Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
639/08.6GBFLG.G1
Relator: FERNANDO MONTERROSO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
REQUISITOS
CONDENAÇÃO
MAUS TRATOS A OUTREM
CONCEITO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/15/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO DE MIGUEL C.; CONCEDIDO PROVIMENTO PARCIAL AO RECURSO DE LAURINDA C.
Sumário: I) A revisão do CP de 2007 ultrapassou a querela de se saber se para o crime de violência doméstica (ou de «maus tratos», como era a epígrafe da anterior redação do artº 152º do CP) bastava a prática de um só ato, ou se era necessária a "reiteração" de comportamentos.
II) Atualmente, o segmento «de modo reiterado ou não» introduzido no corpo da norma do nº 1 do citado artº 152º do CP, é unívoco no sentido de que pode bastar só um comportamento para a condenação.
III) A delimitação dos casos de violência doméstica daqueles em que a ação apenas preenche a previsão de outros tipos de crime, como a ofensa à integridade física, a injúria, a ameaça ou o sequestro, deve fazer-se com recurso ao conceito de «maus tratos», sejam eles físicos ou psíquicos.
III) Há «maus tratos» quando, em face do comportamento demonstrado, for possível formular o juízo de que o agente manifestou desprezo, desejo de humilhar, ou especial desconsideração pela vítima.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

No 1º Juízo do Tribunal Judicial de Felgueiras, em processo comum com intervenção do tribunal colectivo (Proc. nº 639/08.6GBFLG), foi proferido acórdão que decidiu (transcreve-se):
- Absolver o arguido António M..., da prática de dois crimes de ameaça simples e um crime de ameaça agravado, previstos e punidos, respectivamente, pelos arts. 153°, n°1 e 155°, n°1, ala), do Código Penal;
- Absolver o arguido António M..., da prática dos imputados crimes de injúrias na pessoa do assistente Miguel C..., previstos e punidos pelo art. 181°, do Código Penal;
- Absolver o arguido António M..., da prática de um crime de injúrias na pessoa da assistente Laurinda C..., previsto e punido pelo art. 181°, do Código Penal;
- Condenar o arguido António M..., pela prática de um crime de injúrias na pessoa da assistente Laurinda C..., previsto e punido pelo art. 181°, n°1, do Código Penal, na pena de setenta dias de multa;
- Condenar o arguido António M..., pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, na pessoa da assistente Laurinda C..., previsto e punido pelo art. 143°, n°1, do Código Penal, na pena de cento e vinte dias de multa;
- Em cúmulo jurídico, condenar o arguido António M... na pena unitária de cento e cinquenta dias de multa, à taxa diária de seis euros, num total de novecentos euros.
Quanto ao pedido cível
- absolver o demandado António M... dos pedidos de indemnização formulados pelo demandante Miguel C...;
- Condenar o demandado António M... a pagar à demandante Laurinda C... a quantia de novecentos euros, acrescida de juros à taxa de 4%, contados desde a presente até efectivo pagamento.
- Absolver o demandado António M... do demais peticionado em sede cível pela demandante Laurinda C....
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Os assistentes Miguel C... e Laurinda C... interpuseram recurso deste acórdão.
Suscitam as seguintes questões:
- argúem a existência dos vícios previstos no art. 410 nº 2 als. a) e c) do Cod. Penal;
- impugnam a decisão sobre a matéria de facto, visando, alterada esta, a condenação do arguido;
- mesmo improcedendo a impugnação da matéria de facto, o arguido deverá ser condenado como autor de um crime de violência doméstica p. e p. pelo art. 152 nº 1 do Cod. Penal.
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Respondendo, o arguido António M... defendeu a improcedência dos recursos.
Nesta instância, o sra. procuradora-geral adjunta emitiu parecer no mesmo sentido.
Cumpriu-se o disposto no art. 417 nº 2 do CPP.
Colhidos os vistos cumpre decidir.
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I – No acórdão recorrido foram considerados provados os seguintes factos (transcrição):
1. O arguido António M... viveu maritalmente com a assistente Laurinda C... desde 4 de Agosto de 2007 até dia não concretamente apurado do mês de Novembro de 2008.
2. Do relacionamento de ambos nasceram as menores Inês M..., no dia 4 de Agosto de 2007, e Lara M..., no dia 27 de Março de 2009.
3. No dia 6 de Julho de 2008, durante a tarde, quando se encontravam na residência sita no lugar da F..., Airães, o arguido e a assistente Laurinda começaram uma discussão, na sequência da qual e, quando ambos se encontravam já no exterior da habitação, o arguido deliberadamente apertou o pescoço da assistente, provocando-lhe dor e dificuldades respiratórias, em consequência do que esta sofreu escoriações na face esquerda do pescoço, que lhe determinaram três dias para cura, sem afectação da capacidade de trabalho.
4. Agiu o arguido livre, voluntária e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
5. No dia 14.11.2008, a assistente Laurinda deslocou-se ao serviço de urgência do Hospital de Penafiel, apresentando duas pequenas escoriações nos joelhos, sem outras lesões visíveis
6. No dia 12 de Março de 2009, cerca das 12 horas, quando a assistente Laurinda caminhava na via pública, no lugar de Pedra Maria, Varziela, Felgueiras, surgiu o arguido António que, ao vê-la, dirigiu-se a ela e, em tom elevado e de forma exaltada e séria, chamou-lhe “sua puta, sua filha da puta, sua porca”.
7. O arguido agiu, no momento referido em 5), deliberada, livre e conscientemente, com intenção de insultar a assistente, como conseguiu.
8. Sabia, outrossim, que a sua conduta era proibida e punida por lei.
9. Em consequência do referido em 5), a assistente Laurinda sentiu-se ultrajada, transtornada, humilhada e afectada na sua dignidade pessoal.
10. Por decisão datada de 31.01.2002, transitada em 15.02.2002 e reportada a factos ocorridos em 17.09.2000, o arguido foi condenado em pena de multa pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelos art. 11° e 12° da Lei n° 57/98, de 18 de Agosto; tal pena foi declarada extinta pelo cumprimento em 20.09.2002;
11. Por decisão datada de 20.12.2004, reportada a factos ocorridos em
25.03.2003 e transitada em 17.01.2005, foi condenado em pena de multa, pela prática de um crime de furto simples, previsto e punido pelo art. 203°, n°1, do Código Penal; tal pena foi declarada extinta pelo cumprimento em 28.09.2005.
12. Por decisão datada de 19.07.2010, reportada a factos ocorridos em 29.08.2008, 02.11.2008 e 24.02.2009 e transitada em 20.09.2010, foi condenado em pena de multa pela prática, respectivamente, de um crime de injúria, previsto e punido pelo art. 181°, n°1, do Código Penal, um crime de ameaça, previsto e punido pelo art. 153°, n°1, do Código Penal, um crime de difamação, previsto e punido pelo art. 180°, do Código Penal, e um crime de ofensa à integridade fisica simples, previsto e punido pelo art. 143°, do Código Penal; tal pena foi declarada extinta pelo cumprimento em 26.04.2011.
13. Por decisão datada de 03.02.2011, reportada a factos ocorridos em 23.01.2009 e transitada em 07.03.2011, foi condenado em pena de multa pela prática de um crime de dano, previsto e punido pelo art 212°, do Código Penal, e um crime de injúria, previsto e punido pelo art. 181°, do Código Penal.
14. O arguido iniciou a escolaridade em idade própria, concluindo o 6° ano, não tendo revelado motivação para os estudos, apesar de não ter dificuldades de aprendizagem.
15. Iniciou precocemente o investimento profissional, como motorista profissional.
16. No meio social em que cresceu sempre revelou uma imagem favorável, assente na funcionalidade do agregado de origem e em competências pessoais e sociais ajustadas.
17. Viveu com a assistente Laurinda em união de facto desde 2007, habitando uma casa autónoma pertencente aos pais desta e próxima da deles.
18. Exercia a actividade profissional de motorista de longo curso, passando períodos de ausência do agregado, altura em que a assistente se encontrava desempregada - sendo anteriormente operária fabril — e beneficiava do subsídio de desemprego. Como se encontrava desocupada, ajudava o pai na agricultura.
19. O arguido e a assistente Laurinda têm duas filhas, actualmente com quatro e dois anos de idade, e desde há cerca de um ano que aquele está impedido de as ver, situação que o arguido não atribui à progenitora mas ao pai dela.
20. Vive angustiado com esta situação, com dificuldades em gerir emoções, tendo recorrido por duas vezes às urgências dos hospital por problemas de sistema nervoso, apresentando episódios de ansiedade/depressão; durante a entrevista com os técnicos de reinserção social descontrolou-se por várias vezes com choro.
21. Entretanto, reconstruiu a sua vida afectiva com outra pessoa, com quem vive em união de facto há mais de um ano, tendo já da mesma um filho com um ano de idade e sendo a relação avaliada pela companheira como gratificante, com partilha de responsabilidades e respeito mútuos.
22. Após um período de desemprego, relacionado com o facto de ter abandonado actividade de motorista, trabalhou numa empresa de trabalho temporário até Novembro de 2011, auferindo um salário de €650. Actualmente faz “biscates” de motorista.
23. A sua companheira está desempregada, vivendo ambos em casa arrendada pelo valor mensal de €150.
24. No seu quotidiano, o arguido apresenta rotinas estruturantes, no tempo de lazer privilegia o convívio familiar e com os elementos do seu agregado de origem, com quem continua a manter grande proximidade.
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Considerou-se não provado:
A. O arguido e a assistente Laurinda viveram maritalmente cerca de dois anos, tendo tal convivência conjugal terminado em meados de Fevereiro de 2009.
E. A assistente tem um filho maior de idade, fruto de uma relação anterior.
C. Desde o início de tal relacionamento, seguramente desde, pelo menos, meados do ano de 2007, de forma sistemática e sucessiva, o arguido agrediu fisicamente, insultou e ameaçou a assistente , em regra sempre no interior da sua residência, sita, na ocasião, em lugar de F..., A..., Felgueiras, desferindo-lhe bofetadas, murros e pontapés em diversas partes do corpo, para além de a ameaçar constantemente que a matava, bem como lhe puxava os cabelos e a insultava, em regra, com as seguintes palavras: “sua puta, és uma puta, uma vaca”.
D. Durante o período em que co-habitaram, por sucessivas vezes, o arguido desferiu murros e pontapés no corpo da assistente e dirigiu-lhe, em diversas ocasiões, as expressões “és uma puta, uma vaca, o filho que tens não é meu é do teu pai, filha da puta”.
E. O comportamento violento do arguido agravou-se desde Março de 2008.
F. No dia 19 de Abril de 2008, pelas 13 horas, no lugar de Longra, Semande, o arguido desferiu diversos pontapés no corpo da assistente, ao mesmo tempo que lhe dizia que o filho de ambos é filho do pai desta (assistente), tendo tais agressões ocorrido na presença da testemunha Vera Cunha.
G. Em 30.05.2008, pelas 18.30 horas, no lugar do Paraíso, Airães, Felgueiras, o arguido, quando a ofendida se encontrava a trabalhar na lavoura, conduzindo um tractor agrícola, arremessou-lhe pedras que a atingiram no corpo, ao mesmo tempo que lhe dirigia as seguintes expressões: “puta, porca, dormes junto com o teu pai”.
H. Nesta mesma ocasião, o arguido, dirigindo-se para o assistente Miguel, sem qualquer justificação e em voz alta, proferiu as seguintes expressões: “corno, filho da puta”; estas expressões foram proferidas em voz alta, repetidamente, de modo a serem ouvidas pelo assistente e por quem se encontrava no local.
I. Agiu o arguido, como referido em H), livre, voluntária e conscientemente com a intenção de lesar a honra e consideração do assistente Miguel, como efectivamente quis e conseguiu, pretendendo diminuir, desprestigiar a imagem dele no meio onde vive, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
J. Ainda nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em G) e H), o arguido arremessou também pedras na direcção do assistente Miguel, pai da assistente Laurinda, ao mesmo tempo que lhe dirigia a seguinte expressão “corno, filho da puta, vou contratar três homens para te matar “.
K. No dia 14 de Novembro de 2008, cerca das 11.30 horas, no interior da sua residência, sita, na ocasião, no lugar da F..., A..., Felgueiras, o arguido agrediu fisicamente a Assistente Laurinda, tendo-lhe apertado o pescoço e desferido várias bofetadas na cara, bem como a empurrou e projectou para o chão.
L. No período compreendido entre as 20 horas do dia 4 de Fevereiro de 2009 e as 1.30 horas do dia 5 de Fevereiro de 2009, o arguido telefonou para a assistente Laurinda e disse-lhe, em tom elevado de voz e de forma exaltada e séria, a seguinte frase: “sua puta, tu fazes vida com o teu pai, mas vais vê-lo morto, tudo por tua culpa, tu já viste a pistola que já ta mostrei, tu vais ver”.
M. No dia 24 de Fevereiro de 2009, cerca das 22.30 horas, quando a assistente se dirigia a pé para a sua residência, vinda do lugar da Longra, Felgueiras, onde tinha assistido a um desfile de carnaval, surgiu o arguido, o qual lhe desferiu quatro murros na barriga, apesar de o mesmo saber que aquela se encontrava grávida de oito meses, sendo certo que o mesmo não a continuou a agredir mais porque os populares presentes o impediram, tendo ainda o arguido, dirigindo-se para a mesma, proferido a seguinte frase: “sua puta, vaca, és uma porca”.
N. No período compreendido entre as 22 horas do dia 4 de Fevereiro de 2009 e a 1.30 horas do dia 5 de Fevereiro de 2009, por diversas vezes, o arguido telefonou ao assistente Miguel e, dirigindo-se para o mesmo, proferiu sempre, em tom elevado de voz e de fonua exaltada e séria, a seguinte frase “seu filho da puta, a pistola está carregada, se não fosse um amigo meu dizer já te tinha arrumado, mas deixa lá, ainda ontem vesti uma saia e ataquei um carro, fodi o gajo e fiquei-me a rir e contigo vou fazer o mesmo “.
O. Igualmente nesse mesmo período temporal, compreendido entre as 22 horas do dia 4 de Fevereiro de 2009 e a 1.30 horas do dia 5 de Fevereiro de 2009, o arguido telefonou para a sobrinha do assistente Miguel, de nome Vera C..., e disse-lhe, sempre em tom elevado de voz e de forma exaltada e séria, a seguinte frase: “tu já viste a pistola e essa pistola é para matar o teu tio, ele não quer vir a casa porque me tem medo, mas eu tenho aqui a pistola para o matar, agora pode fazer uma queixa que eu já lhe assaltei a casa”.
P. Como consequência directa e necessária da conduta do arguido, praticada no dia 14.11.2008, a assistente Laurinda sofreu traumatismo no pescoço e escoriações nos joelhos, cujo tempo de doença importou em três dias, embora sem afectação da sua capacidade de trabalho geral ou profissional.
Q. Como consequência directa e necessária da conduta do arguido, praticada em 24.02.2009, a assistente Laurinda sofreu traumatismo abdominal cujo tempo de doença não foi possível determinar, porquanto a mesma não chegou a receber assistência médica.
R. Em consequência das várias agressões sofridas (que não as relativas aos factos provados), a ofendida teve dores e ficou muito abalada psicologicamente, provocando-lhe, os diversos comportamentos e expressões, angústia, sofrimento, humilhação e quebra de auto-estima, quer enquanto mulher quer enquanto ser humano, para além das dores e lesões decorrentes de tais agressões.
S. Para a consumação da violência exercida sobre a assistente, o arguido usava a dependência económica desta, assim enxovalhando e diminuindo sistematicamente a sua auto-estima.
T. As expressões proferidas dirigidas ao ofendido Miguel são meio idóneo a provocar medo e inquietação, o que aconteceu, na medida em que o ofendido, em consequência dos mesmos, ficou a temer pela sua vida e integridade física.
U. O arguido, agindo deliberada, livre e conscientemente, sabia que a sua conduta era apta a causar medo e inquietação no assistente IVliguel e prejudicar a sua liberdade de determinação, o que quis, não se abstendo de agir do modo descrito.
V. O arguido agiu sempre deliberada, livre e conscientemente, de forma reiterada e sistemática, no claro intuito de, através da sua conduta, aterrorizar e insultar a assistente, de forma sistemática e reiterada, causando-lhe terror e pânico pela sua integridade fisica, como efectivamente lhe causou, por diversas e múltiplas vezes, apesar de bem saber que a mesma era uma pessoa particularmente indefesa, para além de mais saber que com a sua conduta provocou na visada vários sofrimentos, quer de cariz fisico, quer psicológico, e que tal não lhe era permitido por lei.
X. Nos momentos descritos em C) a V) agiu livre e lucidamente, com perfeita consciência de que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
Z. Ainda no mesmo período de tempo referido em N), o arguido telefonou ao assistente Miguel e, dirigindo-se ao mesmo, proferiu, em tom elevado de voz e de forma séria, a seguinte expressão: “seu filho da puta “; telefonou, também, para a assistente Laurinda dizendo-lhe “sua puta fazes vida com o teu pai “.
Aa. Tais expressões foram proferidas pelo arguido em voz alta, repetidamente e de forma audível pelo assistente Miguel e a assistente Laurinda e por quem se encontrava junto do arguido, agindo com intenção de lesar a honra e consideração do assistente Miguel, o que efectivamente quis e conseguiu, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Ab. No dia 21 de Setembro de 2009, pelas 23.50, no lugar da Longra, rande, Felgueiras, mais precisamente no entroncamento que dá acesso a Semandes, o assistente Miguel circulava no seu veículo de matrícula 99-97-SI, de cor vermelha, tipo carrinha fechada.
Ac. No mesmo local e hora circulava atrás de si o arguido quando, no momento em que o assistente se encontrava a mudar de direcção com destino a Semande, sentiu dois disparos na traseira do sei veículo.
Ad. A assistente, perante tal, não parou naquele local e só parou em casa.
Ae. Quando se encontrava já no interior de sua casa, sita no lugar da Piedade, Semandes, Felgueiras, o arguido, dirigindo-se ao assistente em tom sério, disse “ó meu filho da puta, vou-te matar”, expressões estas proferidas em voz alta, repetidamente e de forma audível pelo assistente, pela sua filha e por quem se encontrava no local, actuando com a intenção de lesar a honra e consideração deste, como efectivamente quis e conseguiu, sempre livre e consciente de que a sua conduta era punida por lei.
Af. Com a expressões dirigidas ao assistente Miguel o arguido ofendeu e ofende a honra daquele, que é pessoa séria, honesta e considerada socialmente, sempre tendo pautado a sua vida em sociedade por critérios de honestidade, lealdade e seriedade, quer na sua vida pessoal, quer profissional.
Ag. O assistente Miguel, face às expressões utilizadas pelo arguido, sentiu-se vexado, abalado, minimizado e humilhado, principalmente porque tinha laços de amizade com o arguido, pessoa por quem tinha um afecto especial; sentiu ainda maior vergonha, tristeza e decepção pelo facto de o arguido ser companheiro da filha e pai das suas netas.
Ah. Com os seus comportamentos dirigidos ao assistente Miguel, o arguido provocou-lhe verdadeiro medo e pavor de o voltar a enfrentar, tomando por sérias as expressões do arguido, pois já, anteriormente, este o havia perseguido, o que fez o assistente acreditar e valorizar as referidas expressões.
Aj. Com a sua conduta o arguido visou perturbar o sentimento de segurança, tranquilidade e sossego do assistente, o que efectivamente conseguiu, pois este passou a ter receios, angústia, medos e desconfianças que nunca anteriormente tinha sentido.
Ak. O assistente Miguel sentiu-se e sente-se profundamente abalado na sua segurança, evitando andar sozinho na rua, evitando frequentar certos locais e vendo-se obrigado a alterar a sua rotina diária.
AI. O assistente Miguel conhece bem a pessoa do arguido, bem sabendo do que ele é capaz, sendo uma pessoa violenta, o que aumenta mais o seu receio, sentindo-se angustiado também pelo facto de poder vir a ser injuriado em qualquer local, uma vez que o arguido sustenta uma grande perseguição contra si, sem qualquer motivo ou justificação.
Am. Em virtude das expressões dirigidas à assistente Laurinda no período compreendido entre as 22 horas do dia 4 de Fevereiro e as 1.30 horas do dia 5 de Fevereiro de 2009, o arguido ofendeu e ofende a honra daquela, que é pessoa séria, honesta e considerada socialmente, sempre tendo pautado a sua vida em sociedade por critérios de honestidade, lealdade e seriedade, quer na sua vida pessoal, quer profissional.
An. A assistente Laurinda, face a estas expressões utilizadas pelo arguido, sentiu-se vexada, minimizada e humilhada, principalmente porque viveu com ele em condições análogas às de cônjuges, pessoa por quem nutria um afecto especial; sentiu ainda maior vergonha, tristeza e decepção pelo facto de o arguido ser pai das suas filhas.
Ao. As várias condutas do arguido deixaram sequelas psíquicas e fisicas na assistente Laurinda, que dificilmente esquecerá; de todas a vezes que era agredida fisicamente pelo arguido sofria grandes dores e mau estar físico, ferimentos e hematomas profundos e bem visíveis nas mais diversas partes do corpo.
Ap. Nem o facto de a assistente Laurinda estar grávida da filha mais nova impediu o arguido de a agredir nas mais diversas partes do corpo, de lhe dar pontapés, bofetadas, murros e de a empurrar e projectar para o chão.
Aq. Em consequência das várias agressões de que era vítima do arguido, a assistente Laurinda teve necessidade de receber cuidados hospitalares.
Ar. Durante o período em que a demandante coabitou com o demandado, este sujeitou-a a uma vida de maus tratos, opressão, medo e tenor, o que fez sistemática e reiteradamente, apesar de saber que a mesma era uma pessoa particularmente indefesa, agravado pelo estado de gravidez.
As. A assistente Laurinda, para além das dores que sofreu nos momentos das várias agressões físicas, quer posteriormente, teve ainda grave sofrimento de cariz psicológico, sentindo medo, vivendo amedrontada e inquieta, receando que as agressões se repetissem e sentindo-se ultrajada, transtornada, humilhada e afectada na sua dignidade.
At. Por diversas vezes a demandante chegou a recear pela sua vida e aterrorizada com a possibilidade de, por força das agressões, poder perder a criança que trazia no ventre.
Au. Das diversas vezes que o arguido agrediu a assistente Laurinda, a mesma ficava impedida de realizar as tarefas mais básicas, como lavar-se, arrumar, cozinhar, lavar, limpar e até tratar da sua filha ainda bebé, o que lhe causava grande desgosto e mágoa.
Av. A assistente Laurinda padeceu de grande sofrimento, vergonha e embaraço por via das expressões que o arguido constantemente lhe imputava em público e perante familiares e conhecidos, o que lhe demandou grande humilhação, quebra de auto-estima e frustração.
Ax. O comportamento do arguido abalou irreversivelmente a pessoa da assistente Laurinda, que nunca mais voltará a ser a mesma, vivendo sempre com a imagem das agressões de que foi vítima.
Az. A conduta dos assistentes traduz-se numa verdadeira perseguição à pessoa do arguido, com a conivência de toda a família.
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Transcreve-se igualmente a fundamentação da decisão sobre a matéria de facto:
O Tribunal findou a sua convicção com base em toda a prova produzida em audiência, mormente por declarações, testemunhal, documental e pericial, conexionada com as regras da lógica e experiência comum.
Prima facie, importa referir que a análise de toda a prova produzida em audiência demandou ao Tribunal um acrescido esforço selectivo na respectiva análise crítica, atendendo a que, sobretudo em termos testemunhais, os depoimentos emergiram, em momentos essenciais, com contornos incoerentes, quer entre si, quer relacionados com os elementos objectivos do processo, denotando posturas claramente tendenciosas e contextos inflacionados, o que obrigou a uma criteriosa análise dos demais meios de prova (objectivos), por forma a tentar captar, de entre os relatos emotivos e tendenciosos, aquilo que, com a segurança que se impõe, pôde dar-se como assente.
Em termos documentais e periciais, consta dos autos:
Apenso 83/09. 8GBFLG
• Queixa efectuada, em 25.02.2009, por Laurinda C..., reportando-se a factos alegadamente ocorridos em 24.02.2009 (fis. 3 a 6);
• Relatório médico-legal do exame realizado à denunciante em 27.02.2009, onde consta que aquela referiu ter sofrido agressão com murros, no dia 24.02.2009, pelas 22.30 horas, inexistindo documentação clínica sobre o evento; encontrava-se, então grávida de 8 meses, não apresentando quaisquer lesões ou sequelas relacionadas com o evento.
Do apenso B:
• Queixa apresentada, em 31 de Maio de 2008, por Laurinda C... e Miguel C..., reportando-se a factos alegadamente ocorridos em 30.05.2008, pelas 18.30 horas (fis. 3 a 5);
• Relatório médico-legal do exame realizado à queixosa Laurinda, em 31.05.2008, onde consta que aquela referiu ter sofrido agressão com pontapés, no dia 15.05.2008, pelas 21 horas, inexistindo documentação clínica sobre o evento e não apresentando quaisquer lesões ou sequelas relacionadas com o evento (fis. 12 a 14).
Relatório médico-legal do exame realizado à queixosa Laurinda, em 08.07.2008, onde consta que aquela referiu ter sofrido agressão com esganadura no dia 06.07.2008, pelas 16 horas, inexistindo documentação clínica sobre o evento por não ter recorrido ao hospital, apresentando duas escoriações lineares, paralelas, distantes entre si de dois centímetros, situadas na face esquerda do pescoço, com dois centímetros; fixou-se a data da cura em 09.07.2008 e que tais lesões determinaram 3 dias para cura, sem afectação da capacidade de trabalho (fls. 65 a 68);
Do apenso A:
• Queixa apresentada, em 29.09.2009, por Miguel C..., reportando-se a factos alegadamente ocorridos no dia 21.09.2009, pelas 23.50 (fls. 3 e 4);
• Fotografia da parte traseira do veículo do queixoso, com a matrícula 99-97-SI.
Dos autos principais:
• Queixa apresentada por Miguel C... e Laurinda C..., em 21.11.2008, reportando-se a factos alegadamente ocorridos em 14.11.2008, pelas 12.30 horas (fls. 3 a 6);
Relatório médico-legal de exame efectuado, em 20.11.2008, a Laurinda C..., onde consta que esta referiu ter sofrido agressão com apertão, bofetadas, empurrão seguido de queda e esganadura, tendo sido assistida no Hospital de Penafiel, onde fez ecografia por estar grávida de 5 meses, não apresentando, contudo, lesões ou sequelas relacionáveis com o evento (fis. 12 a 14);
Registos clínicos do Hospital de Penafiel inerentes a episódio de urgência de Laurinda C..., pelas 14.37 horas do dia 14.11.2008, onde consta: “apresenta duas pequenas escoriações nos joelhos. Sem outras lesões visíveis. Abdómen mole e depressível sem defesa ou contractura, globoso de acordo com tempo de gravidez. Colo inteiro fechado luva limpa, membranas intactas. Ecografia: feto com actividade positiva, movimentos corporais, biome fria de 22 semanas, LA normal, sem sinais de descolamento placentar” (fis. 40 e 41);
. Relatório médico-legal de exame efectuado, em 25.02.2009, a Laurinda C..., onde consta que esta referiu ter sofrido, em 14.11.2008, agressão com apertão, bofetadas, empurrão seguido de queda e esganadura, tendo sido assistida no Hospital de Penafiel, onde fez ecografia por estar grávida de 5 meses, não apresentando, contudo, lesões ou sequelas relacionáveis com o evento (fis. 66 a 68);
Boletim de nascimento de Inês M..., filha do arguido e da assistente, nascida em 4 de Agosto de 2007 (fis. 183);
• Assento de nascimento de Lara M..., filha do arguido e da assistente, nascida em 27 de Março de 2009 (fis. 184);
• Informação negativa da operadora TIVIN quanto a registo de chamadas na data dos factos imputados nos autos (fis. 302);
• Informação negativa da operadora VODAFONE quanto a registo de chamadas na data dos factos imputados nos autos (fis. 319 e 494);
• Cópia do cartão de cidadão do arguido, de sua companheira e do filho de ambos nascido em 29.05.2010 (fls. 325);
• Declaração do Instituto do Emprego e Formação profissional, datada de 31.01.2011, onde consta que o arguido se encontrava inscrito no Centro de Emprego de Basto desde 03.09.2008, como “desempregado —novo emprego” (fls. 326);
• Atestado emitido em 27.01.2011 pela Junta de Freguesia do Rego, Celorico de Basto, onde consta que o arguido vive em união de facto com Maria F..., em casa arrendada, no lugar de Pedroso, freguesia do Rego, Celorico de Basto (fis. 328);
• Relatório Social do arguido (fis. 437 a 442);
• Certificado de registo criminal (fis. 446 a 452)
• Certidão extraída do processo n° l746/08.OTBFLG, do 3° Juízo deste Tribunal, relativa aos autos e regulação de poder paternal (e seus apensos) da menor Inês M...(junção ordenada em audiência);
• Certidão extraída do processo n° 1354/09. 9TBFLG, do 2° Juízo deste Tribunal, relativa aos autos e regulação de poder paternal (e seus apensos) de Lara M... (junção ordenada em audiência);
• Certidão de decisão condenatória do arguido, extraída do processo n° 494/08.6GBFLG, do 3° Juízo deste Tribunal;
• Certidão de decisão condenatória do arguido, extraída do processo n° 31/09.5GBFLG, do 1° Juízo deste Tribunal.
Do apenso 639/08.6GBFLG-A — Anexo 1:
• Queixa efectuada por Miguel C..., em 06.02.2009, reportando-se a factos alegadamente ocorridos em 4 de Fevereiro de 2009 (fis. 3 a 6);
Não esquecendo o que ficou dito no intróito da presente motivação, logo se verifica que os elementos objectivos carreados para os autos e atrás mencionados ficam muito aquém, em termos probatórios, daquilo que das diversas acusações formuladas resulta quanto aos vários ilícitos imputados ao arguido.
No que respeita à vivência marital entre arguido e assistente Laurinda ambos situaram essa ruptura por volta do mês de Novembro de 2008, altura em que já tinham uma filha e a assistente se encontrava grávida da outra, o que vem atestado pelas certidões de nascimento constantes do processo.
O arguido negou a prática dos factos constantes das diversas acusações, embora, em dois momentos, tenha reconhecido circunstâncias que, em conjugação com a demais prova (criticamente analisada), reconduziram o tribunal à convicção dos comportamentos que considerou provados, sendo certo, para além disso, que admitiu a existência de discussões conjugais em vários momentos, o que também derivou do depoimento da assistente Laurinda.
Na sequência de uma destas discussões, quando já viviam em Airães, relatou que tiveram um problema durante a noite e a assistente foi para casa dos pais, tendo, no dia seguinte, voltado e dizendo que ele andava com outra, agarrando-lhe as calças para as levar consigo, altura em que a impediu agarrando a assistente no tronco (não no pescoço).
Esta situação, descrita pelo arguido, contou também com o relato da assistente que, aludindo ao dia 6 de Julho de 2008 (sem esclarecer o que teria ocorrido na noite anterior) mencionou que estava em casa e o telemóvel do arguido sempre a tocar, motivo pelo qual começaram a discutir e este bateu-lhe com pontapés, apertou-lhe o pescoço e chamou-lhe vários nomes; em virtude desta agressão, foi ao Hospital com a sua tia Alice.
A testemunha Maria A... não confirmou, em temws concretos, este acontecimento, ou sequer que tenha acompanhado a assistente Laurinda ao Hospital.
No entanto, esta deslocou-se, dois dias depois, ao Gabinete Médico-Legal de Guimarães, admitindo o tribunal que a assistente pudesse estar a referir-se a tal deslocação (não às urgências, mas para exame médico-legal).
O que é certo é que, esse exame realizou-se (fis. 65 a 68) e nele ficou a constar que a examinanda não havia recorrido ao Hospital na decorrência dos factos que relatou, apresentando, ao exame, duas escoriações lineares, paralelas, distantes entre si de dois centímetros, situadas na face esquerda do pescoço, com dois centímetros.
Mais consignou no relatório em causa que a assistente apenas referenciou ter sido vítima de agressão com esganadura, o que, indo de encontro à lesão detectada e declarada pericialmente como “compatível com a informação “, afasta a possibilidade de agressão com pontapés, que seguramente deixaria outras mazelas.
Se é certo que, logo aqui se verifica que o relato da assistente foi, ostensivamente inflacionado, não menos certo é que a combinação das declarações do arguido e os dados objectivos do sobredito relatório pericial não deixaram margem para dúvidas de que, naquele dia de Julho, a assistente foi agredida com, pelo menos, um apertão no pescoço (com a consequências imediatas facilmente retiráveis da experiência comum).
O arguido, além do mais, declarou também lembrar-se do dia 12 de Março de 2009, descrevendo que passou pela assistente Laurinda e chamou-a, altura em que a caseira disse à Laurinda para não ir e esta não foi, pelo que lhe disse “vai à merda, vai pró caralho”.
A assistente e Alzira Azevedo confirmaram este encontro e as expressões demonstradamente ditas pelo arguido, pese embora tenham referido outras que o Tribunal não reconheceu como tendo efectivamente sido proferidas (e que não constavam da acusação), dado ter-se, como vimos e veremos, denotado uma tendência para inflacionar os factos.
A conjugação destes três depoimentos, analisada selectivamente, permitiu concluir pela concreta verificação dos insultos apontados, não se olvidando que, em sua defesa, o arguido referiu outros que não constavam da acusação, e, por outro lado, em evidente acusação, a assistente mencionou mais do que aquilo que foi efectivamente dito.
Com efeito, atenta a data desta factualidade e relevando o que consta também do relatório social, o arguido e a assistente estavam já há muito separados e desentendidos, designadamente agora também no que respeita às visitas das filhas de ambos, o que corrobora a animosidade existente e confere, de acordo com as regras da experiência comum, consistência aos testemunhos, no que ao demonstrado concerne.
Quanto a tudo mais que constava das diversas acusações, o Tribunal entendeu inexistir prova consistente e credível que o atestasse com suficiência e sem restar dúvida razoável.
Na verdade, da amálgama probatória produzida, no que se incluem as declarações do arguido, pôde apurar-se com suficiência o que elencado ficou nos factos provados, ao que acresce a evidente animosidade entre o arguido e o assistente Miguel, animosidade esta que, atente-se, se afigurou recíproca e, de modo inequívoco, condicionou o decurso probatório em audiência de julgamento.
Podendo admitir-se que, além das duas situações apuradas, o arguido tenha cometido outros factos susceptíveis de integrarem ilícito s criminais, designadamente alguns dos que constam das acusações, não menos certo é que a forma como se desenrolaram os depoimentos testemunhais impediu o tribunal de lhes conferir credibilidade (para além das duas situações antes descritas) e isto por várias ordens de razões.
Confrontadas as declarações dos assistentes e testemunhas indicadas pela acusação não rarearam inconsistências, incoerências e flagrantes contradições, quer entre as várias versões, quer conexionadas algumas delas com os elementos objectivos insertos nos autos e ab initio elencados, bem assim, como se não bastasse, com as regras da lógica, normalidade e experiência comum.
Concretizando estes corolários e calcorreando os factos constantes das acusações, considerados não provados, verifica-se que, quanto ao dia 19 de Abril de 2008, a assistente Laurinda pronunciou-se dizendo que o arguido começou a bater-lhe e a chamar-lhe nomes, perante o que chamou a sua prima Vera, que a levou para sua casa, não sem que o arguido ainda batesse na porta da carrinha desta.
Porém, Vera Cunha, prima desta assistente, visivelmente interessada no desfecho da demanda, pretendeu fazer crer que, em tal ocasião, viu o arguido bater na sua prima, num Domingo em que se deslocou a casa dela para ir buscar um GPS; quando chegou lá ele estava a bater-lhe aos pontapés pelas escaleiras abaixo e a chamar-lhe nomes, perante o que disse a sua prima para ir com ela para sua casa, ao que esta acedeu, sendo que quando entrava no cano, com a bebé no colo, o arguido ainda lhe deu um pontapé no nariz, rebentou-lho.
Cristiano P..., marido da testemunha Vera, com uma versão similar aos murros e pontapés pelas escadas abaixo e ao “biqueiro” no nariz da Laurinda quando esta já estava dentro do seu carro com a bebé ao colo, introduziu uma outra nuance nos factos; quando chegou eles estavam a discutir um com o outro e... só depois é que se iniciaram as agressões!.
Mas, então, a sua mulher não ia consigo...? É que esta, quando chegou, já só viu pontapés pelas escadas abaixo e, claro, o “biqueiro” também!
Então a própria “vítima” ter-se-á esquecido de mencionar ao Tribunal esta última agressão, de cariz mais intenso...? Será que se esqueceu por que não existiu... ou deu conta de que, sentada no banco do carro e com uma bebé ao colo, é quase impossível sofrer um pontapé no nariz (rebentando-o), sem tocar no bebé...?
Ou será que a sua prima Vera e marido viram algo mais e diferente do que relatou.., bater na porta do cano...!
Claro que, perante tamanha agressão, também ninguém viu necessidade de levar a assistente ao Hospital... nem por ter o nariz rebentado...?
Relativamente ao episódio alegadamente ocorrido em 30.05.2008, a assistente Laurinda referiu que andava a conduzir o tractor e o seu pai a sulfatar, ocasião em que o arguido “atacou à pedra” e chamou-lhe nomes, bem como ao seu pai (assistente Miguel), tendo as pedras atingido o tractor.
O assistente Miguel, por seu turno, terá visto e ouvido um pouco mais do que a filha.., e menos do que consta na acusação..., pois referiu que nenhuma das pedras os atingiu (contrariamente ao que resultava do libelo), mas uma partiu o pisca (facto que a filha não mencionou e que, como é evidente, constituiria um crime de dano); ouviu um pouco mais do que a sua filha porque, para si, o arguido também disse que andava metido com a filha nas silvas e “eu tenho aqui a pistola”... o que nem condiz com as declarações de sua filha, nem com o que consta da acusação, nomeadamente a expressão “vou contratar três homens para te matar”!
As incoerências e contradições não ficaram por aqui, pois, muito convenientemente, Maria C... e Francisco C...— ambos irmãos do assistente e, portanto, tios da assistente — nesse dia até iam assear o cemitério ali perto.
Referiu a primeira que, quando chegaram ao cemitério, ouviram berrar e vieram a correr para baixo, reparando que o arguido estava a insultar o seu irmão — assistente Miguel -, chamando-lhe vários nomes e atirando pedras, uma das quais atingiu o tractor.
Além de não ter ouvido as mesmas expressões que ambos os assistentes, a depoente também não mencionou qualquer insulto dirigido à Laurinda...!
O seu marido, contrariamente ao que disseram ambos os assistentes, também não ouviu chamar qualquer nome a Laurinda, sendo que o arguido até berrava alto.
Ora, se berrava alto, como puderam ouvir todos coisas distintas ou, pelo menos, uns umas coisas e outros outras ... que até são diferentes do que acabou descrito na acusação...?
Perante o sucedido, claro está, que o cemitério ficou por assear, não se sabendo (porque ninguém esclareceu) como terminou a contenda, se com o arguido a sair do local ou o assistente a fugir pelos campos abaixo... além disso, nesta parte, de Laurinda... nem sinal de figa ou permanência no local.
Parece que só os assistentes ouviram os impropérios à Laurinda... os seus tios/irmãos, respectivamente, não...! Será por que, como é por demais consabido, o motor de um tractor provoca bastante ruído que não toma facilmente perceptível o que se diz a alguns metros de distância?
Mais uma vez, a postura tendenciosa dos irmãos do assistente, com uma razão de ciência muito duvidosa, conectada com todas as apontadas contradições, lacunas e imprecisões, impossibilita uma selecção do que possa efectiva e concretamente ter ocorrido naquelas circunstâncias, dúvida que, decorrente do princípio geral de prova, só pode beneficiar o arguido.
Quanto agora o dia 14 de Novembro, apenas se considerou provado o que consta dos registos clínicos do episódio de urgência: duas pequenas escoriações nos joelhos, sem outras lesões visíveis “.
Na sequência deste episódio de urgência e já na posse dos seus registos clínicos, a assistente Laurinda deslocou-se ao Gabinete Médico-Legal, tendo sido elaborado relatório onde se apontam aqueles pequenos ferimentos nos joelhos, constando que a examinanda referiu, então, ter sofrido agressão com apertão, bofetadas, empurrão seguido de queda e esganadura.
Diferentemente do que constava na acusação e do que referiu aquando do mencionado exame médico, em audiência a assistente Laurinda verbalizou que, no dia em causa, o arguido lhe bateu com pontapés, sapatadas na cara e lhe chamou vários nomes, na casa onde viviam em Airães.
Ora, nem a informação dada aquando do exame médico-legal, nem a versão carreada em audiência quanto ao sucedido são consentâneas com o que foi observado hospitalarmente – duas pequenas escoriações nos joelhos e sem outras lesões visíveis.
Tentando sustentar a acusação e a versão da filha, o assistente caiu no mesmo erro, mencionando que, depois de lhe telefonarem a dizer o que se passava, ligou às autoridades; quando chegou a casa da filha viu-a no chão toda pisada, com os olhos pretos e a GNR disse que era melhor levá-la ao Hospital de Penafiel, o que fizeram.
Conforme se colhe do acima descrito Relatório de Episódio de Urgência, em 14.11.2008, a paciente referiu ter sido vítima de agressão, pelo que, como flui com meridiana clareza, não se concebe a ideia de o médico que a atendeu não ter vistoriado outras eventuais lesões (hematomas ou equimoses provocadas pelos supostos pontapés e bofetadas na cara) horas antes e fizesse constar que não apresentava outras lesões que não os ligeiros ferimentos nos joelhos.
Claro que o recurso à unidade hospitalar e as lesões nos joelhos (ainda que ligeiras) indiciam que algo se passou; coisa diferente é saber concretizadamente o quê, quando o agente nega e a lesada e seu pai (com evidente interesse no desfecho dos autos) apresentam um discurso completamente avesso aos dados objectivos obtidos.
Repete-se... a tendência para inflacionar os factos é, ainda aqui, evidente e, na falta de mais, descredibiliza quem entende ser a vítima.
Passando agora à apreciação dos factos atinentes aos dias 4 e 5 de Fevereiro de 2009, a história probatória repete-se, com excessos, inconsistências, contradições e incoerências significativas.
A assistente Laurinda declarou que o seu pai foi ao Hospital ver o seu avô e, quando chegou, disse-lhe que o arguido lhe telefonou e o ia matar. O arguido também ligou para o seu telemóvel (da assistente Laurinda) a dizer que ia ver o seu pai morto, chamando-lhe diversos nomes.
Igualmente ligou para a sua prima Vera a dizer que se não fossem os colegas o seu pai (assistente Miguel) já tinha sido morto.
O assistente Miguel referiu também que o arguido lhe telefonou e o insultou, bem como lhe disse que fazia vida com a filha e o ia matar; foi para casa e, já ali, ele ligou para a sua filha Laurinda e (... aqui começam outra vez as contradições) esta desligou-lhe o telefone...!
Então onde estão os insultos e ameaças feitos, na mesma ocasião, telefonicamente para a filha, como esta referiu...?
De seguida ligou para a Vera, que pôs o telefone em alta voz, tendo todos ouvido o arguido dizer tu já viste a pistola, já ta mostrei, para matar o filho da puta do teu tio, porque ela faz vida com o pai. Ele não vem cá fora porque tem medo e já lhe assaltei a casa e já pode fazer uma queixa”.
Vera Cunha, sobrinha e prima dos assistentes, também passou por casa do seu tio naquele dia à noite (juntamente com o seu marido) e o seu tio, quando chegou, disse-lhe que o arguido lhe estava sempre a ligar. Depois o arguido começou a ligar para o seu (da depoente) telemóvel, que pôs em alta voz, e a dizer “ainda ontem viste a pistola e essa pistola é para matar o teu tio, ainda ontem vesti uma saia e ataquei um gajo e fiquei a rir-me dele”.
Decidiram, então, ir à GNR (o assistente, ela e o marido) e, nesse local, o arguido voltou a ligar para o seu telemóvel e colocou-o em alta voz, tendo este dito “ó filho da puta não passas de amanhã, ainda ontem viste a pistola e amanhã mato-te”: como estavam na GNR e tinha colocado o telemóvel em alta voz até os agentes da autoridade que ali se encontravam ouviram.
Cristiano P..., marido desta testemunha, procurou, em vão, credibilizar o seu depoimento, sem que, contudo, evitasse outra flagrante contradição, mormente quando referiu que, quando estavam no posto da GNR, o arguido telefonou para a sua mulher mas não ouviu nada... porque... porque a sua esposa não pôs o telemóvel em alta voz...!
Além de ter resultado da audiência que, na família dos assistentes, as chamadas eram quase sempre atendidas... e quase sempre colocadas em alta voz.., o que não é, de todo, vulgar, a verdade é que a falta de credibilidade dos testemunhos de Vera e seu marido já resultava do que procuraram fazer crer aquando do acontecimento que culminou com o “biqueiro” no nariz de Laurinda.
Palavras para quê... talvez para evidenciar que Maria E..., esposa do assistente Miguel e mãe da Laurinda viria (des)compor ainda mais o ramalhete, ao dizer que, afinal, nessa ocasião o arguido também telefonou para a Laurinda...! Como não chegasse já de contradições, declarou que, quando o arguido ligou para o seu marido, este pôs o telefone em alta voz...!
Mas, então... os telefonemas para o seu marido não foram antes de chegar a casa e só o recebidos pela Laurinda e Vera tiveram direito a alta voz...?
Isto da alta voz tem que se lhe diga. É que Maria E..., mais tarde, ainda veio “atestar” que depois estavam lá em casa e o arguido sempre a ligar para a Laurinda e para a Vera, mas não ouviu nada do que foi dito a uma ou a outra...! Então... em que ficamos!
Parece que, para uns se ouvia bem e para outros o telemóvel se manteve “mudo”.
Não lograram, desta forma e também nesta matéria, obter credibilidade os depoimentos em apreço.
No que à situação de 24 de Fevereiro de 2009 concerne, as incoerências e contradições assumiram-se, diga-se mesmo, flagrantes.
A assistente Laurinda referiu que se encontrava grávida de cerca de oito meses e que o arguido lhe chamou vários nomes e lhe disse que andava metida com o pai; nessa ocasião, já era de noite e regressavam a casa de ver “matar o entrudo”, altura em que o arguido deu uns murros ao seu pai e depois virou-se a si e deu-lhe quatro murros na barriga, mais dizendo aos amigos “matai estes filhos da puta todos, matai-os”.
Já o seu pai mencionou que foram à noite do Carnaval e levou o cano. Estavam a ver o desfile e a sua filha disse para irem embora que o arguido andava por ali. Tentou pegar no carro para fugir e vieram “uns gajos e agrediram-no”, após o que fugiu do local e não assistiu a nada do que respeita à sua filha; esta agressão de que diz ter sido vítima foi já objecto de julgamento e sentença transitada em julgado, que constitui a certidão inserta nos autos oficiosamente advinda do processo n° 494/08.6GBFLG, do 3° Juízo deste Tribunal.
A incongruência destes dois relatos situa-se claramente, quer na forma como os seus autores os apresentaram cronologicamente, quer no que respeita à autoria activa da contenda; dada a versão da assistente Laurinda, não se nos afigura verosímil que o seu pai não tenha visto a sua agressão pelo arguido, pois que terá sido imediata àquela de que foi vítima
Por outro lado, atenta a versão do assistente Miguel, mal se compreende que, estando ambos (os assistentes) juntos, tenham sido uns “gajos” a agredir o pai e o arguido a agredir a filha...! É evidente que há aqui algo que, desde logo, se não coaduna com as regras da lógica e experiência comum.
Esta dúvida — que sempre viria a ser resolvida em benefício do arguido – ficaria esclarecida – negativamente é certo – depois de ouvidos as demais pessoas que, supostamente assistiram a ambas as agressões.
Vejamos.
Alzira Azevedo, caseira do assistente e providencialmente no local, referiu que o arguido bateu no Sr. Miguel e depois virou-se para trás e bateu na Laurinda, dando-lhe quatro murros na barriga e chamou-lhe diversos nomes, não obstante ela andar de bebé, perante o que foi ela (depoente) quem agarrou no Domingos e o separou dizendo-lhe que já tinha problemas que chegasse.
Ora, como é bom de ver, além de contrariar a versão dos factos trazida pelo assistente Miguel, que não viu o que se passou com a filha, apesar de ter ocorrido logo depois de ter sido agredido, não se mostra minimamente credível que tenha sido esta testemunha a separar uma contenda em que estavam envolvidos dois homens e uma mulher... basta atentar na compleição física do assistente Miguel e na da testemunha para se perceber que este, face à compleição física do arguido, necessitava que uma senhora já com certa idade os fosse separar...!
Nesta parte, o depoimento emergiu com contornos que indiciam uma clara preparação para favorecer a “parte” que lhe convém; certo é que, depois de uma grávida de oito meses levar quatro murros na barriga, ninguém parece ter-se preocupado com o seu estado de saúde! Quanto a isto, um sólido.., nada.
Maria C..., irmã do assistente Miguel, continuando com o seu manifestamente tendencioso e exagerado depoimento viu, num primeiro momento, quatro murros na barriga e, num segundo momento, dois murros na barriga da Laurinda; resta saber, a insistir-se no tema, quantos murros afinal teria visto.., e, já agora, por que motivo não foi ajudar a testemunha Alzira a “separar”.
A consistência e convencimento do seu relato consubstanciou-se num nada probatório, o que vai de encontro à coincidência de, na ocasião das pedras no tractor, ter ido assear o cemitério e, por certo fragilizada com o que viu, acabou por abandonar o local sem o assear.
Maria E..., mãe e mulher dos assistentes, respectivamente – que também já foi assistente no processo n° 31/09. 5GBFLG, do 1° Juízo deste Tribunal, de que resultou a condenação do arguido, conforme certidão oficiosamente junta, veio introduzir uma nova faceta na inconsistência e incoerência do que antes vinha sendo dito sobre a questão.
Apesar de começar por dizer que nunca tinha visto o arguido bater na sua filha, durante o depoimento mostrou um avivamento de memória extraordinário.
É, de facto, impressionante como é que alguém tem a ousadia de prestar declarações na forma em que esta prestou... contra tudo e contra todos...! O avivamento de memória de que foi “vítima” permitiu-lhe recordar coisas que... impressionantemente ... mais ninguém viu.
Estava com a sua filha e o seu marido no largo de Longra e o arguido chegou à beira da sua filha e deu-lhe dois pontapés e depois, quando vinham embora, cá em cima, ele deu dois murros ao seu marido.
Mas, não ficou por aqui a estória, pois, adiante, ainda se recordou que a sua filha, quando foi pontapeada, tinha a sua neta ao colo; depois de lhe dar os pontapés, o arguido pôs-se a andar e chamou-lhe puta e badalhoca. Depois veio cá para cima e virou-se ao seu marido a dar-lhe murros...! Entre a agressão à Laurinda e ao Miguel terão decorrido cerca de 15 minutos, mais ou menos.
Onde estaria a testemunha Alzira para os separar é que não se conseguiu perceber?
Bom, perante as indicadas versões, palavras para quê! Talvez para dizer que, mais uma vez, ninguém quer saber da saúde de uma pessoa grávida de oito meses que leva quatro murros na barriga ... ou... conforme o ângulo ... dois pontapés...! É que, idas ao hospital, nem vê-las.
Talvez tenha faltado discernimento ou sensibilidade para a saúde de uma grávida que leva pontapés, murros na barriga, biqueiradas no nariz, que anda sempre com os olhos pretos, toda esmurrada e cheia de ferradelas, além de permanentemente insultada...! O que não faltou foi discernimento para atestar tais coisas, do modo como foram relatadas, numa audiência de julgamento...!
Coisa diferente não se podia esperar da análise dos depoimentos imanentes ao imputado episódio de 21 de Setembro de 2009, pelas 23.50 horas.
Arguido afirmou recordar-se que, nesse dia, foi almoçar com a assistente Laurinda a casa de sua mãe (deste), pois, não obstante separados, às vezes ainda se encontravam. Mais tarde, deixou-a à porta de casa e arrancou para ir embora; quando passava junto das bombas a Laurinda ligou-lhe a dizer que o pai lhe disse que ele deu um tiro na carrinha.
Negou a prática de tal acto, admitindo que passou pelo assistente no cruzamento.
Obviamente - outra coisa não seria de esperar -, a assistente depôs a esta matéria e, espontaneamente, começou logo a dizer que o arguido atacou a tiros a carrinha do seu pai, segundo este lhe contou, após o que viu os tiros marcados na traseira da viatura. Nesse dia, o seu pai foi para casa mas o arguido, do monte, chamou-lhe como, filho da puta e disse que andava metido com a filha.
O assistente Miguel declarou que vinha de dar de comer ao seu gado e, ao virar para Semande, o arguido deu-lhe dois tiros na carrinha, mas não parou porque sabia que ele andava sempre armado e foi para casa; parou a carrinha, foi para dentro de casa e, momentos depois, ouviu o arguido dizer-lhe “seu filho da puta, seu corno, seu badalhoco, andas metido com a tua filha “.
Curiosamente, da acusação apenas consta que tenha dito “á meu filho da puta, vou-te matar “. Onde terá, então, a mandatária do assistente ido buscar estas expressões para as colocar na acusação...? Por certo não foi à iinica testemunha que indicou — a filha Laurinda — que, como vimos, não ouviu este palavreado ... ouviu outro...!
Estará a resposta no facto de o Ministério Público não ter acompanhado a acusação formulada...? Não sabemos. O que sabemos é que da audiência nem fumo ressaltou desta factualidade.
Por muito que se olhe para a fotografia da traseira da carrinha, inserta a fis. 11 do apenso A), não se consegue ver o que os assistentes viram.., marcas de tiros.
Apesar de não ter sido indicado como testemunha a esta matéria, na acusação particular, parece que Francisco Cunha, irmão do arguido, assistiu ao tiroteio na estrada... viu que foi o arguido mas..., como era meia noite, não viu onde ou se os projécteis acertaram. O seu irmão, no dia seguinte, mostrou-lhe as marcas.
Qual cereja em cima do bolo seria esta se tivesse sido indicada como testemunha na acusação em apreço...! Ainda que assim fosse, teria a testemunha que esclarecer, coisa que não fez, o que estava a fazer no local para assistir ao tiroteio... no meio da rua... à meia noite... e que deixou marcas que viu e mais ninguém consegue detectar.
Terá olvidado o depoente que o seu irmão (aqui assistente) não o tinha indicado como testemunha a tais factos, que mencionou ter chamado a autoridade policial e que não existe registo de que tenha mostrado e esta autoridade, o que lhe mostrou a si no dia seguinte e mais ninguém consegue ver (... as marcas dos tiros)?
A resposta é evidente e dispensa ulteriores considerações. Não pode é esquecer-se que, para além dos tiros da carrinha, também tinha ido, providencialmente, ao cemitério com a irmã, por ocasião das pedradas no tractor...!
A conclusão que se extrai da apreciação da prova produzida quanto aos factos não provados é a de que o que de mais abstracto constava das acusações e pedidos cíveis toda a gente sabia e ocorria a toda a hora. Quando chegou o momento de concretizar as diversas situações, a audiência foi decorrendo como... se descreveu.
Neste contexto inseriram-se, outrossim, os depoimentos de Sara S... (prima e sobrinha dos assistentes, respectivamente), Maria A... Gomes (tia da Laurinda e cunhada do assistente Miguel), António M... (amigo do assistente) e Maria AX (antiga vizinha dos assistentes), que viram na Laurinda olhos negros de pancada, corpo todo pisado, ferradelas, escoriações e hematomas.
Pena é que, com excepção da agressão que se considerou provada, e das ligeiras escoriações nos joelhos, nunca em nenhuma das “outras idas ao Hospital” se tenham percepcionado e atestado clinicamente tais horrores... mesmo quando, nos exames, a assistente os declarava, perece que os médicos, ... qual cegueira os não conseguiam detectar.
A tendência para o exagero (não querendo utilizar aqui expressão que possa ferir susceptibilidades) foi tanta que, reconhecendo embora o arguido e ambos os assistentes que, pelo menos até 7 de Agosto de 2007, altura em que nasceu a primeira filha, todos tinham boas relações, a testemunha Sara S... chegou ao cúmulo de pretender fazer crer que, cerca de seis meses antes de nascer a primeira filha, já o arguido queria que a Laurinda deitasse veneno na comida do pai para o matar, o que dizia muitas vezes.
Talvez tenha sido mesmo algum “veneno” exógeno à relação do arguido e assistente Laurinda que conduziu à presente situação, que muito dificilmente se ultrapassará. Só com muito bom senso... se existir.
A presente motivação, quanto aos factos não provados, vai já longa e talvez não fosse caso de o merecer, mas espelha a dificuldade com que o colectivo se deparou na apreciação da prova, gerando uma estranha sensação de, apesar de condenação parcial do arguido, se desconhecer quem, nos demais momentos e circunstâncias, foi sendo a verdadeira vítima ... se pai ... se filha ou, saberão as partes e testemunhas, ... se o próprio arguido.
Gracinda S..., prima da mãe do arguido, Marta F..., actual companheira do arguido, e Maria G...s (mãe do arguido) não revelaram contributos relevantes para a descoberta dos factos provados e não provados imanentes às acusações, corroborando, contido o que dimana do relatório social e, em parte, está espelhado nas certidões extraídas dos processos de regulação do poder paternal das filhas do arguido e assistente.
No que às actuais condições de vida do arguido respeita, valoraram-se também as suas próprias declarações, o relatório social e certidões oficiosamente requisitadas aos processos de regulação do poder paternal, que espelham cabalmente a animosidade que, ainda agora, se vivencia e parecer ser para durar.
*
FUNDAMENTAÇÃO
1 – Os vícios do art. 410 nº 2 als. a) e c) do Cod. Penal
Todos os vícios do art. 410 nº 2 do CPP, têm forçosamente que resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum. Isso decorre expressamente do corpo da norma. Tendo os vícios que resultar do texto da decisão recorrida, não é possível, para a sua demonstração, o recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, designadamente declarações prestadas ou documentos juntos durante o inquérito, a instrução, ou até mesmo no julgamento – cfr. ac. STJ de 19-12-90, citado por Maia Gonçalves em anotação a este artigo.
Decorre da motivação do recurso que os recorrentes pretendem impugnar a decisão sobre a matéria de facto, nos termos do art. 412 nºs 3 e 4 do CPP, o que é diferente. Desta se tratará a seguir.
Por isso, sem necessidade de mais considerações, conclui-se pela improcedência da invocação destes vícios.
2 – A impugnação da decisão sobre a matéria de facto
Os recorrente impugnam “em bloco” 44 «factos não provados».
Porém, nesta parte, a argumentação do recurso assenta num equívoco: o de que a relação pode fazer um novo julgamento da matéria de facto, decidindo, através da consulta do registo da prova e dos elementos dos autos, quais os factos que considera «provados» e «não provados». Como escreveu o Prof. Germano Marques da Silva, talvez o principal responsável pelas alterações introduzidas no CPP pela Lei 59/98 de 25-8, “o recurso em matéria de facto não se destina a um novo julgamento, constituindo apenas um remédio para os vícios do julgamento em primeira instância” – Forum Justitiae, Maio/99. É que “o julgamento a efectuar em 2ª instância está condicionado pela natureza própria do meio de impugnação em causa, isto é, o recurso… Na verdade, seria manifestamente improcedente sustentar que o recurso para o tribunal da Relação da parte da decisão relativa à matéria de facto devia implicar necessariamente a realização de um novo julgamento, que ignorasse o julgamento realizado em 1ª instância. Essa solução traduzir-se-ia num sistema de “duplo julgamento”. A Constituição em nenhum dos seus preceitos impõe tal solução…” – ac. TC de 18-1-06, DR, iiª série de 13-4-06.
Por isso é que as als. a) e b) do nº 3 do art. 412 do CPP dispõem que a impugnação da matéria de facto implica a especificação dos «concretos» pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados e das «concretas» provas que impõem decisão diversa. Este ónus tem de ser observado para cada um dos factos impugnados, ou, ao menos, para cada conjunto de factos que integram o mesmo “episódio”. Em relação a cada um têm de ser indicadas as provas concretas que impõem decisão diversa (é mesmo este o verbo - «impor» - utilizado pelo legislador) e em que sentido devia ter sido a decisão. É que há casos em que, face à prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução.
Não concretiza aquele Professor a que “vícios” se refere, mas alguns poderão ser sumariamente indicados.
Por exemplo, se o tribunal a quo tiver dado como provado que A bateu em B com base no depoimento da testemunha Z, mas se da transcrição do depoimento de tal testemunha não constar que ela afirmou esse facto, então estaremos perante um erro manifesto no julgamento. Aproveitando ainda o mesmo exemplo, também haverá um erro no julgamento da matéria de facto se, apesar da testemunha Z afirmar que A bateu em B, souber de tal facto apenas por o ter ouvido a terceiros. Aqui estaremos perante uma indevida valoração de meio de prova proibido (arts. 129 e 130 do CPP), que pode ser sindicada pela relação. Poderá ainda afirmar-se a existência de um “vício” no julgamento da matéria de facto, quando a decisão afrontar as regras da experiência. Por exemplo, estiver apoiada num depoimento cujo conteúdo, objectivamente considerado à luz das mesmas regras da experiência, deva ser considerado fruto de pura fantasia de quem o prestou.
O recurso da matéria de facto não se destina a postergar o princípio da livre apreciação da prova, que tem consagração expressa no art. 127 do CPP. A decisão do tribunal há-de ser sempre uma “convicção pessoal – até porque nela desempenham um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais” – Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, vol. I, ed.1974, pag. 204.
Por outro lado, a livre apreciação da prova é indissociável da oralidade com que decorre o julgamento em primeira instância. Como ensinava o Prof. Alberto do Reis “a oralidade, entendida como imediação de relações (contacto directo) entre o juiz que há-de julgar e os elementos de que tem de extrair a sua convicção (pessoas, coisas, lugares), é condição indispensável para a actuação do princípio da livre convicção do juiz, em oposição ao sistema de prova legal”. E concluía aquele Professor, citando Chiovenda, que “ao juiz que haja de julgar segundo o princípio da livre convicção é tão indispensável a oralidade, como o ar é necessário para respirar” – Anotado, vol. IV, pags. 566 e ss.
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A argumentação da motivação do recurso consiste na análise da prova produzida no julgamento e na extracção das conclusões que a recorrente tem por pertinentes – há 44 factos não provados que devem passar a ser considerados provados.
Na realidade, os recorrentes fazem a sua própria análise crítica da prova para concluir que deveria ser alterada a decisão quanto àqueles 44 factos. Mas o momento processualmente previsto para o efeito são as alegações finais orais a que alude o artigo 360 do CPP. A impugnação da decisão da matéria de facto não se destina à repetição, agora por escrito, do que então terá sido dito.
Mantém-se, pois, a decisão quanto à matéria de facto.
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3 – A incriminação
A questão suscitada é a de saber se os «factos provados», mesmo mantendo-se inalterados, são suficientes para a condenação do arguido por um crime de violência doméstica p. e p. pelo art. 152 nº 1 al. b) do Cod. Penal, sendo ofendida a assistente Laurinda C....
Vejamos:
A revisão do Cod. Penal de 2007 ultrapassou a querela de se saber se para o crime de violência doméstica (ou «maus tratos», como era a epígrafe da anterior redacção do artigo 152 do Cod. Penal) bastava a prática de um só acto, ou se era necessária a “reiteração” de comportamentos. Actualmente, o segmento «de modo reiterado ou não» introduzido no corpo da norma do nº 1 do art. 152 do Cod. Penal, é unívoco no sentido de que pode bastar só um comportamento para a condenação.
Como, então, delimitar os casos de violência doméstica daqueles em que a acção apenas preenche a previsão de outros tipos de crime, como a ofensa à integridade física, a injúria, a ameaça ou o sequestro?
A solução está no conceito de «maus tratos», sejam eles físicos ou psíquicos.
Há «maus tratos» quando, em face do comportamento demonstrado, for possível formular o juízo de que o agente manifestou desprezo, desejo de humilhar, ou especial desconsideração pela vítima. Uma mesma bofetada, dependendo das circunstâncias, pode ser só uma ofensa à integridade física ou um caso de maus tratos. Poderá haver maus tratos se, por exemplo, um cônjuge esbofetear o outro na presença de filhos menores de ambos. Aqui, mais do que a ofensa corporal, sobreleva o juízo de que ao agressor foi indiferente a imagem com que os filhos ficam do outro progenitor. É especialmente humilhante um pai ou uma mãe ser agredido na presença dos filhos, sendo a humilhação agravada se o agressor for o outro progenitor. O comportamento revela um desejo de abaixamento do ofendido, sendo que as regras mínimas de civilidade impõem que cada um dos progenitores preserve a imagem do outro, perante os filhos menores de ambos.
É também o caso destes autos.
No dia 12 de Março de 2009 a assistente Laurinda C... estava na fase final da gravidez de uma filha do arguido (a menor Lara M... nasceu 15 dias depois, em 27 de Março de 2009). Era facto que não podia deixar de ser do conhecimento do arguido. A fase final duma gravidez é um momento da vida em que a mulher esta está mais frágil, por razões de todos conhecidas. O arguido tinha um especial dever de se abster de comportamentos humilhantes para com a assistente Laurinda.
Pois bem, apesar disso abordou-a na via pública, em pleno dia, chamando-lhe “puta”, “filha da puta” e “porca”. Não se sabe por quantas pessoas estas palavras foram ouvidas, mas isso foi-lhe certamente indiferente, pois ficou provado que as proferiu “em tom elevado e de forma exaltada”. Trata-se de um meio rural, onde mais facilmente se propaga o conhecimento público deste tipo de comportamentos.
Foi um comportamento especialmente humilhante para a assistente Laurinda, não acudindo em favor do arguido qualquer “atenuante” relacionada com a “tradição” cultural do nosso povo, supostamente particularmente viva nos meios rurais, pois há décadas (desde antes do nascimento do arguido) que para a lei portuguesa existe uma igualdade radical entre o homem e a mulher.
Este juízo de existência de maus tratos fica reforçado perante o facto provado no nº 3, também este suficiente para a condenação por violência doméstica. No dia 6 de Julho de 2008, igualmente em pleno dia e em local em que podiam ser vistos por terceiros (no exterior da habitação), o arguido apertou o pescoço da assistente, provocando-lhe dor, dificuldades respiratórias e escoriações na face esquerda do pescoço. Apertar o pescoço, em local público, criando dificuldades respiratórias é bem mais grave do que dar uma bofetada. Além de pressupor uma maior frieza do agressor, é mais humilhante para a vítima.
Deve, pois, o arguido António M... ser condenado por um crime de violência doméstica p. e p. pelo art. 152 nº 1 al. b) do Cod. Penal, em vez dos crimes de injúria e de ofensa à integridade física simples por que foi condenado na primeira instância.
4 - A pena concreta
O crime do art. 152 nº 1 al. b) do Cod. Penal é punido com a pena de prisão de um a cinco anos.
A culpa, entendida como o juízo de censura ético-jurídica dirigida ao agente por ter actuado de determinada forma, quando podia e devia ter agido de modo diverso (Eduardo Correia, Direito Criminal, vol. I, pag. 316), é de grau médio.
A ilicitude, que se afere pelo grau de negação dos específicos valores jurídico-criminais tutelados pela norma violada, é pequena, pois estão apenas em causa dois comportamentos.
As exigências de prevenção geral positiva são significativas, pois está-se perante um crime relativamente ao qual a comunidade vem crescentemente manifestando preocupação e reclamando a reacção firme dos tribunais.
As exigências de prevenção especial, não sendo elevadas, têm algum significado, pois o arguido já foi condenado por crimes tão díspares como condução ilegal, furto, injúria, ameaça, difamação, ofensa à integridade física e dano, o que revela uma personalidade pouco contida quando confrontada com o dever de se abster da prática de crimes.
Deve a pena fixar-se sensivelmente abaixo do meio da moldura penal, que se fixa em 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão.
Suspende-se a execução desta pena, pois o arguido tem uma boa inserção social (factos 21 a 24), sendo que a condenação pelos crimes de injúria, ameaça, difamação, ofensa à integridade física e dano ocorreu em 19-7-2010, já após a prática dos factos agora em apreço. O arguido pagou a multa em que foi condenado.
Tudo isto permite a formulação do juízo de que a censura do facto e a ameaça da prisão serão suficientes para o afastar da prática de novos crimes.

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DECISÃO
Os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães:
1 – Negam provimento ao recurso do assistente Miguel C...; e
2 – Concedendo provimento parcial ao recurso da assistente Laurinda C..., em substituição dos crimes de injúria e de ofensa à integridade física por que foi condenado na primeira instância, condenam o arguido António M..., por um crime de violência doméstica p. e p. pelo art. 152 nº 1 al. b) do Cod. Penal, em:
18 (dezoito) meses de prisão.
Suspendem a execução desta pena por igual período de 18 meses.
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No mais mantêm o acórdão recorrido.
O recorrente Miguel Pacheco pagará 3 UCs de taxa de justiça.