Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
634/04.4TBBCL.G1
Relator: ANTÓNIO SOBRINHO
Descritores: SEGURO
DANO
PARALISAÇÃO DE VEÍCULO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/12/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I – É na transferência do risco que se encontra o elemento unificador do contrato de seguro, considerando-se aquele não como a possibilidade de um evento danoso mas a possibilidade de um evento futuro e incerto que, a verificar-se, implica o pagamento de uma indemnização.
II – A chamada indemnização pela privação do uso do veículo é corolário lógico da contraprestação inerente ao risco assumido pela seguradora recorrente, nas situações de “choque” do veículo.
III – A não ser assim esvaziar-se-ia praticamente de conteúdo a contraprestação da seguradora – com o consequente desequilíbrio prestacional correspectivo – pois que o choque ou despiste do veículo implica, em regra, a sua imobilização durante o período da reparação.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

QUESTÃO PRÉVIA:

Vem a recorrente impugnar a decisão que indeferiu o seu pedido de atribuição de efeito suspensivo ao presente recurso de apelação com o fundamento de que tal efeito não deve estar condicionado à verificação da situação económica das partes nem tão pouco ao facto de se aferir se a recorrente seguradora pode ou não ter um prejuízo considerável, como se entendeu na decisão proferida.
Apreciando.
Dispõe o artº 692, nº 3, do Código de Processo Civil ( doravante CPC ), que a parte vencida pode requerer, ao interpor o recurso, que a apelação tenha efeito suspensivo quando a execução lhe cause prejuízo considerável.
Na fundamentação do seu pedido, a fls. 471, a aqui recorrente limitou-se a dizer que a execução lhe causa prejuízo considerável, sem especificar os factos concretos que pudessem alicerçar tal afirmação.
Ora, não basta a alegação genérica e abstracta daquela expressão jurídica – causar “prejuízo considerável” – para, de modo automático ou taxativo, ser concedido o pretendido efeito ao recurso.
Na verdade, no seu requerimento de fls. 471, a recorrente não alegou qualquer facto concreto, objectivo, que pudesse traduzir esse prejuízo considerável para si a atribuição, segundo a regra geral, do efeito meramente devolutivo à apelação, como se lhe impunha, em termos de ónus de alegação e prova.
Por outro lado, a prova desse “prejuízo considerável” não se presume nem pelo montante da condenação (no caso, a quantia líquida de €: 13.284,37) nem pelo pretenso vencimento do recurso, como também não se presume a falta de liquidez da recorrida.
Daí que o despacho que indeferiu o pedido da recorrente não mereça censura, sendo de manter.


I – Relatório;

Recorrente(s): Companhia de Seguros (ré);
Recorridos: Construção Ldª (autora);
4º Juízo Cível de Barcelos – acção ordinária.

*****

Construção, Ldª, demandou na presente acção com processo ordinário emergente de acidente de viação a Companhia de Seguros, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 31.625,57, quantia, essa, acrescida de juros desde a citação até integral pagamento.

Alegou, em síntese, que ocorreu um acidente de viação, o qual descreve, imputando-o a conduta culposa do condutor do veículo segurado e alegando os danos sofridos e directamente resultantes do acidente.

A Ré contestou, excepcionando a ilegitimidade activa e a inexistência de contrato de seguro, além de impugnar os factos, concluindo pela total improcedência da acção.

A A. apresentou réplica.

Saneado o processo, foi efectuado despacho saneador com organização de especificação e questionário, que não foram objecto de quaisquer reclamações.

Procedeu-se a julgamento com observância de todo o formalismo legal, tendo os quesitos obtido resposta, que não mereceu qualquer censura.

Seguidamente foi proferida sentença em que se julgou a acção parcialmente procedente, por provada e, em consequência, se condenou a Ré Companhia de Seguros Açoreana, S.A., a pagar à A., Daniel & Carvalho Materiais de Construção, Ldª:

- O montante global de € 13.284,37 (sendo o montante de € 6.484,37, relativo à reparação do veículo e o montante de € 7.800,00, referentes ao ressarcimento do dano da privação do uso do veículo), a título de indemnização pelos danos patrimoniais sofridos em virtude do acidente, acrescida dos juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, contados desde a presente data, com relação ao montante atribuído para ressarcimento da privação do uso do veículo, e desde a data da citação, com relação ao montante atribuído para a reparação do veículo, até integral e efectivo pagamento.

- O montante a liquidar em execução de sentença relativo a prejuízos decorrentes da privação do uso do veículo resultantes, ou, mais concretamente, do valor do prejuízo resultante das vendas que a A. deixou de efectuar, pelo facto de se ter visto impossibilitada de o utilizar na sua actividade.

Inconformada com tal decisão, dela interpôs recurso a Ré seguradora, de cujas alegações se extraem, em súmula, as seguintes conclusões:

1. Conforme consta da apólice de seguro junta a fls. 32 a 35 dos autos e dada por integralmente reproduzida na decisão, o contrato de seguro ora em causa estabelecia para a cobertura de "choque, colisão ou capotamento" uma franquia de € 466,28.
2. Facto que não consta na decisão sub judice e que não foi apreciado pelo Tribunal a quo, não obstante ter sido concretizado nos documentos juntos e dados por integralmente reproduzidos.
3. Assim, se atentarmos todos os elementos carreados para os autos, não pode deixar de se considerar que o Tribunal a quo deveria ter apreciado na sentença a questão da franquia, reduzindo-a do valor da condenação.
4. O Tribunal a quo não conheceu de todas as questões que a ora Recorrente submeteu à sua apreciação e que estava obrigado a apreciar, o que determina a nulidade da decisão recorrida, de acordo com o disposto nos art. 660. °, n.º 2, e 668.°, n.º 1, al. d), do C.P.C..
5. Assim sendo, deve a decisão ora em crise ser modificada, retirando do valor a que a Apelante foi condenada a título de reparação o valor da franquia, ou seja, € 466,28.
6. Na contestação apresentada pela Apelante, foi alegado que o contrato de seguro em causa nestes autos não tinha a cobertura de paralisação do veículo pelo que, nunca teria a Autora direito a qualquer valor a esse título (cfr. arts. 50.° e 51.°).
7. No âmbito deste contrato de seguro facultativo de danos próprios, as partes acordaram as coberturas que constam expressamente na apólice de seguro: as coberturas de "choque, colisão capotamento", "incêndio, raio, explosão" e "furto ou roubo".
8. Entre as partes não foi contratada a cobertura de paralisação do veículo, como resulta do facto de tal cobertura não estar expressamente consignada na apólice em causa, sendo certo que a R. só será responsável pelo ressarcimento dos danos sofridos pela Autora nas condições e limites acordados no contrato de seguro.
9. O facto de o contrato de seguro em causa não ter cobertura de paralisação do veículo é um facto essencial e relevante para a boa decisão da causa, já que determina, como é evidente, a procedência ou improcedência dos pedidos relativos aos danos decorrentes da privação do veículo.
10. Tratando-se de um facto essencial e relevante para a boa decisão da causa e alegado pela parte, impunha-se, nos termos do disposto no art. 511.° do C.P.C, que o Tribunal a quo o tivesse incluído nos factos assentes ou na base instrutória.
11. Não o tendo feito, deve o Tribunal ad quem corrigir tal lapso, ampliando a matéria de facto e, considerando o teor da apólice junta aos autos, deve dar por provado o alegado no art. 50º da contestação, decidindo pela improcedência dos pedidos a título de danos decorrentes da paralisação e/ou privação do veículo.
12. Caso se entenda que os autos não permitem ao Tribunal ad quem o conhecimento imediato desta questão, então deve ser anulada, nesta parte, a decisão de 1ª Instância e ordenada a ampliação da matéria de facto e a repetição do julgamento, ao abrigo dos poderes que lhe são conferidos no art. 712.°, n.° 4, do C.P.C ..
A recorrida apresentou contra-alegações, rebatendo os argumentos da recorrente e pugnando pelo julgado.

II – Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar;

O objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões das alegações, nos termos dos artigos 660º, nº 2, 664º, 684º, nºs 3 e 4 e 690º, nº 1, todos do Código de Processo Civil (CPC).

A – Recurso da Ré seguradora:

As questões suscitadas pela Recorrente são as seguintes:
a) Verifica-se omissão de pronúncia quanto à questão da franquia, pelo que a decisão recorrida deve ser alterada de modo a ser deduzido o valor daquela na condenação.
b) O contrato de seguro facultativo não prevê a cobertura de danos por paralisação do veículo, o que a recorrente alegou, pelo que esta não devia ter sido condenada a esse título, devendo ser ampliada a matéria de facto nesse sentido, o que acarreta a improcedência do pedido nesse ponto, ou, deve ser anulada a sentença nessa parte, para se ampliar a matéria de facto, repetindo-se o julgamento.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.


III – Fundamentos;


1. De facto;

A factualidade dada como assente na sentença recorrida é a seguinte:

1- No dia 27 de Fevereiro de 2003, pelas 18.30 horas, o sócio gerente da A. conduzia o veículo SD pela estrada que liga a freguesia de Chorente à cidade de Barcelos.

2- Nesse sentido de marcha.

3- Nas referidas circunstâncias de tempo e local, o veículo SD embateu contra um muro.

4- Em virtude deste embate o veículo SD sofreu os danos.

5- A A. pagou a quantia de € 6.484.37 pela reparação desses danos.

6- A A. utiliza o veículo SD na distribuição de mercadorias.

7- Em virtude do embate o veículo SD esteve imobilizado desde aquela ocorrência até ao dia 05.01.2004.

8- Em virtude da referida paralisação a autora perdeu diversas vendas, pois não conseguiu satisfazer todas as encomendas.

9- O motorista que conduzia o veículo SD passou a acompanhar os outros motoristas, o que acarretou mais despesas para a autora.

10- O preço médio de aluguer de um veículo idêntico ao veículo SD ascende a € 75,00 diários.

11- Mediante contrato de seguro celebrado entre a autora, na qualidade de tomador, e a R., na qualidade de segurador, titulado pela apólice n.º 90.948054, a R. assumiu a responsabilidade por todos os danos verificados no veículo automóvel com a matrícula 07-18-SD, conforme documentos juntos a fls. 32 a 35, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

12- O referido contrato de seguro foi realizado por intermédio de Gloreal Seguros, L.da, que se dedica à mediação de seguros.

13- No dia 28.03.2002 a ré emitiu o “recibo de prémio” com o n.º 02.03.85411, relativo ao período compreendido entre 31.05.2002 e 30.05.2003, conforme documento junto a fls. 7 destes autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

14- A cobrança do referido prémio era feita por Gloreal Seguros, L.da.

15- A A. pagou e entregou à R., por intermédio de Gloreal Seguros, L.da, o valor € 783,95 relativo ao aludido prémio de seguro.

16- No dia 28/03/02 a Interveniente G. Seguros entregou à A. o “recibo de prémio” referido em 13).

17- Bem como a respectiva carta verde.

18- O “recibo de prémio” referido no facto 13) tinha como limite de pagamento a data de 30.06.2002.

19- A A. pagou tal prémio, por intermédio de G. Seguros, no dia 17.07.2002.

20- Em 26 de Julho de 2002 G. Seguros, apresentou na congénere Z. Seguros uma proposta de seguro do ramo automóvel, referente ao veículo com a matrícula 07-18-SD.

21- A A., na qualidade de locatária, celebrou com Leasing, S.A., proprietária do veículo 07-18-SD, na qualidade de locadora, um contrato de locação financeira que teve por objecto o referido veículo, com início no dia 07.08.2001 e termo no dia 07.08.2003, conforme documento junto a fls. 115 a 118, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

22- O valor mensal da prestação paga por força do contrato referido no facto 21) equivalia a € 290,20.



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2. De direito;


a) Questão da franquia:

Começa a recorrente por discordar da sentença condenatória com o fundamento de que o contrato de seguro celebrado entre as partes - contrato de seguro facultativo de danos próprios – estabelecia para a cobertura de “ choque, colisão ou capotamento “ uma franquia de €: 466,28, sendo que a dedução de tal valor não foi levado em linha de conta no montante indemnizatório fixado.
Assiste razão à recorrente.
Conforme consta da matéria de facto provada – ponto nº 11 supra – da apólice de seguro junta a fls. 32 a 35 dos autos, cujo teor foi dado como reproduzido integralmente na decisão de facto, o contrato de seguro em causa estabelecia uma franquia de €: 466,28 na cobertura de danos por “ choque, colisão ou capotamento “.
Acresce dizer que não colhe a contra-alegação da recorrida no sentido de que se trata de facto novo, não alegado nem apreciado, em sede de 1ª instância, o que impediria este tribunal superior de conhecer do mesmo.
Trata-se de factualidade que emana do próprio conteúdo do documento - da apólice junta aos autos e cujo teor foi dado por reproduzido na íntegra – o qual não foi impugnado neste contexto pela autora.
Daí que, tal valor deva ser deduzido na quantia indemnizatória fixada pelo tribunal a quo na condenação da Ré seguradora.

b) Questão da paralisação do veículo:

Esgrime ainda a recorrente o argumento de que as partes no contrato de seguro em causa – nesta parte contrato de seguro facultativo de danos próprios – as partes apenas acordaram as coberturas que constam expressamente da apólice de seguro, a saber as coberturas de “choque, colisão ou capotamento”, “ incêndio, raio, explosão” e “ furto ou roubo”.
Logo, não havia a cobertura de paralisação do veículo, pelo que inexiste fundamento para a sua condenação a esse título.
Mais, tendo alegado tal facto no artº 50º da contestação, impõe-se, ou a ampliação da matéria de facto nesse sentido por este tribunal ad quem, concluindo-se pela improcedência do pedido neste ponto, ou a anulação da decisão recorrida para tal matéria ser apreciada pela 1ª instância.
Afigura-se-nos não merecer acolhimento tal alegação.
Com efeito, estando em causa o ressarcimento de danos causados por choque, na sequência de despiste do veículo, os prejuízos advindos para a autora pela não utilização do veículo qua tale até à sua reparação emergem directa e conexamente da aludida cobertura de danos por “ choque” do veículo.
Como se salienta na sentença recorrida, os danos peticionados a esse título – por privação do uso do veículo – estão interligados com a impossibilidade de utilização do mesmo para o fim a que se destinava.
Assim, independentemente da alegada não contratação do risco inerente à paralisação do veículo, sempre o autor lesado tem direito a ser ressarcido dos danos peticionados a esse título – por serem danos indemnizáveis e consequência directa e adequada da lesão - que lhe advieram do risco inerente à situação de “ choque “ do veículo, cobertura esta que contratara com a ré seguradora.
Dito de outro modo, estamos perante danos que são decorrentes do facto de o lesado se ver privado do uso do veículo, em si mesmo, e não qualquer prejuízo que tenha decorrido dessa privação do uso, nomeadamente no âmbito do exercício da sua actividade de distribuição de mercadorias, a que estava adstrito.
São danos directos e conexos com a impossibilidade de utilização do veículo ( e não reflexos dessa mesma privação de uso ), sofridos em consequência de acidente de trânsito por despiste ( cujo risco o lesado facultativamente acordara com a seguradora), o que constitui, por si só, um dano indemnizável, já que essa privação se traduz numa lesão no seu património, pois o dono do veículo vê-se impossibilitado do exercício do direito de utilização de uma coisa que lhe pertence.
Citando o aresto aludido na decisão sob recurso – Ac. do S.T.J., de 57.02.07, in www.dgsi.pt, “ o dano produzido atinge, neste caso, a possibilidade e capacidade que são retiradas ao proprietário durante o tempo em que, por via do dano produzido, está privado do veículo”.
E essa privação configura um dano patrimonial, dado que a utilidade de um veículo tem valor pecuniário. Trata-se, enfim, de lesão avaliável em dinheiro.
Importa não descurar que, genericamente, o seguro é um contrato aleatório, pelo qual determinada empresa ou indivíduos se obrigam mediante um certo prémio ou prestação a pagar uma indemnização, sob a dependência de um acontecimento incerto.
É na transferência do risco que se encontra o elemento unificador do contrato de seguro. O risco é assim considerado, não como possibilidade de um evento danoso, mas como a possibilidade de um evento futuro e incerto que, a verificar-se, implica o pagamento de uma indemnização.
Ora, a indemnização pela dita privação do uso do veículo é corolário lógico da contraprestação inerente ao risco assumido pela recorrente nas situações de “choque” do veículo. Senão, esvaziar-se-ia praticamente de conteúdo a contraprestação da seguradora nestes casos ( ou, pelo menos, a respectiva correspectividade das prestações mostrar-se-ia desequilibrada, em prejuízo do tomador do seguro ), pois que, como é consabido, o choque ou despiste do veículo implica em regra a sua imobilização, desde logo durante o período de reparação.
Concluindo, confirma-se nesta parte a sentença.


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IV – Decisão;

Em face do exposto, na parcial procedência da apelação, acordam os Juízes desta secção cível em alterar a sentença recorrida nos seguintes termos:

A) Condenar a Ré Companhia de Seguros a pagar à A., Construção, Ldª:

- O montante global de € 12.818,09 [ doze mil, oitocentos e dezoito euros e nove cêntimos (sendo o montante de € 6.251,23, relativo à reparação do veículo e o montante de € 7.566,86, referentes ao ressarcimento do dano da privação do uso do veículo)], a título de indemnização pelos danos patrimoniais sofridos em virtude do acidente, acrescida dos juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, contados desde a presente data, com relação ao montante atribuído para ressarcimento da privação do uso do veículo, e desde a data da citação, com relação ao montante atribuído para a reparação do veículo, até integral e efectivo pagamento.

B) Manter quanto ao mais o decidido em 1ª instância.


Custas pelas apelante/ré e apelada/A., na proporção do respectivo decaimento.