Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
28/16.9T8GMR.G1
Relator: EDUARDO AZEVEDO
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
COIMA
ACIDENTE DE TRABALHO
NEGLIGÊNCIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/14/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário: Age com negligência quem fornece uma escada metálica a trabalhador para ser utilizada em zona próxima de fonte de descarga eléctrica, sendo o seu cumprimento apto a que esta aconteça.
Decisão Texto Integral:
Recurso 28/16.9T8GMR.G1

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães

Por decisão da ACT - Autoridade Para as Condições de Trabalho, AA… & Filhos, Ldª, BB…, CC…, DD… e EE, foram condenados, as pessoas singulares solidariamente, pela prática da primeira, por negligência e em concurso, de uma contra-ordenação grave e de uma contra-ordenação muito grave, respectivamente, pªs e pªs pelos artºs 15º, nºs 2, 3 e 14 e 111º, nºs 1 a 3 da Lei nº 102/2009, 283º, 554º e 556º do CT e 3º do DL nº 50/2005, de 25.02, na coima única de 11.000,00€.
Os arguidos impugnaram-na.
Procedeu-se à realização da audiência de julgamento.
Foi proferida sentença com o dispositivo: “Pelo exposto, nego provimento à impugnação em apreço e, mantendo a decisão impugnada nos termos sobreditos, condeno a arguida, “AA… & Filhos, Ldª”, no pagamento da coima única de onze mil euros (pela prática, com negligência e em concurso real, das contra-ordenações grave e muito grave, previstas e puníveis nos termos supra-aludidos).
*
Sendo responsáveis solidários pelo pagamento daquela coima (nos termos previstos pelo art. 551º, nº 3, do C.T.) os demais impugnantes/legais representantes daquela, BB, CC, DD e EE”.
Os arguidos recorreram, concluindo:
1- Os recorrentes não se conformam com a douta sentença recorrida que julgou totalmente improcedente o recurso de impugnação judicial e confirmou na Integra a decisão proferida pela Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT), a qual condenou recorrentes no pagamento da coima única de onze mil euros, pela prática, com negligência c cm concurso real das contra­-ordenações grave e muito grave previstas pelo art. 111º nºs 1 a 3 da Lei nº 102/2009, de 10/09 e pelos artºs 15º, nºs 2 e 3, da Lei nº 102/2009, de 10/09, artº 283º, do Código do Trabalho e art. 3º do DL nº 50/2005 de 25/02;
2- Afastada que está a possibilidade deste Venerando Tribunal decidir do apuramento dos factos efectuado pela primeira instância, questões que exorbitam dos poderes de cognição e sindicância deste Tribunal, há que verificar se a base material factual de que partiu aquela instância é ou não é suficiente para espaldar o juízo jurídico-substantivo a final emitido (condenação a título de negligência);
3- Dos factos provados, não se pode extrair que a conduta dos recorrentes é punível a título de negligência, pelo que a douta sentença recorrida aplicou mal o direito aos factos;
4- Dos factos provados resulta que o trabalhador sinistrado havia sido contratado para as vindimas dos recorrentes no dia 12/09/2011 (ou seja) quatro dias antes do sinistro), sendo certo que já era habitual o trabalhador sinistrado trabalhar pata a arguida nas vindimas, pois tal já tinha sucedido pelo menos nos 4 ou 5 anos anteriores;
5- Também, resulta daquela factualidade que a linha de média tensão já estava no local onde ocorreu o acidente pelo menos desde o ano de 2000 e que o encarregado, antes de iniciar a vindima, reuniu com os trabalhadores e instruiu­-os para a forma como deviam trabalhar, chamando-lhes à atenção para o terreno, vinha e uso devido dos instrumentos de trabalho:
6- Ora, age com negligência quem, por não proceder com o cuidado que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz, representa como possível a realização de um facto correspondente a um tipo de crime, mas actua sem se conformar com essa realização ou não chega, sequer, a representar a possibilidade de realização do facto;
7- A negligência determina-se, assim, com recurso a uma dupla averiguação: por um lado, há que procurar saber que comportamento era objectivamente devido em determinada situação cm ordem a evitar a violação não querida do direito e, por outro, se esse comportamento podia ser exigido do agente, atentas as suas características e capacidades individuais;
8- Pelo que, atender-se aos especiais conhecimentos do agente, tendo em conta os deveres de informação e de preparação exigíveis, sendo que não deve responder por evento (ou consequência) que não é ilícito prevenir e evitar;
9- Como tal, deve partir-se do que seria razoavelmente de esperar de um homem com as qualidades e capacidades do agente e se for de esperar dele que respondesse às exigências do cuidado objectivamente imposto e devido – mas só nessas condições - é que, em concreto, se deverá afirmar o conteúdo da culpa próprio da negligência e fundamentar, assim, a respectiva punição;
10- Pelo que, uma conduta que não ultrapassa o risco permitido e, por conseguinte, não incrementa o perigo de produção de resultado danoso, se é causadora de um resultado danoso tem de ter a mesma relevância de uma conduta não proibida, pelo que o agente não é responsabilizado pelo resultado;
11- Além disso, o modo como ocorreu o acidente revela a transformação do risco com dano, e o juízo que se faça sobre aquele, a sua previsão ou a falta dela, não pode ser alheio, num juízo causal de prognose póstuma, ao efectivamente acontecido na ocasião do sinistro;
l2- Nas contra-ordenações não existe uma presunção de negligência, devendo a culpabilidade ser apreciada na instrução do processo de contra-ordenação, de acordo com os factos apurados;
13- Da factualidade dada como provada, não existem factos que permitam imputar factos objectivos aos recorrentes a título de negligência, em qualquer uma das suas modalidades, pois, não se vislumbram quaisquer factos concretos consubstanciadores por parte dos recorrentes da representação do facto e a sua não actuação com a intenção de o realizar, com a omissão dos deveres de cuidado;
14- Nenhum elemento de facto revela que, antes da ocorrência do acidente era previsível ele acontecer (daquele modo): nenhum elemento de facto revela que era previsível, objectivamente, o risco de alguém, conhecedor das circunstâncias do terreno há cerca de 4 ou 5 anos, familiarizado com os instrumentos de trabalho e alertado para os condicionalismos do local, instruído para não o fazer e sabendo que o não devia fazer, utilizar uma escada de 6,5 metros para um bardo de sensivelmente 4 metros.
15- Não é, assim, possível concluir quais os actos consubstanciadores da alegada omissão do dever de cuidado, exigíveis aos recorrentes, e que a ter lugar poderiam ler evitado a queda e a morte do trabalhador sinistrado;
16- Pelo que, aos recorrentes não pode ser imputado qualquer comportamento culposo, mesmo que tão só negligente;
17- Ainda, e relativamente ao facto de os recorrente não terem comunicado a ocorrência do sinistro nas 24 horas seguintes à sua ocorrência, conforme consta do ponto 6 dos factos provados, aqueles efectuaram todas as comunicações para dar assistência à vitima;
18- Pelo que, os recorrentes agiram sem consciência que tal acto conduziria ii prática de um comportamento ilícito;
19- Ora, a falta da consciência da ilicitude é apenas censurável quando o agente revela uma, atitude de indiferença pelos valores juridico-penais o que, in casu, não se verificou nem sequer ficou provado;
20- Atentas as circunstâncias do sinistro e o facto de os recorrentes terem accionado todos os meios para prestar assistência à vitima, não se pode de forma alguma dizer que a falta de comunicação à ACT se tenha ficado a dever a uma qualquer qualidade desvaliosa e jurídico-penalmente relevante da personalidade do agente, a uma indiferença perante o bem Jurídico protegido pela norma ou que seja consequência de uma omissão do cuidado exigível;
21- Pelo que, não sendo o erro censurável, não poderá a actuação dos recorrentes, também neste aspecto, ser sancionada;
22- A douta sentença recorrida violou, entre outros, os artigos 15º do Código Penal, 548º e 550º,do Código do Trabalho e artigo 1.º do RGCO.
Terminam pretendendo a procedência do recurso e ser a sentença revogada e substituída por outra que os absolva.
O recurso foi admitido nestes termos:
“Admito o recurso constante de fls. 162 e segs. apenas quanto à parte da decisão que aplicou coima superior ao limite previsto na al. a) do nº 1 do art. 49º da Lei nº 107/2009, de 14-9 - não sendo recorrível demais decisão quanto à outra infracção por ser coima inferior àquele limite”.
O MºPº respondeu sem formalmente deduzir conclusões.
Nesta instância foi emitido parecer, nos termos do artº 416º do CPP, no sentido da improcedência do recurso.
Efectuado o exame preliminar e corridos os vistos legais, cumpre decidir.
O âmbito do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente que culminam as suas motivações e é por elas delimitado (artº 412º, nº 1, do CPP).
A questão a apreciar é da inexistência de negligência no acidente de trabalho de seu trabalhador relativamente às condições de segurança.
Os fatos em que se baseou a decisão recorrida
1 – A arguida é uma sociedade comercial por quotas, que tem como actividade comercial o comércio por grosso de bebidas alcoólicas (CAE 46341), e é legalmente representada pelos seus gerentes, BB, CC, DD e EE.
2 – No dia 16/09/2011, pelas 16:45 horas, ocorreu um acidente de trabalho que vitimou mortalmente o trabalhador da arguida FF, nascido a 19/07/1983, que se encontrava naquele momento ao serviço da arguida, mais concretamente a vindimar, no local de trabalho sito na Rua do Pinheiro, S. Vicente de Passos, concelho de Fafe.
3 - O aludido trabalhador encontrava-se a vindimar, utilizando para o efeito uma escada metálica com cerca de 6,5 metros de cumprimento, fornecida pela arguida, ao colocar a mesma num bardo com cerca de 4 metros de altura, encostou-a a um fio de média tensão (15kV), ocorrendo uma descarga elétrica.
4 - A arguida, entidade empregadora do sinistrado, não comunicou aos Serviços da Autoridade para as Condições do Trabalho, nas vinte e quatro horas seguintes à sua ocorrência, o acidente acima referido no facto provado “2”, nem o fez posteriormente.
5 - A arguida comunicou a ocorrência do acidente de trabalho mortal à competente companhia de seguros.
6 - Logo após o acidente ocorrido, foram chamados ao local do sinistro, pela arguida, a G.N.R., o I.N.E.M e a VMER onde uma equipa procedeu a manobras de reanimação do trabalhador, que terminaram às 17:15 horas.
7 - A arguida é uma sociedade comercial que tem como atividade principal o comércio por grosso de bebidas alcoólicas como acima referido, no entanto, dedica-se também à colheita, tratamento e produção de vinho que comercializa.
8 - O trabalhador sinistrado, na altura do acidente referido em “2”, encontrava-se ao serviço da arguida, sob a sua direcção responsabilidade e fiscalização e mediante retribuição (150€/semana de trabalho), na execução de tarefas inerentes à actividade de colheita de uvas, integrado numa equipa de mais 14 trabalhadores, encontrava-se a vindimar, utilizando para o efeito uma escada metálica, fornecida pela arguida, que ao ser apoiada num bardo, tocou num fio de média tensão (15kV), ocorrendo uma descarga eléctrica, o que originou a sua morte.
9 - A arguida não identificou os riscos do local de trabalho referido em “2”, onde o trabalhador prestava actividade, antes do início da mesma prestação, nem promoveu o levantamento dos condicionalismos existentes para aquele local de trabalho, nomeadamente a linha de média tensão (15 kV) existente na proximidade do terreno agrícola.
10 - A arguida não atendeu na escolha do equipamento de trabalho aos riscos existentes para a segurança do trabalhador, não assegurando, por isso, que o equipamento utilizado pelo trabalhador fosse adequado ao trabalho a efectuar, tendo sido utilizada uma escada metálica com 6,50 metros de comprimento, para vindimar num bardo de sensivelmente 4 metros de altura situado na proximidade de uma linha de média tensão, havendo risco de contacto com a mesma, por violação da distância de segurança, tal como veio a acontecer.
11 - O trabalhador sinistrado habitualmente trabalhava para um empregador diferente da arguida, mas no momento do sinistro encontrava-se a trabalhar, à jornada, para a arguida, nas vindimas que esta tinha iniciado nesse mês de Setembro de 2011, tendo sido contratado para esse efeito no dia 12/09/2011.
12 - No ano de 2011 a arguida iniciou as vindimas no mês de setembro.
13 - Por as vindimas se tratarem de trabalho sazonal, a arguida todos os anos contrata trabalhadores para esse serviço.
14 - Já era habitual o trabalhador sinistrado trabalhar para a arguida nas vindimas, pois tal já tinha sucedido pelo menos nos 4 ou 5 anos anteriores.
15 - O responsável pelo controlo e qualidade do trabalho da arguida, o seu trabalhador Domingos …, operador de máquinas agrícolas, mas que exerce funções de encarregado, antes de iniciar a vindima, reuniu com os trabalhadores e instruiu-os para a forma como deviam trabalhar, chamando-lhes à atenção para o terreno, vinha e para o uso devido dos instrumentos de trabalho, designadamente, cestos, cestas, tesouras e escadas, bem como para o restante equipamento, o que também fez quanto à vindima de 2011.
16 - Para fazerem a vindima no bardo onde ocorreu o acidente mortal acima referido, os trabalhadores tinham que utilizar, e utilizavam, escadas metálicas.
17 - Era a arguida que fornecia aos trabalhadores as escadas e tesouras que estes utilizavam para desempenhar as tarefas para que eram contratados, o que também sucedeu relativamente à vítima.
18 - A linha de média tensão acima referida já estava no local onde ocorreu o acidente pelo menos desde o ano 2000.
19 - O volume de negócios da arguida no ano de 2010 foi de € 13.034.958.
O recurso apenas foi admitido relativamente à contra-ordenação pª e pª pelos artºs artºs 15º, nºs 2, 3 e 14 da Lei nº 102/2009 e 3º do DL nº 50/2005, de 25.02.
O fundamento do recurso nesta parte envolve apenas a questão da negligência quanto às condições de segurança pelas quais o sinistrado desenvolvia o seu trabalho e que conduziu-o ao decesso.
Em função da factualidade assente de que o sinistrado ao serviço da sociedade recorrente encontrava-se a vindimar utilizando uma escada metálica para encostar a um bardo que tocou num fio de média tensão, assim ocorrendo descarga eléctrica, bem como de que essa arguida conhecia as características do local em que necessariamente tal equipamento teria que ser apoiado para o trabalho se realizar na proximidade da fonte da descarga eléctrica, impõem-se desde logo a conclusão, ainda que o não pudesse prever, de que só não agindo com o cuidado que as circunstâncias exigiam (considerando a distância de segurança) é que essa recorrente fez utilizar a escada apta para a verificação do acidente.
Para além disto, certo é que que ainda se deu como assente que a arguida não identificou os riscos do citado local de trabalho antes do início da actividade do sinistrado, nem promoveu o levantamento dos seus condicionalismos; e não atendeu a esses riscos na escolha do equipamento de trabalho, não assegurando, por isso, que o equipamento utilizado (escada metálica com 6,50 metros de comprimento, para vindimar num bardo de sensivelmente 4 metros de altura situado na proximidade de uma linha de média tensão) fosse o adequado ao trabalho a efectuar.
Sem se olvidar que só pode depor contra a sociedade recorrente que a linha de média tensão já estava no local onde ocorreu o acidente pelo menos desde o ano de 2000, ou seja numa situação sem se revelar inesperada.
Nestes termos é inevitável que se concorde com a sentença sob censura, ainda que “o responsável pelo controlo e qualidade do trabalho da arguida, o seu trabalhador Domingos …, operador de máquinas agrícolas, mas que exerce funções de encarregado, antes de iniciar a vindima, reuniu com os trabalhadores e instruiu-os para a forma como deviam trabalhar, chamando-lhes à atenção para o terreno, vinha e para o uso devido dos instrumentos de trabalho, designadamente, cestos, cestas, tesouras e escadas, bem como para o restante equipamento”.
Com efeito, refere a sentença:
“Se a arguida tivesse feito aquela prévia identificação e avaliação dos riscos com vista à sua eliminação ou, pelo menos, redução – como se lhe impunha fazer – seria previsível a existência desse risco de eletrocussão dos trabalhadores que executassem a vindima do referido bardo. Mas, como a arguida não o identificou, também nada fez para o eliminar, reduzir ou combater.
E, por isso, não atendeu quer na escolha do equipamento de trabalho quer na sua utilização, aos riscos existentes para a segurança do trabalhador, dada a proximidade de uma linha de média tensão em funcionamento e para a qual não havia sequer sido solicitado a sua desactivação temporária.
Sendo que tais comportamentos omissivos da arguida configuram actuações culposas, sob a forma de negligência, na medida em que ela podia e devia ter agido de outro modo e nem por isso o fez – art. 550º do C.T., art. 8º, nº 3, do D.L. nº 433/82, de 27-10 (doravante RGCO) e o art. 15º do C.P”.
Como se constata, pois, a culpabilidade foi apreciada de acordo com os factos apurados sem se poder afirmar a favor da tese dos recorrentes, citando doutrina, “a conduta que não ultrapassa o risco permitido e, por conseguinte, não incrementa o perigo de produção de resultado danoso, se é causadora de um resultado danoso tem de ter a mesma relevância de uma conduta não proibida, pelo que o agente não é responsabilizado pelo resultado”.
Deste modo não procede o recurso.
Sumário, da única responsabilidade do relator
Age com negligência quem fornece uma escada metálica a trabalhador para ser utilizada em zona próxima de fonte de descarga eléctrica, sendo o seu cumprimento apto a que esta aconteça.
Decisão
Pelo exposto julga-se o recurso improcedente, confirmando-se a sentença.
Custas pelos arguidos, fixando-se a taxa de justiça em 4 Ucs.
Após trânsito em julgado comunique à ACT com cópia certificada do acórdão.
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O acórdão compõe-se de 9 folhas, com os versos não impressos.
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G.14.06.2017

Eduardo Azevedo
Vera Maria Sottomayor