Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5978/19.8T8VNF-A.G1
Relator: JOAQUIM BOAVIDA
Descritores: EMBARGOS DE EXECUTADO
NULIDADE DE SENTENÇA
CONTRATO DE CRÉDITO – INCUMPRIMENTO PELO CONSUMIDOR
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
PERSI
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1 – Em caso de incumprimento do contrato de crédito pelo consumidor, estando em dívida prestações sucessivas que não excedem 10% do montante total do crédito, a instituição de crédito não pode resolver o contrato.
2 – A não comunicação aos consumidores clientes bancários da sua integração no PERSI (Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento) e da extinção do procedimento impede a instituição de crédito de resolver o contrato de crédito com fundamento em incumprimento e de intentar ações judiciais tendo em vista a satisfação do seu crédito.
3 – As normas que consagram a obrigatoriedade das comunicações da integração do cliente bancário no PERSI e da extinção deste têm carácter imperativo e estabelecem condições objectivas de procedibilidade, que operam, na sua ausência, como excepções dilatórias atípicas ou inominadas, de natureza insuprível e de conhecimento oficioso, conduzindo, no caso de se verificarem os respectivos pressupostos, à absolvição da instância – arts. 576º, nº 2, 578º e, especificamente quanto à acção executiva, 726º, nº 2, al. b), do CPC.
4 – Não constitui abuso do direito a invocação por consumidores clientes bancários de tais normas no âmbito da acção executiva contra si instaurada, numa situação em que “deixaram de cumprir as suas obrigações” em 30.12.2018, emergentes de contrato de crédito celebrado em 05.06.2002 para aquisição de habitação própria permanente, aquando da interpelação para pagamento (em 02.07.2019) deviam € 1.514,03, a resolução foi operada por comunicação de 11.09.2019, a execução foi instaurada em 25.09.2019 e em 21.04.2021 a dívida cifrava-se apenas em € 994,59, quando no período do incumprimento fizeram vários pagamentos de montantes em dívida e a instituição de crédito, para além da postura activa de interpelação para pagamento e de diligência para recuperar o crédito, limitou-se a esperar que fosse “convocada” pelos clientes bancários em dificuldades e a “analisar” as propostas que estes lhe fizeram chegar, sem integrar os consumidores no PERSI e cumprir as respectivas obrigações.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães (1):

I – Relatório

1.1. Por apenso à execução para pagamento de quantia certa que a Caixa … move a A. J. e O. P., vieram os Executados deduzir oposição mediante embargos, formulando os seguintes pedidos:
«a) Deve ser julgada verificada a excepção dilatória inominada de falta de integração dos créditos dos Embargantes no PERSI, e determinar-se a extinção da execução, com todas as legais consequências; ou, caso assim não se venha a entender,
b) Deve ser julgada verificada uma verdadeira falta de condição objectiva de procedibilidade que deve ser enquadrada, com as necessárias adaptações, no regime jurídico das excepções dilatórias, e que deve culminar na absolvição dos Embargantes da instância, ou, caso assim não se venha a entender,
c) Devem os presentes Embargos serem julgados procedentes quanto à não verificação das condições contratualizadas para a resolução do contrato de mútuo nº 100-......-2 e, em consequência, ser declarar extinta a presente execução, com todas as legais consequências;
d) Caso o acima não tenha colhimento, deve a presente execução ser declarada improcedente, por verificação dos pressupostos do instituto do abuso de direito,
e) E, até que seja proferida a Douta Sentença, de imediato deve o prosseguimento da instância Executiva ser suspenso, termos da al. c) do nº 1 do artigo 733º do Código de Processo Civil».
Para o efeito, alegaram a excepção de falta de integração obrigatória dos Embargantes no Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI), a não verificação das condições contratualizadas para a resolução do mútuo nº 100-......-2 e o abuso do direito.
*
Contestou a Exequente, concluindo pela improcedência dos embargos.
*
1.2. Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho-saneador, definido o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.
*
1.3. Realizada a audiência de julgamento, proferiu-se sentença a julgar totalmente improcedente a oposição à execução mediante embargos e a ordenar o prosseguimento da execução.
*
1.4. Inconformados, os Embargantes interpuseram recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:
«1. A ora Recorrida, enquanto entidade bancária, intentou execução contra os ora Recorrentes, pessoas singulares, tendo como título dois contratos de mútuo (crédito habitação própria permanente n.º ..........-4 e crédito Outras Finalidades N.º 100-......-2), que a Recorrida decidiu resolver.
2. Os Recorrentes reagiram àquela execução, através de Embargos de Executado, com o fundamento na não exigibilidade da dívida por a Embargada ora Recorrida não ter integrado os créditos que estava a executar no PERSI, pela não verificação das condições contratualizadas para a resolução do contrato de mútuo n.º 100-......-2, nomeadamente na cláusula 17º daquele contrato, e, por fim, pelo abuso de direito na actuação da Embargada.
3. Nos Embargos de Executado foi peticionada a verificação da excepção dilatória inominada de falta de integração dos créditos dos Embargantes no PERSI, ou, caso assim não se viesse a entender, a verificação de uma verdadeira falta de condição objectiva de procedibilidade por não integração no PERSI a ser enquadrada, com as necessárias adaptações, no regime jurídico das excepções dilatórias, ou, caso assim não se viesse a entender, a procedência dos Embargos quanto à não verificação das condições contratualizadas para a resolução do contrato de mútuo n.º 100-......-2, ou, caso tal não tivesse colhimento, a improcedência da execução por verificação dos pressupostos do instituto do abuso de direito na actuação da Embargada
4. Por Douta Sentença proferida em 19 de Julho de 2021, declarou o Meritíssimo Juiz de 1ª Instância o prosseguimento da execução, julgando os embargos de executado improcedentes, decisão da qual recorrem os Embargantes, ora Recorrentes, por dela não concordar, tendo o presente Recurso como objeto o teor da Douta Sentença acima identificada quanto à interpretação do Direito, e omissão de pronúncia.
5. Quanto à FALTA DE INTEGRAÇÃO OBRIGATÓRIA DOS EMBARGANTES NO PROCEDIMENTO EXTRAJUDICIAL DE REGULARIZAÇÃO DE SITUAÇÕES DE INCUMPRIMENTO (PERSI), o Tribunal a quo decidiu como não provado que a Embargada tenha informou os Embargantes da faculdade de iniciar o PERSI e respetivas condições para o seu exercício
6. Na Motivação quanto à matéria de facto, o Julgador a quo, concluiu, bem, que “… se nos afigura que a embargada não logrou fazer a prova que lhe competia da integração os executados no PERSI”.
7. O Julgador a quo, escreveu, bem, que “A falta de integração do cliente bancário no PERSI quando reunidos os respectivos pressupostos, constitui impedimento legal a que a instituição de crédito intente acções judiciais tendo em vista a satisfação do seu crédito”.
8. E ainda que que “A instituição bancária só poderá intentar acção judicial contra o devedor mutuário após a extinção do PERSI”.
9. Ainda assim, estranhamente, concluiu que configura um claro abuso de direito por parte dos Embargantes a invocação do PERSI, e que a execução deveria prosseguir.
10. Em suma, apesar de não ter sido provada a integração dos Embargantes, aqui Recorrentes, no PERSI, e apesar do Julgador entender, bem, que a falta de integração no PERSI constitui um impedimento legal a que a instituição de crédito intente acções judiciais tendo em vista a satisfação do seu crédito, entendeu declarar improcedentes os Embargos.
11. Salvo melhor entendimento, entendem os Recorrentes que o Julgador de 1ª Instância decidiu mal a questão suscitada, pelo que, se impugna a sua decisão quando a esta matéria de Direito.
12. Tal como preconiza o Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de Outubro, a Recorrida deveria, para além de informar os Recorrentes da situação de mora e dos montantes vencidos em dívida, procurar obter informações acerca das razões subjacentes ao incumprimento. – fase inicial do PERSI.
13. Caso o incumprimento se mantivesse, os Recorrentes teriam de ser obrigatoriamente integrados no PERSI entre o 31º dia e 60º dia seguintes ao do início da mora.
14. A Recorrida tinha conhecimento que os Recorrentes sempre cumpriram com as suas obrigações até ao final do ano de 2018, pelo que, se a partir dessa data os Recorrentes começaram a ter dificuldade em cumprir as prestações, a Recorrida deveria ter obrigatoriamente integrado os Recorrentes no PERSI, o que de facto não aconteceu.
15. Se tivessem sido integrados no PERSI, a Recorrida conseguiria apurar, na segunda fase, se o incumprimento era pontual ou temporário, ou se, pelo contrário, correspondia a uma incapacidade continuada de os Recorrentes cumprirem com as obrigações.
16. Posteriormente, a Recorrida deveria comunicar aos Recorrentes o resultado da avaliação desenvolvida, bem como uma ou mais propostas de regularização, adequadas à sua situação financeira, objetivos e necessidades, que poderia passar por uma das soluções previstas no artigo 15.º n.º 4 Decreto-Lei n.º 227/2012 de 25 de Outubro),
17. Não se pode confundir a integração no PERSI com a mera disponibilidade da Embargada para analisar as propostas extrajudiciais de acordo de pagamentos que os mesmos faziam.
18. Nem corresponde à verdade que a Embargada ora Recorrido tenha tentado manter os contratos em incumprimento durante mais de um ano.
19. Ficou aliás provado que as datas do início do incumprimento foram 01.10.2018 e 30.05.2019, relativamente ao contrato n.º ..........-4 e n.º 100-......-2, respectivamente, e a data de resolução de tais contratos foi em 11.09.2019.
20. Ora, tal hiato temporal não perfaz mais de um ano, e durante tal período os Recorrentes foram entregando quantias para regularização dos créditos (veja-se os pontos nºs 29, 33, 34 e 36 da Fundamentação de Facto da Douta Sentença).
21. Para além do mais, os valores das prestações em dívida, à data da resolução contratual, eram de € 1.514,03 e € 913,76, acrescido de mais uma prestação cada, respeitante a cada contrato, correspondentes ao período de tempo identificado supra, ou seja, estavam reunidas todas as condições para identificar este incumprimento como temporário e para incluir os Recorrentes no PERSI.
22. Certo é que, a integração dos Recorrentes no PERSI poderia tê-los ajudado a sair do incumprimento em que se encontravam.
23. O que é manifestamente distinto de estar disponível para analisar propostas extrajudiciais de acordo de pagamentos, de efectuar tentativas de contactos telefónicos ou de enviar cartas de interpelação.
24. Assim sendo, consideramos que não é por os Recorrentes terem apresentado propostas extrajudiciais para pagamento dos valores em atraso, que a Recorrida ficaria dispensada do cumprimento da obrigação legal a que estava adstrita.
25. Na verdade, era a Recorrida que deveria ter a iniciativa de apresentar propostas de regularização da dívida, assim que os tivessem integrado no PERSI.
26. A Jurisprudência é pacífica no entendimento que a falta de integração dos executados ao regime previsto em PERSI constitui um pressuposto processual de condição de procedibilidade para a propositura da própria execução, pois, na ausência desse prévio procedimento, fica o autor/exequente impedido de intentar ações judiciais tendo em vista a satisfação do seu crédito - a título exemplificativo, destacamos os Acórdãos do TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES de 21 de Janeiro de 2021 (processo n.º 2711/15.7T8GMR-C.G1, relatora Lígia Venade), de 29 de Outubro de 2020 (processo n.º 6/19.6T8GMR-A.G1, relatora Raquel Batista Tavares) e de 30 de Janeiro de 2020 (processo n.º 5520/18.8T8VNF-A.G1, relator Alcides Rodrigues).
27. Veja-se também, a este propósito, o entendimento sufragado pelos recentes Acórdãos nº 6023/15.8T8OER-A.L1.S1, de 19/05/2020, e 1311/19.7T8ENT-B.E1.S1, de 13/04/2021, proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça.
28. Em conclusão, entendemos que só após a integração, negociação, e consequente extinção do PERSI, nos termos do artigo 17.º do Decreto-Lei n.º 227/2012 de 25 de Outubro, poderia a aqui Recorrida recorrer à via judicial.
29. Não se denota qualquer abuso de direito por parte dos Embargantes, ambos pessoas singulares, mutuários em dois contratos, quando o que fizeram foi tentar regularizar a dívida ou efectuar pagamentos de modo a diminuir os valores em dívida.
30. Acresce que, o Julgador de 1º Instância não fundamentou como determinou que a actuação dos Embargantes configuraria um abuso de direito, o que nem foi alegado pela Recorrida aquando da sua Contestação.
31. Não foram os Recorrentes que recusaram ou evitaram serem integrados no PERSI.
32. À data da resolução de um contrato celebrado em 2002 e que duraria 28 anos existiam, no máximo, 6 prestações em atraso.
33. À data da resolução do outro contrato, celebrado em 2007 e que duraria 5 anos existiam, no máximo, 4 prestações em atraso.
34. Para que ocorra o abuso do direito, o excesso deve ser manifesto.
35. Assim, perante a completa falta de integração obrigatória dos Embargantes no PERSI, a Recorrida não poderia ter instaurado a execução, por força do disposto no artigo 18º, nº 1, al. b) do Decreto-Lei n.º 227/2012 de 25 de Outubro, e deve o Tribunal ad quem revogar a Sentença, por violação dos artigos 12º a 18º deste diploma legal.
36. Deverá antes ser proferida Decisão que julgue verificada uma excepção dilatória inominada, assim não se venha a entender, julgar verificada uma verdadeira falta de condição objectiva de procedibilidade que deve ser enquadrada, com as necessárias adaptações, no regime jurídico das excepções dilatórias e, consequentemente, julgar procedentes os Embargos pelos Recorrentes deduzidos.
37. Sem prescindir nem conceder quanto ao supra exposto, a Recorrente entende que a Sentença proferida em 1º Instância é NULA POR OMISSÃO DE PRONÚNCIA QUANTO À NÃO VERIFICAÇÃO DAS CONDIÇÕES CONTRATUALIZADAS PARA A RESOLUÇÃO DO CONTRATO DE MÚTUO N.º 100-......-2, atento o preceituado nos artigos 607.º, n.º 4, e 615.º, n.º 1, alíneas c) e d), do Código de Processo Civil (CPC), por obscuridade e omissão de pronúncia sobre uma questão que deveria ter sido apreciada, e que foi invocada nos Embargos de Executado.
38. O Juiz a quo determinou como provado o teor da cláusula 17º do contrato de mútuo n.º 100-......-2, mais acrescentando que o mesmo decorre do artigo 20.º do Decreto-Lei n.º 113/2009, de 02 de Junho, teor esse onde se estipula que a “CAIXA ... [Recorrida] reserva-se ao direito de proceder à resolução imediata do mesmo e ao vencimento antecipado da obrigação de reembolso, exigindo o pagamento imediato da dívida se, cumulativamente, ocorrerem as circunstâncias seguintes: a) a falta de pagamento de duas prestações sucessivas que exceda 10% (dez por cento) do montante total do crédito; b) Ter a CAIXA ..., sem sucesso, concedido à PARTE DEVEDORA, um prazo suplementar mínimo de 15 (quinze) dias para proceder ao pagamentos das prestações em atraso, acrescidas”.
39. E concluiu que a “exequente fez prova de ter havido resolução contratual, e interpelação dos executados para o cumprimento das prestações em atraso, com a expressa advertência para os efeitos da perda do benefício do prazo ou da resolução do contrato”
40. O que significa que o Tribunal a quo somente se debruçou sobre a verificação (parcial) do segundo requisito, sendo os dois requisitos previstos naquela cláusula, cumulativos.
41. Além disso, como foi provado no ponto nº 21 dos Fundamentos de Facto da Douta Sentença, os Recorrentes foram interpelados para pagamento, tendo sido informados que o montante deveria ser regularizado no prazo máximo de 10 (dez) dias.
42. Conclui-se assim que o preenchimento do segundo requisito não está, nem em concordância com o previsto na lei, nem em concordância com o contratualizado, porque decorre do próprio contrato que aos Recorrentes deveria ser concedido um prazo suplementar mínimo de 15 (quinze) dias para proceder ao pagamento das prestações em atraso,
43. E decorre do Decreto-Lei n.º 133/2009 de 02 de Junho (que transpôs para a ordem jurídica portuguesa a Diretiva n.º 2008/48/CE do Conselho e do Parlamento, de 23 de Abril), que, imperativamente, o prazo suplementar será, no mínimo, de 15 dias.
44. Logo, a Recorrida ao impor um prazo de 10 dias, agiu contra o contratualizado e contra a legislação aplicável, pelo que a resolução que operou não é válida.
45. Acresce que, nada foi mencionado na douta Sentença quanto ao primeiro pressuposto estipulado naquela cláusula 17º para que pudesse operar a resolução contratual (a falta de pagamento de prestações sucessivas que exceda 10% (dez por cento) do montante total do crédito), seja pela sua verificação, seja pela sua não verificação.
46. Ora, 10% do montante total do crédito corresponde a € 4.000 (quatro mil euros), sendo que as prestações em atraso, seja em 02.07.2019 (data da interpelação) seja em 11.09.2019 (data da resolução), e ainda que fossem quatro prestações sucessivas (de cerca de 755,00€ cada uma), não excedem aquela percentagem.
47. Assim se pode concluir que, nem o primeiro requisito, nem o segundo, estavam preenchidos e ainda que estivesse um, tal não era suficiente para a Recorrida resolver o contrato, uma vez que os requisitos tinham que ser imperativamente cumulativos.
48. No entanto, o Julgador de 1º Instância não se pronunciou sequer sobre o preenchimento ou não daqueles dois pressupostos, necessários para poder ser operada a resolução do contrato de mútuo n.º 100-......-2.
49. Assim, o Julgador a quo, ao apenas dizer que concluiu “… que a exequente fez prova de ter havido resolução contratual, e interpelação dos executados para o cumprimento das prestações em atraso” (pág. 21 da douta Sentença), demitiu-se de aferir o cumprimento da cláusula 17º do mencionado contrato de mútuo, ou o cumprimento do determinado legalmente, no Decreto-Lei n.º 133/2009 de 02 de Junho.
50. Atento o supra exposto, entendem os Recorrente que, com a omissão da pronúncia quanto àquela matéria, que influiria na decisão a proferir quanto à validade ou invalidade da resolução contratual, violou o Juiz a quo os artigos 607.º, n.º 4, e 154.º, n.º 1, ambos do CPC,
51. Pelo que, nos deparamos com uma nulidade da Sentença, que se invoca, por força do disposto no artigo 615º do CPC, ou, caso assim não se entenda, por força do disposto no artigo 662º nº 2 do mesmo diploma legal.

Nestes Termos, e noutros que Vossas Excelências doutamente suprirão, deve a decisão do Tribunal de 1ª Instância ser revogada e, ser dado provimento ao presente Recurso, e em função disso serem os Embargos de Executado julgados procedentes, e os Recorrentes absolvidos da instância executiva».
*
A Embargada apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido.
O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.

**
1.4. Questões a decidir

Atentas as conclusões da apelação, as quais delimitam o objecto do recurso (artigos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC), constituem questões a decidir:
i) Nulidade da sentença por omissão de pronúncia quanto à não verificação das condições contratualizadas para a resolução do contrato de mútuo nº 100-......-2 (conclusões 37ª a 51ª);
ii) Falta de integração obrigatória dos Executados no procedimento extrajudicial de regularização de situações de incumprimento (PERSI) (conclusões 5ª a 36ª).
***
II – FUNDAMENTOS

2.1. Fundamentos de facto
2.1.1. Na decisão recorrida consideraram-se demonstrados os seguintes factos:

1. A Exequente dedica-se à atividade bancária, e tem por objeto social a realização de todas as operações permitidas pela Lei aos Bancos.
2. No exercício da sua atividade, a ora Exequente celebrou, por Escritura outorgada no 2.º Cartório Notarial de …, na data de 05.06.2002, com A. J. e com O. P., na qualidade de mutuários, um Contrato de Mútuo com Hipoteca, conforme resulta da Cláusula 1.ª da Escritura e respetivo Documento Complementar juntos como Doc. 1 com o requerimento executivo e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
3. Nos termos do Contrato em apreço, a Exequente concedeu, a título de empréstimo, a quantia de € 49.000,00 (quarenta e nove mil euros), para pagamento integral de um empréstimo junto da CAIXA ..., o qual se destinava a aquisição de habitação própria permanente, mantendo-se a afectação da fração autónoma, designada pela letra “X”, correspondente ao quarto andar direito, entrada poente, destinado a habitação, inscrita na matriz sob o artigo ….-X, do prédio urbano sito na Rua …, freguesia de …, do concelho de Vila Nova de Famalicão, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número … hipotecada (Cfr. Escritura junta como Doc. 1 e Cópia Simples da descrição do imóvel junta como Doc. 2 com o requerimento executivo e cujo teor se dá por integralmente reproduzido).
4. A referida Hipoteca encontra-se definitivamente registada a favor da Exequente pela Ap. 8 de 2002/06/20 – Cfr. Doc. 2.
5. A Hipoteca foi constituída para garantia do descrito no ponto 3 supra e nos valores que se passam a discriminar – (Cfr. Doc. 1 e Doc. 2):
Capital mutuado no valor de € 49.000,00;
Juros remuneratórios à taxa nominal anual prevista no contrato, acrescido da sobretaxa de 4%, em caso de mora, a título de cláusula penal;
Montante máximo assegurado de € 67.816,00.
6. O Contrato foi celebrado pelo prazo de 28 (vinte e oito) anos (cfr. Cláusula 1.ª do documento complementar anexo à Escritura junta como Doc. 1).
7. No Contrato ora em análise, ficou estipulado que, sobre o montante de capital mutuado, vencer-se-iam juros à taxa nominal anual nele indicada, sendo que, em caso de incumprimento do contrato, e se a Exequente tivesse de recorrer a juízo para recuperação dos seus créditos, seria acrescido de uma indemnização com natureza de cláusula penal, de quatro pontos percentuais ao ano calculada sobre o capital em dívida desde a data da mora (cfr. Cláusula 6.ª do Documento Complementar anexo ao Doc. 1).
8. Nos termos do referido contrato, as despesas e encargos emergentes do mesmo e as suas eventuais renovações, ficariam sempre por conta da parte devedora, cujo montante, na presente data, ainda não é possível apurar, mas desde já se requer com vista a liquidar a final (cfr. Cláusula 7.ª do Documento Complementar anexo ao Doc. 1).
9. Ficou ainda estipulado contratualmente que a Exequente poderia resolver o Contrato, considerando o crédito imediatamente vencido, desde que se verificasse o incumprimento das obrigações contratualmente assumidas bem como se o imóvel hipotecado fosse alienado, arrendado ou de qualquer forma cedido ou onerado sem o seu consentimento escrito. (Cfr. Cláusula 11.ª do Documento Complementar anexo ao Doc. 1).
10. Os Executados deixaram de cumprir as suas obrigações para com a ora Exequente, em 30.12.2018.
11. Foram os Executados devidamente interpelados para pagamento, por carta registada com aviso de receção, na data de 02.07.2019, tendo sido informados que, à data, o valor em dívida se fixava em € 1.514,03 (mil, quinhentos e catorze euros e três cêntimos), podendo tal quantia ser regularizada no prazo de 10 (dez) dias, conforme Cartas de Interpelação, e respetivos avisos de receção, juntos como Docs. n.º 3 e 4 com o requerimento executivo.
12. Não tendo estes procedido ao pagamento das prestações devidas, a ora Exequente considerou como imediatamente vencidos capital e respetivos juros vencidos e vincendos, até efetivo e integral pagamento.
13. Tal resolução foi comunicada aos Executados, por carta com aviso de receção em 11.09.2019, indicando ainda a quantia em dívida que, à data, ascendia a € 25.777,44 (vinte e cinco mil, setecentos e setenta e sete euros e quarenta e quatro cêntimos), que deveria ser regularizada de imediato, cfr. Cartas de Resolução e respetivos avisos de receção juntos como Docs. n.º 5 e 6 com o requerimento executivo e cujo teor se dá aqui por reproduzido.
14. Na data de 09.08.2019, o valor em dívida, no âmbito do Contrato supra identificado, ascendia à quantia de € 25.821,56 (vinte e cinco mil, oitocentos e vinte e um euros e cinquenta e seis cêntimos) – Cfr. Nota de Débito junto como Doc. 7, correspondendo aos seguintes valores:
€ 24.973,61, a título de capital em dívida;
€ 216,56, a título de juros calculados entre 05.03.2019 e 25.09.2019;
• € 429,01, a título de cláusula penal de 3% desde 05.03.2019;
€ 202,38, a título de demais despesas.
15. No exercício da sua atividade, a Exequente celebrou, na data de 30.08.2017, com A. J. e com O. P., na qualidade de mutuários, ora Executados, um Contrato de mútuo com o n.º 100.......-2, Cfr. Contrato junto como Doc. 8 com o requerimento executivo e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
16. Nos termos do supra identificado contrato, a Exequente entregou à parte devedora a quantia de € 40.000,00 (quarenta mil euros), destinada a liquidar responsabilidades, tendo os executados se confessado devedores desse valor, cfr. Cláusula 1.ª do Contrato junto como Doc. 8.
17. O contrato em apreço foi celebrado pelo prazo de 5 (cinco) anos, com início na sua data de celebração (cfr. Cláusula 2.ª do Contrato junto como Doc. 8).
18. No Contrato ora em análise, ficou estipulado que, sobre o montante de capital mutuado, vencer-se-iam juros à taxa nominal anual nele indicado, sendo que, em caso de incumprimento do contrato, e se a Exequente tivesse de recorrer a juízo para recuperação dos seus créditos, seria acrescido de uma indemnização com natureza de cláusula penal, de três pontos percentuais ao ano calculada sobre o capital em dívida desde a data da mora, cfr. Cláusulas 3.ª e 11.ª do Contrato junto como Doc. 8.
19. Nos termos do referido contrato, as despesas e encargos emergentes do mesmo e as suas eventuais renovações, ficariam sempre por conta da parte devedora, cfr. Cláusula 12.ª do Contrato junto como Doc. 8.
20. Ficou ainda estipulado, contratualmente, que a Exequente poderia resolver o Contrato, considerando o crédito imediatamente vencido, desde que se verificasse o incumprimento das obrigações contratualmente assumidas, cfr. Cláusula 17.ª do Contrato junto como Doc. 8.
21. Os ora Executados deixaram de cumprir com as suas obrigações em 30.05.2019, pelo que, em 02.07.2019, os Executados foram interpelados para pagamento, por carta registada com aviso de receção, tendo sido informados que, à data, o valor em dívida ascendia a € 913,76 (novecentos e treze euros e setenta e seis cêntimos), devendo tal montante ser regularizado no prazo máximo de 10 (dez) dias, sob pena de a Exequente recorrer à via judicial para ressarcimento do seu crédito – cfr. cartas de interpelação e respetivos aviso de receção juntas como Docs. 9 e 10 com o requerimento executivo.
22. Não tendo os Executados procedido ao pagamento do montante em dívida, na data de 11.09.2019, foram notificados da resolução do contrato, por carta registada com aviso de receção, tendo sido informados de que o contrato – em virtude do incumprimento reiterado – tinha sido resolvido, razão pela qual se não existisse pagamento imediato da quantia global em dívida, que, àquela data ascendia a € 27.989,78 (vinte e sete mil, novecentos e oitenta e nove euros e setenta e oito cêntimos), a ora Exequente ver-se-ia obrigada a recorrer à via judicial – Cfr. cartas de resolução e respetivos registos dos avisos de receção juntos como Doc. 11 e 12 com o requerimento executivo.
23. Em virtude do incumprimento do contrato junto sob Doc. 8, o crédito da Exequente ascende, em 26.09.2019, à quantia de € 28.074,74 (vinte e oito mil, setenta e quatro euros e setenta e quatro cêntimos), correspondendo às seguintes verbas, conforme resulta da Nota de Débito junta como Doc. 13:
€ 27.220,93, a título de capital em dívida;
€ 431,19, a título de juros vencidos entre 30.05.2019 e 25.09.2019;
€ 269,65, a título de Cláusula penal de 3%, calculada desde 30.05.2019;
• € 152,97, a título de Imposto de Selo e outras despesas.
24. Decorre da cláusula 17º - pág. 5 e 6 do mencionado contrato – que a CAIXA ..., ora Embargada, reserva-se ao direito de proceder à resolução imediata do contrato e exigir o pagamento imediato da dívida “se, cumulativamente, ocorrerem as circunstâncias seguintes: a) a falta de pagamento de duas prestações sucessivas que exceda 10% (dez por cento) do montante total a crédito; b) Ter a CAIXA ..., sem sucesso, concedido à PARTE DEVEDORA, um prazo suplementar mínimo de 15 (quinze) dias para proceder ao pagamento das prestações em atraso, acrescidas de eventual indemnização devida, com a expressa advertência dos efeitos da perda do benefício do prazo ou da resolução do contrato”.
25. A Embargada sempre manifestou disponibilidade para encontrar, em conjunto com os Embargantes, a solução adequada para o incumprimento registado – tendo analisado, sempre que para isso foi convocada, as propostas extrajudiciais de acordo de pagamentos que os mesmos faziam chegar.
26. As diligências efetuadas no âmbito da recuperação de crédito desde 01.10.2018, mostraram-se infrutíferas, persistindo o incumprimento dos Embargantes.
27. Esta situação levou à interpelação dos devedores, em 16.01.2019, para a regularização dos valores vencidos nos contratos n.ºs 100.........-4 e 100..........-2, àquela data, de € 1.434,13 e de € 1.625,18 respetivamente, num total de € 3.059,31 – cfr. cartas juntas como Doc. n.º 3 com a contestação.
28. E que foram rececionadas em 21.01.2019 – cfr. avisos de receção juntos como Doc. n.º 4.com a contestação.
29. Em 29.01.2019, foi efetuado pagamento de € 3.085,00 (três mil e oitenta e cinco euros) na conta à ordem associada aos créditos, valores que foram imediatamente afetos aos contratos.
30. Entre a interpelação ocorrida em 16.01.2019 e o pagamento de € 3.085,00 em 29.01.2019, foi debitado (22.01.2019) no contrato 100.........-4, o montante de € 116,09 referente a seguro anual/multirriscos – cfr. Doc. 5 junto com a contestação.
31. O valor depositado não foi suficiente para a regularização de ambos os contratos (pois não teve em linha de conta todas as obrigações associadas aos empréstimos concedidos), nem para o encerramento do processo na Direção de Recuperação de Crédito.
32. Tendo ficado por cobrar, no contrato n.º ..........-4, os montantes de € 114,69 e de € 3,75 referentes a seguros e despesas, respetivamente.
33. Em 30.01.2019 vencem-se novas prestações nos contratos, e só após várias tentativas de contacto falhadas com os Embargantes é que foi possível, em 30.04.2019, que os mesmos efetuassem um pagamento de € 2.385,16 (dois mil, trezentos e oitenta e cinco euros e dezasseis cêntimos).
34. Em 19.06.2019 foi efetuado novo pagamento no valor de € 1.462,84 (mil, quatrocentos e sessenta e dois euros e oitenta e quatro cêntimos).
35. Mas a verdade é que as tentativas de contacto com os Embargantes frustravam-se constantemente, havendo registo de diversas chamadas não atendidas, bem como de um compromisso assumido pelos próprios, em maio de 2019, no sentido da regularização até final do mesmo mês: o que não ocorreu.
36. Em 02.07.2019 foram enviadas aos ora embargantes novas cartas de interpelação – juntas com o requerimento inicial executivo – para a regularização dos valores vencidos nos contratos, o que não ocorreu, tendo-se verificado apenas a realização de dois pagamentos de € 653,69 (em 31.07.2019) e de € 400 (em 17.09.2019) – conforme demonstra o extrato junto como Doc. n.º 7 com a contestação.
37. À data da resolução - 11.09.2019 – existiam 6 prestações em atraso (março/19 – ago/19) no Contrato n.º 100.........-4 e 4 prestações em atraso (maio/19 – ago/19) no Contrato n.º 100..........-2.
38. Após a interpelação ocorrida em 17.07.2019 há registo de mais um compromisso assumido para a regularização da dívida, até final do referido mês.
39. Mas, não foi cumprido.
40. Mesmo antes da entrada da presente ação executiva, existiu nova tentativa de contacto por parte da Embargada (nova chamada não atendida), mas também sem sucesso.
41. Por carta datada de 21/04/2021, recepcionada em 28/04/2021, a Embargada informou os Embargantes que quanto aos “Contrato de mútuo com hipoteca n.º ..........-4”, e “contrato de mútuo n.º 100-......-2” os valores em dívida àquela data eram de 994,59€ e 18.116,41€, respectivamente.
42. E, através da mesma carta, a Embargada comunicou que os Embargantes foram integrados no PERSI em 21/04/2021.
43. O envio da carta referida em 41 ocorreu devido a um problema informático no sistema de envio de notificações automáticas da aqui Embargada,
44. Tendo sido enviadas cartas de integração em PERSI a vários clientes, de entre os quais os aqui Embargantes.
45. No instante em que a Embargada deu conta de tal erro informático, remeteu nova notificação a todos os clientes a quem havia sido remetida tal notificação, informando-os para considerarem sem efeito a carta enviada.
46. Aos aqui embargantes tal notificação postal retificativa da carta enviada em 21.04.2020, foi remetida no dia 10.05.2021.
47. Através de tal missiva – remetida na data de 10.05.2021 – e passa a citar-se, “vem o Banco …, pela presente, informar V. Exa. que o envio da carta supra identificada [nomeadamente a carta de integração em PERSI datada de 21.04.2021] se deveu a mero lapso informático, pelo que procedemos à respetiva anulação, não produzindo a mesma quaisquer dos efeitos ali referidos, atinentes à integração no Processo Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI), a qual não se verificou.
Em consequência, solicitamos a V. Exa. que desconsidere o respetivo teor, dando sem efeito o seu recebimento.
Apresentamos desde já as nossas desculpas pelo referido lapso, lamentando quaisquer transtornos que esta situação possa eventualmente ter causado.” – cfr. referência 11461215.
*
2.1.2. Factos não provados

O Tribunal a quo considerou como não provada a seguinte matéria factual:
a) A Embargada informou os embargantes da faculdade de iniciar o PERSI em 31-08-2018, e respetivas condições para o seu exercício.
b) Quanto aos contratos dados à execução, o PERSI extinguiu-se em virtude de – tendo sido atingido o 91º dia subsequentemente à data do respetivo enquadramento – os Embargantes nada terem comunicado à aqui Embargada, nem tão pouco fornecido a documentação necessária à avaliação da sua capacidade financeira.
**

2.2. Do objecto do recurso
2.2.1. Nulidade da sentença por omissão de pronúncia

Invocando os Recorrentes a nulidade da sentença causada por omissão de pronúncia, cumpre apreciar tal fundamento.

Nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea d), do CPC (2), a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Esta nulidade está directamente relacionada com o disposto no artigo 608º, nº 2, segundo o qual «o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras».
Neste enquadramento, há que distinguir entre questões a apreciar e razões ou argumentos aduzidos pelas partes. Conforme já ensinava Alberto dos Reis (3), «são, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão».
Quer dizer, o juiz não tem de esgotar a análise da argumentação das partes, mas apenas que apreciar todas as questões que devam ser conhecidas, ponderando os argumentos na medida do necessário e suficiente (4).
Por outro lado, o conhecimento de uma questão pode fazer-se tomando posição directa sobre ela, ou resultar da ponderação ou decisão de outra conexa que a envolve ou a exclui (5). Não ocorre nulidade da sentença por omissão de pronúncia quando nela não se conhece de questão cuja decisão se mostra prejudicada pela solução dada anteriormente a outra (6) ou quando a matéria, tida por omissa, ficou implícita ou tacitamente decidida no julgamento da matéria com ela relacionada (7).

No caso dos autos, ponderada a argumentação dos Recorrentes, conclui-se que lhes assiste razão.
Na petição de embargos os Embargantes invocaram, como fundamento para a extinção parcial da execução, a «não verificação das condições contratualizadas para a resolução do contrato de mútuo n.º 100-......-2» - v. artigos 20-36.
A esse propósito, suscitaram duas questões emergentes da cláusula 17ª do contrato de mútuo nº 100-......-2, segunda a qual a embargada tinha o direito de proceder à resolução imediata do contrato e exigir o pagamento imediato da dívida «se, cumulativamente, ocorrerem as circunstâncias seguintes: a) a falta de pagamento de duas prestações sucessivas que exceda 10% (dez por cento) do montante total a crédito; b) Ter a CAIXA ..., sem sucesso, concedido à PARTE DEVEDORA, um prazo suplementar mínimo de 15 (quinze) dias para proceder ao pagamento das prestações em atraso, acrescidas de eventual indemnização devida, com a expressa advertência dos efeitos da perda do benefício do prazo ou da resolução do contrato».

Essas questões consistiam em a Embargada ter entendido operar a resolução daquele contrato sem que:
a) Tivesse concedido aos Embargantes o prazo de 15 dias para proceder ao pagamento das prestações em atraso, uma vez que na comunicação que lhes endereçou apenas concedeu o «prazo máximo de 10 (dez) dias» para o efeito;
b) Estivessem em dívida prestações excedentes a 10% do montante total do crédito, dado que apenas estavam em dívida quatro prestações, no valor de € 755,00 cada uma, o que, tudo somado, não perfazia «10% (dez por cento) do montante total a credito que, recorda-se, foi de 40.000,00€».
Apesar de serem duas questões bem concretas e definidas, que não meros argumentos, o certo é que na sentença não foram por qualquer forma abordadas, pois o Tribunal recorrido limitou-se a dizer que «a exequente fez prova de ter havido resolução contratual, e interpelação dos executados para o cumprimento das prestações em atraso, com a expressa advertência dos efeitos da perda do benefício do prazo ou da resolução do contrato».
Nada do que se fez constar do segmento da decisão que se transcreveu estava em causa. Não estava sequer questionado que não tinha ocorrido interpelação (e a respectiva advertência) e comunicação a considerar resolvido o contrato. O que estava em causa era a concessão de prazo inferior ao acordado (10 dias em vez de 15 dias) e a inexistência de prestações em dívida de valor global superior a € 4.000,00.
Sendo manifesta a omissão de pronúncia causadora da nulidade da sentença, cumpre agora a esta Relação, em substituição do Tribunal recorrido, apreciar essas duas questões.
No que concerne ao prazo, carece de fundamento a oposição à execução quanto ao mencionado contrato de mútuo. Se é verdade que, de harmonia com o acordado e legalmente estipulado na alínea a) do nº 1 do artigo 20º do Decreto-Lei nº 133/2009, de 2 de Junho, a Exequente deveria ter concedido aos Executados “um prazo suplementar mínimo de 15 dias” para procederem ao pagamento das prestações em atraso, verifica-se que, apesar de na carta de interpelação de 02.07.2019 ter indicado um prazo de 10 dias, a resolução só foi declarada mais de 2 meses volvidos sobre aquela interpelação, por carta de 17.09.2019, pelo que foi cumprido e efectivamente concedido um prazo muito superior aos 15 (quinze) dias legal e contratualmente previstos. Por isso, estava preenchido o requisito estabelecido na cláusula 17ª, al. b), do contrato de mútuo.

Segundo o artigo 20º, nº 1, al. a), do Decreto-Lei nº 133/2009, de 2 de Junho, em caso de incumprimento do contrato de crédito pelo consumidor, o credor só pode invocar a perda do benefício do prazo ou a resolução do contrato se, além de verificada a condição a que já aludimos, ocorrer «a falta de pagamento de duas prestações sucessivas que exceda 10% do montante total do crédito». A cláusula 17ª, al. a), do contrato de mútuo limita-se a reproduzir aquela exigência legal.

No caso dos autos, estavam em dívida quatro prestações, cujo valor global era inferior a € 4.000,00, correspondente a 10% do montante total do crédito - € 40.000,00.
Portanto, como não se encontrava reunido o apontado requisito ligado ao valor, estava vedada a possibilidade de resolução do contrato, a qual não pode ser considerada validamente operada (v. ponto 22 da matéria de facto).
Invoca a Recorrida, nas contra-alegações, os acórdãos da Relação de Évora, de 28.06.2018, proferido no processo nº 857/18.9T8STB.E1, e o da Relação de Lisboa, 21.05.22015, proferido no processo nº 1160/14.9TJLSB.L1-8. Este último acórdão foi comentado por Jorge Morais Carvalho, no seu Manual de Direito do Consumo (8), como «ignorando a letra e o espírito da lei, com o fundamento de que a solução “significaria uma forte penalização do credor”».
A realidade é que a lei, que acima se transcreveu, é absolutamente inequívoca sobre esta matéria (9): em caso de incumprimento do contrato de crédito pelo consumidor, o credor só pode invocar a perda do benefício do prazo ou a resolução do contrato se ocorrer, além do mais, a falta de pagamento de duas prestações sucessivas que exceda 10% do montante total do crédito. Tal norma, de harmonia com o disposto no artigo 26º, nº 1, do mencionado Decreto-Lei nº 133/2009, de 2 de Junho, tem carácter imperativo: nem o consumidor pode renunciar a tal direito nem pode ser estipulada qualquer convenção que o exclua ou restrinja.
É assim em Portugal e nos demais Estados que integram a União Europeia, uma vez que o Decreto-Lei nº 133/2009, de 2 de Junho, se limitou a transcrever para a legislação nacional a Directiva 2008/48/CE, de 23 de Abril, que é de harmonização máxima.
Como bem refere Jorge Morais Carvalho (10), «no crédito ao consumo, a lei equipara os requisitos para a perda do benefício do prazo e para resolução do contrato. O credor só tem a possibilidade de invocar um destes institutos no caso de falta de pagamento de duas prestações sucessivas, desde que excedam 10% do montante do crédito. Não o pode fazer nas seguintes situações: falta de pagamento de uma só prestação, ainda que exceda 10% do montante do crédito; falta de pagamento de duas ou mais prestações, ainda que excedam 10% do montante do crédito, mas que não sejam sucessivas; falta de pagamento de duas ou mais prestações que não excedam 10% do montante do crédito».
Por isso, atenta a sua inexigibilidade, a execução não pode prosseguir quanto ao valor reclamado com base no contrato de mútuo nº 100-......-2, declarando-se extinta nessa parte.
*
2.2.2. Da não integração dos Executados no PERSI

Tendo sido desaplicada, com fundamento em abuso do direito, uma norma do Decreto-Lei nº 227/2012, de 25 de Outubro, importa começar por fazer uma breve resenha do regime criado por aquele diploma, na tentativa de reconstituir o pensamento legislativo, com vista a interpretá-lo correctamente.

O Decreto-Lei nº 227/2012, de 25 de Outubro, instituiu o Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI), estabelecendo os princípios e regras a observar pelas instituições de crédito na prevenção e na regularização das situações de incumprimento de contratos de crédito pelos clientes bancários.
Segundo o preâmbulo do diploma, num quadro de degradação das condições económicas e financeiras que então se vivia, reconheceu-se a necessidade de prestar particular atenção ao «acompanhamento permanente e sistemático, por parte de instituições, públicas e privadas, da execução dos contratos de crédito, bem como ao desenvolvimento de medidas e de procedimentos que impulsionem a regularização das situações de incumprimento daqueles contratos, promovendo ainda a adoção de comportamentos responsáveis por parte das instituições de crédito e dos clientes bancários e a redução dos níveis de endividamento das famílias».
Na vertente que releva para a apreciação do presente recurso, pretendeu-se com o referido diploma «estabelecer um conjunto de medidas que, refletindo as melhores práticas a nível internacional, promovam (…) a regularização das situações de incumprimento de contratos celebrados com consumidores que se revelem incapazes de cumprir os compromissos financeiros assumidos perante instituições de crédito por factos de natureza diversa, em especial o desemprego e a quebra anómala dos rendimentos auferidos em conexão com as atuais dificuldades económicas» (11).
Segundo o mesmo preâmbulo, no âmbito do PERSI, «as instituições de crédito devem aferir da natureza pontual ou duradoura do incumprimento registado, avaliar a capacidade financeira do consumidor e, sempre que tal seja viável, apresentar propostas de regularização adequadas à situação financeira, objetivos e necessidades do consumidor».
O conjunto de medidas adoptado enquadra-se na política mais geral de defesa do consumidor. Isso está bem presente na parte do preâmbulo em que se afirma que «o presente diploma visa, assim, promover a adequada tutela dos interesses dos consumidores em incumprimento e a atuação célere das instituições de crédito na procura de medidas que contribuam para a superação das dificuldades no cumprimento das responsabilidades assumidas pelos clientes bancários».

E que medidas de tutela dos interesses dos consumidores em incumprimento são essas?
Desde logo, nos termos do artigo 5º, nº 2, «quando se verifique o incumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito, as instituições de crédito mutuantes devem providenciar pelo célere andamento do procedimento previsto nos artigos 12.º a 21.º», ou seja, o procedimento extrajudicial de regularização de situações de incumprimento, «de modo a promover, sempre que possível, a regularização, em sede extrajudicial, das situações de incumprimento». Essa obrigação é ainda densificada no artigo 12º, ao estabelecer que «as instituições de crédito promovem as diligências necessárias à implementação do Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI) relativamente a clientes bancários que se encontrem em mora no cumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito». Portanto, resulta destas duas disposições que as instituições de crédito mutuantes devem implementar e dar andamento ao PERSI. Impõe-se-lhes uma actuação, em termos de iniciativa e de boas práticas de conduta.
Preliminarmente, nos termos do artigo 13º, no prazo de 15 dias após o vencimento da obrigação em mora, «a instituição de crédito informa o cliente bancário do atraso no cumprimento e dos montantes em dívida e, bem assim, desenvolve diligências no sentido de apurar as razões subjacentes ao incumprimento registado».
Seguidamente, segundo os nºs 1 e 4 do artigo 14º, mantendo-se o incumprimento das obrigações decorrentes do contrato de crédito, «o cliente bancário é obrigatoriamente integrado no PERSI entre o 31º dia e o 60º dia subsequentes à data de vencimento da obrigação em causa» e, «no prazo máximo de cinco dias após a ocorrência dos eventos previstos no presente artigo, a instituição de crédito deve informar o cliente bancário da sua integração no PERSI, através de comunicação em suporte duradouro».
O PERSI caracteriza-se por comportar três fases essenciais: uma inicial, outra de avaliação e proposta, e a terceira de negociação, em conformidade com o disposto, respectivamente, nos artigos 14º, 15º e 16º, do Decreto-Lei nº 227/2012.
O procedimento extingue-se nos termos previstos no artigo 17º do referido diploma. Nos termos dos nºs 3 e 4 deste preceito, a instituição de crédito está obrigada a informar o cliente bancário, através de comunicação em suporte duradouro, da extinção do PERSI, descrevendo o fundamento legal para essa extinção e as razões pelas quais considera inviável a manutenção deste procedimento, sendo que a extinção só produz efeitos após a referida comunicação referida no número anterior, salvo quando o fundamento de extinção for a obtenção de um acordo entre as partes com vista à regularização integral da situação de incumprimento.
Em suma, de acordo com o disposto nos artigos 14º, nº 4, e 17º, nº 3, do citado Decreto-Lei, a integração no PERSI e a extinção do procedimento têm de ser comunicadas pela instituição de crédito ao cliente “através de comunicação em suporte duradouro”, sem prejuízo dos requisitos exigíveis quanto ao conteúdo dessas comunicações.

No caso dos autos, decorre dos factos provados que estamos perante contratos de crédito celebrados por dois clientes bancários com uma instituição de crédito, pelo que é aplicável o regime instituído pelo Decreto-Lei nº 227/2012, de 25 de Outubro (v. artigo 2º).
Segundo resulta dos pontos de facto nºs 10 e 21, quanto ao contrato de mútuo com hipoteca celebrado em 05.06.2002 (ponto 2), «os Executados deixaram de cumprir as suas obrigações para com a ora Exequente, em 30.12.2018» (10) e relativamente ao contrato de mútuo nº 100.......-2, celebrado a 30.08.2017, «deixaram de cumprir com as suas obrigações em 30.05.2019» (21).
Sucede que a Exequente não comunicou aos Executados a sua integração em PERSI, assim como não lhes comunicou a extinção do procedimento.
Como é automática a integração do cliente bancário-devedor em mora no PERSI (v. artigo 14º, nº 1 - «Mantendo-se o incumprimento das obrigações decorrentes do contrato de crédito, o cliente bancário é obrigatoriamente integrado no PERSI entre o 31.º dia e o 60.º dia subsequentes à data de vencimento da obrigação em causa»), tem de se considerar que os Executados estão “obrigatoriamente” abrangidos por este regime procedimental de regularização da situação de incumprimento, que só se extingue em situações tipificadas na lei (artigo 17º, nºs 1 e 2, do Decreto-Lei nº 272/2012). Por outro lado, a extinção só produz efeitos, de molde a permitir à instituição de crédito propor acção executiva, se for comunicada ao cliente nos termos legalmente exigidos (artigo 17º, nº 3, do citado diploma).
Estabelece o artigo 18º, nº 1, als. a) e b), do Decreto-Lei nº 272/2012 que no período compreendido entre a data de integração do cliente bancário no PERSI e a extinção deste procedimento, «a instituição de crédito está impedida de: a) Resolver o contrato de crédito com fundamento em incumprimento; b) Intentar acções judiciais tendo em vista a satisfação do seu crédito».
As normas que estabelecem a obrigatoriedade das comunicações da integração do cliente bancário no PERSI e da extinção deste têm carácter imperativo. Estabelecem condições objectivas de procedibilidade, que operam, na sua ausência, como excepções dilatórias atípicas ou inominadas, de natureza insuprível e de conhecimento oficioso, conduzindo, no caso de se verificarem os respectivos pressupostos, à absolvição da instância – arts. 576º, nº 2, 578º e, especificamente quanto à acção executiva, 726º, nº 2, al. b), do CPC.
Como se sintetizou no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13.04.2021, proferido no proc. nº 1311/19.7T8ENT-B.E1.S1 (Graça Amaral), «a comunicação de integração no PERSI, bem como a de extinção do mesmo, constituem condição de admissibilidade da acção (declarativa ou executiva), consubstanciando a sua falta uma excepção dilatória insuprível, de conhecimento oficioso, que determina a extinção da instância (art. 576.º, n.º 2, do CPC)».

Na sentença, o Tribunal recorrido considerou como não provada a integração dos Executados no Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI) e que tal falta de integração «constitui impedimento legal a que a instituição de crédito intente acções judiciais tendo em vista a satisfação do seu crédito, constituindo violação de normas de carácter imperativo que configuram excepções dilatórias atípicas ou inominadas, por falta de pressuposto (antecedente) da instauração da acção».
Apesar disso, os embargos foram julgados improcedentes por se ter entendido que «[v]ir agora invocar este diploma [o Decreto-Lei nº 227/2012, de 25 de Outubro] para concluir que o Banco estava impedido de intentar ação judicial para satisfação do seu crédito por falta de integração obrigatória dos embargantes no Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI), configura um claro abuso de direito por parte dos embargantes, atuação que o direito não tutela e considera ilegítima – artigo 334.º do Código Civil». No entender do Tribunal a quo, «a atuação do Banco, neste caso, foi muito mais longe do que preconiza o referido diploma, ao manter os contratos em incumprimento durante mais de um ano, na tentativa de encontrar uma solução para o problema».
Salvo o devido respeito, que é muito, não se vislumbra o mínimo indício de abuso do direito na invocação por parte dos Embargantes do aludido fundamento – legal e imperativamente conducente à extinção da execução – na oposição à execução por embargos.
No nosso entender, a solução encontrada está completamente desfasada dos objectivos que presidiram à instituição do PERSI, ratificando uma conduta violadora de normas imperativas e que se inserem, como bem se salienta no preâmbulo do Decreto-Lei nº 227/2012, de 25 de Outubro, na defesa do consumidor, o qual, nos termos dos artigos 3º, al. e), e 9º, nº 1, da Lei de Defesa do Consumidor (12), beneficia do direito à protecção dos seus interesses económicos com carácter injuntivo. Pior: dá cobertura a uma má prática da instituição de crédito, que se pretendia ver afastada com a implementação do PERSI.
Mais, a figura do PERSI foi criada precisamente para fazer face a situações como aquela em que se encontravam os Executados. A situação destes justificava a efectiva integração em PERSI.

Nos termos do artigo 334º do Código Civil, é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
A decisão recorrida limita-se a concluir pelo abuso do direito, mas não concretiza quais foram os concretos limites que os Executados excederam. Terão sido os impostos: a) pela boa fé; b) pelos bons costumes; c) pelo fim social do direito; ou, d) pelo fim económico desse direito?
Se o Tribunal recorrido tivesse procedido à aludida análise não chegaria à conclusão a que chegou.
Estando a situação dos autos manifestamente fora do âmbito dos bons costumes, enquanto cláusula geral de direito privado que remete para princípios morais sociais que devem regular o comportamento das pessoas, restaria apreciar se a invocação feita pelos Executados de uma norma imperativa que impedia a Exequente de intentar uma acção executiva contra eles configurava uma ultrapassagem dos limites impostos pela boa fé ou pelo fim social ou económico do direito.
Para Manuel de Andrade (13) o abuso do direito verifica-se quando os direitos são «exercidos em termos clamorosamente ofensivos da justiça» e nas «hipóteses em que a invocação e aplicação de um preceito de lei resultaria, no caso concreto, intoleravelmente ofensiva do nosso sentido ético-jurídico, embora lealmente se aceitando como boa e valiosa para o comum dos casos a sua estatuição».
Numa formulação mais actual, como aquela que consta do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 18.12.2008 (proc. 08B2688 – Santos Bernardino) (14), «a figura do abuso do direito surge como um modo de adaptar o direito à evolução da vida, servindo como válvula de escape a situações que os limites apertados da lei não contemplam por forma considerada justa pela consciência social, em determinado momento histórico, ou obstando a que, observada a estrutura formal do poder conferido por lei, se excedam manifestamente os limites que devem ser observados, tendo em conta a boa fé e o sentimento de justiça em si mesmo».
No que respeita ao fim social ou económico do direito, a sua aferição é feita com base nos juízos de valor positivamente consagrados na lei. Se a lei consagra o direito para realizar um concreto interesse, o direito não pode ser exercido para satisfazer um interesse diferente pelo seu titular.
Já para determinar os limites impostos pela boa fé há que atender de modo especial às concepções ético-jurídicas dominantes na colectividade.
Como demonstraremos, o interesse que os Executados visam realizar com a invocação da norma que impede a instauração da acção corresponde exactamente ao interesse tutelado pelo Decreto-Lei nº 227/2012, de 25 de Outubro.
Se porventura o Tribunal pretendeu, embora não o tenha expressado, fundar o abuso do direito na violação do princípio da boa fé, importa notar que, como se refere no recente acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16.11.2021 (proc. n.º 21827/17.9T8SNT-A.L1.L1.S1 – Maria Clara Sottomayor) (15), que versou precisamente sobre uns embargos de executado em que se discutiam as consequências da falta de comunicação da integração e também da extinção do PERSI, «As raízes históricas do instituto do abuso do direito indicam que foi claro que esta figura não remetia para a consciência subjetiva do juiz ou para sentimentos individuais, fruto de sensibilidades pessoais, mas para sentimentos de justiça que pudessem ser partilhados pela generalidade das pessoas e que se reportassem à consciência social e jurídica dominante. Para que seja aplicado o instituto do abuso do direito, é, pois, necessário que os factos provados sejam inequívocos no sentido de demonstrarem a má fé dos executados e que o exercício do seu direito ou posição jurídica exceda o fim social e económico que constitui a sua razão de ser».
Mais, para que seja desaplicada uma norma com base em abuso do direito, é necessário que estejam rigorosamente provados os seus elementos constitutivos e que o tribunal faça uma ponderação exigente dos interesses e valores em jogo. A questão de saber se a parte exerce o direito em desconformidade com o interesse que a lei visa atingir é uma questão objectiva, para a dilucidação da qual se exige que seja patente que a finalidade prosseguida pelo titular do direito é diferente da que a lei erigiu como sua razão de ser. Se é certo que o conceito de boa fé é dado a alguma subjectividade, isso constitui um motivo reforçado para o juiz não se limitar a uma remissão genérica para sentimentos de justiça e, em vez disso, utilizar um conjunto de critérios, emergentes do sistema jurídico, susceptíveis de uma aplicação rigorosa e objetiva, com base no labor da jurisprudência.

Cingindo-nos aos factos que foram dados como provados, a situação que está em apreciação resume-se a isto:

a) Quanto ao contrato de mútuo com hipoteca, celebrado em 05.06.2002 «os Executados deixaram de cumprir as suas obrigações para com a ora Exequente, em 30.12.2018» (ponto 10), sem que a sentença tenha concretizado que concretas “obrigações” não foram cumpridas nesta data, mas presume-se que tenha sido a respectiva prestação mensal;
b) Tendo sido interpelados por carta de 16.01.2019, em 29.01.2019, os Executados procederam ao pagamento da quantia de € 3.085,00, nada tendo ficado em dívida relativamente ao contrato de 05.06.2002, nessa data, tal como resulta da análise dos factos nºs 30 a 33;
c) Em 30.04.2019, que os Executados pagaram à Exequente € 2.385,16 (ponto 33);
d) Em 19.06.2019 os Executados efetuaram novo pagamento no valor de € 1.462,84 (ponto 34);
e) Em 31.07.2019, os Executados pagaram à Exequente € 653,69 (ponto 36);
f) Em 17.09.2019, os Executados pagaram à Exequente € 400 (ponto 36);
g) Em 02.07.2019, quando a Exequente interpelou os Executados para pagamento, quanto ao contrato de 05.06.2002, de mútuo com hipoteca, o valor em dívida era de € 1.514,03 (ponto 11);
h) Em 11.09.2019, quando a Exequente comunicou aos Executados a resolução do contrato de mútuo com hipoteca, do capital no de montante de € 49.000,00 inicialmente emprestado estava em dívida € 25.777,44 (ponto 13);
i) Em 21.04.2021, o valor em dívida quanto ao contrato de mútuo com hipoteca nº ..........-4 era de € 994,59 (ponto 41);
j) Relativamente ao contrato de mútuo nº 100.......-2, celebrado a 30.08.2017, «deixaram de cumprir com as suas obrigações em 30.05.2019» (ponto 21), sem que na sentença se tenha concretizado factualmente no que consistiu especificamente a inexecução contratual;
k) Em 02.07.2019, quando a Exequente interpelou os Executados para pagamento, quanto ao contrato de mútuo nº 100.......-2, o valor em dívida ascendia a € 913,76 (ponto 21);
l) Em 11.09.2019, quando a Exequente comunicou aos Executados a resolução do contrato de mútuo nº 100.......-2, do montante de € 40.000,00 inicialmente emprestado estava em dívida, a título de capital, € 27.220,93 (ponto 23).

Portanto, no que respeita à conduta dos Executados, enquanto supostos “abusadores” do direito que a lei imperativamente lhes concedia, o que temos de objectivo é que no momento em que a Exequente, em 02.07.2019, inicia os procedimentos com vista à resolução dos contratos, que declarou operada por cartas de 11.09.2019, estava em dívida a quantia de € 913,76 relativamente ao contrato com o nº 100.......-2 e a quantia de € 1.514,03 quanto ao contrato de mútuo com hipoteca.
Para consubstanciar “abuso”, mesmo em termos quantitativos, é muito pouco.
Além disso, importa centrar a nossa apreciação exclusivamente no contrato de mútuo com hipoteca (com o nº ..........-4), pois o outro contrato (nº 100.......-2) é irrelevante em sede de abuso do direito (v. 2.2.1.).
Com efeito, relativamente ao contrato de mútuo nº 100.......-2 a Exequente nem sequer é titular de um título dotado de exequibilidade, pois os quantitativos reclamados eram inexigíveis na execução em virtude de não se ter operado validamente a resolução contratual; por conseguinte, não tem direito a exigir a prestação através da acção executiva. Em todo o caso, mesmo relativamente a este contrato, dificilmente se concebe que dois consumidores que «deixaram de cumprir com as suas obrigações em 30.05.2019» e que um mês depois já estavam a ser interpelados sob advertência de resolução do contrato, a que se seguiu a comunicação de resolução decorridos cerca de dois meses, sem qualquer diligência efectuada entretanto no sentido de os integrar efectivamente em PERSI e de no âmbito deste avaliar a sua situação, estejam impedidos de invocar a violação por parte da instituição bancária de normas imperativas que lhe impunham outra actuação, que a lei expressamente impõe como boa prática.
No mais, verifica-se que a sentença apreciou a questão exclusivamente sob o prisma da recuperação dos créditos. Como a Embargada não conseguiu, depois de várias diligências, recuperar os créditos, para o Tribunal recorrido, o invocar-se a falta de integração no PERSI constitui um abuso do direito. Se devia e não pagou, não pode depois invocar que a instituição de crédito está legalmente impedida de instaurar execução por não ter comunicado ao devedor a integração no PERSI e a extinção deste; a invocação de um preceito legal imperativo que impede a propositura da acção é uma desculpa ilícita de mau pagador.
Portanto, o Tribunal recorrido configura o PERSI como um meio que o legislador coloca à disposição das instituições de crédito para recuperação de créditos e não um mecanismo de «superação das dificuldades no cumprimento das responsabilidades assumidas pelos clientes bancários».
Essa perspectiva está bem patente na redacção de vários pontos de facto, decalcados por sua vez da tese da Embargada, em que se alude a «diligências efetuadas no âmbito da recuperação de crédito», diligências essas que «mostraram-se infrutíferas, persistindo o incumprimento dos Embargantes», a «propostas extrajudiciais de acordo de pagamentos que os mesmos [Executados] faziam chegar», «persistindo o incumprimento dos Embargantes», «há registo de mais um compromisso assumido para a regularização da dívida», o «valor depositado não foi suficiente para a regularização de ambos os contratos (pois não teve em linha de conta todas as obrigações associadas aos empréstimos concedidos), nem para o encerramento do processo na Direção de Recuperação de Crédito», «só após várias tentativas de contacto falhadas com os Embargantes é que foi possível, em 30.04.2019, que os mesmos efetuassem um pagamento de € 2.385,16».
Não há uma única referência, nos factos provados, a uma avaliação da situação dos Executados ou a uma proposta que tenha sido formulada pela Embargada aos Embargantes, seja ela qual for, que não seja uma tentativa de recuperação dos créditos: os contactos foram exclusivamente para obter o pagamento e nada mais do que isso.
No ponto de facto nº 25 consta que «a Embargada sempre manifestou disponibilidade para encontrar, em conjunto com os Embargantes, a solução adequada para o incumprimento registado – tendo analisado, sempre que para isso foi convocada, as propostas extrajudiciais de acordo de pagamentos que os mesmos faziam chegar». Sucede que o juízo valorativo e conclusivo exarado no aludido ponto nenhuma concretização factual contém que ateste a prática de qualquer daqueles actos que o Decreto-Lei nº 227/2012, de 25 de Outubro, impõe às instituições de crédito.
Não obstante, terá sido este ponto de facto nº 25 que deu origem à consideração da actuação dos Executados como abuso do direito.
Na aparência a postura da Exequente parece adequada, mas na substância representa uma manifestação de uma postura contrária às obrigações impostas às instituições de crédito pelo Decreto-Lei nº 227/2012, de 25 de Outubro, e ao propósito que o legislador pretendeu prosseguir com a instituição do PERSI.
A primeira parte é uma frase vazia de conteúdo, na medida em que “disponibilidade” para encontrar uma “solução adequada”, todos, mesmo os mais intransigentes, consideram subjectivamente estar abertos a discutir e aceitar uma solução, a qual será “adequada” desde que corresponda aos seus interesses ou que seja a “sua” solução.
Depois, essa “disponibilidade” não tem qualquer correspondência numa concreta proposta que tenha apresentado aos Executados para “regularização do incumprimento”.
Por outro lado, a “disponibilidade” mostra-se corporizada na postura que consta da segunda parte da frase: analisou, “sempre que que para isso foi convocada” pelos Executados, “as propostas extrajudiciais de acordo de pagamentos que os mesmos faziam chegar”.
Uma tal postura não podia ser mais contrária ao estabelecido no PERSI: a instituição de crédito esperar que seja “convocada” pelos clientes bancários em dificuldades e limitar-se, para além da postura activa de sucessiva interpelação para pagamento, a “analisar” as propostas que estes lhe fizeram chegar.
E, pergunta-se, dessa análise o que resultou? Qual foi a resposta que deu? Apresentou uma contraproposta?
A matéria de facto não contém resposta para tais perguntas.

Em suma, a Exequente:
a) Não demonstrou ter desenvolvido «diligências no sentido de apurar as razões subjacentes ao incumprimento registado» (art. 13º do Decreto-Lei nº 227/2012, de 25 de Outubro);
b) Não integrou efectivamente os Executados em PERSI;
c) Não comunicou aos Executados a sua integração no PERSI (art. 14º, nº 4), designadamente através de suporte duradouro;
d) Não desenvolveu «as diligências necessárias para apurar se o incumprimento das obrigações decorrentes do contrato de crédito se deve a circunstâncias pontuais e momentâneas ou se, pelo contrário, esse incumprimento reflete a incapacidade do cliente bancário para cumprir, de forma continuada, essas obrigações nos termos previstos no contrato de crédito» art. 15º, nº 1);
e) Não procedeu «à avaliação da capacidade financeira do cliente bancário» (art. 15º, nº 2);
f) Não comunicou «ao cliente bancário o resultado da avaliação desenvolvida» (art. 15º, nº 4, al. a);
g) Não lhe apresentou uma proposta que envolvesse a renegociação das condições dos contratos ou a consolidação destes (art. 15º, nº 4, al. a);
h) Mais, não apresentou aos Executados uma proposta para:
- Alargamento do prazo de amortização;
- Fixação de um período de carência de reembolso do capital ou de reembolso do capital e de pagamento de juros;
- Diferimento de parte do capital para uma prestação em data futura;
- Redução da taxa de juro aplicável ao contrato durante um determinado período temporal;
i) Não demonstra ter apresentado contrapropostas às «propostas extrajudiciais de acordo de pagamentos que os mesmos faziam chegar», bem como que tenha havido qualquer espécie de negociação dessa vertente nos termos previstos do artigo 16º do Decreto-Lei nº 227/2012;
j) Não declarou extinto o PERSI;
k) Não comunicou aos Executados a extinção do PERSI (art. 17º, nº 3).

Perante esta panóplia de incumprimento de obrigações que recaíam sobre a Exequente, enquanto instituição de crédito, no quadro do Decreto-Lei nº 227/2012, não se vislumbra o mínimo fundamento para o Tribunal recorrido concluir que «a atuação do Banco, neste caso, foi muito mais longe do que preconiza o referido diploma, ao manter os contratos em incumprimento durante mais de um ano, na tentativa de encontrar uma solução para o problema».
Muito menos existe fundamento para afirmar que a Exequente «mante[ve] os contratos em incumprimento durante mais de um ano, na tentativa de encontrar uma solução para o problema». Nesta parte, o Tribunal recorrido parece ter sido induzido pelas expressões valorativas e conclusivas que fez constar da matéria de facto, sem se ater aos factos puros e simples que deu como provados: quanto ao contrato de mútuo com hipoteca celebrado em 05.06.2002, «os Executados deixaram de cumprir as suas obrigações para com a ora Exequente, em 30.12.2018» (a resolução foi comunicada por carta de 11.09.2019), mas à data de 02.07.2019 só estava em dívida o valor de € 1.514,03 (sendo a dívida de capital de € 1.013,55 – v. carta de interpelação de 02.07.2019), e relativamente ao contrato de mútuo nº 100.......-2, «deixaram de cumprir com as suas obrigações em 30.05.2019» (a resolução – que não operou por inválida – foi comunicada por carta de 11.09.2019) e à data de 02.07.2019 o valor em dívida apenas ascendia a € 913,76 (a dívida de capital ascendia a € 736,93).

Quanto ao contrato de mútuo garantido por hipoteca, com o nº ..........-4, consistente em «um crédito para aquisição de habitação própria permanente» (como consta do respectivo instrumento notarial e das cartas de interpelação), como é que se pode considerar a actuação dos Executados tão “censurável”, tão “ilícita” (de modo a afectar a consciência social da comunidade), quando, tendo sido instaurada a execução em 25.09.2019 (escassos 14 dias após a expedição da carta que comunicava a resolução do contrato), o Tribunal recorrido deu como provado, sob o ponto nº 41 dos factos assentes, que em 21.04.2021 a quantia em dívida era de apenas € 994,59 (novecentos e noventa e quatro euros e cinquenta e nove cêntimos)?
Mas fosse a dívida de € 994,59 (em 21.04.2021), de € 1.514,03 (em 02.07.2019) ou de vários milhares de euros, não poderia a sua defesa ser considerada um abuso do direito num quadro factual como o dos autos.
Bastava atentar que estamos perante devedores que, longe de se remeterem a um comportamento absolutamente relapso (de não pagar e de nada fazer), procuraram regularizar a situação de incumprimento perante a instituição de crédito, pois foram fazendo pagamentos, em múltiplas ocasiões. Tanto assim é que à data da interpelação que precedeu a declaração de resolução apenas deviam € 1.514,03 (em 02.07.2019) e quase dois anos depois a dívida cifrava-se em € 994,59.
O que os autos evidenciam são as dificuldades dos Executados no cumprimento das suas responsabilidades no âmbito do contrato de mútuo com hipoteca, que é o único que agora releva.
Ora, conforme se pode ver no preâmbulo do Decreto-Lei nº 227/2012, o regime instituído visa contribuir «para a superação das dificuldades no cumprimento das responsabilidades assumidas pelos clientes bancários». O diploma, em particular o instrumento do PERSI, estabelece uma particular protecção dos consumidores clientes bancários que, tendo celebrado os contratos referidos no artigo 2º, entrem em incumprimento das obrigações que contratualmente assumiram. A finalidade essencial deste procedimento é conferir ao consumidor que se encontra em mora a oportunidade para renegociar o modo de cumprimento do contrato, privilegiando a sua modificação objectiva em vez da resolução e subsequente acção judicial.
Ou seja, aquilo que os Executados precisavam, que era a efectiva integração em PERSI, como imperativamente impunha aquele diploma, foi aquilo que lhes foi negado pela actuação da Exequente.
Por isso, nenhum abuso do direito consubstancia a invocação do direito em causa, o qual merece tutela, sobretudo para pessoas que têm vindo a fazer um esforço no sentido de cumprir as suas responsabilidades.
A integração efectiva no PERSI não constitui um favor da parte da instituição bancária. É a lei que a impõe e constitui um inequívoco direito dos consumidores em incumprimento.
Coarctar um tal direito é que se afigura um abuso (tanto que existe norma imperativa a estabelecer um impedimento à propositura de acção declarativa ou executiva), sobretudo no âmbito de uma relação jurídica caraterizada por uma acentuada assimetria informativa e de meios, em que a parte mais fraca é o cliente bancário, que recorreu ao crédito.
Assim, como se sumariou no acórdão do STJ, de 19.05.2020 (processo nº 6023/15.8T8OER-A.L1.S1 – Maria Olinda Garcia), «1. A instituição de crédito que move ação executiva contra o mutuário consumidor, que se encontra em mora, tem o ónus de demonstrar que cumpriu as obrigações impostas pelos artigos 12º e seguintes do DL n. 227/2012, que prevê o regime jurídico do PERSI. 2. Enquanto o mutuante não proporcionar ao devedor consumidor a oportunidade para encontrar uma solução extrajudicial, tendo em vista a renegociação ou a modificação do modo de cumprimento da dívida, não lhe é permitido o recurso à via judicial para fazer valer o seu crédito (como se extrai do art. 18º daquele diploma). 3. O cumprimento prévio dos deveres impostos pelo regime do PERSI constitui um pressuposto específico da ação executiva movida por uma entidade financeira contra um devedor consumidor, cuja ausência se traduz numa exceção dilatória inominada de conhecimento oficioso que conduz à absolvição da instância».

Pelo exposto, inexistindo abuso do direito, a apelação deve ser julgada procedente.
**

2.3. Sumário

1 – Em caso de incumprimento do contrato de crédito pelo consumidor, estando em dívida prestações sucessivas que não excedem 10% do montante total do crédito, a instituição de crédito não pode resolver o contrato.
2 – A não comunicação aos consumidores clientes bancários da sua integração no PERSI (Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento) e da extinção do procedimento impede a instituição de crédito de resolver o contrato de crédito com fundamento em incumprimento e de intentar ações judiciais tendo em vista a satisfação do seu crédito.
3 – As normas que consagram a obrigatoriedade das comunicações da integração do cliente bancário no PERSI e da extinção deste têm carácter imperativo e estabelecem condições objectivas de procedibilidade, que operam, na sua ausência, como excepções dilatórias atípicas ou inominadas, de natureza insuprível e de conhecimento oficioso, conduzindo, no caso de se verificarem os respectivos pressupostos, à absolvição da instância – arts. 576º, nº 2, 578º e, especificamente quanto à acção executiva, 726º, nº 2, al. b), do CPC.
4 – Não constitui abuso do direito a invocação por consumidores clientes bancários de tais normas no âmbito da acção executiva contra si instaurada, numa situação em que “deixaram de cumprir as suas obrigações” em 30.12.2018, emergentes de contrato de crédito celebrado em 05.06.2002 para aquisição de habitação própria permanente, aquando da interpelação para pagamento (em 02.07.2019) deviam € 1.514,03, a resolução foi operada por comunicação de 11.09.2019, a execução foi instaurada em 25.09.2019 e em 21.04.2021 a dívida cifrava-se apenas em € 994,59, quando no período do incumprimento fizeram vários pagamentos de montantes em dívida e a instituição de crédito, para além da postura activa de interpelação para pagamento e de diligência para recuperar o crédito, limitou-se a esperar que fosse “convocada” pelos clientes bancários em dificuldades e a “analisar” as propostas que estes lhe fizeram chegar, sem integrar os consumidores no PERSI e cumprir as respectivas obrigações.
***

III – DECISÃO

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar procedente a apelação, revoga-se a sentença e, na procedência da oposição por embargos, absolvem-se os Executados da instância executiva, que assim se declara extinta.
Custas a suportar pela Recorrida.
*
*
Guimarães, 10.02.2022
(Acórdão assinado digitalmente)

Joaquim Boavida (relator)
Paulo Reis (1º adjunto)
Joaquim Espinheira Baltar (2º adjunto)


1. Utilizar-se-á a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, em caso de transcrição, a grafia do texto original.
2. Pertencem ao Código de Processo Civil (CPC) as disposições que doravante se mencionarem sem indicação da respectiva fonte.
3. Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pág. 143.
4. Acórdão do STJ de 30.04.2014 (relator Belo Morgado), proferido no proc. 319/10, acessível em www.dgsi.pt, tal como todos os demais que se citarem de ora em diante sem indicação do respectivo suporte.
5. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08.03.2001 (Ferreira Ramos).
6. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03.10.2002 (Araújo de Barros).
7. Acórdão da Relação do Porto de 09.06.2011 (Filipe Caroço).
8. 5ª edição, Almedina, pág. 430.
9. O Decreto-Lei nº 133/2009 consagrou um regime especial para o contrato de crédito ao consumo, o qual é distinto do regime geral do artigo 781º do Código Civil (na dívida liquidável em prestações, a falta de realização de uma dela importa o vencimento de todas) e mesmo do estabelecido para o contrato de compra e venda a prestações, previsto no artigo 934º do mesmo diploma (em que a falta de pagamento de pagamento de uma só prestação que não exceda a oitava parte do preço não dá lugar à resolução do contrato nem importa a perda do benefício do prazo; apenas importa essa consequência, a falta de pagamento de uma prestação que exceda a oitava parte do preço ou a falta de pagamento de duas prestações, independentemente do seu valor).
10. Ob. e loc. citados.
11. São da nossa autoria os sublinhados e outras formas de ênfase constantes das transcrições feitas no presente acórdão.
12. Lei nº 24/96, de 31 de Julho.
13. Teoria Geral das Obrigações, pág. 63, e RLJ, nº 85, pág. 253.
14. Disponível, tal como todos os demais que se citam, em www.dgsi.pt.
15. Que versa sobre uma situação em que o Tribunal da Relação considerou como sendo de abuso do direito e que aquele STJ rejeitou, repristinando a decisão da 1ª instância, que tinha julgado procedentes os embargos e declarado extinta a execução.