinho as calças, não mostrei nada”. Já no final da referida diligência, a instâncias do seu ilustre defensor, o arguido ainda esclareceu que “baixou as calças um bocadinho para as pôr a andar”, “uma sentou-se nas suas pernas, tinha descido as suas calças um bocadinho quando roçou, ela sentou-se na perna (…) foi só uma, a mais nova, era mais meiguinha,as miúdas estavam atiradiças”.
É certo que o arguido em audiência de julgamento negou todos os factos que lhe foram imputados, justificando que na reconstituição se limitou a colocar as bonecas tal como lhe disseram para fazer (referindo-se aos agentes policiais que ali estavam), porque estava muito cansado e queria livrar-se deles. Contudo, o arguido não convenceu o Tribunal com esta justificação uma vez que Luís M., inspetor que esteve presente na reconstituição referiu, de forma espontânea, objetiva e desinteressada, referiu que o arguido se apresentava calmo, assumiu as posições que entendeu durante a diligência, a qual foi levada a cabo numas escadas para assim se melhor esclarecer como os atos aconteceram A circunstância de não se tratar das escadas da casa do arguido, mas as das instalações da Polícia Judiciária, é inócua uma vez que para a concretização da reconstituição a lei apenas exige uma reprodução tão fiel quanto possível (cf. artigo 150.º, n.º1 do CPP), bastando-se assim, com um cenário que apresente aptidão potencial para contribuir para o esclarecimento de como os factos ocorreram (vide Santos Cabral, in Código de Processo Penal Anotado, Almedina, 2014, p.629).. Mais esclareceu esta testemunha que a diligência teve lugar na hora que consta no respetivo auto (19.00 horas). De igual modo, Luís F., especialista adjunto da Policia Judiciária que também esteve presente no ato referiu, de forma objetiva e revelando conhecimento do declarado, que o arguido apresentou durante a diligência um discurso articulado e que era quem ia indicando a forma como decorreram os factos – que a diligência foi efetuada numas escadas das instalações onde se encontravam para se adequar o cenário – e que foi descrevendo de forma natural, sem qualquer reação de nervosismo, como entendia, o desenrolar dos factos sem que algum dos presentes tivesse qualquer intervenção ou lhe sugerisse o que quer que fosse. Acresce ainda salientar que o arguido referiu na audiência de julgamento que o que disse perante a senhora Juíza de Instrução é que era a verdade.
O Tribunal também não descurou a circunstância de as menores, quer em sede de declarações para memória futura quer em audiência de julgamento, não terem referido que vivenciaram tais factos. Contudo, nos termos que infra se detalharão aquando da motivação dos factos não provados, tais depoimentos não mereceram qualquer credibilidade ao tribunal e, por tal motivo, não foram considerados, nem sequer parcialmente.
Logo, valorando essencialmente o desenvolvimento dos factos que decorre do relato fotográfico constante do auto de reconstituição, conjugado com as declarações do arguido prestadas perante a Mmª JIC – as quais, sem margem para dúvidas são esclarecedoras do relatado nas referidas fotografias –, constituindo dois meios probatórios que se “encaixam” um no outro, o tribunal não teve dúvidas em considerar que os factos decorreram nos termos dados como provados. É certo que ainda se poderia considerar as declarações que o arguido prestou aquando da referida diligência probatória, contudo, perante o referido acerbo probatório tal revela-se desnecessário, até porque não se ignora a existência de orientação, quer doutrinal quer jurisprudencial, de que apenas os atos materiais praticados na reconstituição e os correspondentes resultados factuais são atendíveis em sede probatória e não as declarações que o arguido tenha proferido no decurso da mesma Em sentido contrário, ou seja de que as declarações do arguido podem ser valoradas por se enquadrarem num meio de prova autónomo que é a reconstituição, vide Santos Cabral, in Código de Processo Penal Anotado, Almedina, 2014, p.637 e Ac. do STJ de 5.01.2005, Coletânea de Jurisprudência, 181, Tomo I/2005. . (sublinhado nosso)
De acrescentar que a prova de que o arguido acolheu as menores explorando a relação de confiança que tinha com as mesmas e a respetiva família é facto notório que decorre do conjunto dos meios probatórios já supra referidos.»
Tendo presente o extratado pelo Tribunal a quo, na sua motivação, e que deixamos reproduzido e, muito particularmente, a parte por nós sublinhada, logo se alcança que a reconstituição do facto realizada nos autos e cujo auto consta de fls. 67 a 74, não foi valorada nos termos que o arguido pretende, neste recurso.
Como resulta do compulsar do referido auto a reconstituição do facto foi realizada com recurso aos meios, previstos no artigo 150º, n.º2, do CPP, meios audiovisuais, no caso, com recurso a registo fotográfico, que visou o a dinâmica do acto processual e fixou no tempo ou “imortalizou” para efeitos de visualização futura, aquilo que se processou durante a reconstituição.
Assim, desde logo se alcança que o tribunal a quo apenas levou em conta, no que concerne à reconstituição do facto, a sequência de comportamentos – do arguido, da sua forma de estar e de interagir com as menores e destas com ele [sendo que, para o caso, não tendo sido suscitadas dúvidas sobre se cabiam todos na escada, ou se a escada existia, etc, é perfeitamente despiciendo que não tenha existido deslocação ao local, para efeitos da reconstituição] - retratados nas fotografias contidas no auto de reconstituição do facto.
E, tendo o Tribunal a quo considerado esta encenação, documentada em registos fotográficos, como fruto do livre alvedrio do arguido, como decorre do depoimento dos Inspectores da PJ, Luís M. Luís F. [no sentido de que nada obsta a que os órgão de polícia criminal prestem depoimento sobre os termos e o modo como decorreu a reconstituição do facto apontam-se os Acs. do STJ de 05.01.2005, CJ, n.º 181, pág. 159; de 20.04.2006, proc. 06P363, www.dgsi.pt; de 14.06.2006, proc. n.º 06P1574, www.dgsi.pt; do TRP, de 12.12.2007, CJ, Ano XXXII, V, pag 215; do TRC, de 1.04.2009, proc. n.º 91/04.5PBCTB.C1, www.dgsi.pt; e de 26.05.2009, proc. n.º 94/07.8GBCNT.C1], conciliou os referidos registos fotográficos [nomeadamente a já aludida sequência de actos que as fotografias retratam] com as declarações do arguido, prestadas no primeiro interrogatório de arguido, após a advertência da Mmª JIC, nos termos do artigo 141º n.º4 al. b) do CPP, essencialmente porque o arguido “referiu na audiência de julgamento que o que disse perante a senhora Juíza de Instrução é que era a verdade”
Como explicou o tribunal a quo uma prova encaixa na outra; isto é, compõe um puzzle coerente e completo, sem necessidade de explicações adicionais, pois, nas declarações do arguido, prestadas perante a Mmª JIC, encontra-se o relato oral do retratado fotograficamente na reconstituição.
Decorre da motivação de facto, que o tribunal a quo valorou a prova decorrente do auto de reconstituição do facto nestes estreitos limites e fê-lo em conjugação com as declarações do arguido, já mencionadas, que corroboram aquela e que, por isso, são com ela compatíveis – vide neste sentido o Ac STJ de 20/04/2006 Proc. n.º 06P363 in www.dgsi.pt.
Não está, assim, em causa, a valoração de afirmações ou declarações do arguido, que emirjam daquele auto de reconstituição, mas tão só a sua presença, a sua forma de estar e de interagir com as menores e destas com ele.
Portanto, o tribunal só valorou a reconstituição realizada naquilo que decorre de uma observação do registo fotográfico efectuado, pois que as fotografias obtidas durante o acto processual e que retratam a sua dinâmica se completam com as declarações do arguido prestadas num outro momento processual, independente daquela reconstituição, as primeiras declarações de arguido.
Pelo que neste contexto, mesmo para quem defende que podem ser valorados os factos que resultem da reconstituição do facto, mas não já o que o arguido disse nessa reconstituição, estando, para estes, tais declarações do arguido sujeitas ao regime dos artigos 356º e 357º do CPP, não se verifica qualquer violação do artigo 357º, n.º 2 do CPP, como pretende o recorrente, pois que não foram tidas em conta pelo tribunal a quo quaisquer declarações do arguido produzidas a propósito da reconstituição do facto, como dissemos e resulta da motivação que também deixamos reproduzida na íntegra.
Pelo exposto, improcede a questão.
*
3.2. - Analisar o acórdão em recurso a fim de verificar se padece dos vícios da contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão ou, de erro notório na apreciação da prova.
É pacificamente aceite que o recurso em matéria de facto pode ocorrer em duas vertentes: a do erro de julgamento, com impugnação da matéria de facto nos termos previstos no art. 412º, do Cód. Proc. Penal; e a dos vícios da decisão prevenidos no art. 410º n.º 2, do mesmo diploma legal, cuja enumeração consta das várias alíneas do referido artigo e número:
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão [o vício distingue-se do erro de assentamento da matéria de facto, ou da fundamentação de facto, pois, neste, evidencia-se do texto (e do contexto) da decisão que o juiz escreveu coisa diversa do que queria escrever, o teor da decisão não coincide com o que o juiz tinha em mente exarar, em suma, a vontade declarada diverge da vontade real; só existirá um vício de contradição se eliminado o erro através do expediente do artigo 380º do CPP, pelo tribunal de recurso, a contradição persistir; a contradição afirma-se como vício quando não seja suprível pelo tribunal superior e, por isso, seja insanável - o vício em causa comporta três hipóteses: contradição insanável de fundamentação; contradição entre os fundamentos e a decisão; e contradição entre os facto].
c) O erro notório na apreciação da prova [consubstancia-se na desconformidade entre factos exarados na decisão e as regras da experiência comum e da lógica corrente, de tal modo que o confronto entre os factos e aquelas regras permite que se afirme a existência de um erro notório (por reporte, para uns, ao homem médio e comum, para outros, a uma visão consequente e rigorosa da decisão no seu todo, possível, ainda que só, ao jurista) na apreciação da prova, por ser evidente que aqueles factos não se teriam podido verificar; a desconformidade também pode existir entre os factos e documentos que fazem prova plena].
Estão em causa, nesta sede, desarmonias ou incoerências da própria decisão recorrida e evidenciadas no texto respectivo, por si só, eventualmente com recurso às regras de experiência comum, mas sem recurso a quaisquer elementos estranhos à decisão, circunstância que justifica o seu conhecimento e declaração oficiosos, ainda que o recurso verse unicamente matéria de direito. Pois que, também se vem entendendo que a indagação e detecção de tais vícios é exclusivamente matéria de direito, já não assim a sua eventual correcção, que implica uma decisão sobre matéria de facto.
*
Posto isto, vejamos.
§1º- Sustenta o recorrente que o acórdão contém contradição insanável entre a fundamentação e a decisão (art. 410º nº 2 b) do C.P.P.) na medida em que a fundamentação deveria conduzir a uma decisão contrária àquela que foi tomada. Mais defende que da análise aos exames periciais juntos aos autos, das declarações do arguido e das vítimas e de outras testemunhas resulta contradição insanável na medida em que os exames periciais não comprovam nem indiciam a autoria do recorrente, nem tão pouco atestam lesões ou sequelas recentes e compatíveis temporalmente com os factos. Mais argumenta que no mais, aludem também à pouca credibilidade das vítimas que em declarações para memória futura mereceram por parte do perito a conclusão de inverosímeis sendo de registar a total ausência de sinais/lesões/sequelas/indicadores deste tipo de crime e por último o depoimento da testemunha progenitor da menor Erica que veio esclarecer que a menor já havia sido abusado pelo padrasto. A sufragar tudo isto, não podemos olvidar o depoimento da própria vítima que inocenta o arguido dando o dito por não dito, corroborando a análise clínica médico-legal efectuada sobre os factos e a sua personalidade
Compulsando o texto da decisão e apenas este, pois tudo o que dele extravasa se relaciona já com o erro de julgamento, que não foi invocado, verificamos que o recorrente não atentou de forma criteriosa na motivação da decisão de facto onde se faz uma motivação diferenciada relativamente aos factos provados, factos 1 a 10 dos factos provados, e dos factos não provados, sendo que era nestes que eram imputadas ao arguido as condutas mais graves, muito mais graves do que aquelas que foram dadas por provados, e a falta de prova relativamente a estas condutas, que estão consubstanciadas nos factos não provados, resultou da conciliação de todas as provas que o arguido enumera, com a devida motivação lógica e coerente com o não provado.
O tribunal deu como não provado que o arguido tivesse mantido relações de cópula com qualquer uma das menores, tendo dado por provado que o arguido manteve com as menores actos sexuais consubstanciados, quanto à menor E..., em esta sem cuecas, se ter sentado no colo do arguido, sofrendo contacto do pénis do arguido, que havia baixado as respectivas calças, na respetiva zona genital e ainda em o arguido ter beijado a E... junto à zona genital desta; e quanto à menor C..., em esta também sem cuecas, se ter sentado no colo do arguido, sofrendo o contacto do pénis do arguido na respetiva zona genital.
Assim, lida a decisão nela não se encontra qualquer contradição entre factos, ou entre estes e a decisão ou mesmo qualquer contradição na fundamentação.
Pelo que é de improceder o invocado vício da contradição insanável.
*
§2º- Sustenta o recorrente que se verifica erro notório na apreciação da prova (art. 410° n° 2 c) do C.P.P.) uma vez que o tribunal efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. Pois, diz, que dos relatórios de perícia médico legais realizados às vítimas não resulta quem tenha sido o autor dos factos, nem tal se pode depreender. Mais aduz que do relatório à menor que apresentava soluções de continuidade cicatrizadas tão pouco consta data provável das lesões/sequelas e foi declarado pelo pai da mesma que esta já havia sido vítima de abuso sexual por parte do padrasto. Mais argumenta que o acórdão atenta contra as regras da lógica ao dar como provado nos pontos 11 e 12 que as soluções de continuidade cicatrizadas, foram consequência de actos levados a cabo pelo recorrente, o que não pode conceder, atenta a prova em sentido contrário. Por isso, conclui que, em obediência ao princípio “in dubio pro reo”, deveria ser o arguido absolvido da prática dos crimes pelos quais foi condenado.

Vejamos.
O Tribunal a quo deu como provado no facto 11:Realizado exame médico-legal à menor E..., foi verificado que a mesma tinha “soluções de continuidade cicatrizadas, incompleta às 7 horas no esquema do mostrador do relógio, apresentando uma permeabilidade com comprimento do dedo indicador da perita”.
Tal facto, resulta da observação e juízo de natureza técnica e científica efectuada pelo examinante – médico – no exame médico-legal realizado na pessoa da menor E... e cujo relatório se encontra a fls. 206 a 208, é um facto que por constar da acusação e o juízo de natureza técnica se presumir subtraído à livre apreciação do julgador só podia o julgador dele divergir desde que fundamentasse tal divergência e tivesse razões para dele divergir, nos termos do art. 163.º, n.ºs 1 e 2, do CPP, não havendo razões para dele divergir tal facto tinha de constar como provado.
Bem diferentes são as coisas relativamente à autoria relacionada com as lesões observadas no íman da ofendida E... visto que, como decorre dos factos e da motivação, não há qualquer ligação desses factos ao aqui recorrente, como decorre da motivação onde o próprio pai da E... referiu em audiência que a menor tinha sido sexualmente abusada pelo padrasto, que já havia sido por isso julgado e, por isso, e dada a falta de prova que evidenciou o tribunal deu como não provado que o arguido tivesse mantido relações de cópula com qualquer uma das menores.
É, por isso, relevante fazer aqui apelo ao seguinte segmento da motivação: “É certo que, relativamente a E..., o Tribunal dispõe de outro elemento de prova, ou seja o relatório de perícia de natureza sexual (cf. fls.206 a 208). Aquando da realização desse exame, em 11.07.2014, aquela apresentava os vestígios que aí são descritos, mais concretamente a nível da região genital e peri-genital: “Hímen: Soluções de continuidade cicatrizadas: incompleta às 7 horas no esquema do mostrador de relógio. Soluções de continuidade recentes: não apresenta.”. Temos assim, a existência de lesões compatíveis com relações sexuais anteriores de E..., tomando-se em consideração o que resulta deste relatório, mas não o seu autor, nem se as mesmas foram efetivamente produzidas da forma descrita na acusação. Aliás sobre a não prova de que foi o arguido quem manteve relação sexual de cópula com E..., além do que já se expressou, não pode ser alheio também o facto revelado pela testemunha André L., seu pai, que referiu que a mesma tinha sido abusada sexualmente pelo padrasto, o qual já foi julgado, após o que a menina passou a viver consigo.”
Por conseguinte, em lugar algum do acórdão sob escrutínio se escreve ou afirma que as soluções de continuidade cicatrizadas que a menor E... apresentava ao ser examinada, foram consequência de actos levados a cabo pelo recorrente, muito pelo contrário, a última parte da motivação é exactamente para explicar as razões pelas quais, embora tenham sido observadas essas lesões se dá como não provada a autoria pelo recorrente dos factos concernentes.
Os crimes pelos quais foi condenado o arguido, aqui recorrente, como já anteriormente referimos, não têm qualquer apoio fáctico no facto provado sob o n.º 11 dos factos provados, pelo que, assim, não faz qualquer sentido, fazer apelo ao uso do princípio in dubio pro reo, visando a absolvição do arguido dos crimes cometidos por não se ter provado a autoria pelo recorrente das lesões que a menor E... apresenta no íman. É que, pela falta de prova dessa autoria já o arguido foi absolvido dos demais factos que lhe vinham imputados relativamente a esta menor.
Não se vislumbra no texto da decisão qualquer erro notório na apreciação da prova, pelo que improcede a questão.
*
3.3. - Averiguar da suspensão da pena de prisão aplicada ao arguido, aqui recorrente.
Sustenta o recorrente para efeitos do artigo 50º do C.P. que todo o circunstancialismo relativo às razões de prevenção aponta para um juízo de prognose favorável que poderia e deveria ter levado o tribunal a optar pela suspensão da execução da pena de prisão. Assim, enumera: o recorrente é pessoa de idade avançada, sendo este o primeiro contacto com a justiça, não possuindo quaisquer antecedentes criminais; Sofre sentimento de vergonha desde a sua reclusão; Não existem processos pendentes ou notícia de que o arguido possa estar envolvido noutras actividades delituosas; A reclusão de que está a ser alvo, permitiu-lhe interiorizar desvalor da conduta, e tem em nosso entendimento a virtualidade de o dissuadir da prática de novos crimes; É pessoa estimada no meio em que insere, tendo a situação causado surpresa. Conclui não poder concluir-se por um juízo de prognose desfavorável com os elementos constantes dos autos, nomeadamente lançando mão apenas do facto do recorrente não ter confessado a prática dos crimes que se lhe imputavam.
O Tribunal a quo fundamentou a não suspensão da execução da pena, do seguinte modo:
« ..Uma vez que a pena única a aplicar ao arguido é superior a dois anos e inferior a cinco anos de prisão, a única pena de substituição suscetível de aplicação é a prevista no artigo 50.º do Código Penal, cujo n.º 1 dispõe que “o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”. O período de suspensão tem duração igual à da pena de prisão determinada na sentença, mas nunca inferior a um ano (n.º 5 do mesmo normativo).
Conforme se decidiu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31.01.2008 Proc. 07P4573, em www.dgsi.pt., “face a este texto, deve entender-se, e tem-se entendido, que a suspensão da execução da pena se insere num conjunto de medidas não institucionais, que, não determinando a perda da liberdade física, importam sempre uma intromissão mais ou menos profunda na condução da vida dos delinquentes, pelo que, embora, funcionem como medidas de substituição, não podem ser vistas como formas de clemência legislativa, pois constituem autênticas medidas de tratamento bem definido, com uma variedade de regimes aptos a dar resposta adequada a problemas específicos”.
Na suspensão da execução da pena não estão em causa considerações de culpa, mas apenas de prevenção geral, sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico, e de prevenção especial. Perante um prognóstico favorável nos termos do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, são considerações de prevenção especial que determinam a socialização do arguido em liberdade, por dessa forma se lograr alcançar a finalidade reeducativa e pedagógica, pela ameaça da pena, e ser adequada e suficiente às finalidades da punição Vide o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.03.2007, Proc. 07P797, em www.dgsi.pt..
Descendo ao caso vertente, importa avaliar se deve ou não ser objeto de suspensão a execução da pena única de três anos e seis meses de prisão aplicada ao arguido pela prática, em autoria material e na forma consumada, de dois crimes de abuso sexual de crianças, ambos p. e p. pelo art. 171.º n.º 1 do Código Penal.
Ora, atendendo à personalidade do arguido, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, somos de concluir que a simples censura do facto e ameaça da prisão não realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Estamos perante um individuo com um passado criminal que lhe é favorável, já que não apresenta antecedentes criminais registados, revelando um passado de fidelidade ao direito e às leis pelas quais se rege a sociedade. Por outro lado, positivamente, temos que o arguido se mostra familiar e socialmente integrado, apresentando, ainda, uma modesta condição económica. No entanto, este circunstancialismo não foi suficiente para o demover ou desmotivar de cometer os crimes. Ao que acresce que, como é consabido, trata-se de uma característica comum às situações de pedofilia que acabam por chegar aos tribunais: os pedófilos são habitualmente pessoas bem inseridas no seu meio familiar e social e sem história criminal, o que os torna potencialmente ainda mais perigosos.
Contudo, não obstante os mencionados aspetos favoráveis ao arguido, não se pode descurar que este, em audiência de julgamento, não evidenciou capacidade de análise crítica face à natureza dos factos em discussão nestes autos. Aliás, decorreu com evidência, atenta as suas declarações finais prestadas em audiência de julgamento, que o arguido não interiorizou minimamente o desvalor das suas censuráveis e graves condutas, já que não demonstrou qualquer arrependimento pelo seu comportamento, optando por negá-lo, o que é revelador da sua falta preparação para manter um comportamento futuro conforme à lei, nomeadamente de se abster de cometer crimes de natureza semelhante aos dos presentes autos.
Acresce que, para além da personalidade do arguido caminhar ao arrepio da satisfação das finalidades da punição, as circunstâncias do crime não se coadunam com a simples censura do facto e ameaça de prisão, tomando em consideração, primordialmente, o modo da sua execução e a idades das vítimas.
E, como supra foi referido, estamos perante um crime com forte repercussão negativa na sociedade, causador de um grande alarme e reprovação social. E, perante tal, a sociedade espera do sistema judiciário uma resposta firme, perentória e severa, em prol do combate a tal flagelo.
Por outro lado, atenta a natureza dos crimes – abuso sexual de crianças -, estamos perante uma situação de pedofilia, por parte do arguido, a qual tem uma natureza predominante de comportamento compulsivo, o que leva a recear que o arguido em liberdade prossiga na sua atividade criminosa.
Para a suspensão da execução da pena de prisão não basta um juízo de prognose relativamente ao comportamento futuro do arguido, exigindo-se, ainda, que a suspensão da execução não comprometa as finalidades precípuas da pena, qual seja a proteção dos bens jurídicos.
Ora, a pena de prisão efetiva deve ser a regra para os crimes que se posicionam no segmento da criminalidade mais gravosa, especialmente os crimes contra as pessoas e, em geral, os que integram a designada “criminalidade violenta” e “criminalidade altamente organizada”. Sendo que nos crimes contra as pessoas integram-se os crimes pelos quais o arguido ora vai ser condenado de gravidade assinalável.
As fortes exigências preventivas, sobretudo as de prevenção geral, que os crimes de abuso sexual de crianças suscitam não ficam, adequada e suficientemente, satisfeitas com a simples ameaça da pena e isso se justifica que, normalmente, as penas de prisão são efetivas.
A suspensão da execução da pena de prisão no crime de abuso sexual de crianças só deve ser determinada em casos muito particulares uma vez que a manutenção dos pedófilos em liberdade colide frontalmente com as exigências de prevenção geral.
Pelo que, atento tudo o exposto, afigura-se-nos que a censura do facto praticado e a ameaça da prisão não são suficientes para advertir o arguido contra a prática de novos crimes: existem razões de relevo que alicerçam a conclusão de que a simples censura do facto e a ameaça da pena não se afiguram suficientes para o afastar da criminalidade e satisfazer as necessidades de prevenção.
Neste caso não vislumbramos particulares e excecionais razões que justifiquem a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido, pois que a suspensão da execução da pena de prisão não permite a reafirmação da norma jurídica violada junto da comunidade, já que esta – como já se referiu - seguramente não compreenderia a suspensão da execução da pena de prisão em face de tão elevado grau de ilicitude e de censurabilidade ético-jurídica, dado o alarme social e a repulsa inerente aos crimes de abuso sexual de crianças, pelo que, em concomitância, não responde com eficácia às suas expectativas, comprometendo as finalidades precípuas da pena.
Termos em que, face a tudo o exposto, consideramos não estarem verificados os pressupostos de que depende a suspensão da execução da pena, por não se revelar um juízo de prognose favorável ao afastamento do arguido da prática de outros crimes pela mera censura do facto e ameaça da execução da pena de prisão, concluindo-se ser necessário para realizar as finalidades da punição que o mesmo cumpra efetivamente a pena de prisão aplicada, motivo pelo qual se decide não suspender a execução da pena de três anos e seis meses de prisão aplicada ao arguido.»

Vejamos.
Fixada a medida da pena única em três anos e seis meses de prisão, há que ponderar a eventual aplicação de pena de substituição, concretamente a de suspensão da execução da prisão, prevista no artigo 50º, n.º 1, do Código Penal.
Nos termos do art. 18º, n.º2, da CRP qualquer restrição em matéria de direitos, liberdades e garantias pessoais, terá de se circunscrever ao necessário para salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
Tal significa que em matéria de privação da liberdade, mais concretamente de aplicação de pena de prisão, esta só é admissível quando se mostrar, adequada, necessária e proporcional (não excessiva).
Daqui que a lei substantiva penal em matéria de aplicação das penas estabeleça um critério geral de escolha e de substituição, segundo o qual o tribunal deve preferir à pena privativa da liberdade uma pena alternativa ou de substituição sempre que, verificados os respectivos pressupostos de aplicação, a pena alternativa ou de substituição se revele adequada e suficiente à realização das finalidades da punição.
Quanto aos fins visados pelo instituto, ensina o Prof. Figueiredo Dias que, “A finalidade político-criminal que a lei visa com o instituto da suspensão é clara e terminante: o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes (…)Ou, como porventura será preferível dizer, decisivo é aqui o «conteúdo mínimo» da ideia de socialização, traduzida na «prevenção da reincidência».” (ob. cit., 343).
Fundamentam o instituto da suspensão da execução da pena de prisão razões de prevenção, geral e especial, e não considerações relativas à culpa (como sucede aliás, com todas as operações de escolha das penas de substituição). Mas os objectivos de prevenção especial, de reinserção social do agente, têm sempre como limite o conteúdo mínimo da prevenção geral de integração. Ensina o Prof. Figueiredo Dias, quanto a este aspecto e relativamente à prevenção geral que, “Ela deve surgir aqui unicamente sob a forma do conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico, como limite à actuação das exigências de prevenção especial de socialização. Quer dizer: desde que impostas ou aconselhadas à luz das exigências de socialização, a pena alternativa ou a pena de substituição só não serão aplicadas se a execução da pena de prisão se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias.” (ob. cit., 333).
Por sua vez, a jurisprudência tem vindo a acentuar que a suspensão da pena é uma medida penal de conteúdo pedagógico e reeducativo que pressupõe uma relação de confiança entre o tribunal e o arguido, estando na sua base um juízo de prognose social favorável ao condenado [Ac. do STJ de 2002/Jan./09 (Recurso n.º 3026/01-3.ª) e 2007/Out./18, (Recurso n.º 3185/07) divulgados, respectivamente, em http://www.stj.pt e www.colectaneadejurisprudência.com)].
Tal juízo deverá assentar num risco de prudência entre a reinserção e a protecção dos bens jurídicos violados, reflectindo-se sobre a personalidade do agente, as suas condições de vida, a sua conduta “ante et post crimen” e sobre todo o circunstancialismo envolvente da infracção.
Para o efeito, será de atender que a pena de prisão suspensa, sujeita ou não a certas condições ou obrigações, é a reacção penal por excelência que exprime um juízo de desvalor ético-social e que não só antevê, como propicia ao condenado, a sua reintegração na sociedade, que é um dos vectores dos fins das penas (função de prevenção especial de reinserção ou positiva).
Porém, outros dos seus vectores é a protecção dos bens jurídicos violados e, naturalmente, a protecção da própria vítima e da sociedade em relação aos agentes do crime, de modo que, responsabilizando suficientemente estes últimos, se possa esperar que os mesmos não venham a adoptar novas condutas desviantes (função de prevenção especial defensiva ou negativa).
Assim, a lei penal, no seu artigo 50º, n.º1, do C.P., manda suspender a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Resulta do disposto no artigo citado que o pressuposto material [o pressuposto formal é (actualmente) a aplicação de pena de prisão não superior a 5 anos] da aplicação do instituto da suspensão da execução da pena de prisão é a possibilidade de o tribunal concluir pela formulação de um juízo de prognose favorável ao agente, no sentido de que, atenta a sua personalidade, as condições da sua vida, a sua conduta anterior e posterior ao crime e as circunstâncias deste, a simples censura do facto e a ameaça da prisão – acompanhadas ou não da imposição de deveres, regras de conduta ou regime de prova – realizarão de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição.
O juízo de prognose a realizar pelo tribunal, elemento fundamental do funcionamento do instituto, parte da análise das circunstâncias do caso concreto – das condições de vida e conduta anterior e posterior do agente, conjugadas e relacionadas com a sua revelada personalidade –, operação da qual resultará como provável, ou não, que o agente sentirá a condenação como uma solene advertência, ficando a sua eventual reincidência prevenida com a simples ameaça da prisão, para concluir ou não, pela viabilidade da sua socialização em liberdade.
No caso em apreço, há que ter em conta a ausência de antecedentes criminais registados, o que revela que o arguido- nascido a …, actualmente com 77 anos de idade -, conduziu a sua vida de modo exemplar, em conformidade ao direito e às leis pelas quais se rege a sociedade;
- O comportamento do arguido após os factos em causa nestes autos, já que não ficou demonstrado que o mesmo tenha praticado novos factos ilícitos típicos;
- As suas condições de vida, nela se incluindo as suas habilitações literárias – 4º ano de escolaridade, concluído em adulto - as condições sociais – oriundo de um agregado familiar de modesta condição socioeconómica – familiares - divorciado com duas filhas maiores, tendo relacionamento e apoio familiar próximo com dois irmãos e a com a filha mais nova - e económicas – vive da sua reforma e da exploração de propriedades herdadas da família, em cujas tarefas agrícolas se vinha ocupando mas devido à idade e inerentes patologias associadas, vem progressivamente delegando em terceiros.
- É indivíduo estimado e considerado no meio em que vive, prestou durante o processo, como resulta da motivação do acórdão, prestimosa colaboração para a descoberta da verdade material.
- Carrega um sentimento de vergonha associado aos factos, meio caminho para o arrependimento.
- Tem consciência da ilicitude.
Assim, perante a personalidade do recorrente supra revelada nos factos provados de onde sobressai a ausência de antecedentes criminais, mormente quando à data dos factos tinha entre 73 e 74 anos de idade, e as circunstâncias do caso, entendemos ser possível fazer um juízo de prognose positivo de que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizarão de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição e que o recorrente no futuro se absterá de condutas violadores de bens jurídicos, mormente quando essa suspensão da pena seja acompanhada de regime de prova, nos termos do artigo 53º, n.º1 do CP, por um tal regime se considerar conveniente e adequado a promover a reintegração do recorrente, nomeadamente para incutir uma maior consciencialização sobre o bem jurídico violado.
Ao contrário da decisão sob apreciação afigura-se-nos que à suspensão da execução da pena de prisão não se opõem necessidades de reprovação e de prevenção do crime. Isto é, entendemos que não há considerações de prevenção geral, sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis do ordenamento jurídico, que imponham a execução da pena de prisão.
Entendemos ser, portanto, de suspender a pena de prisão aplicada, por o juízo de prognose realizado ser positivo, favorável ao arguido e dele se concluir como provável que o agente sentirá a condenação como uma solene advertência, ficando a sua eventual reincidência prevenida com a simples ameaça da prisão.
Procede, assim, a última questão posta, com a suspensão da pena de prisão aplicada, ainda que sujeita a regime de prova.
Pelo exposto, procede parcialmente o recurso com a suspensão da pena de prisão imposta pelo período de 3 anos e 6 meses sujeita a regime de prova.
*
III- Decisão.

Pelo exposto, acordam os juízes desta secção do Tribunal da Relação de Guimarães em dar parcial provimento ao recurso interposto pelo recorrente Luciano M., suspendendo a execução pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão aplicada ao arguido, por igual período de tempo, com sujeição do arguido a regime de prova, mantendo-se no mais o acórdão recorrido.
*
Sem custas.
*
Notifique.
*
Processado em computador e revisto pela Relatora – artigo 94º, n.º 2, do CP.P.
Guimarães, 11 de Janeiro de 2016.

[Maria Dolores Silva e Sousa – Relatora]

[Fernando Monterroso – Adjunto]