Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3757/17.6T8VCT.G2
Relator: AMÍLCAR ANDRADE
Descritores: ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
CAUSA DE PEDIR
INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/15/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Legislação Nacional: ARTIGOS: 186º/1, 168º/2 A), 581º/4, TODOS DO CÓD. PROCESSO CIVIL
ARTIGO 1311º/1 DO CÓDIGO CIVIL
Sumário:
I. Quer a doutrina, quer a jurisprudência têm considerado, que a causa de pedir é o facto jurídico de que emerge o direito do autor e fundamenta, portanto, a sua pretensão e traduzindo-se num facto concreto tem de ser invocada na petição, ou nos termos do n. 1 do artigo 265º do Código de Processo Civil, sem o que não pode ser apreciada na sentença.

II. A causa de pedir é caracterizada pela sua especificidade e adequação.

III. A acção de reivindicação – visando o reconhecimento do direito de propriedade e a consequente restituição da coisa – assenta nos factos jurídicos de onde emerge esse direito de propriedade, factos estes que correspondem à causa de pedir.
IV. Esta é a solução imposta pelo art. 581º, n.º 4 do Código de Processo Civil, que consagrando no nosso ordenamento jurídico a teoria da substanciação, estabelece que nas acções reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real.

V. Não tendo o Autor alegado factos concretos que possam integrar a causa de pedir, verifica-se a falta desta e, consequentemente, a ineptidão da petição inicial, o que acarreta a nulidade de todo o processo ( artº 186º, nºs 1 e 2 a)do CPC).

VI. A nulidade de todo o processo constitui excepção dilatória que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância (artºs 576º, nºs 1 e2 e 577º b), do CPC), sendo de conhecimento oficioso do tribunal (artº 578º).
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

Na presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, intentada por Luís …contra P. – Transportes, Lda., vem o Autor formular dois pedidos:

Em primeiro lugar, que a Ré seja condenada a reconhecer que o Autor é dono e legítimo possuidor e proprietário, com exclusão de outrem, do prédio urbano constituído por edifício destinado a fábrica de serração e logradouro com a área coberta de 1000 m2 e descoberta de 2000 m2, sito no lugar …, da União das Freguesias de ... e ..., concelho de Ponte de Lima, a confrontar do norte, sul e nascente com caminhos públicos e do poente com a Ré, não descrito na Conservatória do Registo Predial de Ponte de Lima e inscrito na matriz predial sob o artigo ... urbano (anterior artigo 564º urbano).

Em segundo lugar, que seja ordenado que o prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de Ponte de Lima, sob o número ..., de ..., é constituído de Bouça de Mato e lenha com 3600 m2, sito no lugar ..., da União das Freguesias de ... e ..., concelho de Ponte de Lima, a confrontar do norte com caminho público, do sul e poente com Estrada de … e do nascente com o prédio urbano do Autor, inscrito na matriz predial sob o artigo 872º rústico da freguesia de ....

A fls. 91 veio a ser proferido despacho saneador em que se decidiu, na parte que ora importa, julgar inepta a petição inicial, com a inerente absolvição da Ré da instância, nos termos do disposto nos artigos 595º, nº 1, alínea a), 186º, nºs. 1 e 2, alínea b), 576º, nºs. 1 e 2, 577º, alínea b), e 578º, do Código de Processo Civil.
Desta decisão apelou o Autor.

Na sua alegação concluiu:

- A primeira sentença proferida nos autos não conheceu da ineptidão da petição inicial pelo que, em face do disposto no artigo 608º do Código de Processo Civil, está vetado, ao tribunal, conhecer do vício nesta segunda sentença.
- O pedido não está em contradição com a causa de pedir.
- Não se cumulam causas de pedir incompatíveis.
- O réu interpretou convenientemente a petição inicial.
- A douta sentença viola o disposto no artigo 186º do Código de Processo Civil.
- Na sociedade de um sócio único não há partilha de bens porque a partilha é uma divisão de bens entre sócios ou compossuidores, pelo que a douta sentença viola o disposto no artigo 156º do Código das Sociedades Comerciais.
- Não havendo lugar a partilha, havendo imóveis, não há lugar a qualquer título formal, como se prevê no artigo 159º do Código Comercial, que a douta sentença viola ao decidir que o autor não tem qualquer título de aquisição do prédio que reivindica.
- O autor sucede nas relações da sociedade dissolvida administrativamente, independentemente, do conteúdo do procedimento de dissolução, que, ainda que transitado, não tem caráter definitivo.
- Compete ao titular da sociedade reativar a sociedade ou tomar a posição dos bens que ela possuir, como sucedeu nos autos.
10ª- O autor arroga-se, nos autos, como o proprietário da sociedade dissolvida, tendo-a como meio através da qual exerce a posse de fato sobre o imóvel reivindicado, na alínea a) do pedido, em nome próprio.
11ª- Alega a intenção de atuar sobre o imóvel como o verdadeiro proprietário, pelo que a douta sentença viola o disposto nos artigos 1252º e 1253º do Código Civil.
12ª- Em todo o caso, também, alega a acessão da posse à da sua sociedade que foi dissolvida, como se prevê no artigo 1256º do Código Civil, que a douta sentença viola.
13ª- A posse alegada pelo autor, como sua atuação, teve início no dia 10 de Maio de 1980, quanto ao prédio construído no terreno da Junta.
14ª- A posse do solo e benfeitoria, do prédio urbano, teve início no dia 30 de junho de 1998.
15ª- O autor justo título de aquisição.
16ª-A posse é de boa-fé.
17ª- Adquiriu terreno e prédio, por justo título e por usucapião.
18ª-A douta sentença viola as disposições legais retro indicadas e o disposto no artigo 1287º do Código Civil, além de outras.

NESTES TERMOS e nos de direito, com o douto suprimento que se roga, deve ser dado provimento ao recurso interposto, ser revogada a douta sentença e ser substituída pela douta decisão que ordene o prosseguimento dos autos.

Contra-alegou Massa Insolvente da P. – Transportes Lda, suscitando a questão prévia da intempestividade do recurso e pugnando pela improcedência do recurso.
Foram colhidos os vistos legais.

Factos a considerar para a decisão do recurso: Os constantes deste relatório.

Delimitação do objecto do recurso

De acordo com o disposto nos artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o Tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este Tribunal da Relação adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso. Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas. Assim, atentas as conclusões do Recorrente, a questão fundamental a decidir consiste em saber se a decisão recorrida deve ser revogada, como sustenta o recorrente, por violar as normas do artº 186º do CPC e dos artºs 1252º, 1253º, 1256º e 1287º, todos do Código Civil.
Cumpre antes de mais, apreciar a questão prévia da admissibilidade do recurso.
Considera a Recorrida que o recurso interposto pelo Apelante é extemporâneo, pelo que não deverá ser admitido.

Em abono desta tese, alega o seguinte:

O prazo para interpor recurso é de 15 dias atento o disposto no n.º1, al. b) do art. 644º do Código de Processo Civil, pelo que tendo a decisão sido proferida a 21 de Junho de 2018, e o recurso sito apresentado a 06 de Setembro de 2018, está ultrapassado o prazo para apresentação de recurso, devendo assim não ser admitido.

Mas, não lhe assiste razão.

Com efeito, a decisão sob recurso foi proferida em 04.07.2018 e não em 21 de Junho de 2018, como defende a recorrida. Acresce que o Mandatário do Autor foi notificado da decisão em 5.07.2018 (refª 427668014). Considerando que o prazo processual se suspende durante as férias judiciais (de 15 de Julho a 31 Agosto) é fácil de ver que tendo o recurso sido apresentado em 6 de Setembro de 2018, foi apresentado dentro do prazo.

Cumpre apreciar e decidir a questão colocada no recurso.

O Mmº Juiz a quo entendeu que a petição era inepta por falta de causa de pedir, por não estarem alegados os factos essenciais à pretensão formulada pelo Autor.

Vejamos.

Dispõe o nº 1 do artº 186º do CPC que é nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial.

Diz-se inepta a petição quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir – artº 168º, nº2 al. a) do CPC.

A nossa lei consagra a teoria da substanciação, segundo a qual o objecto da acção é o pedido, definido através de certa causa de pedir - cfr. Acórdão da Relação de Coimbra, in Colectânea de Jurisprudência, Ano XI, 1986, Tomo 4, página 86 e seguintes e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26/10/75, Boletim do Ministério da Justiça n. 250, página 159 e Revista de Legislação e Jurisprudência n. 109, página 311.

Quer a doutrina, quer a jurisprudência têm considerado, que a causa de pedir é o facto jurídico de que emerge o direito do autor e fundamenta, portanto, a sua pretensão e traduzindo-se num facto concreto tem de ser invocada na petição, ou nos termos do n. 1 do artigo 265º do Código de Processo Civil, sem o que não pode ser apreciada na sentença.

Assim, a causa de pedir consiste no facto jurídico de que procede a pretensão material deduzida na acção e o autor tem necessariamente de a indicar sob pena de ineptidão da petição inicial - artigo 186, n. 2, alínea a) do Código de Processo Civil - do que resulta a nulidade de todo o processado - artigo 186º, n. 1 citado – com a consequente absolvição da instância - artigos 278º, n. 1, alínea b) e 577º, alínea b), todos do Código de Processo Civil.

É sabido que a causa de pedir é caracterizada pela sua especificidade e adequação. Quer dizer que a causa de pedir tem de ser concretizada ou determinada, consistindo em factos ou circunstâncias concretas e individualizadas; não podendo apresentar-se como manifestamente irrelevante ou contraditória com o pedido.

Como deriva claramente da leitura do artigo 552º, nº1 al. d), “ o autor deve expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à acção".

O Autor tem de alegar a relação material de onde faz derivar o correspondente direito e dentro dessa relação material os correspondentes factos constitutivos.

Tal alegação deve traduzir-se em factos concretos, que preenchem a previsão da norma que concede a situação subjectiva alegada pela parte [Vide Teixeira de Sousa in As partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa, pág. 123] e não a referência a conceitos legais ou a afirmação de certas conclusões desenquadradas dos factos subjacentes.

A decisão recorrida considerou com acerto, que «tendo em conta a forma como o Autor estruturou a causa de pedir e formulou os respectivos pedidos, resulta insofismável ter o mesmo lançado mão de uma acção de reivindicação, tal como ela se encontra configurada no artigo 1311º, nº 1, do Código Civil: “o proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence”.

No presente caso, não cabe dúvidas de que a pretensão deduzida pelo Autor/Apelante se circunscreve no âmbito da acção típica de reivindicação (art. 1311º, do Código Civil) - acção real por excelência, concedida para defesa do direito de propriedade, bem como dos demais direitos reais (art. 1315º, do Código Civil), que constitui instrumento processual através do qual se manifesta uma das características congénitas daquele direito, que consiste na sequela.

Acerca deste tipo de acções escreveram os Profs. Pires de Lima e Antunes Varela [Código Civil Anotado”, vol. III, 2ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, pág. 112, em anotação ao referido art. 1311º],: “A acção de reivindicação ... é uma acção petitória que tem por objecto o reconhecimento do direito de propriedade por parte do autor e a consequente restituição da coisa por parte do possuidor ou detentor dela.”

São, assim, dois os pedidos que integram e caracterizam a reivindicação, o reconhecimento do direito de propriedade (pronuntiatio), por um lado, e a restituição da coisa (condemnatio), por outro. Só através destas duas finalidades, previstas no n.º 1, se preenche o esquema da acção de reivindicação.

Manuel Rodrigues [In “A reivindicação no direito civil português”, in R.L.J., ano 57º, pág. 144], refere que há: “na acção de reivindicação um indivíduo que é titular do direito de propriedade, que não possui, há um possuidor ou detentor que não é titular daquele direito, há uma causa de pedir que é o direito de propriedade, e há finalmente um fim, que é constituído pela declaração da existência da propriedade no autor e pela entrega do objecto sobre que o direito de propriedade incide. Da sua causa petendi e do seu fim resulta imediatamente a natureza da reivindicação.”

A acção de reivindicação – visando o reconhecimento do direito de propriedade e a consequente restituição da coisa – assenta, naturalmente, nos factos jurídicos de onde emerge esse direito de propriedade, factos estes que correspondem à causa de pedir.
Esta é a solução imposta pelo art. 581º, n.º 4 do Código de Processo Civil, que consagrando no nosso ordenamento jurídico a teoria da substanciação, estabelece que nas acções reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real.

A este propósito escreveu o Prof. Alberto dos Reis [R.L.J., ano 84, pág. 138], “...o direito de propriedade na acção real, por excelência, aparece, não como causa de pedir, mas como objecto da acção, como efeito jurídico que com a acção se pretende obter (...) a causa de pedir, o verdadeiro fundamento, está no acto ou facto jurídico que se invoca para justificar o direito de propriedade.”

Constituindo, assim, o reconhecimento do direito real – in casu, do direito de propriedade - o efeito jurídico que com a acção se pretende obter, de que deriva, como consequência lógica, a entrega da coisa reivindicada.

Em relação ao primeiro daqueles elementos que constituem a causa de pedir, salientam os Prof. Pires de Lima e Antunes Varela [Código Civil Anotado”, vol. III, 2ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, pág. 112, em anotação ao referido art. 1311º],: “A acção de reivindicação ... é uma acção petitória que: “se o autor invoca como título do seu direito uma forma de aquisição originária da propriedade, como a ocupação, a usucapião ou a acessão, apenas precisará de provar os factos de que emerge o seu direito.

Mas, se a aquisição é derivada, não basta provar, por exemplo, que comprou a coisa ou que esta lhe foi doada. Nem a compra e venda nem a doação se podem considerar constitutivas do direito de propriedade, mas apenas translativas desse direito (nemo plus juris ad alium transferre potest, quam ipse habet). É preciso, pois, provar que o direito já existia no transmitente (dominus auctoris), o que se torna, em muitos casos, difícil de conseguir - probatio diabolica - lhe chamam alguns autores. Para esse efeito, podem ter excepcional importância as presunções legais resultantes da posse, se ela puder ser oposta ao detentor, e do registo (arts. 1268º, do Código Civil, e 7º do Código de Registo Predial).”

Se o autor, por essas vias, demonstrar o seu direito, o possuidor só pode evitar a restituição da coisa se conseguir provar uma de três situações: a) Que a coisa lhe pertence, por qualquer dos títulos admitidos em direito; b) Que tem sobre a coisa direito real que justifique a sua posse; c) Que detém a coisa por virtude de direito pessoal bastante. [Cfr. A. Menezes Cordeiro, in “Direitos Reais”, 1979, pág. 848]
Cabe, pois, aos autores alegar e provar factos demonstrativos do acto ou facto jurídico concreto que gerou o seu alegado direito de propriedade e factos demonstrativos da ocupação abusiva ou dos actos que impeçam, estorvem ou dificultem o exercício daquele direito.

Aplicando estes princípios ao caso dos autos, verifica-se que da petição não constam factos que permitam concluir pela aquisição originária ou derivada do direito de propriedade que o Autor se arroga como acertadamente se pondera na decisão sob recurso. Neste particular, lê-se na decisão sob recurso:

Em síntese, o Autor reivindica para si um prédio que, alega, pertenceu à sociedade X – Sociedade de Madeiras de Embalagem Lemos, Lda.. (...)

Tendo em conta a forma como o Autor estruturou a causa de pedir e formulou os respectivos pedidos, resulta insofismável ter o mesmo lançado mão de uma acção de reivindicação, tal como ela se encontra configurada no artigo 1311º, nº 1, do Código Civil: “o proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence”. (...)

Para que obtenha ganho de causa, em obediência ao preceituado no artigo 581º, nº 4, do Código de Processo Civil que, adoptando o princípio da substanciação, (Que se opõe ao princípio da individuação ou da individualização. Para esta teoria bastaria a mera invocação da propriedade) definiu a causa de pedir, quanto às acções reais, na base do facto jurídico de que procede o direito real, o autor necessita de provar mais do que um título de aquisição derivada, como, por exemplo, um contrato de compra e venda, tendo em conta que tais formas de aquisição são apenas translativas do direito e não exaustivas do mesmo. Nestes termos exige-se uma demonstração exaustiva da propriedade alegada, devendo invocar-se os factos tendentes a demonstrar que não só se adquiriu a coisa por um título, mas também que o direito de propriedade já existia na pessoa do transmitente, em obediência ao velho princípio de que nemo plus iuris in alium transferre potest quam ipse habet. Com efeito, um negócio de aquisição derivada não basta para provar que se adquiriu o direito a que o negócio respeita, pois nada garante que o transmitente tivesse esse direito.

. Consciente que tal prova – diabolica probatio na expressão de Acúrsio – é extremamente difícil de conseguir, o legislador estabeleceu presunções legais do direito de propriedade, entre as quais se pode destacar a emergente da inscrição no registo predial (artigo 7º, do Código do Registo Predial) ou aquela que emerge da posse (artigo 1268º, nº 1, do Código Civil).

Ora, em primeiro lugar, o Autor não alega os factos essenciais demonstrativos da existência de um título de transmissão.

Com efeito, o Autor, na petição inicial, começa logo por alegar, no artigo 3º, que “o activo da sociedade é propriedade do Autor, nos termos do disposto no artigo 158º das Código das Sociedades Comerciais”. E no articulado de 08.06.2018 (requerimento nº 29380323), alega que “o autor é o liquidatário da sociedade, como se prevê no artigo 151º do CSC” (artigo 4º), “como liquidatário fica com o bem dos autos para si, por ser o único sócio (artigo 159º do CSC)” (artigo 5º) e que “mesmo depois de liquidada e extinta a sociedade o sócio único, se não o tiver feito antes, fica com o bem para si, nos termos do disposto no artigo 164º do CSC”.

Será assim?

Não cremos que seja.

Uma sociedade pode ser dissolvida administrativamente [cfr. Regime Jurídico dos Procedimentos Administrativos de Dissolução e de Liquidação de Entidades Comerciais - RPAD (Decreto-Lei nº 76-A/2006, de 29 de Março)], por deliberação dos sócios (cfr. artigos 141º e 142º do Código das Sociedades Comerciais) ou por justificação notarial ou, ainda, por procedimento simplificado de justificação (cfr. artigo 141º, nº 2, do Código das Sociedades Comerciais). No regime legal actualmente em vigor, a modalidade de dissolução administrativa substituiu a dissolução judicial, que deixou de ser uma modalidade autónoma ab initio, encontrando-se reservada para os casos subsequentes a decisão judicial em processo de insolvência (cfr. artigo 141º, nº 1, alínea e), do Código das Sociedades Comerciais) e para os casos que resultem de impugnação judicial de uma deliberação de dissolução dos sócios (cfr. artigo 42º, nº 4, do Código das Sociedades Comerciais) ou de dissolução administrativa (cfr. artigo 12º do RPAD).

A liquidação, prevista nos artigos 146º e seguintes do Código das Sociedades Comerciais, é, em regra, o último acto juridicamente relevante da vida da sociedade e o respectivo encerramento corresponde ao seu desaparecimento da ordem jurídica. Na liquidação procede-se ao apuramento da situação patrimonial da sociedade: (i) realização do activo patrimonial; (ii) satisfação do passivo; e (iii) determinação do destino do respectivo saldo líquido. No processo de liquidação, designam-se os liquidatários, procede-se ao apuramento das contas e, caso o saldo final seja positivo, à partilha.

No caso de dissolução administrativa (RPAD), “se do requerimento apresentado, do auto elaborado pelo conservador ou dos demais elementos constantes do processo não for apurada a existência de qualquer activo ou passivo a liquidar, o conservador declara simultaneamente a dissolução e o encerramento da liquidação da entidade comercial” (cfr. artigo 11º, nº 4, do RPAD).

Ora, tendo o Autor alegado a dissolução da sociedade, importava que tivesse alegado, ou que tal resultasse dos autos ou dos documentos juntos, que o saldo final da liquidação tivesse sido positivo e que, pela partilha, tivesse tal prédio ingressado no seu património. Sucede, porém, que o Autor nada alegou nesse sentido e com esse conteúdo, optando, antes (e, porventura, por não ter havido tal liquidação e partilha) por invocar as normas citadas para construir uma aquisição do prédio da sociedade ope legis. Ora, a aquisição não se opera ope legis, mas na sequência daqueles actos de liquidação e partilha que fazem parte do procedimento de dissolução. O título é precisamente a decisão prevista no artigo 25º do RPAD (cfr., igualmente, o disposto no artigo 20º, nºs. 5 e 6, do RPAD).

Portanto, o Autor não invoca qualquer título, no sentido de modo legítimo de adquirir, para a posse que alega exercer sobre o prédio que reivindica na alínea a) do petitório.
Em segundo lugar, o prédio, conforme alegado pelo Autor não se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial competente, pelo que também não pode beneficiar da aludida presunção emergente do registo.
Em terceiro lugar, resta a alegada “posse”.

O Autor alega, no artigo 3º da petição inicial, que, desde 1996, é o sócio único da referida X e seu único representante legal. Alega, nos artigos 33º a 35º da petição inicial, que a sociedade que representava intentou uma acção no Tribunal Judicial da Comarca de Ponte de Lima, contra a Junta de Freguesia de ..., cuja sentença declarou que a referida sociedade adquiriu, por acessão industrial imobiliária, o direito de propriedade incidente sobre o prédio reivindicado na alínea a) do petitório. Alega, nos artigos 11º e 37º da petição inicial, que a referida X construiu a sua unidade fabril no prédio reivindicado. Alega, no artigo 43º da petição inicial, que as instalações industriais pertencem à X.

Contraditoriamente com o alegado e referido supra, o Autor alega, no artigo 48º da petição inicial, que, “por si e anteriormente da sociedade X, no ano de 1979, entrou na posse do terreno” reivindicado. Alega, no artigo 50º da petição inicial, que a partir de 1995 exercitou a posse do prédio através do consentimento que deu à sociedade M. para utilizar o imóvel. Alega, no artigo 51º, que depois da insolvência da sociedade M. exerceu a posse da fábrica através da sociedade X até à dissolução iniciada em 2009.

Por fim, alega, no artigo 52º da petição, que a partir da dissolução da X (28.02.2011), exerceu a posse em nome próprio sobre o prédio reivindicado.

O conjunto de factos alegados pelo Autor na petição inicial são confusos, contraditórios e ininteligíveis: não se compreende, afinal, a que título e com que animus, o Autor se coloca e se apresenta na acção relativamente à sociedade que representava e ao prédio que, umas vezes era possuído pela sociedade e, outras vezes, era possuído pelo Autor. Sendo, no entanto, certo, conforme alegado pelo Autor no artigo 52º da petição inicial, que a partir da dissolução da X exerceu a posse invocada em nome próprio. E, conforme alegado, tal dissolução ocorre em 28.02.2011.
De acordo com o alegado, o Autor, antes daquela dissolução, é um detentor ou possuidor precário do prédio em causa reivindicado. É o que nos diz o artigo 1253º, alínea c), do Código Civil: “são havidos como detentores ou possuidores precários:

(…) os representantes ou mandatários do possuidor e, de um modo geral, todos os que possuem em nome de outrem”.

E o artigo 1290º preceitua que “os detentores ou possuidores precários não podem adquirir para si, por usucapião, o direito possuído, excepto achando-se invertido o título da posse; mas neste caso, o tempo necessário para a usucapião só começa a correr desde a inversão do título”.
Conjugando o disposto nos artigos 1294º, 1295º, 1296º e 1297º do Código Civil, verifica-se que a aquisição por usucapião ocorre, consoante as características da posse e relativamente a bens imóveis, decorrido que se encontre um determinado prazo, entre 10 e 20 anos.
Tendo a referida sociedade X sido dissolvida e liquidada em 2011 e tendo a presente acção sido proposta em 2017, ainda não decorreu qualquer prazo que permita ao Autor adquirir o bem imóvel por usucapião, sendo certo que nada foi alegado, de forma inteligível, que permita concluir, no domínio da alegação, que tenha ocorrido, antes daquela dissolução uma inversão do título da posse (cfr. artigo 1265º, do Código Civil). Posse que, a existir, sempre teria de se concluir como sendo não titulada a partir daquela dissolução”.

Sufragamos inteiramente este entendimento.

Efectivamente, não tendo, no caso vertente, o Autor, alegado factos concretos que possam integrar a causa de pedir, verifica-se a falta desta e, consequentemente, a ineptidão da petição inicial, o que acarreta a nulidade de todo o processo ( artº 186º, nºs 1 e 2 a)do CPC).
A nulidade de todo o processo constitui excepção dilatória que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância (artºs 576º, nºs 1 e2 e 577º b), do CPC), sendo de conhecimento oficioso do tribunal (artº 578º).

Quando falta a causa de pedir, não pode ser proferido o despacho previsto no artº 508º (artº 590º do NCPC): não há que suprir a falta de pressupostos processuais nem de aperfeiçoar a petição inicial, pois que nem a nulidade decorrente da ineptidão é suprível nem a petição inepta por falta de causa de pedir carece de ser aperfeiçoada (não se pode aperfeiçoar o que não existe) - Ac. RP, de 23.02.2006: JTRP00038871, dgsi.Net.
Nesse caso, não há lugar a convite à parte para suprir a nulidade pois ela não é sanável.

Assim, nenhuma censura merece a decisão recorrida.

Na 1ª Conclusão do quadro conclusivo, o Apelante alega que a primeira sentença proferida nos autos não conheceu da ineptidão da petição inicial pelo que, em face do disposto no artigo 608º do Código de Processo Civil, está vetado, ao tribunal, conhecer do vício nesta segunda sentença.

Sem razão.

No primeiro despacho datado de 22-11-2017, o Mmº Juiz a quo julgava extinta a presente instância por inutilidade superveniente da lide, em face da insolvência da Ré.

Desse despacho veio a ser interposto recurso de apelação, em cuja alegação se suscitavam as seguintes questões a decidir:

Da eventual nulidade por violação do disposto no artº 3º, nº 3 do CPC;
Da eventual nulidade por omissão de pronúncia e/ou por falta de especificação dos fundamentos de facto ou de direito;

Admissibilidade da decisão de extinção da instância.

O Tribunal ad quem apreciou e decidiu as referidas questões, que constituíam o objecto do recurso, por Acórdão de 8 de Fevereiro de 2018.

A excepção dilatória da ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir só veio a ser apreciada e decidida após revogação daquele despacho e com o prosseguimento dos autos, no despacho saneador, nos termos do disposto no artº 595º do CPC.

Carece, assim, de respaldo legal a alegação do recorrente de que está vedado ao tribunal conhecer da ineptidão da petição inicial.

Improcedem, deste modo, as conclusões da alegação de recurso.

Decisão

Nos termos expostos, decide-se negar provimento ao recurso e confirmar inteiramente a douta sentença recorrida.
Custas pelo recorrente.
Guimarães, 15 de Novembro de 2018

Amílcar Andrade
Adjuntos: Maria Conceição Bucho
Maria Luísa Ramos