Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
533/19.5T8BCL-A.G1
Relator: VERA SOTTOMAYOR
Descritores: DEPOIMENTO DE PARTE
REQUISITOS
FUNDAMENTAÇÃO DEFICIENTE
APERFEIÇOAMENTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/05/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
I – A parte ao requerer o depoimento de parte deve indicar, discriminadamente, os factos sobre os quais há-de recair.

II – Tendo tal indicação sido feita de modo deficiente, deve o juiz seleccionar dentro dos factos indicados pelo requerente aqueles que entenda dever incidir tal depoimento ou convidar a parte a fazê-lo.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Guimarães

APELANTE: D. S.
APELADA: X – MALHAS E CONFECÇÕES, LDA

Tribunal da Comarca de Braga, Juízo do Trabalho de Barcelos – Juiz 1

I – RELATÓRIO

Nos presentes autos de processo comum em que é Autora D. S. e Ré X – MALHAS E CONFECÇÕES, LDA, veio a autora na petição inicial e em sede de indicação de prova, requer o depoimento de parte do legal representante da Ré à matéria constante dos artigos 1.º a 30.º; 32.º; 35.º a 37.º; 40.º a 47.º

Os autos prosseguiram a sua tramitação normal e aquando da prolação do despacho saneador, a Mma. Juiz a quo proferiu o seguinte despacho no que respeita à admissão do depoimento de parte do legal representante da Ré:

“(…)
Relativamente quer ao depoimento de parte a prestar pela Autora, requerido pela Ré, quer ao depoimento de parte a prestar pelo legal representante da Ré, requerido pela Autora, considerando que cada um dos requerentes veio já discriminar em concreto a matéria sobre a qual pretende que cada um deles verse, e considerando que tal discriminação foi feita com relação a toda a matéria de facto alegada em cada um dos articulados, considerando que tal indicação genérica não respeita a previsão legal, vão as correspondentes pretensões indeferidas – cfr. artºs 452º, nº 2, 453º, nºs 1 e 2 e 454º, nº 1, todos do Cód. Proc. Civil.---
(…)”

Inconformada com tal despacho interlocutório na parte em que não lhe admitiu o depoimento de parte do legal representante da Ré veio a autora interpor recurso de apelação, no qual formula as seguintes conclusões que passamos a transcrever:

“a) - A A. especificou os factos sobre os quais haveria de recair o depoimento de parte, por referência aos artigos da petição inicial.
b) – O artigo 452º, n.º 2 do Código do Processo Civil não impede a parte de requer o depoimento de parte a todos os factos por si invocados.
c) – A norma em causa impõe apenas que os factos sejam indicados de forma discriminada.
d) – A especificação dos factos por referência aos artigos do articulado, ainda que corresponda a toda a matéria alegada, não configura uma indicação genérica.
e) – O Tribunal a quo, caso considerasse que alguns dos factos especificados não deveriam ser sujeitos a depoimento de parte, deveria ter indeferido a diligência relativamente a tais pontos.
f) –A decisão do Tribunal a quo violou o disposto no artigo 452º, n.º 2 do Código do Processo Civil.”
Termina peticionando a revogação do despacho recorrido, com a sua substituição por outro que admita o depoimento de parte requerido pela A.
Não foi apresentada qualquer resposta ao recurso.
O recurso foi admitido como apelação a subir imediatamente em separado e com efeito devolutivo.
Remetidos os autos à 2ª instância, após ter sido fixado o valor da presente acção, foi determinado que se desse cumprimento ao disposto no artigo 87.º n.º 3 do C.P.T., tendo o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitido douto parecer no sentido da procedência da apelação.
Não foi apresentada qualquer resposta ao parecer do Ministério Público.
Dado cumprimento ao disposto na primeira parte do nº 2 do artigo 657.º do Código de Processo Civil foi o processo submetido à conferência para julgamento.

II OBJECTO DO RECURSO

Delimitado o objeto do recurso pelas conclusões do Recorrente (artigos 635.º, nº 4, 637.º n.º 2 e 639.º, nº 1, do Código de Processo Civil), coloca-se à apreciação deste Tribunal da Relação uma única questão que consiste em apurar da admissibilidade do depoimento de parte do legal representante da Ré.

III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A constante do relatório que antecede.

IV – APRECIAÇÃO DO RECURSO

Da admissibilidade do depoimento de parte do legal representante da Ré

A recorrente insurge-se apenas quanto ao facto de não ter sido admitido como meio de prova o depoimento do legal representante da Ré, defendendo que o despacho recorrido viola o n.º 2 do art.º 452.º do CPC., já que dada a discriminação da factualidade sobre a qual deveria incidir o depoimento do legal representante da Ré, o indeferimento de tal depoimento deveria ter sido restringido apenas a alguns dos factos especificados e não há sua totalidade.

Vejamos se lhe assiste razão.

O “depoimento de parte” é um meio de prova que se encontra previsto no artigo 452.º do CPC, que se integra na secção epigrafada “prova por confissão das partes” e no capítulo “prova por confissão e por declarações das partes”.

Estabelece o citado art.º 452.º do CPC. o seguinte:

«1 - O juiz pode, em qualquer estado do processo, determinar a comparência pessoal das partes para a prestação de depoimento, informações ou esclarecimentos sobre factos que interessem à decisão da causa.
2 - Quando o depoimento seja requerido por alguma das partes, devem indicar-se logo, de forma discriminada, os factos sobre que há de recair».

Por outro lado, no que respeita à decisão sobre a admissibilidade do depoimento de parte revela-se pertinente o disposto no artigo 454.º que incide sobre os factos que podem ser objecto de depoimento de parte, estipulando o seguinte:

«1 - O depoimento só pode ter por objeto factos pessoais ou de que o depoente deva ter conhecimento.
2 - Não é, porém, admissível o depoimento sobre factos criminosos ou torpes, de que a parte seja arguida».

Decorre das citadas disposições legais que a parte ao requerer o depoimento de parte, almejando uma confissão, que só poderá incidir sobre factos desfavoráveis ao depoente, deverá indicar, discriminadamente, os factos sobre os quais tal depoimento há-de recair, que sempre terão que ser factos em que aquele tenha intervindo pessoalmente ou de que tenha conhecimento directo.
Assim, em sede de prova por depoimento de parte, deve a parte indicar os factos sobre os quais há-de incidir o depoimento, sendo tal essencial para que o juiz possa aferir da pertinência e da utilidade de tal diligência.
Ora, como temos vindo a defender, quando a discriminação dos factos aos quais se pretende inquirir a parte não é feita, a solução não será no sentido do indeferimento de tal meio de prova, mas sim o julgador deve convidar a parte requerente a aperfeiçoar o seu requerimento de prova, concedendo assim a possibilidade de suprir tal falta.
Esta é sem dúvida a solução que melhor se adequa à prossecução da verdade material, tendo presente que actualmente são conferidos ao juiz maiores poderes de zelar pelo aproveitamento dos actos das partes que apresentem deficiências.

Há muito que é entendimento praticamente uniforme, quer da jurisprudência (cfr. v.g. Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, de 21/12/2015, Proc. nº 4059/15.8T8LSB-4, in www.dgsi.pt.), quer da doutrina (cfr. v.g. Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, in Código de Processo Civil, Anotado, vol. 2º, 2ª ed., pág. 500), a solução por nós agora defendida, ou seja na falta de indicação do objecto do depoimento, deve então o juiz convidar a parte requerente a proceder à sua especificação. Solução esta que, de resto, como se consigna no Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 18/12/2013, Proc. nº 114/09.1TBETR-A.P1 e Relação de Guimarães de 12/11/2015, Proc. n.º 7178/11.6TBBRG-A.G1 (consultáveis in www.dgsi.pt.), é a que “melhor se coaduna com os objectivos de prossecução da verdade material e de aproveitamento dos actos das partes que apresentem deficiências”.

Como escreve José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in Código do Processo Civil, 3ª edição, pág. 285, em anotação ao artigo 452.º “Não sendo indicados os factos quando se requer o depoimento, o juiz deve ainda convidar a parte a fazer a indicação. Com efeito, para a prossecução da verdade material foram conferidos ao juiz poderes de zelar pelo aproveitamento dos atos das partes que apresentem deficiências, sendo excessivo aplicar a consequência normal da não observância dum ónus processual, que é a preclusão.”

Por fim, como salienta o ilustre Procurador-Geral Adjunto no douto parecer junto aos autos “… dentro dos poderes de direcção e em aplicação dos princípios do inquisitório e da cooperação, previstos nos arts. 6.º e 7.º do CPC, deve o julgador, verificada alguma incorrecção, incompletude ou deficiência, nos articulados, ou meios de prova neles indicados, convidar as partes ao seu suprimento, antes de os indeferir.

Só dessa forma se alcança o objectivo delineado na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 113/XII, de 22/12/2012, que deu origem ao CPC, ora em vigor, de que a instrução decorra ”sem barreiras artificiais”, de que, “o juiz apreenda a realidade histórica tal como esta, pela prova produzida, se apresenta nos autos” e ainda de que “mantêm-se e reforça-se o poder de direcção do juiz e o princípio do inquisitório (no activo suprimento da generalidade da falta de pressupostos processuais, na instrução da causa …)”.
Revertendo ao caso em apreço teremos de dizer que a autora requereu em sede de petição inicial a prestação do depoimento de parte do legal representante da Ré, tendo dado cabal cumprimento ao disposto no n.º 2 do art.º 452.º do CPC ao discriminar os factos sobre os quais pretendia que incidisse o seu depoimento, tendo praticamente indicado toda a matéria por si articulada na petição inicial, o que não estaria proibida de o fazer caso a mesma integrasse factos pessoais ou factos dos quais o depoente tivesse conhecimento directo (cfr. art.º 454.º n.º 1 do CPC.).
Ora, o indeferimento do depoimento de parte ficou a dever-se ao facto de se ter entendido ser objecto do depoimento toda a matéria de facto alegada na petição inicial, apelidando-se de genérica tal indicação e violadora do citado n.º 2 do artigo 452.º do CPC.
Tendo presente a posição acima por nós defendida, bem como os factos acima relatados, em face do teor do requerimento probatório da Autora relativamente ao depoimento de parte por si requerido não se pode concluir pela não discriminação da factualidade que iria incidir, pois tal factualidade está alegada ainda que inclua factos controvertidos ou matéria de direito, que não se possam incluir na previsão normativa do n.º 1 do art.º 454.º do CPC.
Tal terá de ser considerada uma mera deficiência a qual não impunha a preclusão do direito, mas sim seria de suprir com a admissão do depoimento aos factos indicados pela recorrente que reúnem os requisitos previstos no n.º 1 do art.º 454.º do CPC, ou com o convite ao aperfeiçoamento, o que entendemos que deve ser feito.
Aqui chegados, temos assim que, a diligência de prova requerida pela recorrente/apelante, subsumível ao art.º 452º, do CPC, foi requerida em tempo, tendo no entanto o seu objecto sido indicado de forma deficiente, - porque não discrimina apenas factos confessáveis -, pelo que consideramos que estava vedado ao julgador indeferir tal prova com fundamento na falta de discriminação.
Destarte, impõe-se a revogação decisão apelada e a procedência da apelação, devendo a Mmª Juiz a quo proceder desde logo à admissão do depoimento de parte seleccionando dentro dos factos indicados pela recorrente aqueles que entenda dever incidir tal depoimento, ou poderá proceder à notificação à parte requerente para, em prazo, discriminar os factos confessáveis, seguindo-se então e com base no mesmo, a prolação de despacho de admissão ou de não admissão do depoimento de parte do legal representante da Ré.

V – DECISÃO

Nestes termos, acordam os juízes que integram a Secção Social deste Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso apresentado por D. S., consequentemente revoga-se a decisão recorrida e determina-se que o tribunal a quo proceda à admissão do depoimento de parte seleccionando dentro dos factos indicados pela recorrente aqueles que entenda dever incidir tal depoimento, ou proceda ao convite dirigido à Autora para discriminar devidamente os factos objecto de confissão.
As custas do recurso em separado pela parte vencida a final.
Notifique.
Guimarães, 5 de Dezembro de 2019

Vera Maria Sottomayor (relatora)
Maria Leonor Barroso
Antero Dinis Ramos Veiga

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Sumário – artigo 663º n.º 7 do C.P.C.

I – A parte ao requerer o depoimento de parte deve indicar, discriminadamente, os factos sobre os quais há-de recair (art. 452.º, nº 2 do CPC.).
II – Tendo tal indicação sido feita de modo deficiente, deve o juiz seleccionar dentro dos factos indicados pelo requerente aqueles que entenda dever incidir tal depoimento ou convidar a parte a fazê-lo.

Vera Sottomayor