Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
405/06.3TBMDL-G1
Relator: HELENA MELO
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM
FALTA DE FORMA LEGAL
ABUSO DE DIREITO
RENÚNCIA TÁCITA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/21/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: Se a a renúncia como causa de extinção do direito real, à data em foi proferida a declaração tinha que constar de escritura pública, sob pena de nulidade, significa que a lei apenas admite como forma de extinção a renúncia expressa e sujeita a uma forma solene.
Assim, a renúncia que não tenha obedecido à forma legal não pode produzir efeitos, ainda que apenas interpartes.
No venire contra factum proprium, vertente do abuso de direito, constitui uma violação do princípio da confiança, que se verifica quando o agente adopta uma conduta inconciliável com as expectativas adquiridas pela contraparte, em função do modo como antes actuara.
Agem em abuso de direito os AA. que, há mais de 28/29 anos para passarem no terreno das RR., lhes pediam autorização e que, findo esse período, vêm a juízo reclamar o reconhecimento de uma servidão de passagem, pois tal actuação continuada por um tão longo período de tempo foi de molde a criar nos RR. e nas adquirentes do prédio alegadamente onerado com a servidão, a confiança de que essa invocação não seria feita.
Decisão Texto Integral: Processo nº 405/06.3TBMNC.G1

Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório
B…, C…, D…, E… e F. e G…arrogando-se herdeiros da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de H…, vieram intentar a presente acção declarativa sob a forma de processo sumário contra I…, J…, K…, L…, M… e N…, na qualidade de herdeiros da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de O…, pedindo que, pela sua procedência:
.- lhes fosse reconhecido o direito de propriedade sobre o prédio melhor identificado no art. 2.º da petição inicial, configurado no esboço do documento n.º 5 junto com aquela peça processual, sendo os réus condenados a retirarem o bens que em tal prédio depositam, restituindo a parte que indevidamente ocupam, respeitando a linha divisória do mesmo configurada no dito documento;
.- fosse reconhecida uma servidão de passagem em favor dos autores sobre uma faixa de terreno com a largura de 2,5metros e com a extensão de cerca de 15 metros, localizada a poente do prédio pertença da herança representada pelos réus inscrito na matriz sob o art. xxxº, freguesia de Merufe, desimpedindo tal faixa de terreno;
.- fossem os réus condenados a absterem-se da prática de quaisquer actos que impeçam ou diminuam a utilização por parte dos autores dos rossios do seu prédio e da faixa de terreno objecto da servidão.
Para tanto, alegaram que a herança é integrada, ademais, pelo prédio melhor identificado no art. 2.º da petição inicial, sendo os réus, por sua vez, proprietários de um prédio confinante situado a norte daquele.
Que tais prédios pertenceram ao mesmo proprietário, sendo que vieram posteriormente, por partilha, a caber a proprietários diferentes que, entre si, acordaram que a divisão entre os prédios se faria pela metade do cabano que fica a poente dos mesmos e da segunda coluna de tal cabano, indo em linha recta até ao cunhal sul/nascente da casa dos réus e terminando a meio do canastro situado a nascente dos prédios.
Mais acordaram que seria mantida a servidão de passagem para o prédio dos autores com a extensão melhor explicitada no art. 19.º da petição inicial, sendo que, desde 1956, os autores e réus (e seus antepossuidores) respeitaram tal divisão e servidão de passagem, tendo os autores praticado actos de posse até à referida linha, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, convencidos de que o terreno lhes pertencia, tendo também, desde então, transitado a pé, de carro de bois, tractor e veículos automóveis sobre a faixa referida no art. 19.º da petição inicial para acederem ao seu prédio, assim tendo actuado à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, na convicção de estar a usar de direito próprio e por destinação de pai de família.
Os réus começaram a invadir os rossios do seu prédio, colocando alfaias agrícolas e veículos automóveis em tais rossios e negaram-se a permitir-lhes a passagem.
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Citados os réus, apresentaram contestação onde, em suma, excepcionaram a falta de personalidade judiciária/ilegitimidade dos autores e réus, para o que alegaram estarem em causa heranças indivisas e não jacentes.
Mais alegaram que a divisão entre os prédios não corresponde à adiantada pelos autores mas antes àquela que expõem no art. 27.º da contestação, divisão esta que, há 20 anos, é respeitada, sendo que, em 1977/1978, foi acordado entre o falecido H… e I… que os prédios se passariam a servir de entradas próprias, deixando os autores (e seus antepossuidores) de usar a passagem referida no art. 22.º da petição inicial, não uso que se mantém há mais de 20 anos.
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Os autores apresentaram resposta à contestação onde pugnaram pela improcedência das excepções aduzidas e impugnaram a matéria alegada pelos réus na contestação.
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Após os articulados, foi suscitado o incidente de habilitação, tendo os RR. iniciais sido substituídos pelas rés L… e K… a quem foi adjudicado, na proporção de metade para cada uma, o prédio acima identificado como pertença dos RR.
Procedeu-se à realização da audiência de julgamento, no decurso da qual se procedeu a inspecção ao local e a final foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente a acção e, consequentemente, decidiu:
“a) declarar que os autores são donos e legítimos possuidores do prédio rústico identificado no ponto A) da factualidade assente;
b) declarar que o prédio identificado em C) da factualidade assente está onerado a favor do prédio identificado no ponto A) da factualidade assente com uma servidão de passagem constituída por destinação de pai de família, passagem esta que tem a extensão melhor enunciada em F) da factualidade assente.
c) absolver os réus do demais peticionado.”
Os AA. não se conformaram e interpuseram o presente recurso, no qual formularam as seguintes conclusões:
EM CONCLUSÃO:
A – Por mero lapso de escrita, na alínea a) da parte decisória da sentença está escrito “prédio rústico” identificado no ponto A) da factualidade assente, quando devia estar escrito “prédio misto”, devendo ser corrigido, nos termos do n.º 1, do Art.º 614º, do C.P.C..
B – Dada como provada a renúncia, que por não ser formalizada, existiria e foi considerada a existência de uma renúncia tácita, mas não se lhe reconhecendo qualquer eficácia real, mas apenas eficácia meramente obrigacional, pelo que, como se diz na fundamentação da sentença recorrida, o pedido de reconhecimento da existência da servidão terá que proceder nos termos peticionados; porém, tal não teve qualquer relevo na decisão, pelo contrário, não procederam, como peticionado, a condenação dos RR., a reconhecerem o direito de servidão de passagem peticionado.
C – Foi, apenas, e em nosso entendimento é quanto basta, declarado o direito real de servidão de passagem peticionado pelos AA..
D – Mas, a sentença vai mais longe, na oposição entre a fundamentação e a decisão, como supra se expõe, dizendo que a renúncia tácita não tem eficácia real, mas decidindo
considerar improcedente o exercício de tal direito real de gozo, da servidão de passagem
declarado.
E – É objetiva tal contradição, verificando-se, assim, a nulidade prevista na al. c), do n.º
1, do Art.º 615º, do C.P.C..
F – Além disso, a “renúncia” chamada à colação, por pura dedução, ou melhor, conclusão da Meritíssima Juíza, feita pelo falecido H…, antecessor dos AA., jamais foi alegada pelos RR., muito menos, provada, ou qualquer facto que conduzisse a tal “renúncia”.
G – Daí, existir excesso de pronúncia do tribunal, sendo que a “renúncia” que não foi alegada, jamais, como negócio unilateral e na disponibilidade da parte renunciante, será de conhecimento oficioso.
H – Ao dar como provada tal “renúncia”, mesmo tácita, verifica-se a nulidade prevista na al. d) do n.º 1, do Art.º 615º do C.P.C..
I – No caso de inadmissibilidade de recurso, o que não se consente, atendendo às conclusões supra e restantes alegações, considerando existir erro na qualificação jurídica dos factos, seja a sentença reformada, nos termos da al. a), do n.º 2, do Art.º 616º, do C.P.C..
Sem prescindir,
J – Atendendo aos depoimentos das testemunhas arroladas e à posição processual dos RR., máxime, de I…, falecido, mas quando contestou a presente ação, ainda, vivo, sejam os factos dados como provados, nas alíneas I), J) e K), da fundamentação de facto, dados como não provados.
K – Atendendo ao depoimento das testemunhas arroladas pelos AA., e a todos os factores essenciais a uma boa apreciação da prova, sejam os factos, dados como não provados nos pontos 2. e 3., da fundamentação de facto, dados, totalmente, como provados.
L – Seja dado como procedente tudo o peticionado pelos AA., e, assim, ser a presente ação totalmente procedente, por provada.
M – A sentença recorrida, infringiu, entre outros, os dispositivos legais dos artigos 1543º, 1549º, 1564º e segs. do Código Civil e artigos 573º, 614º, 615º, n.º 1 als. c) e d) e 616º, n.º 2, al.a) do C.P.C..
Termos em que, deve ser dado provimento ao presente recurso e, consequentemente, revogada, em parte, a sentença recorrida, substituindo-a por outra que dê a ação como totalmente procedente.
A parte contrária contra-alegou e ampliou o recurso, tendo formulado as seguintes conclusões:
1. O recurso interposto pelos recorrentes referente à matéria de facto deve ser rejeitado, por não terem respeitado o aspecto formal exigido pela lei processual civil, pois, não indicaram as concretas passagens da gravação que impõem decisão diferente, em relação a cada facto, bem como, é insuficiente no aspecto substancial, uma vez que, se limitaram a aludir à prova testemunhal, sem retirarem daí qualquer ilação lógica que tivesse qualquer interferência na decisão da matéria de facto, sem referirem concretamente as razões por que essa prova impunha decisão diversa;
2. A sentença recorrida, dada a sua fundamentação, não sofre de qualquer vício, designadamente, de contradição entre a fundamentação e a decisão, pois, a sentença recorrida é escorreita e inequívoca ao paralisar o exercício da servidão de passagem, apesar de a renúncia táctica não ter eficácia real;
3. Também, não sofre do vício de excesso de pronúncia ao considerar existir uma renúncia tácita, por parte dos recorrentes, da servidão de passagem;
4. Pois, a “renúncia” é apenas um termo de Direito e não um facto, sendo que, os factos foram alegados pelas recorridas e constam da matéria dada como provada;
5. Em 1977/1978 foi acordado, pelos antecessores dos recorrentes e recorridas, dividirem os prédios referidos em A) e C) e cada um dos prédios passaria a servir-se por entradas próprias, passando o acesso do prédio referido em A) a processar-se pela entrada situada a nascente, desde essa data os recorrentes para passarem no prédio das recorridas pediam autorização, tais factos afiguram-se relevantes para criarem uma convicção firme e inequívoca de que o prédio referido em C), desde essa data, que deixou de estar onerado com uma servidão de passagem, em beneficio do prédio referido em A);
6. Por essa razão, a sentença recorrida decidiu paralisar o exercício do direito de servidão dos recorrentes, pois, apesar de se ter verificado uma “renúncia” ao direito de servidão deveria ter sido formalizada, o que levou a decidir manter a servidão, embora não possa ser exercida, dada a confiança criada pelos recorrentes e antecessor, ao longo de 28 anos, nas recorridas e antecessores, de que, a servidão se tinha extinguido;
7. Dada a matéria de facto dada como provada, a sentença recorrida deveria extinguir o direito de servidão dos recorrentes e não, apenas, paralisar o exercício do seu direito pelo recurso ao instituto do abuso de direito, pelo que, se requer a ampliação do objecto do recurso, quanto à extinção da servidão;
8. A renúncia tácita é uma forma de extinção das servidões admitida, pelo menos até 21/12/2008, data até à qual vigorou o DL 207/95, de 14-08, que estipulava a extinção das servidões, por escritura pública, em geral, não afastando a possibilidade de se extinguirem tacitamente;
9. Dado que, desde 1977/1978, os recorrentes deixaram de passar pela faixa de terreno identificada em F), pertencente ao prédios identificado em C), o período de 28 anos, atendendo à data em que a acção foi intentada, é suficiente para extinguir a servidão pelo não uso, sendo que, os recorrentes quando ali passavam, desde essa data, o faziam convictos de que não estavam a exercer um direito que lhes assistia e, por isso, pediam autorização;
10. Verificados estes factos, os mesmos são susceptíveis de afastar os efeitos da nulidade do acordo referido em I) e J) da matéria de facto dada como provada na sentença recorrida, por aplicação do instituo do abuso de direito, pois, afigura-se chocante o Direito não prever uma actuação factual que perdurou durante o período de 28 anos e não extinga aquilo que as partes quiseram extinguir, só por exigência formal.
Nestes termos em que, e nos mais de Direito que V/s Exªs suprirão, deve improceder o recurso interposto pelos apelantes, admitindo-se a ampliação do objecto de recurso e, consequentemente, extinguir o direito de servidão de passagem reconhecido na sentença recorrida.
Os apelantes responderam à ampliação.
Por despacho de fls 322 foi deferido o pedido de rectificação da sentença e desatendidas as nulidades invocadas.
II - Objecto do recurso:
Considerando que:
. o objecto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações dos recorrentes, estando vedado a este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso; e,
. os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu acto, em princípio delimitado pelo conteúdo do acto recorrido,
as questões a decidir são as seguintes:
Do recurso interposto pelos AA.
. se a sentença é nula oposição entre os fundamentos e a decisão;
. se a sentença é nula por ter conhecido de questões de que não podia conhecer;
. se a matéria de facto deve ser alterada;
. se as RR. devem ser condenadas a reconhecer que os AA. têm o direito de passarem no seu prédio e a absterem-se da prática de actos que impeçam a passagem.

Do recurso subordinado interposto pelos RR.
. se a servidão de passagem que onera o prédio dos RR. a favor do prédio dos AA. se extinguiu por renúncia tácita ou pelo não uso;
. se o abuso de direito é susceptível de afastar os efeitos da nulidade do acordo celebrado entre o H… e o I….

III – Fundamentação
Na 1ª instância foram julgados provados os seguintes factos:
A) No lugar do Ribeiro, freguesia de Merufe, concelho de Monção, existe um prédio misto destinado a habitação e rossios, com a área coberta de 95 m2, a confrontar (à data da propositura da acção) do norte com herdeiros de Maria , Sul com Manuel e outros, nascente com caminho público e poente com herdeiros de Daniel, inscrito na matriz sob o art. xxxº.
B) O prédio referido em A) foi objecto da partilha a que se procedeu por óbito de Maria, realizada no processo n.º xx/72, da 1.ª Secção, deste Tribunal, tendo sido adjudicado nessa partilha a H….
C) Os réus são donos de um prédio inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Merufe, Monção, sob o art. xxxº.
D) O prédio referido em A) confina, a norte, com o prédio referido em C).
E) Os autores, por si e seus antepossuidores, há mais de 40 anos que habitam a casa sita no prédio referido em A), aí cozinhando e fazendo as refeições, fazendo reparações e obras, cultivando fruta e produtos agrícolas nos rossios, utilizando metade dos cabanos para arrumos, colocando veículos, alfaias agrícolas e outros utensílios nos rossios, assim actuando à vista de todas as pessoas, sem oposição de quem quer que seja, de forma ininterrupta e na convicção de que o mesmo lhe pertence.
F) Há mais de 56 anos, os prédios referidos em A) e C) pertenciam a Sabino e esposa e a ligação dos mesmos ao caminho público, que corria pelo lado norte e nascente dos ditos prédios, fazia-se pela entrada que se localiza a poente do prédio referido em C), através de uma faixa com a largura de cerca de 2,50 metros, delimitada em parte por muros (à entrada) e cuja terra se apresenta batida, que começa na abertura na extrema poente do prédio referido em C), face à estrada municipal n.º 1118, seguindo pela parte poente junto ao prédio confinante e ao cabano, numa extensão de cerca de 15 metros de comprimento.
G) Em data indeterminada, por partilha da herança do Sabino e esposa, os prédios referidos em A) e C) passaram a pertencer a proprietários diferentes: o prédio referido em A) a Manuel e esposa; o prédio referido em C) a Esmeralda e Carolina na proporção de metade para cada uma.
H) A partir de então (data indeterminada referida em G)), mas pelo menos há mais de 40 anos e até 1977/1978, os autores e seus antepossuidores continuaram a transitar pela faixa de terreno referida em F) a pé, de carro de bois, tractor e veículos automóveis para acederem e saírem do prédio referido em A) de e para a via pública que ladeia o prédio referido em C) pelo lado norte, a qualquer hora do dia e da noite, sem oposição de quem quer que seja, à vista de todas as pessoas, de forma ininterrupta, na convicção de estarem a usar de direito próprio.
I) Em 1977/1978, H… e I… acordaram em dividir os prédios referidos em A) e C) da seguinte forma: através de uma linha recta que partia da 1.º coluna do cabano até às escadas de acesso à cozinha das rés e daí partia até ao meio do canastro.
J) Mais acordaram que cada um dos prédios passaria a servir-se por entradas próprias, sendo que a partir de tal data, o acesso da via pública para o prédio referido em A) passou a processar-se pela entrada situada no lado nascente.
K) Desde 1977/1978, os autores, sempre que querem usar a faixa referida em F) para aceder ao prédio referido em A), pedem autorização.
L) Os réus não permitem (desde 30/9/1999) que os autores passem pela faixa de terreno referida em F) e colocam aí automóveis, impedindo os autores de acederem ao prédio.
E foram julgados não provados os seguintes factos:
1. O prédio referido em A) tem 730 m2 de área descoberta.
2. Aquando da partilha da herança de Sabino e esposa, ocorrida em 28/1/1956, ficou assente que a divisória entre o prédio referido em A) e C) se fazia através de uma linha recta tirada da segunda coluna dos cabanos e que passava pelo cunhal sul/nascente da casa do prédio referido em C) e terminava ao meio do canastro situado a nascente dos prédios e que a servidão referida em F) ficaria como já era anteriormente.
3. Os autores, desde 1956, actuaram da forma referida em E) até à linha divisória referida em 2.
4. A partir de 1977/1978, os autores e seus antepossuidores continuaram a transitar pela faixa de terreno referida em F) a pé, de carro de bois, tractor e veículos automóveis para acederem e saírem do prédio referido em A) de e para a via pública que ladeia o prédio referido em C) pelo lado norte, a qualquer hora do dia e da noite, sem oposição de quem quer que seja, à vista de todas as pessoas, de forma ininterrupta, na convicção de estarem a usar de direito próprio.
5. Os réus colocaram alfaias agrícolas e automóveis nos rossios do prédio referido em A).
6. No âmbito da divisão referida em I), determinou-se que a linha que partia da 1.º coluna do cabano ia até ao limite do muro que delimita a entrada do prédio referido em A) (lado nascente).
7. Os autores deixaram de usar a passagem referida em F), o que sucede ininterruptamente há mais de 20 anos.

Os apelantes começaram por pedir a rectificação da sentença por erro material, o que foi deferido pela Mma Juiza a quo, pelo que esta questão mostra-se ultrapassada.

Nulidade da sentença por oposição entre os fundamentos e a decisão
Alegam os apelantes que ocorre oposição entre os fundamentos que subjazem ao reconhecimento da existência de uma renúncia tácita do direito de passagem efectuada pelo marido da 1ª A. e pai e sogro dos restantes AA. e a decisão, que apenas reconhece que o prédio dos RR. está onerado a favor do prédio dos AA. com uma servidão de passagem constituída por destinação de pai de família, mas, no entanto, não condenou os RR. a reconhecerem este direito e a absterem-se de praticar actos que o impeçam, quando tratando-se como se trata de um direito real de gozo, não podia tal direito ser cindindo, ou seja declarar-se que existe, mas paralisar o exercício do mesmo.
Os apelados defendem que o invocado pelos apelantes não constitui causa de nulidade de sentença, mas quando muito erro de julgamento.
Nos termos da alínea c) do nº 1 do artº 615º do CPC é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão.
A propósito desta nulidade diz José Lebre de Freitas (Código de Processo Civil Anotado, volº 2, Coimbra: Coimbra Editora, 2001, p. 670), “entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença. Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já quando o raciocínio expresso na fundamentação aponta para determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correcta, a nulidade verifica-se”.
Ora o invocado não constitui de modo algum o vício constante da alínea c) do nº 1 do artº 615º do CPC.
A Mma. Juíza a quo considerou que a acção material do antecessor dos AA., ao acordar que a partir do estabelecimento de uma linha divisória entre o prédio dos apelantes e dos apelados, a entrada para o seu prédio passaria a fazer-se pelo lado nascente e para utilizar a entrada que aqui se discute, teria que pedir autorização, renunciou tacitamente ao direito de servidão de passagem e esta renúncia do antecessor dos AA., ainda que não celebrada por escritura pública, como imponha a lei, gerou legitimamente nos antecessores dos RR. e depois nestes, a confiança de que tinha havido renúncia à servidão, pelo que considerando ter havido paralisação do direito por abuso de direito, reconheceu-o, mas não reconheceu os efeitos decorrentes de tal direito. A decisão está pois em harmonia com o que raciocínio lógico desenvolvido na argumentação/fundamentação, pelo que não ocorre qualquer nulidade. O que poderá haver é erro de julgamento, mas tal é questão diferente.
Improcede assim a alegada nulidade.

Nulidade por conhecimento de questões de que não podia conhecer
Entendem também os apelantes que a sentença é nula porque a Mma. Juíza considerou que tinha ocorrido renúncia tácita ao direito de servidão, mas os RR. nunca se defenderam invocando a existência de renúncia, nem ficou provada qualquer renúncia ou facto que incorporasse a renúncia.
A sentença será nula, quer no caso de o juiz deixar de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar, quer quando conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (artº 615, nº 1, alínea d), do CPC). Desde logo, importa precisar o que deve entender-se por questões, cujo conhecimento ou não conhecimento constitui nulidade por excesso ou falta de pronúncia. Como tem sido entendimento pacífico da doutrina e da jurisprudência, apenas as questões em sentido técnico, ou seja, os assuntos que integram o “thema decidendum”, ou que dele se afastam, constituem verdadeiras questões de que o tribunal tem o dever de conhecer para decisão da causa ou o dever de não conhecer, sob pena de incorrer na nulidade prevista no artº 615 nº 1, al. d) do CPC. Deve-se assim distinguir as verdadeiras questões dos meros “raciocínios, razões, argumentos ou considerações”, invocados pelas partes e de que o tribunal não tenha conhecido ou que o tribunal tenha aduzido sem invocação das partes (cfr., entre outros, Abílio Neto, Código do Processo Civil Anotado, 14.ª ed., pág. 702). Ora, como é sabido, a nulidade por excesso de pronúncia prevista na alínea d) do nº 1 do artº 615º do CPC, ocorre quando o juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. Este normativo tem de ser interpretado em conjugação com o disposto no artº 608, nº 2, 2ª parte, do CPC, que impõe que o juiz não se ocupe senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras. Por questões deve entender-se “os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e excepções invocadas e todas as excepções de que oficiosamente cumpre, ao juiz, conhecer (artº 608º, nº 2)”( conforme defendem Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, pág. 670).
Os apelados por sua vez pugnam também pela improcedência desta nulidade. Ora, o que está em causa é a interpretação que o Mmo Juiz deu aos factos provados, os quais foram alegados pelas partes, retirando dos mesmos determinadas ilações. Tal não constitui conhecimento de questão que não podia conhecer.
O juiz não está adstrito às qualificações jurídicas efectuadas pelas partes. A Mma. Juíza apenas qualificou juridicamente de modo diverso o acordo estabelecido entre as partes dado como provado, estabelecido em 1977/1978. Não se trata assim de questão de que não podia conhecer. E se o qualificou mal, a questão é de erro de julgamento e não de nulidade.
Improcede assim também esta nulidade.

Da pretendida alteração da matéria de facto:
O recorrente que pretende alterar a matéria de facto está sujeito ao cumprimento de diversos ónus processuais exigidos pelo artº 640º, nºs 1, al. al.a) a c) e nº 2, alínea a) do CPC, os quais são: indicação dos concretos pontos de facto que o apelante considere incorrectamente julgados e a dos concretos meios de prova que, a seu ver, teriam imposto e devem impor decisão diversa da recorrida sobre eles e qual deve ser essa decisão, e, no caso de provas gravadas, a indicação exacta das passagens da gravação em que se funda o recurso (cuja falta determina a imediata rejeição do recurso na respectiva parte).
As apeladas vêm pugnar pela rejeição da impugnação da matéria de facto, porque os apelantes não indicam concretamente as passagens da gravação em que se fundamentam para requerer a alteração, limitando-se a indicar o fim e o início de cada depoimento, nem fazem qualquer avaliação crítica da avaliação da prova pelo tribunal a quo.
Vejamos:
Os apelantes embora indiquem nas conclusões qual a matéria de facto que em seu entender se encontra incorrectamente julgada e qual a matéria que em seu entender se provou e não provou, não dão cumprimento ao disposto na alínea a) do nº 2 do artº 640º do CPC. Os apelantes limitam-se a indicar o início e o fim dos depoimentos, mas não indicam quais as passagens da gravação que demonstram o alegado erro, nem procedem à sua transcrição. Os apelantes limitam-se a referir em discurso indirecto o que as testemunhas em bloco terão dito e referem-se a contradições existentes nos seus depoimentos, mas sem as identificar.
Os apelantes não fazem também uma apreciação crítica dos depoimentos das testemunhas em ordem a demonstrar em que consiste o invocado erro de julgamento.
Consequentemente tem de ser rejeitado o recurso da matéria de facto, sendo a matéria de facto a considerar aquela que foi considerada provada pela 1ª instância.
Do Direito
As partes estão de acordo relativamente à constituição da invocada servidão por destinação de pai de família, divergindo quanto à sua extinção.
Os apelantes entendem que não ocorreu qualquer causa de extinção, porquanto o acordo não constitui uma causa de extinção, não podendo ser qualificado como uma renúncia tácita e ainda que assim fosse, porque tem apenas eficácia obrigacional, não poderiam improceder os pedidos formulados de condenação dos RR. a reconhecerem o seu direito e a facilitarem o exercício do direito de passagem. Por seu lado, as apeladas entendem que a servidão se extinguiu por renúncia tácita ou pelo não uso, o que requerem que seja declarado, na ampliação do recurso a que procederam.
Na sentença recorrida entendeu-se que o antecessor dos AA. tinha renunciado ao direito de passagem, renúncia essa que por não ter sido efectuada através da forma prevista na lei apenas podia ser entendida como renúncia tácita e com efeitos meramente obrigacionais, pelo que se declarou que o prédio dos RR. estava onerado com uma servidão de passagem a favor do prédio dos AA. No entanto, considerou-se que a actuação dos AA. constituía um abuso de direito na modalidade de venire contra factum propium pelo que se procedeu à paralisação dos efeitos do reconhecimento do direito e consequentemente não se condenou os RR. a reconhecerem o direito dos AA. nem se ordenou que os RR. se abstivessem da prática de actos que impedissem o direito de passagem.
Dispõe o nº 1 do artº 1569º do CC que as servidões se extinguem:
.a) pela reunião dos dois prédios, dominante e serviente, no domínio da mesma pessoa;
.b) pelo não uso durante vinte anos, qualquer que seja o motivo;
.c) pela aquisição, por usucapião, da liberdade do prédio;
.d) pela renúncia;
.e) pelo decurso do prazo, se tiverem sido constituídas temporariamente.
Efectivamente o artº 1569º do CC não prevê a extinção por contrato entre as partes, contrariamente ao que sucede relativamente à forma da constituição das servidões, em que expressamente se prevê a constituição por contrato (artº 1547º nº 1 do CC).
Mas não poderá a declaração de vontade do antecessor dos AA. ser considerada uma renúncia?
Um contrato é integrado por duas declarações de vontade. Por sua vez, a renúncia constitui um negócio jurídico unilateral, pelo que não carece de aceitação do proprietário do prédio serviente (cfr. art. 1569.º, n.º 5, do Código Civil), e consiste na declaração unilateral entre vivos pela qual o sujeito activo da servidão concretiza a sua decisão de deixar de ser titular desse direito, traduzindo-se assim na perda de um direito por vontade unilateral do respectivo titular.
Ora a declaração de vontade do H…, antecessor dos AA., no sentido de que cada prédio passaria a servir-se por entradas próprias, sendo que, a partir de tal data, o acesso da via pública para o prédio dos autores passou a processar-se pela entrada situada no lado nascente e, sempre que queriam usar a faixa referida em F) para aceder ao seu prédio, pediam autorização, pode ser entendido como uma renúncia tácita ao direito de servidão. A declaração tácita é aquela que se deduz de factos que com toda a probabilidade a revelam (artº 217º nº 1 do CC) e o facto do acesso ao prédio dos AA. passar a processar-se pela entrada situada do lado nascente e dos AA. pedirem autorização para passarem na passagem situada no prédio dos RR., permite concluir que o antecessor dos AA. pretendeu renunciar ao direito de passagem.

Só que, a renúncia como causa de extinção do direito real, à data em foi proferida a declaração tinha que constar de escritura pública, de acordo com o disposto no artº 89º alínea a) do DL 47619, de 31 de Março de 1967, sob pena de nulidade (artigos 219º e 220º do CC), admitindo assim a lei apenas como forma de extinção a renúncia expressa e sujeita a uma forma solene.
O Código de Notariado aprovado pelo DL 207/95, de 14 de Agosto, que revogou o DL 47619 (artº 5º), no artº 80º nº 1 veio dispor que “celebram-se, em geral, por escritura pública” os actos que importem reconhecimento, constituição, aquisição, modificação, divisão ou extinção dos direitos de propriedade, usufruto, uso e habitação, superfície ou servidão sobre coisas imóveis.
Actualmente, o Dec-Lei n.º 116/2008, de 4/7 (que aprovou medidas de simplificação, desmaterialização e desformalização de atos e processos na área do registo predial e de atos notariais complexos, em concretização do programa SIMPLEX), no seu art.º 34.º, alínea d) revogou o n.º 1 do citado art.º 80.º, do Código do Notariado. Ao mesmo tempo veio dispor no seu art.º 22.º que:
“Sem prejuízo do disposto em lei especial, só são válidos se forem celebrados por escritura pública ou documento particular autenticados os seguintes actos: os actos que importem reconhecimento, constituição, aquisição, modificação, divisão ou extinção dos direitos de propriedade, usufruto, uso e habitação, superfície ou servidão sobre coisas imóveis”. Este diploma entrou em vigor em 1-1-2009 (art.º 36.º, n.º 3, alª c)).
Tanto na vigência do diploma de 1967, como do que o revogou, vinha sendo defendido que a renúncia quando não celebrada por escritura pública, ainda assim poderia produzir efeitos obrigacionais.
No acórdão do TRP de 28.03.1989 (CJ, Tomo II, p.210-212), proferido no domínio do DL 47619, defendeu-se a eficácia obrigacional da renúncia que não reveste a forma legal, vinculando apenas as partes, com base no disposto no artº 1306º nº 1 do CC, citando a seu favor Manuel Mesquita (Revista de Direito e de Estudos Sociais, ano XXVI, 200). Dispõe o artº 1306º, nº 1 que não é permitida a constituição com carácter real, de restrições ao direito de propriedade ou de figuras parcelares deste direito senão nos casos previstos na lei; toda a restrição resultante de negócio jurídico que não esteja nestas condições tem natureza obrigacional.
E face ao disposto no nº 1 do artº 80º do Código do Notariado, aprovado pelo DL 207/95 e até à entrada em vigor do DL 116/2008, defendia-se que a renúncia quando não tivesse sido efectuada por escritura pública constituiria renúncia tácita com efeitos meramente obrigacionais, uma vez que a expressão utilizada no artº 80º nº 1 “celebram-se, em geral, por escritura pública”, permitiria essa interpretação .(cfr. é referido no Ac. do TRC de 10.12.2013, proferido no proc. 589/09).
Tal como se reconhece no Ac. do TRC de 10.12.2013, vemos com dificuldade que uma renúncia que não tenha obedecido à forma legal possa ainda assim produzir efeitos, ainda que meramente obrigacionais. A nosso ver, o artº 1306º nº 2 do CC não tem aplicabilidade nestas situações, não se destinando a sanar situações de falta de forma legal.
A lei quis expressamente subordinar a uma forma solene o acto de extinção de um direito real, exigindo assim uma maior reflexão sobre o assunto e protegendo os seus titulares.
E, não tendo a renúncia obedecido à forma legal, é nula, não produzindo quaisquer efeitos, pelo que não pode a servidão ser declarada extinta por uma renúncia que não observou a forma legal, como pretendem as apeladas.
Mas ainda que se defendesse a natureza obrigacional deste vínculo, como alguma doutrina e jurisprudência defendeu, o certo é que as partes que agora se encontram a pleitar não são as partes que acordaram em 1977/1978. E como tal, não lhes poderia ser oposto esse acordo.
E a servidão também não se extinguiu pelo não uso, como defendem as apeladas. Não se provou que a passagem deixasse de ser feita por mais de 20 anos. O que se provou é que depois do “acordo” entre as partes, o H… e os seus sucessores, quando utilizam a passagem, fazem-no com autorização dos proprietários do prédio dos RR. Ora, tal não pode ser considerado como não uso. A passagem continua a ser utilizada, o animus de passagem é que passou a ser diferente.

E colocar-se-á a questão do abuso de direito?
Admitindo embora a existência da nulidade da renúncia por falta de forma legal, não configurará a invocação pelos A. do direito de passagem uma situação de abuso do direito, nomeadamente na modalidade de venire contra factum proprium?
Dispõe o artº artigo 334º do CC que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o respectivo titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
O exercício abusivo do direito traduz-se no “comportamento que tenha a aparência de licitude jurídica – por não contrariar a estrutura formal – definidora (legal ou conceitualmente) de um direito, à qual mesmo externamente corresponde – e, no entanto, viole ou não cumpra, no seu sentido concreto – materialmente realizado, a intenção normativa que materialmente fundamenta e constitui o direito invocado, ou de que o comportamento realizado se diz exercício”(cfr. Castanheira Neves, Lições de Introdução ao Estudo do Direito, p. 391 ).
O instituto do abuso do direito tutela, deste modo, situações em que a aplicação de um preceito legal, normalmente ajustada, numa concreta situação da relação jurídica, se revela injusta e fere o sentido de justiça dominante.
A parte que abusa do direito actua a coberto de um poder legal, formal, visando resultados que, clamorosamente, violam os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes, ou pelo fim económico ou social do direito (cfr. se defende no Ac. do STJ de 13.01.2005, proferido no proc. 04B4063, in www.dgsi.pt).
“O nosso sistema legal acolhe uma concepção objectiva do abuso de direito, não exigindo a consciência do “abusador” no sentido de se encontrar a exceder, com o exercício do direito, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito, bastando que, objectivamente, se excedam tais limites. A lei considera verificado o abuso, prescindindo dessa intenção.
Para que o exercício do direito seja abusivo, é preciso que o titular, observando embora a estrutura formal do poder que a lei lhe confere, exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar, em função dos interesses que legitimam a concessão desse poder. É preciso que o direito seja exercido, em termos clamorosamente ofensivos da justiça” (extracto retirado do Ac. do TRG de 12.02.2015, proferido no proc.4090/12, no qual a relatora deste acórdão interveio como adjunta).
No venire contra factum proprium, vertente do abuso de direito, constitui uma violação do princípio da confiança, que se verifica quando o agente adopta uma conduta inconciliável com as expectativas adquiridas pela contraparte, em função do modo como antes actuara.
Quanto à situação objectiva de confiança, nada na matéria de facto permite concluir que os réus esperassem que os autores viriam reclamar o direito de passagem, pois que desde há mais de 20 anos que os AA. (e não apenas o falecido H…) para passarem no seu terreno pediam autorização, e só ao fim de 28/29 anos, já depois da morte do H… ocorrida em 1999 (cfr. documento de fls 10 ), vieram a juízo reclamar o direito de passagem. Mostra-se, assim, clamorosamente violado o princípio da confiança, pois tão longo período foi de molde a criar nos RR. e nas adquirentes, também elas RR. inicialmente, filhas de I…, a confiança de que essa invocação não seria feita, agindo em conformidade com essa confiança, ocupando, designadamente, com veículos o local por onde a passagem era feita anteriormente (ocupação que também ter por fim impedir o acesso aos AA).
Assim, por força do instituto do abuso de direito devem ser paralisados os efeitos decorrentes do reconhecimento da servidão de passagem, como se entendeu na decisão recorrida. O abuso de direito não pode converter uma renúncia que não obedeceu à forma legal, numa renúncia válida, como também defendem as apeladas, mas permite a paralisação dos efeitos decorrentes do direito que se pretendeu exercer abusivamente.
Sumário:
.No venire contra factum proprium, vertente do abuso de direito, constitui uma violação do princípio da confiança, que se verifica quando o agente adopta uma conduta inconciliável com as expectativas adquiridas pela contraparte, em função do modo como antes actuara.
.Agem em abuso de direito os AA. que, há mais de 28/29 anos para passarem no terreno das RR., lhes pediam autorização e que, findo esse período, vêm a juízo reclamar o reconhecimento de uma servidão de passagem, pois tal actuação continuada por um tão longo período de tempo foi de molde a criar nos RR. e nas adquirentes do prédio alegadamente onerado com a servidão, a confiança de que essa invocação não seria feita.

IV – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal, em julgar improcedentes as apelações e consequentemente em confirmar a decisão recorrida.

Custas pelos apelantes.
Helena Gomes de Melo
Isabel Silva
Heitor Gonçalves
Guimarães, 21 de Abril de 2016