Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1329/18.7T8VRL-A.G1
Relator: VERA SOTTOMAYOR
Descritores: CRÉDITO LABORAL
AUTORIDADE DE CASO JULGADO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
Sumário da Relatora:

I- A autoridade do caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida anteriormente, noutro processo, cujo conteúdo importa ao presente e que se lhe impõe, assim obstando que uma determinada situação jurídica ou relação seja novamente apreciada

II- A autoridade do caso julgado ao contrário da excepção do caso julgado pode verificar-se, independentemente da verificação da tríplice identidade (sujeitos, pedido e causa de pedir) pressupondo, contudo que a decisão de determinada e concreta questão prejudicial ou prévia não pode voltar a ser discutida.

III- Por força da autoridade do caso julgado, está o tribunal impedido de apreciar a questão atinente aos eventuais créditos laborais referentes ao período de Janeiro de 2011 a 13 de Março de 2017, por tal questão estar dirimida entre as partes por força da transacção homologada judicialmente no âmbito de um outro processo, transacção essa efectuada em conformidade com o previsto no n.º 2 do artigo 1248.º do C.C.
Decisão Texto Integral:
Acordam na secção social do Tribunal da Relação de Guimarães

APELANTE: M. L.
APELADA: SANTA CASA DA MISERICÓRDIA X

I – RELATÓRIO

M. L., residente na Rua … Murça, instaurou a presente acção declarativa emergente de contrato individual de trabalho, com processo comum, contra SANTA CASA DA MISERICÓRDIA X, com sede na Rua … pedindo que seja reconhecido, que a partir de 1 de Junho de 2017, a Autora passou a estar integrada no 4º escalão do Grau II da categoria profissional de Ajudante de Lar e Centro de Dia e consequentemente que se condene a ré:

a) a pagar-lhe a quantia de 17.746,12, a título de trabalho realizado, entre 1 de Janeiro de 2011 e 31 de Dezembro de 2017, em dias de mudança de turno sem que tivesse gozado o dia de descanso semanal, nos termos plasmados nos artigos 44.º, 58.º, 72.º, 86.º, 100.º, 114.º e 128.º da petição inicial, acrescida de juros de mora calculados à taxa legal;
b) a pagar-lhe a quantia de €926,63, a título de trabalho suplementar realizado entre 1 de Janeiro de 2011 e 31 de Dezembro de 2017, nos termos plasmados no art.º 142.º da petição inicial, acrescida de juros de mora calculados à taxa legal;
c) a pagar-lhe a quantia de €556,52, relativa a outros créditos laborais devidos e não pagos, nos termos plasmados nos artigos 144.º, 148.º, 152.º e 155.º da petição inicial, acrescida de juros de mora calculados à taxa legal.

A Ré contestou a presente acção deduzindo, além do mais a excepção do caso julgado relativamente ao pedido de reconhecimento do enquadramento das funções desempenhadas pela autora no 4.º escalão do grau II da categoria profissional de ajudante de lar e centro de dia, bem como no que respeita ao ressarcimento das quantias peticionadas na presente acção.

A Autora respondeu à excepção defendendo que não existindo identidade de pedidos, nem de causas de pedir, pois os pedidos que foram formulados na outra acção diziam respeito ao pagamento de subsídio de alimentação e de subsídio de turno, terá de se julgar improcedente a excepção do caso julgado.

Por fim, pela Mma. Juiz a quo foi proferido despacho saneador no âmbito do qual se apreciou a excepção suscitada, e se concluiu da seguinte forma:

“Considerando, pelos motivos acima expostos, que estamos perante a existência de autoridade de caso julgado entre a decisão final proferida no âmbito da acção acima identificada e a presente lide nos pedidos que se refiram ao período de Janeiro de 2011 a 13 de Março de 2017 (data da decisão judicial homologatória), inclusive, pelo que se absolve a R. dos mesmos, prosseguindo a presente acção apenas para a apreciação dos pedidos referentes ao pedido restante, isto é, a partir de Abril de 2017 inclusive até Dezembro de 2017 e os créditos relativos a 2018.
Custas nesta parte pela A.
Fixa-se aos pedidos acima referidos o valor de €16.675,75.
Registe e notifique.”
*
Inconformado com esta decisão, dela veio a Autora interpor recurso de apelação para este Tribunal da Relação de Guimarães, apresentando alegações que terminam mediante a formulação das seguintes conclusões:

I. O presente recurso, incidente sobre a decisão que absolveu a Ré dos pedidos formulados na petição inicial quanto ao período de Janeiro de 2011 a 13 de Março de 2017, proferida pela Meritíssima Juiz a quo aquando da prolação do despacho saneador, versa apenas sobre matéria de direito.
II. a X (…)
XI. Entendeu a Meritíssima Juiz a quo, em sede de despacho saneador, que os pedidos formulados pela Autora na petição inicial, quanto ao período de Janeiro de 2011 a 13 de Março de 2017, não poderão ser atendidos na presente acção, por força da autoridade de caso julgado, decorrente dos termos do acordo exarado em documento subscrito pelas partes e devidamente homologado por sentença proferida em sede de audiência de partes, no âmbito do Processo n.º 173/17.3T8VRL, que correu termos pelo Juízo do Trabalho de Vila Real (Juiz 1).
XII. Entende a Recorrente que a decisão proferida pela Meritíssima Juiz a quo foi feita ao arrepio do disposto no artigo 621.º do CPC.
XIII. Contrariamente àquilo que é expendido pela Meritíssima Juiz a quo na decisão recorrida, a autoridade de caso julgado exige que este tenha uma extensão objectiva definida pelo pedido e pela causa de pedir.
XIV. No entanto, não há qualquer identidade quanto à causa de pedir e quanto aos pedidos formulados na presente e na anterior acção.
XV. O caso julgado implícito só pode ser admitido em relação a questões suscitadas no processo em que devam considerar-se abrangidas, embora de forma não expressa, nos termos e limites precisos em que julga.
XVI. Ora, tal não se verifica nos presentes autos, uma vez que a decisão homologatória da transacção efectuada no Processo n.º 173/17.3T8VRL não se afigura como impeditiva da reclamação dos créditos laborais peticionados neste processo.
XVII. Referir - como refere a Meritíssima Juiz a quo na decisão recorrida - que a Autora não tem direito ao pagamento das quantias elencadas na petição inicial, uma vez que, no âmbito do Acção de Processo Comum n.º 173/17.3T8VRL, que correu termos pelo Juízo do Trabalho de Vila Real, realizou com a sua entidade empregadora uma transacção, na qual se encontra previsto que "a Autora considera-se paga de tudo quanto lhe é devido no âmbito da relação jurídico-laboral que mantém com a Ré, nada mais tendo a exigir desta", consubstancia uma interpretação radical, parcial e manifestamente lesiva dos direitos jurídico-laborais da Autora.
XVIII. Tal interpretação, além de não atender à manifesta distinção dos pedidos formulados no âmbito da referida Acção de Processo Comum relativamente aos pedidos em apreço nestes autos, mostra-se desconforme com o carácter fundamental do direito à retribuição, bem como com o preceituado no artigo 621.º do CPC.
XIX. A referida declaração da Autora (de que se considera paga de tudo quanto lhe é devido no âmbito da relação jurídico-laboral que mantém com a Ré, nada mais tendo a exigir desta), constante da transacção efectuada na Acção de Processo Comum n.º 173/17.3T8VRL, surgiu na sequência da apresentação em juízo de uma petição inicial na qual se reclamavam créditos salariais atinentes ao pagamento do subsídio de turno e do subsídio de alimentação.
XX. Sucede, porém, que, nos presentes autos, não são peticionadas quaisquer quantias a título de subsídio de turno ou de subsídio de alimentação anteriores a 10 de Março de 2017, data da concretização da transacção, mas antes:

- a quantia de €17.746,12 (dezassete mil, setecentos e quarenta e seis euros e doze cêntimos), a título de trabalho realizado, entre 1 de Janeiro de 2011 e 31 de Dezembro de 2017, em dias de mudança de turno sem que tivesse gozado o dia de descanso semanal;
- a quantia de €926,63 (novecentos e vinte e seis euros e sessenta e três cêntimos), a título de trabalho suplementar realizado entre 1 de Janeiro de 2011 e 31 de Dezembro de 2017;
- a quantia de €556,52 (quinhentos e cinquenta e seis euros e cinquenta e dois cêntimos), relativa a outros créditos laborais vencidos em 2018 e não pagos.
XXI. A declaração da Autora, constante da transacção anteriormente efectuada, tem um objecto diametralmente oposto àquele que se encontra em causa nestes autos.
XXII. A Autora, ao declarar que "se considera paga de tudo quanto lhe é devido no âmbito da relação jurídico-laboral que mantém com a Ré, nada mais tendo a exigir desta", apenas está a referir que se encontra paga de todos os créditos salariais em apreço nesse processo judicial - subsídios de turno e subsídio de alimentação até 10 de Março de 2017.
XXIII. Tal não inibe a Autora de reclamar, posteriormente, outros créditos salariais e/ou indemnizatórios que lhe sejam devidos, desde que sejam diferentes daqueloutros que foram objecto de uma transacção anteriormente efectuada.
XXIV. Da transacção judicial acima mencionada não resulta que as partes (aqui incluída a Autora) decidiram abdicar da discussão e análise da pertinência de outros eventuais créditos eventualmente vencidos e não pagos, de natureza diferente dos anteriormente discutidos e liquidados no âmbito dessa acção judicial.
XXV. A aceitação da transacção em apreço pela Autora apenas significa que esta se conformou com a quantia dela constante, paga a título de subsídio de turno e de subsídio de alimentação, com renúncia expressa ao pagamento de qualquer outra quantia remanescente a esse título, tendo em conta a natureza da limitação processual que o caso julgado encerra.
XXVI. Mas não significa que a Autora quis renunciar a quaisquer outros créditos salariais que lhe fossem devidos, até porque tal se afigura legalmente impossível.
XXVII. As declarações do trabalhador, reduzidas ou não a escrito, de que “nada mais tem a exigir da entidade patronal”, “se considera pago de tudo quanto lhe era devido”, “recebeu todas as importâncias que lhe eram devidas” ou outras equivalentes, não têm o valor de recibo de quitação.
XXVIII. E não o têm, desde logo, em atenção à natureza dos direitos em causa.
XXIX. Na verdade, o direito à retribuição é irrenunciável e é indisponível ou, pelo menos, parcialmente disponível.
XXX. Não se pode qualificar de modo diferente um crédito que:
(i) é constitucionalmente garantido (artigo 59.º, n.º 1, al. a), da Constituição da República Portuguesa - CRP);
(ii) não pode ser unilateralmente reduzido (artigo 129.º, n.º 1, al. d), do Código do Trabalho - CT);
(iii) não pode ser reduzido por mero acordo do trabalhador e da entidade patronal (artigo 129.º, n.º 1, al. d), do CT);
(iv) não se extingue por compensação (artigo 279.º, n.º 1, do CT);
(v) não pode ser objecto de descontos ou deduções (artigo 279.º, n.º 1, do CT);
(vi) é impenhorável (artigo 738.º do CPC);
(vii) não pode ser cedido a título gratuito ou oneroso (artigo 280.º do CT);
(viii) goza de privilégios creditórios (artigo 333.º do CT); e
(ix) só prescreve um ano após a cessação do respectivo contrato, ainda que se haja vencido há mais tempo (artigo 337.º do CT).
XXXI. Naturalmente, este especial regime com que a ordem jurídica dota o direito à retribuição tem em conta a presumida posição de inferioridade económica e social do trabalhador.
XXXII. Este não é, porém, o seu único nem, porventura, principal fundamento.
XXXIII. Ele justifica-se também, e sobretudo, pela função alimentar deste crédito. Sendo considerado como principal, ou mesmo exclusivo, rendimento do trabalhador e, por isso, indispensável à sua sobrevivência e à dos membros do seu agregado familiar, compreende-se a especial preocupação da lei expressa no regime referido.
XXXIV. E, por conseguinte, sendo o direito da retribuição da Autora um direito fundamental da mesma, não poderá legitimamente invocar-se que, uma vez efectuada a transacção no Processo n.º 173/17.3T8VRL, ela ficou inibida de invocar a falta de pagamento de outros créditos salariais, de natureza diversa, vencidos anteriormente à data dessa transacção.
XXXV. Não se percebe por que razão a Meritíssima Juiz a quo refere que a certeza e a segurança jurídicas sairiam profundamente abaladas com a apreciação dos pedidos aqui deduzidos pela Autora, uma vez que o facto de esta se ter considerado ressarcida de todos os créditos laborais vencidos até 13 de Março de 2017 apenas quer significar o ressarcimento de todos os créditos laborais então peticionados e não de outros que eventualmente lhe fossem devidos.
XXXVI. Por outro lado, jamais será legítima a expectativa da Ré quanto à inexistência de outros créditos laborais por banda da Autora até Março de 2017, uma vez que - repete-se - o objecto do anterior processo era totalmente diferente do objecto destes autos.
XXXVII. E tal expectativa sempre sairia frustrada atendendo à natureza dos direitos invocados pela Autora nos presentes autos.
XXXVIII. Nesta acção está em causa o direito fundamental à retribuição, previsto no artigo 59.º, n.º 1, alínea a), da CRP, decorrente da violação de um outro direito fundamental da Autora – o direito ao gozo do descanso semanal após a mudança de turno (cfr. alínea d) do citado artigo).
XXXIX. Ora, tais direitos fundamentais ocupam posição de supremacia relativamente às “legítimas expectativas” da Ré quanto à inexistência de créditos salariais em dívida até Março de 2017, pelo que, também por essa via, não existem quaisquer razões para se afastar do presente processo a discussão dos factos correspondentes aos pedidos formulados sob as alíneas b) e c) da petição inicial.
XL. O direito à retribuição poderá ser sempre exercido pelos trabalhadores, tendo em vista o pagamento de créditos salariais, em qualquer momento do contrato de trabalho e dentro do prazo previsto no artigo 337.º, n.º 1, do CT, ainda que tal aconteça no âmbito de diferentes acções judiciais, desde que corresponda, necessariamente, a um objecto, a um pedido e a uma causa de pedir distintos.
XLI. E é nestes termos que deve ser integralmente revogada a decisão recorrida, com a respectiva substituição por outra que determine a discussão e julgamento, nos presentes autos, dos pedidos formulados sob as alíneas b) e c) da petição inicial.
A Recorrida/Apelada não respondeu ao recurso.
*
Foi admitido o recurso na espécie própria e com o adequado efeito e regime de subida e foram os autos remetidos a esta 2ª instância.
Foi determinado que se desse cumprimento ao disposto no artigo 87.º n.º 3 do C.P.T., tendo o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitido douto parecer, no âmbito do qual conclui pela improcedência do recurso.

As partes, notificadas para se pronunciarem acerca do parecer do ilustre Magistrado do Ministério Público, nada vieram dizer.

Dado cumprimento ao disposto na primeira parte do nº 2 do artigo 657.º do Código de Processo Civil foi o processo submetido à conferência para julgamento.

II - OBJECTO DO RECURSO

Delimitado o objeto do recurso pelas conclusões da recorrente (artigos 635º, nº 4, 637º n.º 2 e 639º, nºs 1 e 3, do Código de Processo Civil), não sendo lícito ao tribunal ad quem conhecer de matérias nela não incluídas, a única questão que se coloca à apreciação deste Tribunal é a de apurar se in casu se verifica a excepção da autoridade do caso julgado, deixando desde já consignado que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos invocados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito – cfr. art. 5.º n.º 3 do CPC.

III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Para além dos factos que constam do relatório que antecedem encontram-se assentes os seguintes factos:

- Na transacção homologada judicialmente no processo n.º 173/17.3T8VRL, Autora e Ré declaram o seguinte:

1º- A Autora e a Ré reduzem o valor do pedido para €1.758,00 (mil, setecentos e cinquenta e oito euros), valor que esta se compromete a pagar como compensação global de créditos laborais devidos àquela até à presente data;
2º, n.º4 – Com a concretização das transferências bancárias em apreço, a Autora considera-se paga de tudo quanto lhe é devido no âmbito da relação jurídico-laboral que mantém com a Ré, nada mais tendo a exigir desta.

IV - APRECIAÇÃO DO RECURSO

Da autoridade do caso julgado

A recorrente insurge-se quanto ao facto de em sede de despacho saneador a recorrida ter sido absolvida dos pedidos por si formulados na petição inicial referentes ao período de Janeiro de 2011 a 13 de Março de 2017, por se ter entendido que por força da autoridade de caso julgado, decorrente dos termos do acordo exarado pelas partes naquele outro processo, com o n.º 173/17.3T8VRL, que veio a ser devidamente homologado por sentença, não poderiam ser atendidos tais pedidos nesta acção.
A questão que cumpre apreciar consiste assim em saber se nos presentes autos devemos admitir que funcione a autoridade de caso julgado, decorrente do processo n.º 173/17.3T8VRL (Juiz 1), ou se essa autoridade não se pode projectar nos presentes autos porque advém de processo completamento distinto.

Cumpre apreciar e decidir:

No referido processo n.º 173/17.3T8VRL foram Autora e Ré os ora aqui recorrente e recorrida, tendo sido posto termo a tal acção por transacção homologada judicialmente e transitada em julgado, na qual se consignou o seguinte:

1.º A A. e Ré reduzem o valor do pedido para €1.758,00 (mil, setecentos e cinquenta e oito euros), valor que esta se compromete a pagar como compensação global de créditos laborais devidos àquela até à presente data;
2º, nº4 – Com a concretização das transferências bancárias em apreço, a Autora considera-se paga de tudo quanto lhe é devido no âmbito da relação jurídico-laboral que mantém com a Ré, nada mais tendo a exigir desta.

Importa assim apurar, como bem observa o Exmo. Procurador Geral-Adjunto, no seu douto parece, “se a declaração da autora numa transação judicial homologada por sentença numa outra ação emergente de contrato individual de trabalho intentada contra a ré de que “considera-se paga de tudo quanto lhe é devido no âmbito da relação jurídico-laboral que mantém com a ré, nada mais tendo a exigir desta”, impede a autora de propor nova ação em que reclame dessa mesma ré o pagamento de outros créditos laborais referentes à mesma relação laboral que englobe aquele período temporal.”

O alcance do conteúdo da declaração que se fez constar da referida transacção não pode deixar de ser precisamente aquele que resulta da respectiva expressão já que de forma clara e inequívoca a Autora declarou que “se considera paga de tudo quanto lhe é devido no âmbito da relação jurídico-laboral, nada mais tendo a exigir desta”.

Daqui resulta que a autora confessa/reconhece que com o acordo conseguido está paga de todos os créditos salariais existentes até à data e não apenas daqueles que concretamente reclamava na referida acção. Este é o sentido que em conformidade com o disposto no art.º 236.º do Código Civil um declaratário normal, medianamente informado dos usos em voga no sector laboral, extrairia de tal declaração. Neste contexto teremos de dizer que a Autora tinha perfeito conhecimento do que estava a declarar, isto é que a Ré, com o pagamento da quantia acordada nada mais lhe devia a título de créditos laborais até aquela data e por isso nada mais lhe podia exigir no que respeita ao período abrangido pela transacção homologada judicialmente.

Caso não tivesse sido essa a vontade de ambas as partes teriam feito constar do acordo que diria respeito aos créditos reclamados naquela acção, sem que existisse qualquer necessidade de se mencionar que o pagamento abrangia tudo o devido até à data e resultante da relação jurídica laboral.

Salvo o devido respeito por opinião em contrário, a interpretação restritiva que se pretende fazer do mencionado acordo não tem qualquer suporte no texto do acordo, nem no espirito que presidiu à sua celebração, pois ao consignar que se está ser pago de tudo o que lhe é devido, sem referir os específicos créditos reclamados na acção, mas sim a todos os créditos resultantes da relação laboral existentes até à altura, está-se a por termo não só ao litígio existente como a proceder a um real acerto de contas até àquela data, abdicando assim da discussão e análise da pertinência de outros eventuais créditos vencidos e não pagos de natureza diferente dos ali reclamados.

Se não fosse esta a vontade das partes, então o acordo teria assumido outros contornos, delimitando efectivamente os créditos, o que não sucedeu.

Em suma, a transacção homologada no proc. n.º 173/17.3T8VRL é de interpretar no sentido de englobar todos os créditos laborais vencidos até à data da homologação do acordo e sendo assim importa apreciar o caso julgado, tendo por referência tal acção já transitada em julgado.

De acordo com o previsto no n.º 1 do art.º 619.º do CPC., “Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º”

Por seu turno preceitua o artigo 621.º do CPC, epigrafado de “Alcance do caso julgado” que,
“A sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga: se a parte decaiu por não estar verificada uma condição, por não ter decorrido um prazo ou por não ter sido praticado determinado facto, a sentença não obsta a que o pedido se renove quando a condição se verifique, o prazo se preencha ou o facto se pratique.”

Os citados preceitos referem-se ao caso julgado material, mais precisamente ao efeito imperativo atribuído à decisão transitada em julgado em primeiro lugar que tenha recaído sobre a relação material em discussão (cfr. art.º 621.º n.º 1 do CPC).

A força e a autoridade atribuída à decisão transitada em julgado visa evitar que a questão apreciada e decidida por um tribunal possa ser de novo definida em termos diferentes por outro ou pelo mesmo tribunal, de forma a não por em perigo a segurança jurídica de certeza de um determinado direito e a prevenir risco de uma decisão inútil, salvaguardando desta forma o prestígio dos tribunais, pois existindo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a que transitou primeiro em julgado.

Como escreve a este propósito, Alberto dos Reis, in Código do Processo Civil Anotado, vol. III, 4ª edição, pág. 93, que o caso julgado exerce duas funções, uma positiva e outra negativa. Exerce a primeira quando faz valer a sua força e autoridade, tendo a sua expressão máxima no princípio da exequibilidade, servindo de base à execução. Exerce a segunda através da excepção de caso julgado. Porém, (…) autoridade de caso julgado e excepção de caso julgado não são duas figuras distintas; são antes duas faces da mesma figura. O facto jurídico «caso julgado» consiste afinal nisto: em existir uma sentença, com trânsito em julgado, sobre determinada matéria. Ora bem, esta sentença pode ser utilizada, numa acção posterior, ou pelo autor ou pelo réu (..). Temos, pois, que o caso julgado pode ser invocado pelo autor ou pelo réu; invoca-o o autor quando faz consistir nele o fundamento da sua acção: invoca-o o réu quando se serve dele para deduzir excepção. Mesmo quando funciona como excepção, por detrás desta está sempre a força e autoridade de caso julgado

Os efeitos do caso julgado devem assim ser vistos numa dupla perspectiva, pois que tratam de realidades distintas, a saber:

- A excepção de caso julgado, excepção dilatória a que alude o art.º 577.º, alínea i) do CPC., aferindo-se pela identidade dos sujeitos, pedido e causa de pedir, nos termos previstos no disposto no art.º 581º do CPC, que pressupõe a repetição de uma causa e tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior (art.º 580º, nºs 1 e 2). É uma excepção de conhecimento oficioso e dá origem à absolvição da instância (arts.º 578º e 576º, nº2 do CPC.);

- A autoridade do caso julgado, que importa a aceitação de decisão proferida anteriormente, noutro processo, cujo conteúdo importa ao presente e que se lhe impõe, assim obstando que uma determinada situação jurídica ou relação seja novamente apreciada, considerando a maioria da jurisprudência e doutrina que, nesta situação, não se exige a tríplice identidade prevista no art.º 581.º do CPC.

Como referem Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto (Código de Processo Civil Anotado, vol.2º, 2ª edição, Coimbra Editora, 2008, Coimbra, p.354): “[a] excepção de caso julgado não se confunde com a autoridade de caso julgado; pela excepção, visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda acção, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito; a autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível de segunda decisão de mérito (…). Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida (…). Mas o efeito negativo do caso julgado nem sempre assenta na identidade do objecto da primeira e da segunda acções: se o objecto desta tiver constituído questão prejudicial da primeira (e a decisão sobre ela deva, excepcionalmente, ser invocável) ou se a primeira acção, cujo objecto seja prejudicial em face da segunda, tiver sido julgada improcedente, o caso julgado será feito valer por excepção”.

Também na jurisprudência é entendimento dominante, designadamente no Supremo Tribunal de Justiça que a autoridade do caso julgado diversamente da excepção de caso julgado, pode funcionar independentemente da verificação da tríplice identidade a que alude o art.º 581.º do CPC, no pressuposto de que a decisão de determinada questão não pode voltar de novo a ser discutida.

A este propósito refere-se no Acórdão do STJ de 27-02-2018, proc. n.º 2472/05.8TBSTR.E1, “[n]a jurisprudência deste Supremo Tribunal encontramos plasmado o entendido de que a autoridade de caso julgado, diversamente da excepção de caso julgado, pode funcionar independentemente da verificação da tríplice identidade a que alude o art.º 498º do CPC, pressupondo, porém, a decisão de determinada questão que não pode voltar a ser discutida - nesse sentido, cf. Ac. do STJ de 13.12.2007, processo nº 07A3739; Ac. de 06.03.2008, processo nº 08B402, e Ac. do STJ de 23.11.2011, processo nº 644/08.2TBVFR.P1.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

Também é entendimento dominante que a força do caso julgado material abrange, para além das questões directamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado – assim, nomeadamente, Ac. do 29/07.4.TBPST.S STJ de 12.07.2011, processo 11,
www.dgsi.pt – o que tem apoio na doutrina de Miguel Teixeira de Sousa, ao afirmar: “não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão” (“Estudos sobre o Novo Processo Civil, p. 579).

Em suma, vem entendendo a nossa jurisprudência que a autoridade do caso julgado ao contrário da excepção do caso julgado pode verificar-se, independentemente da verificação da tríplice identidade (sujeitos, pedido e causa de pedir) pressupondo, contudo que a decisão de determinada e concreta questão prejudicial ou prévia não pode voltar a ser discutida. Neste sentido ver ainda entre outros, Ac. STJ de 7.05.2015, Processo n.º 15698/04.2YYLSB-C-L1-S1, relator Sr. Juiz Conselheiro Granja da Fonseca, Ac. STJ de 23.11.2011, Processo n.º 644/08.2TBVFR.P1.S1, relator Sr. Juiz Conselheiro Pereira da Silva, Ac. STJ de 6.03.2008, Processo n.º 08B402, relator Sr. Juiz Conselheiro Oliveira Rocha e A.c STJ de 13.12.2007, Processo n.º 07A3739, relator Sr. Juiz Conselheiro Nuno Cameira, todos in www.dgsi.pt

Como se sintetiza no Acórdão da Relação do Porto de 21.11.2016, proc. n.º 1677/15.8T8VNG.P1, relator Sr. Juiz Desembargador Jorge Seabra, disponível em www.dgsi.ptDesta forma, poder-se-á concluir que a força e autoridade do caso julgado visam evitar que a questão decidida pelo órgão jurisdicional possa ser validamente definida, mais tarde, em termos diferentes por outro ou pelo mesmo tribunal e que possui também um valor enunciativo, que exclui toda a situação contraditória ou incompatível com aquela que ficou definida na decisão transitada e afasta todo o efeito incompatível, isto é, todo aquele que seja excluído pelo que foi definido na decisão transitada.”

A decisão recorrida alude a esta matéria de forma desenvolvida, com a qual concordamos.

Mas vejamos:

A relação laboral estabelecida entre as partes deu origem à interposição de uma primeira acção judicial no âmbito da qual a Autora reclamou a condenação da Ré no pagamento de créditos salariais respeitantes a subsídio de turno e subsídio de refeição vencidos até 10 de Março de 2017. Tal acção terminou por transacção na qual as partes acordaram que por força do pagamento da quantia acordada, nada mais seria devido à autora a título de créditos laborais relativamente ao período de Janeiro de 2011 a 13 de Março de 2017.

No âmbito da presente acção veio a Autora a reclamar além do mais a condenação da Ré no pagamento da quantia devida por prestação de trabalho suplementar e o não gozo de descanso semanal no período compreendido entre Janeiro de 2011 a 13 de Março de 2017.

Prescreve o artigo 1248.º do Código Civil, o seguinte:

1 – Transacção é o contrato pelo qual as partes previnem ou terminam um litígio mediante recíprocas concessões.
2 – As concessões podem envolver a constituição, modificação ou extinção de direitos diversos do direito controvertido.”

Do teor da citada disposição legal resulta inequívoco que ao transaccionarem as partes podem extinguir não só o direito controvertido, mas outros direitos distintos daquele, tendo nessa medida a sentença homologatória da transacção autoridade de caso julgado.

É essa precisamente a situação que se verifica no caso em apreço, atento o conteúdo da transacção homologada no proc. n.º 173/17. 3T8VRL.

Na verdade, a autora pretende agora dar o dito por não dito, ou seja depois de ter em sede de transacção declarado que nada mais lhe é devido, vem reclamar eventuais créditos salariais respeitantes ao período de tempo em que reconheceu que lhe tinham sido liquidado todos os créditos laborais devidos até à data da transacção, em clara violação à autoridade do caso julgado, resultante da sentença homologatória proferida em tal processo.

Com efeito, o objecto da presente acção insere-se no objecto da transacção homologada no que diz respeito a estes eventuais créditos referentes ao período em que reconhece que nada lhe é devido pela ré a título de créditos salariais, pretendendo assim fazer renascer o litígio que está definitivamente dirimido.

Confrontados os dois processos dúvidas não temos em afirmar que a Autora ao declarar em sede de transacção naquela outra acção que com a concretização das transferências bancárias considera-se paga de tudo quanto lhe é devido no âmbito da relação jurídico-laboral que mantêm com a ré, nada mais tendo a exigir, consubstancia uma quitação atinente à quantia recebida e integra o reconhecimento de que nada mais lhe cabia receber da Ré até à data da transacção, o que não pode deixar de se impor nestes autos, obstando assim a apreciação de tais pedidos, por força da autoridade do caso julgado.

Os pedidos formulados pela Autora, agora aqui em causa, revelam-se de incompatíveis e contraditórios com a situação que ficou definida na decisão transitada e em julgado, sendo por isso de considerar de excluídos pelo que foi definido na decisão transitada.

Assim, tendo sido homologada a transacção da qual que a autora se considera paga de tudo o que lhe é devido pela Ré até determinada data, não pode agora intentar uma nova acção em que reclama pagamentos de créditos laborais que se encontram abrangidos naquele acordo, salvaguardando desta forma que a aquela primeira decisão judicial possa ser contrariada ou posta em causa com a nova acção que se encontre abrangida no objecto da transacção judicialmente homologada. Só assim se obsta a que a situação jurídica material definida por uma sentença possa ser validamente definida de modo distinto por outra sentença.

Em suma, por força da autoridade do caso julgado, está o tribunal impedido de apreciar a questão atinente aos eventuais créditos laborais referentes ao período de Janeiro de 2011 a 13 de Março de 2017, por tal questão estar dirimida entre as partes por força da transacção homologada judicialmente no âmbito de um outro processo, transacção essa efectuada em conformidade com o previsto no n.º 2 do artigo 1248.º do C.C.

Mais não resta senão manter a decisão recorrida.

V – DECISÃO

Acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, mantendo a decisão recorrida.
Custas a cargo da Recorrente.
Notifique.
Guimarães, 10 de Julho de 2019

Vera Maria Sottomayor (relatora)
Antero Dinis Ramos Veiga
Alda Martins