Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4718/18.3T8GMR.G1
Relator: JOSÉ AMARAL
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
RESPONSABILIDADE OBJECTIVA OU PELO RISCO
CULPA PRESUMIDA
DEVER DE VIGILÂNCIA
PERIGO ESPECIAL ENVOLVENTE DA SUA UTILIZAÇÃO
DANOS PATRIMONIAIS E NÃO PATRIMONIAIS
RELEVÂNCIA NEGATIVA DE UMA CAUSA VIRTUAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/03/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO PRINCIPAL E SUBORDINADA
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE/IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1) A determinação da responsabilidade civil pelos danos causados em consequência de um acidente ocorrido na via pública com dois cães que saíram a correr do portão da casa onde a sua dona os tinha e atravessaram, lesivo do condutor de um motociclo que por ela circulava e se despistou quando os animais se lhe dirigiram, não é regulada pelo Código da Estrada nem pelos diplomas legais (Decretos-Lei nº 314/2003, de 17 de Dezembro, nº 82/2019, de 27 de Junho, e nº 315/2009, de 29 de Outubro) que tratam das suas condições sanitárias (combate à raiva), do seu rastreio, registo e licenciamento (animais de companhia) ou da criação, reprodução e detenção (animais perigosos).
2) Ela afere-se pelo regime dos artºs 493º, nº 1 (responsabilidade por culpa presumida), e 502º (responsabilidade objectiva ou pelo risco), do Código Civil.
3) Funda-se a primeira no dever de vigilância que, além do mais, compete aos donos dos animais que os detêm. E, a segunda, no perigo especial envolvente da sua utilização por que responde quem os utilizar no seu próprio interesse.
4) Ignorando-se se e qual a utilização que a dona dava aos cães mas apenas que lhe pertenciam, saíram soltos e a correr do portão de acesso à sua residência onde os detinha e que eles atravessaram a via pública, correram no encalce de um motociclo, surpreenderam o respectivo autor, se meteram à frente e, assim, o atrapalharam, obrigando-o a tentar desviar-se, a dar uma guinada e a perder o controlo daquele, caindo e indo de rastos embater no veículo automóvel parado no lado contrário, e não tendo ela provado que nenhuma culpa houve da sua parte na fuga e comportamento dos animais, nem que os danos verificados na pessoa e património do motociclista se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa (relevância negativa de uma causa virtual), responde pelos danos apurados a referida dona.
5) Respeitando a fixação do quantum indemnizatório à matéria de direito e discordando a responsável dos valores fixados a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, embora na indagação, interpretação e aplicação desta o juiz não esteja sujeito às alegações das partes (artº 5º, nº 3, CPC), o certo é que, tal como o nosso sistema de recursos está arquitectado, a tarefa de reapreciação e modificação do decidido pelo Tribunal ad quem pressupõe que, mesmo em tal âmbito, o recorrente indique, dispositivamente, objectivos e específicos fundamentos da recorribilidade e que, obrigatoriamente, alegue sobre eles pondo a descoberto os erros que, concernentes a tal determinação, devam ser corrigidos (artº 637º, nº 2) pelo Tribunal ad quem.
6) Nada disso fazendo, nenhum vício apontando e limitando-se a discordar dos valores e a pedir o seu aumento para os que indica, nada há que modificar a tal propósito.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO [1]

O autor D. C. intentou, em 24-08-2018, no Tribunal de Guimarães, acção declarativa, de condenação, com processo comum, contra as rés:

1) X – COMPANHIA DE SEGUROS, SA, e

2) M. F..

Peticionou a condenação de ambas, solidariamente:

“a) A pagar ao Autor a quantia de €39.609,60 (…), correspondente à indemnização e compensação pelos danos patrimoniais e não patrimoniais, já apurados;
b) A quantia de €3.300,00 (…), a título de perda de remunerações durante o período em que se encontrou incapacitado para o trabalho;
c) A quantia de €783,91 (…), a título de despesas médicas e medicamentosas e despesas com deslocações para realização dos tratamentos de fisioterapia e consultas médicas;
d) A quantia de €200,00 (…) a título de despesas com a roupa que trazia vestida;
e) A quantia de € 776.33 (…), que o Autor despendeu com a reparação do motociclo;
f) Em indemnização, a liquidar em execução de sentença, por todas as despesas com consultas, tratamentos, intervenções cirúrgicas, a realizar no futuro nas sequelas que advieram ao Autor em resultado do acidente; e
g) No pagamento dos respetivos juros moratórios, à taxa legal, desde a citação da Ré até integral liquidação.“

Na petição, alegou, como fundamentos, em síntese, que, no dia 07-10-2017, foi vítima de um acidente, quando, na Rua ..., em ..., ..., Guimarães, conduzia o seu motociclo JP, e que consistiu no embate com o automóvel ligeiro OI imputável, concorrentemente, ao facto de ter sido surpreendido, ao efectuar uma curva à sua direita, pela presença de outro carro de matrícula NX (seguro na 1ª ré) aí estacionado e a ocupar a sua hemi-faixa, e pelo aparecimento de quatro cães soltos (pertencentes à 2ª ré) a atravessar a faixa de rodagem, vindos da casa nº 519, que se colocaram à sua frente, o que o obrigou a desviar-se e a colidir com aquele referido veículo que provinha em sentido contrário ao seu, do que lhe resultaram danos na sua pessoa e património que pretende sejam indemnizados.

Na contestação respectiva, a 1ª ré sustentou que a causa e a culpa do acidente se deveram, única e exclusivamente, ao próprio autor, jamais ao condutor do veículo por si seguro.

Por sua vez, a 2.ª Ré enveredou por tese similar, sustentando que os cães estavam no canil, não saíram para a via pública e não causaram qualquer perturbação.

O Centro Distrital de Braga da Segurança Social, citado nos termos do Decreto-Lei n.º 59/89, de 22 de Fevereiro, pediu o reembolso do subsídio de doença pago ao autor, no montante de €1.351,89 – o que apenas foi alvo de impugnação pela 1ª ré, por alegado desconhecimento.

Foram saneados tabelarmente os autos, fixado o valor da causa, dispensada a audiência prévia, resumidos o objecto do litígio e os temas de prova e, após apreciação dos requerimentos indicativos dos respectivos meios, ordenada a realização de perícia médico-legal, cujo relatório, entretanto, foi junto (fls. 99 a 103).

Realizou-se a audiência de julgamento (em quatro sessões), nos termos e com as formalidades narradas nas actas respectivas, no seu decurso tendo sido juntos mais documentos e ouvidos o autor e as testemunhas arroladas.

Por sentença de 15-07-2021, decidiu-se (fls. 143 a 149):

“Face ao exposto, julgo a presente ação parcialmente [procedente], por provada, e, em consequência, condeno a 2.ª Ré M. F., no pagamento ao Autor D. C. da quantia total de 2.383€ (dois mil trezentos e oitenta e três euros), acrescida de juros de mora desde a citação até efetivo e integral pagamento.
Julgo o pedido formulado pelo Interveniente INSTITUTO DE SEGURANÇA SOCIAL, I.P. parcialmente procedente e, em consequência, condeno a 2.ª Ré M. F. no pagamento da quantia de 337,97 € (trezentos e trinta e três euros e noventa e sete cêntimos) a título de reembolso de prestações pagas ao Autor, acrescida de juros de mora legais desde a notificação até efetivo e integral pagamento.
Absolvo a 1.ª Ré do peticionado.
Custas pelo Autor e 2.ª Ré, fixando-se em 25% a responsabilidade da Ré e 75% do Autor.”

Apelou o autor D. C. pugnando por que seja alterada tal decisão no sentido de julgar a 2ª ré única e exclusiva responsável e de a condenar no pagamento dos montantes que considera ajustados. Das suas alegações extraiu como conclusões o seguinte texto:

“I) Vem o presente recurso interposto da douta sentença prolatada nos autos que julgou a acção parcialmente procedente, condenando a segunda ré M. F. no pagamento ao autor da quantia total de € 2.383,00 acrescida de juros de mora desde a citação até efectivo e integral pagamento.
II) O autor entende terem sido incorrectamente julgados os pontos 5 e 6 da matéria de facto provada, bem como deve ser considerada provada, em parte, a factualidade dada como não provada no segundo item dos factos não provados.
III) Ora, foi dado como assente, em 5 dos factos provados, o seguinte: “A condutora do veículo OI, que vinha em sentido contrário ao do autor, ao ver os cães sair do portão e o motociclo, imobilizou a sua viatura.
Sucede, contudo, que nem as declarações do autor, nem o depoimento da testemunha M. D. permitiam ao tribunal extrair tal facto.
Na verdade, quando questionada pela Ilustre Mandatária da segunda ré se havia parado a viatura quando avistou a saída dos cães, foi perentória a responder: “Não, não, não parei: eu continuei, porque eles não foram mesmo para a frente… para bater, pronto, na carrinha. Eles continuaram na beira da casa, a correr para a frente”. E quando perguntada, então em que momento faz essa travagem? Ela responde: “Quando os cães atravessavam a rua e ao mesmo tempo o senhor da mota está a ultrapassar a carrinha”.
IV) Assim, ao invés do vertido em 5 da factualidade assente, a condutora do veículo OI só imobilizou a sua viatura quando os cães atravessaram a rua dirigindo-se ao motociclo e não quando os viu a sair do portão.
Aliás, esta versão é confirmada pelo autor quando diz (00:03:22): “Ela, ao ver aquilo, aquele aparato, os cães saírem por fora e vir em direcção a mim, ela imediatamente estacou o carro, aquase que estacou o carro e estacou”.
V) Deste modo, no ponto 5 dos factos provados deverá passar a constar: “A condutora do veículo OI, que vinha em sentido contrário ao do autor, imobilizou a sua viatura quando os cães atravessaram a rua dirigindo-se ao motociclo.
VI) No ponto 6 dos factos provados ficou assente o seguinte:
Apesar de os ter visto a circular na berma, o autor continuou a marcha, tendo sido abordado pelos cães, que, no momento em que passava pelo NX, correram no sentido do motociclo”.
VII) Ora, desconhece-se em que meios de prova, designadamente, testemunhos e/ou declarações a Meritíssima Juíza se baseou para considerar provado que o autor viu os cães a circular na berma.
Na verdade, o autor começa por dizer “mal estou a ultrapassar a carrinha sou confrontado com dois cães à minha frente” (00:01:29); A seguir diz “vieram em direcção a mim” (00:02:50); e acrescentou “os cães saíram por fora e vieram em direcção a mim” (00:03:22); “os cães vêm assim de frente a mim… os cães vieram assim em direcção a mim” (00:06:28); e, por fim, diz ainda: “os cães se viessem na beirinha eu não caía por causa dos cães” (00:26:34).
Portanto, em nenhum momento das suas declarações o autor afirmou ter visto os cães na berma, bem pelo contrário, declarou que se eles tivessem seguido pela berma, e não se tivessem atravessado à sua frente na estrada, não teriam provocado a sua queda.
VIII) Por seu turno, a testemunha M. D. em nenhum momento diz que o autor viu os cães na berma. Diz, outrossim, que ela reparou nessa circulação, primeiro por alguns curtos metros junto à berma e depois “atravessaram-se à frente dele (do senhor da mota)” (00:02:51); “dirigiram-se à frente um bocado e atravessaram a estrada” (00:06:28); à pergunta: “Mas os cães foram ter com ele?” respondeu: “Sim, sim… passaram mesmo à frente dele” e à pergunta: “Atravessaram a rua?” respondeu: “Mesmo à frente dele, exactamente” (00:06:59); Mais à frente à pergunta: “Em que momento é que a senhora faz essa travagem?” respondeu: “Quando os cães atravessaram a rua e ao mesmo tempo o senhor da mota está a ultrapassar a carrinha (00:16:53); de seguida é questionada “porque é que o Sr. D. C. se atrapalha aqui?” e reponde “Porque os cães atravessaram mesmo à frente do senhor da mota” (00:24:48) e acrescentou: “eles foram, passaram ao meu lado, onde tem o portão… para a frente e logo à frente eles atravessaram a rua para o lado esquerdo” (00:25:01); dizendo ainda: “e ao mesmo tempo que os cães estão a passar a rua o senhor da mota está mesmo a ultrapassar a carrinha ali, também” (00:25:11); concluindo: “O senhor atrapalhou-se com os cães que passaram no momento (00:28:19).
IX) Ora, dúvidas não existem que em nenhum momento do seu depoimento a testemunha afirma ter o autor avistado os cães a circular na berma. Ao invés, o que diz e reafirma, por diversas vezes, e de modo diferente, é que os canídeos atravessaram a estrada à frente do autor, no momento em que este ultrapassava a carrinha ali estacionada. Para tanto utilizou as expressões “passaram à frente dele”; “atravessaram à frente dele”; “atrapalhou-se com os cães que passaram no momento”, pelo que inexistem dúvidas não ter sido feita prova que o autor viu os cães a circular na berma, tendo continuado a sua marcha. Ao contrário, foi produzida prova em audiência que o autor, no momento em que passava pelo NX, foi abordado pelos cães que correram no sentido do motociclo.
X) Deste modo, no ponto 6 dos factos provados deverá ficar a constar: “O autor, no momento em que passava pelo NX, foi abordado pelos cães que correram no sentido do motociclo”.
XI) Por outro lado, foi dado como não provado o seguinte facto:
O autor foi surpreendido pelo aparecimento de quatro canídeos, que correram de forma brusca e inopinada e apareceram soltos e inopinadamente no meio da estrada”.
XII) Ora, o autor entende ter feito prova de parte da factualidade vertida nos artigos 8º e 9º da contestação, a saber: “Os referidos animais entraram, soltos e a correr, na faixa de rodagem, da direita para a esquerda, atravessando-a à frente do ciclomotor conduzido pelo autor”.

De facto, e tendo em conta a valoração feita pela Meritíssima Juíza a quo dos depoimentos da testemunha M. D. e das declarações do autor que afirmaram, designadamente:
A testemunha questionada se quando parou os cães saíram do portão devagar ou a correr, foi peremptória a dizer: “A correr, a correr”. [00:06:20] e perguntada se tinha dúvidas sobre isso, respondeu:Não, não. Eles saíram mesmo a correr do… do meu lado…”(00:06:24), “Atravessaram-se à frente dele (do senhor da mota)” (00:02:51); “dirigiram-se à frente um bocado e atravessaram a estrada” (00:06:28); à pergunta: “Mas os cães foram ter com ele?” respondeu: “Sim, sim… passaram mesmo à frente dele” e à pergunta: “Atravessaram a rua?” respondeu: “Mesmo à frente dele, exactamente” (00:06:59); Mais à frente à pergunta: “Em que momento é que a senhora faz essa travagem?” respondeu: “Quando os cães atravessaram a rua e ao mesmo tempo o senhor da mota está a ultrapassar a carrinha (00:16:53); de seguida é questionada “porque é que o Sr. D. C. se atrapalha aqui?” e reponde “Porque os cães atravessaram mesmo à frente do senhor da mota” (00:24:48) e acrescentou: “eles foram, passaram ao meu lado, onde tem o portão… para a frente e logo à frente eles atravessaram a rua para o lado esquerdo” (00:25:01); dizendo ainda: “e ao mesmo tempo que os cães estão a passar a rua o senhor da mota está mesmo a ultrapassar a carrinha ali, também” (00:25:11); concluindo: “O senhor atrapalhou-se com os cães que passaram no momento (00:28:19).
Por seu turno, o autor começa por dizer “mal estou a ultrapassar a carrinha sou confrontado com dois cães à minha frente” (00:01:29); A seguir diz “vieram em direcção a mim” (00:02:50); e acrescentou “os cães saíram por fora e vieram em direcção a mim” (00:03:22); “os cães vêm assim de frente a mim… os cães vieram assim em direcção a mim” (00:06:28); e, por fim, diz ainda: “os cães se viessem na beirinha eu não caía por causa dos cães” (00:26:34).
XIII) Termos em que deverá ser considerada parcialmente provada a matéria alegada em 8 e 9 da P.I., extraindo-se a seguinte factualidade: “Os cães da entraram, soltos e a correr, na faixa de rodagem, da direita para a esquerda, atravessando-a mesmo à frente do ciclomotor conduzido pelo autor.
XIV) Ora, suprindo V. Exas. estes erros de julgamento na apreciação da matéria de facto, evidente se torna que o acidente dos autos resultou, única e exclusivamente do aparecimento dos canídeos na estrada, a correrem no sentido do motociclo, pelo que deve a culpa exclusiva do sinistro ser atribuída à segunda ré, com todas as consequências legais.

SEM PRESCINDIR,
XV) Mas mesmo que se entendesse considerar correctamente fixada a matéria factual constante da sentença - o que apenas se admite como mero silogismo judiciário - mesmo nesse caso, a culpa do acidente é imputável na íntegra à segunda ré.
XVI) Como referem Pires de Lima e Antunes Varela Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª edição, Coimbra editora, pág. 495., estabelece-se no artigo 493º do Código Civil a inversão do ónus da prova “ou seja, uma presunção de culpa por parte de quem tem a seu cargo a vigilância de coisas ou de animais, ou exerce uma actividade perigosa”.
XVII) Na verdade, um proprietário que utiliza um animal no seu próprio interesse, naturalmente assume o encargo de o vigiar, aplicando-se-lhe assim, cumulativamente, as disposições previstas nos citados nº1 do artigo 493º e 502º do Código Civil.
XVIII) O dever de vigilância do animal (e consequente presunção de culpa decorrente do artigo 493.º do CC) incide, originariamente, sobre o dono do animal, sem prejuízo de este afastar tal presunção, provando que outra pessoa assumiu esse encargo, tendo o animal à sua guarda.
XIX) A previsão do artigo 493.º reporta-se à responsabilidade do vigilante do animal e funda-se na culpa; a previsão do 502.º reporta-se à responsabilidade decorrente da utilização perigosa de animais. Entende-se por perigo especial o que é característico ou típico dos animais utilizados, variando com a natureza destes – Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12.ª edição, Almedina, pág. 625. e alicerça-se no risco que se cria em relação a terceiros.
XX) No caso dos presentes autos, constatamos que: i) os cães intervenientes no acidente pertencem à ré; ii) os referidos cães não estavam à guarda de terceiros; iii) sobre a ré recaía o dever de vigilância dos animais; iv) os cães atravessaram a estrada, provocando o acidente; v) logo, a ré responde pelos danos provocados, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido, ainda que não houvesse culpa sua. Prova que a ré não fez.
XXI) Ora, a ré não logrou afastar a presunção de culpa, pelo que a sentença recorrida deveria tê-la feito responder nos termos dos artigos 493.º/1 e 502º do Código Civil. Ao não o fazer, violou tal aresto os citados normativos legais.
XXII) O autor discorda ainda dos montantes indemnizatórios fixados na douta sentença, quer ao nível do dano patrimonial pela afectação da capacidade de ganho (€ 3.500,00), quer no que concerne aos danos não patrimoniais (€ 4.000,00).
XXIII) No caso concreto, importa revelar, a título de dano patrimonial futuro, o seguinte:
- Défice funcional permanente de três pontos que implicam esforços suplementares no exercício da sua actividade habitual (17 e 18 dos factos provados);
- A idade do autor (57 anos), que nasceu em -/04/1960 (20 dos factos provados, e que tem como vimos, uma expectativa de vida de mais de vinte anos;
- Os proventos auferidos: à data do acidente exercia a profissão de operário da construção civil, auferindo rendimento mensal de € 600,00 (20 dos factos provados);
XXIV) Ora, neste quadro factual afigura-se mais acertada a fixação do montante indemnizatório em € 7.000,00 (Sete Mil Euros), para compensar os comprovados danos sofridos pelo autor no que respeita à perda de capacidade de ganho e dano biológico (no plano estritamente material e económico).
XXV) Neste caso concreto estão provados os seguintes danos não patrimoniais com gravidade suficiente para merecerem a tutela do direito:
- O autor foi transportado ao Hospital de Guimarães onde recebeu tratamentos, tendo-lhe sido diagnosticado traumatismo da grade costal e do ombro direito, com fractura da omoplata (11 dos factos provados);
- O autor realizou fisioterapia no Hospital, tendo recebido alta em 19/03/2018 (14 dos factos provados);
- O autor ficou incapaz para o exercício da actividade profissional desde 10/10/2017 até 19/01/2018 (15 dos factos provados);
- O autor apresenta, como sequela das lesões sofridas no acidente, uma deformidade evidente da clavícula direita, tendo-lhe sido fixado um dano estético de 2 numa escala de 7 graus de gravidade crescente (16 dos factos provados);
- O autor toma analgésicos em SOS e foi-lhe recomendado, depois da alta, continuar com exercício para fortalecimento muscular (19 dos factos provados);
- O autor não tinha problemas de mobilidade no braço, passando a necessitar da ajuda de 3os e manteve uma posição mais alta a dormir, nos dois meses seguintes ao acidente (21 dos factos provados);
- O autor sofreu e continua a sofrer dores, com as lesões, o traumatismo, o período de recuperação e tratamentos, tendo o quantum doloris sido fixado em quatro pontos, numa escala de 7 graus de gravidade crescente (22 dos factos provados).
XXVI) Assim, atenta a factualidade dada por provada é manifestamente exíguo e desproporcional o montante indemnizatório fixado, a título de danos não patrimoniais, devendo ser alterado para quantia não inferior a € 10.000,00 (Dez Mil Euros).
Termos em que deve ser dado provimento ao recurso, revogando-se a douta sentença recorrida, substituindo-a por douto acórdão que julgue a segunda ré única e exclusiva culpada do acidente dos autos, condenando--a nos montantes indemnizatórios ora peticionados pelo autor/recorrente, acrescidos dos já fixados na 1ª instância.
Assim se fará a sã e habitual JUSTIÇA!”

A tal respondeu a 2ª ré M. F., concluindo:

“1. Veio o Autor interpor recurso da sentença proferida a fls., na parte em que o Tribunal a quo julgou a ação parcialmente procedente e condenou a aqui Ré no pagamento àquele da quantia total de dois mil trezentos e oitenta e três euros, acrescida de juros de mora.
2. O Autor impugnou a seguinte matéria de facto dada como provada:
“5. A condutora do veículo OI, que vinha em sentido contrário ao do Autor, ao ver os cães sair do portão e o motociclo, imobilizou a sua viatura.”;
“6. Apesar de os ter visto a circular na berma, o Autor continuou a marcha, tendo sido abordado pelos cães, que, no momento em que passava pelo NX, correram no sentido do motociclo.”
3. Segundo o Recorrente, a referida matéria de facto foi incorretamente julgada, tendo o Tribunal a quo, considerado em sede de motivação e quanto às circunstâncias em que ocorreu o acidente, que as mesmas se deram como provadas na parte em que foram coincidentes entre os depoimentos dos dois intervenientes (Autor e testemunha M. D.).
4. Refere o Recorrente, que nenhum destes dois intervenientes disse o que ficou a constar dos pontos 5. e 6. dos factos provados.
5. Para tal o Recorrente sugere a seguinte redação para o ponto 5. da matéria de facto dada como provada: “A condutora do veículo OI, que vinha em sentido contrário ao do autor, imobilizou a sua viatura quando os cães atravessaram a rua dirigindo-se ao motociclo.”

DO PONTO 5. DA MATÉRIA DE FACTO DADA COMO PROVADA:
6. O depoimento da testemunha M. D. não tem qualquer correspondência com a matéria de facto dada como provada sob o ponto 5.;
7. Também o depoimento prestado pelo Recorrente em sede de declarações de parte, não coincide com o fixado no ponto 5. (embora por razões distintas).
8. A testemunha M. D. relata a versão de ter parado por os cães passarem à sua frente e de modo a ter visibilidade e verificar se vinha algum carro de frente ou não (já que no seu sentido contrário encontrava-se estacionada uma viatura em cima da curva);
9. O Recorrente, distintamente relata que os cães “saíram por lá fora” e ao virem em direção a si, a testemunha M. D. imediatamente “estacou o carro, aquase que estacou o carro.”
10.Também a testemunha M. D. refere que os cães circulavam na beira da estrada, à sua direita e só mais à frente atravessaram a mesma, enquanto o Recorrente refere que os cães vieram direitos a si.
11.Não obstante estarmos perante versões totalmente opostas, que em nada contribuem para a fixação da matéria de facto dada como provada sob o ponto 5. - porquanto, o momento em que a viatura da testemunha M. D. foi imobilizada não tem correspondência com nenhuma das versões apresentadas.
DO PONTO 6. DA MATÉRIA DE FACTO DADA COMO PROVADA:
12.O Recorrente nunca mencionou durante o seu depoimento que viu os aludidos cães a circular na berma;
13.A testemunha M. D. também não mencionou ao longo do seu depoimento que os cães correram no sentido do motociclo.
14.A testemunha M. D., referiu sim que os cães, depois de percorrerem a berma da estrada por alguns metros, acabaram por a atravessar, ou seja, passar de um lado para o outro, não sendo de todo possível extrair daqui a eventual ilação de que os cães “confrontaram” o Recorrente, ou vieram em direção a si.
DA MATÉRIA DE FACTO DADA COMO NÃO PROVADA:
15.Apela o Recorrente para o seguinte ponto, erroneamente considerado pelo Tribunal a quo como não provado:
“O Autor foi surpreendido pelo aparecimento de 4 canídeos, que correram de forma brusca e inopinada e apareceram soltos e inopinadamente no meio da estrada;”
16.Ao invés do que o Recorrente pretende fazer crer, a coerência do depoimento da testemunha M. D. e as declarações do Autor, mostram-se totalmente desfasadas.
17.Como poderá o Autor/Recorrente ter ficado surpreendido com o aparecimento dos alegados canídeos, se o mesmo refere em declarações que os viu sair do “portão grande” e que daí até ao local onde se encontrava a curva são cerca de 5 a 6 metros?
18.A ser assim, impunha-se sobre o Recorrente um especial dever de cuidado e zelo, pelo facto que avistar cães que poderiam vir em direção a si!
19.Não existe uma única prova produzida em audiência de julgamento, da qual se possa aferir a alegada existência de 4 canídeos, porque quem neles falou, referiu-se somente a 2 canídeos.
20.Do depoimento da testemunha M. D., também concluímos que os alegados canídeos saem do “portão grande”, seguem pela berma da estrada à sua direita e só quando os mesmos decidem atravessar a rua, da direita para a esquerda, é que ela pára o seu veículo.
21.O Recorrente é o único que refere que os cães saíram do portão e dirigiram-se imediatamente a si, o que deixa muitas ressalvas, dado que ao mesmo tempo o Autor encontrava-se, alegadamente, a contornar a viatura que se encontrava estacionada em cima da curva.
22.Uma vez mais, estando no âmbito de divergência, jamais o Tribunal recorrido poderia alterar a referida matéria de facto que deu como não provada.
23.No que à matéria de facto diz respeito, se atendermos ao que supra se expôs e ao que o Recorrente mencionou aquando das suas declarações – que viu os cães saírem do portão grande -, então, deveria ter adotado uma postura de especial cuidado e prudência, até porque, conhecia bem o local e sabia que das várias vezes em que lá passava havia cães soltos que às vezes iam ter na sua direção, dever especial esse, que a acreditar na versão da testemunha M. D. que ao ver que os cães iam atravessar a rua e em simultâneo que se encontrava uma viatura em sentido oposto, a própria testemunha cuidou de dar cumprimento, optando por parar a referida viatura.
24.Este dever especial de cuidado que se impunha ao Autor/Recorrente, impunha-se igualmente a qualquer cidadão normal que se encontrasse naquelas circunstâncias de facto.
25.Ou seja, encontrando-se a contornar a viatura estacionada em cima da curva e na faixa de rodagem contrária à sua e ao ver em simultâneo os canídeos a correrem – alegadamente na sua direção -, deveria ter parado o motociclo e certificar-se de que não embateria no carro que se encontrava em sentido contrário – a viatura da testemunha M. D..
26.O Recorrente incorreu ele próprio em responsabilidade, pois que podia e devia ter previsto o acidente, devendo nessas condições adequar-se de tal modo que lhe fosse possível parar ou controlar o motociclo, se preciso fosse.
27.E porque os cães já circulavam alegadamente na via – pois que até já os tinha visto, segundo ele -, deveria ter adotado um comportamento mais prudente e seguro, pois que deveria ter medido a imprevisibilidade de estar perante animais.
DA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE DIREITO PELO AUTOR:
28.Defende o Recorrente que a culpa do acidente dos autos é imputável na íntegra à 2ª ré.
29.Mesmo partindo do pressuposto que os canídeos a que se reporta o Recorrente são propriedade da 2ª Ré – o que se não aceita-, inexiste da parte da 2ª Ré qualquer culpa na produção do acidente.
30.Mesmo que assim não fosse, os danos ter-se-iam igualmente produzido, com ou sem canídeos.
31.A probabilidade do Recorrente ter colidido com a viatura da testemunha M. D., não deixa de ser muito grande, desde logo pelo facto do recorrente se mostrar a circular na faixa contrária à sua e a contornar o veículo que se encontrava estacionado na sua faixa de rodagem.
32.A presunção de culpa que incidiria sobre a 2ª Ré, mostra-se salvo melhor opinião, devidamente ilidida.
33.Tomando por referência a posição expressa pela aqui recorrida, designadamente, o afastamento de qualquer responsabilidade da sua parte, nenhum quantum indemnizatório deverá ser atribuído ao recorrente.
NESTES TERMOS, negando-se provimento ao recurso interposto pelo aqui recorrente, farão V. Ex.as, Senhores Desembargadores, a habitual e sempre esperada J U S T I Ç A ! ”

Interpôs ainda a ré M. F. recurso subordinado [2], assim tendo concluído as respectivas alegações:

“1. Na perspetiva da Ré, aqui Recorrente, a decisão em apreço deve ser revogada e substituída por outra que julgue a ação totalmente improcedente quanto ao pedido formulado pelo Autor, porquanto, fez uma errada interpretação e valoração da prova produzida, por um lado e, uma errada interpretação e aplicação da lei, por outro;
2. O Tribunal a quo considerou como provada, nomeadamente, a matéria de facto vertida nos pontos 3., 4., 5., 6. e 25. da douta sentença em crise.
3. O Tribunal fundamenta a sua convicção acerca das circunstâncias em que ocorreu o acidente, com base nos depoimentos dos intervenientes diretos, ou seja, do Autor e da testemunha M. D., na parte em que os mesmos foram coincidentes.
4. Tais depoimentos não contemplam a sustentação que o tribunal recorrido lhe pretende dar;
5. Desde logo e no que se refere ao ponto 3 da matéria de facto dada como provada, o seu conteúdo não foi o que resultou das declarações de parte prestadas pelo Autor em julgamento;
6. Em face destas declarações, o Tribunal recorrido jamais poderia ter dado como provado o facto mencionado sob oponto3., pelo que, ao fazê-lo incorreu num erro de julgamento.
7. Relativamente ao ponto 4. da matéria de facto dada como provada, refere-se o seguinte: “Momentos antes, dois cães de porte médio, pertença da 2ª Ré M. F., tinham saído por um portão aberto com o número de polícia 519, residência daquela, circulando junto ao muro por uma distância de cerca de 5 metros.
8. No que a este ponto diz respeito, a coerência das declarações prestadas pelo Autor e as prestadas pela testemunha M. D. não foi nenhuma.
9. O tribunal recorrido não poderia ter dado como provado o facto mencionado sob o ponto 4., pelo que, ao fazê-lo incorreu num erro de julgamento.
10. Foi incorreta a decisão do tribunal recorrido no que se refere ao ponto 5. da matéria de facto dada como provada, ou seja, “A condutora do veículo OI, que vinha em sentido contrário ao do Autor, ao ver os cães sair do portão e o motociclo, imobilizou a sua viatura.”
11. Deste modo, o tribunal recorrido não poderia ter dado como provado o facto mencionado sob o ponto 5., pelo que, ao fazê-lo incorreu em novo erro de julgamento.
12. Quanto ao ponto 6. da matéria de facto dada como provada: “Apesar de os ter visto a circular na berma, o Autor continuou a marcha, tendo sido abordado pelos cães, que, no momento em que passava o NX correram no sentido do motociclo.”
13. As declarações ao Autor relativamente a este ponto, são completamente omissas, ou seja, em momento algum o Autor refere que viu os cães a circular na berma. Antes refere, que quando os mesmos saíram do portão, vieram ter diretamente a si.
14. É, pois, manifesta a incongruência do que foi relatado pelo Autor em julgamento e o que consta do ponto 6 da matéria de facto dada como provada, erroneamente.
15. Quanto ao ponto 25. da matéria de facto dada como provada: “Com a reparação do motociclo o Autor despendeu o montante de € 776,33 (setecentos e setenta e seus euros e trinta e três cêntimos).
16. A este propósito, o único elemento de prova que consta dos autos e que poderia dar tal facto como assente, era o documento junto com a PI sob o nº 14.
17. Trata-se, pois, de uma fatura e não de um recibo / comprovativo de pagamento, datada de 12 de janeiro de 2017, ou seja, com 9 meses antes da data do acidente em discussão nos autos.
18. O referido ponto 25., não poderia ter sido dado como provado, porquanto o único tipo de prova que aqui se impunha era documental, sendo que o que o documento junto sob o nº 14, não traduz a realidade vertente no ponto 25., logo, também aqui existiu erro de julgamento.
19. O Tribunal a quo violou, desta feita, várias disposições legais.

TERMOS EM QUE,
- deverá proceder-se à revogação da douta sentença proferida, em conformidade com o que supra se expôs e, consequentemente, decretar-se a absolvição da 2ª Réu dos pedidos que contra si obtiveram procedência.
Pelo que, revogando-se a douta sentença em mérito farão Vossas Excelências a habitual J U S T I Ç A ! ”

A este recurso subordinado não foi dada resposta.

Foi admitida a apelação, tendo subido de imediato, nos autos, com efeito devolutivo.

Corridos os Vistos legais e submetido o caso à apreciação e julgamento colectivo, cumpre proferir a decisão, uma vez que nada a tal obsta.

II. QUESTÕES A RESOLVER

Pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, sem prejuízo dos poderes oficiosos do tribunal, se fixa o thema decidendum e se definem os respectivos limites cognitivos.

Assim é por lei e pacificamente entendido na jurisprudência – artºs 5º, 608º, nº 2, 609º, 635º, nº 4, 637º, nº 2, e 639º, nºs 1 e 2, do CPC.

O ponto de partida do recurso, por princípio, é sempre a própria decisão recorrida.

Com efeito, no nosso modelo (de reponderação e não de reexame da causa), por meio daquele reapreciam-se questões já julgadas na instância inferior e visa-se alterar o decidido, se e na medida em que afectado por invalidade ou por erro de julgamento.

As que, apesar de invocadas, aí não tenham sido apreciadas permanecerão fora do âmbito do conhecimento do tribunal ad quem [3]. Tal como as que sejam suscitadas como novidade. [4]

Ora, dada a multiplicidade e densidade das conclusões recursivas que manifestamente excedem e não respeitam o ónus de síntese previsto no nº 1, do artº 639º, CPC, mas perspectivando-se, no caso, de reduzida eficácia a opção por convite ao seu aperfeiçoamento, sendo perceptível, mediante necessária triagem, o essencial das questões colocadas e, assim, suprível em “atitude condescendente” a falha dos recorrentes [5], vamos nós procurá-las e elencá-las.

Assim:

Impugnação da decisão da matéria de facto

Recurso do autor:

a) Devem ser alterados, por erradamente julgados, os pontos provados nº 5 e 6 e, em parte, o segundo parágrafo dos não provados?

Recurso subordinado da 2ª ré:

b) Devem ser alterados, por também incorrectamente decididos, os pontos 3, 4, 5, 6 e 25?

Impugnação da decisão da matéria de direito

Recurso do autor:

a) Face à factualidade alterada, o acidente resultou, única e exclusivamente do aparecimento dos cães e por ele deve apenas ser responsabilizada a segunda ré?
b) Mesmo sem tal alteração, sempre a culpa é apenas desta por não ter ilidido a presunção legal estabelecida no artº 493º, do CC?
c) Deve ser elevado para 7.000,00€ o valor (fixado em 3.500,00€ na sentença) a título de indemnização pela afectação da capacidade de ganho e dano biológico?
d) Deve ser aumentado para 10.000,00€ o valor (fixado em 4.000,00€) relativos aos danos não patrimoniais?

Recurso subordinado da 2ª ré:

e) Deve, em consequência da alteração dos factos, ser revogada a sentença e a ré totalmente absolvida?

III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A sentença

Embora questionada no recurso, a decisão desta matéria proferida pelo tribunal a quo seleccionou como factos considerados relevantes e julgou provados os seguintes:

“1. No dia 07/10/2017, pelas 17:00h, ocorreu um acidente de viação, na Rua ..., freguesia de ... ..., concelho de Guimarães, em que foram intervenientes o motociclo matrícula JP, conduzido pelo Autor e o veículo automóvel ligeiro de passageiros, com a matrícula OI, conduzido por M. D..
2. A faixa de rodagem no local tem a largura de 7 metros, em paralelo, sem passeios, nem marcações; o tempo estava bom.
3. Nas referidas circunstâncias, o Autor circulava no sentido São Martinho Leitões e teve de contornar o veículo automóvel NX – estacionado encostado ao seu lado direito –, circulando mais perto do meio da faixa de rodagem.
4. Momentos antes, dois cães de porte médio, pertença da 2.ª Ré M. F., tinham saído por um portão aberto com o número de polícia …, residência daquela, circulando junto ao muro por uma distância de cerca de 5 metros.
5. A condutora do veículo OI, que vinha em sentido contrário ao do Autor, ao ver os cães sair do portão e o motociclo, imobilizou a sua viatura.
6. Apesar de os ter visto a circular na berma, o Autor continuou a marcha, tendo sido abordado pelos cães, que, no momento em que passava pelo NX, correram no sentido do motociclo.
7. O Autor atrapalhou-se, tentou desviar-se, dando uma guinada, e perdeu o controlo do motociclo, que derrapou, tendo indo de rastos, até embater na frente do veículo BMW OI.
8. Fruto desse embate, o Autor caiu no solo juntamente com o ciclomotor.
9. A responsabilidade civil emergente do acidente causado pelo condutor do veículo NX, encontrava-se transferida para a Ré X pela apólice nº ……56.
10. A 2.ª Ré detinha, à data do acidente, quatro canídeos, os quais se encontravam no interior de um canil existente na sua propriedade.
11. O Autor foi de imediato socorrido pelos Bombeiros de Guimarães e transportado ao Hospital de Guimarães para receber tratamentos, tendo-lhe sido diagnosticado traumatismo da grade costal e do ombro direito e hematoma com crepitação clavicular direita; tórax sem alterações e diagnosticado imagiologicamente com ombro flutuante, com fratura da omoplata, alinhada e fratura da clavícula Allman Tipo A, alinhada; Suspensão braquial com banda torácica.
12. A 12 de outubro voltou ao hospital para reavaliação, tendo feito RX de controlo, sem perda de redução, recebeu alta com indicação de repouso e suspensão braquial comercial, gelo local e analgesia em SOS, tendo sido orientado para consulta externa de ortopedia e consulta externa de fisiatria.
13. O Autor retirou a suspensão branquial em 10 de novembro de 2017, tendo recebido alta da consulta de ortopedia a 27 de dezembro de 2017.
14. O Autor realizou fisioterapia no Hospital, tendo recebido alta da consulta de fisiatria a 19 de março de 2018.
15. Em virtude destas lesões, o Autor apresentou incapacidade temporária para o exercício da atividade profissional desde 10/10/2017 até 19/01/2018, tendo sido pago a título de subsídio de doença pela Segurança Social, a importância de € 1.351,89 (mil trezentos e cinquenta e um euros e oitenta e nove cêntimos).
16. Como sequelas destas lesões, o Autor apresenta uma deformidade evidente da clavícula direita, visível a curta distância, tendo sido fixado um dano estético de 2 numa escala de 7 graus de gravidade crescente.
17. Resultou ainda, como danos permanentes na integridade físico-psíquica, uma ligeira rigidez do ombro, com mobilidade conservada e simétrica, conseguindo levantar a mão direita à nuca, ao ombro oposto e à região lombar, tendo-lhe sido atribuída, atendendo à limitação funcional e dor, um défice funcional permanente de 3 pontos.
18. Estas sequelas são compatíveis com o exercício da atividade habitual, mas implicam esforços suplementares.
19. O Autor toma analgésicos em SOS e, depois da alta, foi-lhe recomendado continuar com exercício para fortalecimento muscular.
20. O Autor nasceu em - de abril de 1960 e é operário da construção civil, auferindo de rendimentos mensais na ordem de € 600,00 (seiscentos euros).
21. Tratava-se de uma pessoa que não tinha problemas de mobilidade do braço, necessitando da ajuda de terceiros e manter uma posição mais alta ao dormir, nos dois meses a seguir ao acidente.
22. O Autor sofreu e continua a sofrer dores, com as lesões, o traumatismo, o período de recuperação e tratamentos, tendo o quantum doloris sido fixado em 4 pontos, numa escala de 7 graus de gravidade crescente.
23. Por força do acidente, ficou o Autor com toda a roupa que trazia vestida (calças, camisola, casaco, sapatos) estragada.
24. Com taxas moderadoras, consultas e sessões de fisioterapia gastou € 327,90 (trezentos e vinte e sete euros e noventa cêntimos), deslocando-se de boleia ou transportes públicos.
25. Com a reparação do motociclo o Autor despendeu o montante de € 776,33 (Setecentos e Setenta e Seis Euros e Trinta e Três Euros).
E julgou como não provados os seguintes:

“Com interesse para a boa decisão da causa não se provaram quaisquer outros factos acima não descritos ou com estes em contradição, com exclusão sobre considerações jurídicas, conclusões ou juízos de valor e factos não essenciais à decisão da causa, designadamente não resultou provado que:

- o Autor foi surpreendido ao efetuar a curva à direita pelo veículo estacionado;
- o Autor foi surpreendido pelo aparecimento de 4 canídeos, que correram de forma brusca e inopinada e apareceram soltos e inopinadamente no meio da estrada;
- o embate se deu por o Autor não ter constatado que circulava o veículo OI no sentido contrário (em virtude do veículo seguro);
- o Autor circulava a mais de 50 Km/hora;
- o Autor dispunha de 10,30 metros de largura de faixa de rodagem, totalmente livre e desimpedida;
- que o veículo estava estacionado a mais de 20 metros à frente do local donde saíram os 4 canídeos;
- a fratura da clavícula obrigou o Autor a permanecer na cama cerca de dois meses;
- o Autor ficou com uma cicatriz de ferida de características operatórias, sobre a clavícula esquerda, linear oblíqua para fora e para cima com 11 cm de comprimento; atrofia muscular da espádua, particularmente do ombro esquerdo; além de, vertigem paroxística postural benigna;
- do acidente tenha resultado como sequelas: síndrome pós-comocional; - Cervicalgias exacerbadas nas rotações da coluna cervical; Dor ao nível da clavícula e no ombro esquerdo;
- o Autor sofra horrorosamente por se ver um homem diferente, permanentemente angustiado e ansioso, pois sente-se deficiente e impossibilitado de realizar as tarefas mais simples do dia-a-dia; com profundo desgosto, tristeza e constrangimento.
- o Autor tenha ficado com uma diminuição muito relevante da sua capacidade de fruir a vida em geral, e dificuldade enorme para o exercício da sua profissão habitual, que tenha tornado incapaz de trabalhar; com a mobilidade, ao nível da clavícula e ombro, tem fortes limitações, sentindo dores exacerbadas.
- o Autor tenha de continuar a necessitar de tratamentos e apoio psicológico e/ou psiquiátrico, em virtude do acidente;
- o logradouro da residência da 2.ª Ré estivesse com o portão fechado.

Para tanto, fundamentou-se na seguinte motivação:

“O tribunal formou a sua livre convicção na ponderação crítica e confronto entre os meios de prova produzidos, as regras da experiência e o senso comum, tendo em conta as regras próprias da repartição do ónus da prova.
Os factos supracitados relativos ao seguro deram-se como provados nos termos da apólice junta; também resultado da certidão junta, foi o valor pago à Autora a título de baixa médica.
Por terem sido aceites foram dados como provados os factos relativos às circunstâncias de tempo e lugar do acidente (factos 1 a 3) e ao facto descrito em 10, admitido na contestação da 2.ª Ré nestes mesmos termos, que tinha 4 cães num canil existente na sua propriedade.
Vieram testemunhas, familiares da Ré, nomeadamente o seu marido H. M., o cunhado C. P. e um sobrinho, F. C., que, em sentido contrário vieram tentar apresentar outra versão em julgamento: afinal os cães estiveram todo o dia e à hora do acidente num canil na propriedade ao lado, dos pais da Ré. E todos eles confirmam tal facto, por terem estado todos nesta propriedade a fazer a desfolhada, designadamente quando ocorreu o acidente.
Esta versão, como se viu, além de infirmada pela própria Ré, quanto ao local onde estavam os seus cães, não faz qualquer sentido, na sequência dos factos e das fotos do embate onde se vê o portão da Ré efetivamente aberto e o marido desta no local (fls. 122). Ao invés de sair pelo portão dos sogros, sempre a direito, que se visualizou por satélite no Google Maps, e como as restantes testemunhas dizem ter feito, refere aquele que saltou por dois muros altos e uma vedação existentes entre as duas propriedades, para dar a volta pela sua casa, só para ver o que tinha acontecido.
Por outro lado, da descrição do acidente pelo Autor e pela condutora do OI, M. D., que se nos afigurou coerente e apenas determinada pela sua intervenção no acidente, resultaram provados não apenas os factos relativos à dinâmica do acidente, como os relativos aos 2 cães que saíram do portão aberto no 519.
A condutora referiu que o senhor que saiu depois do referido portão admitiu que os cães eram dele e que os deixava sair às vezes. A própria 2.ª Ré admitiu suportar um valor pelos custos da assistência médica, perante o Autor e perante o averiguador de seguros, C. N..
Relativamente às circunstâncias do acidente, como se referiu, as mesmas deram-se como provadas na parte em que foram coincidentes entre o depoimento dos dois intervenientes, sendo que o próprio Autor esclareceu que viu os cães a sair do portão e o veículo que vinha de frente, e que os animais se fizeram a ele, e já não que, de forma imprevista, tivessem surgido do portão à sua frente; a outra condutora também refere que o Autor se atrapalhou com os cães.
As lesões do Autor resultaram provadas dos elementos clínicos e da perícia médica realizada, que não foram impugnados, nos termos que delas resultam. Também se deram como provadas as queixas e danos, confirmadas pelo Autor e seus familiares, a filha C. C. e o genro A. C., e que tenham sustento nos elementos clínicos e no normal acontecer.
Neste entendimento, não se deu como provados alguns dos factos alegados, designadamente, as lesões e sequelas que não têm correspondência com as verificadas no relatório pericial.
Os restantes factos não provados resultaram de não se ter produzido qualquer elemento de prova nesse sentido ou se ter feito prova em sentido contrário.

Recurso do autor

Neste campo, defende ele que o ponto provado nº 5, do qual consta que “A condutora do veículo OI, que vinha em sentido contrário ao do Autor, ao ver os cães sair do portão e o motociclo, imobilizou a sua viatura” deve ser alterado para “A condutora do veículo OI, que vinha em sentido contrário ao do Autor, imobilizou a sua viatura quando os cães atravessaram a rua dirigindo-se ao motociclo”.

Defende também que o ponto provado nº 6, onde se refere “Apesar de os ter visto a circular na berma, o Autor continuou a marcha, tendo sido abordado pelos cães, que no momento em que passava o NX, correram no sentido do motociclo” deverá passar a mencionar “O autor, no momento em que passava pelo NX, foi abordado pelos cães que correram no sentido do motociclo”.

E defende, ainda, que o ponto de facto julgado não provado que diz “o Autor foi surpreendido pelo aparecimento de 4 canídeos, que correram de forma brusca e inopinada e apareceram soltos e inopinadamente no meio da via” deverá ser substituído por um ponto provado que contemple o seguinte: “Os cães da ré entraram, soltos e a correr, na faixa de rodagem, da direita para a esquerda, atravessando-a mesmo à frente do ciclomotor conduzido pelo autor”.

Na motivação, o Tribunal a quo considerou que:

“…da descrição do acidente pelo Autor e pela condutora do OI, M. D., que se nos afigurou coerente e apenas determinada pela sua intervenção no acidente, resultaram provados não apenas os factos relativos à dinâmica do acidente, como os relativos aos 2 cães que saíram do portão aberto no …”.

E que “Relativamente às circunstâncias do acidente, como se referiu, as mesmas deram-se como provadas na parte em que foram coincidentes entre o depoimento dos dois intervenientes, sendo que o próprio Autor esclareceu que viu os cães a sair do portão e o veículo que vinha de frente, e que os animais se fizeram a ele, e já não que, de forma imprevista, tivessem surgido do portão à sua frente; a outra condutora também refere que o Autor se atrapalhou com os cães.“

Tudo tem a ver, no essencial, com as circunstâncias do surgimento e do avistamento dos cães pelo autor, sendo certo que a dinâmica do evento que este, na petição inicial, maxime nos itens 5, 8, 9 e 15, alegou aponta para um súbito e brusco aparecimento dos animais à sua frente que não lhe teria dado margem para travar e evitar o embate no outro veículo mas que os ditos pontos não a reflectem exactamente, a ponto de, com base neles, o Tribunal a quo ter concluído que, tendo-os visto, devia aquele ter-se acautelado da hipótese de eles se lhe atirarem.

Sustenta, assim, o autor, no recurso, que o retrato da dinâmica do acidente feito naqueles pontos não corresponde ao que ele e a condutora M. D. disseram na audiência, apesar de na coincidência de tais depoimentos se ter baseado a motivação, indicando e transcrevendo as passagens que reputa disso demonstrativas.

Vejamos e ouçamos, então.

O autor D. C., em tom e em termos que, pela tranquilidade, prontidão, espontaneidade e fluidez das respostas, e, sobretudo pelas respectivas justificações, designadamente quando confrontado com as objecções suscitadas em contra-instância, foi claro e convincente quando disse que podia ter ultrapassado o veículo estacionado na sua hemi-faixa de rodagem sem problemas e “se não fossem os cães”. Assim, descreveu que “mal estou a ultrapassar a carrinha, sou confrontado com dois cães à minha frente”, “os cães fizeram-se a mim”, “imediatamente eu tentei desviar-se dos cães mas a mota fugiu-me logo”, “desequilibrei-me logo, a mota fugiu-me logo”, “tentei dar uma guinada ao volante a ver se fugia, mas a mota entrou-me logo em despiste”, “não tive hipótese, fui para o chão logo”, “depois fui de rastos por lá fora, no paralelo, e fui bater num carro que vinha em sentido contrário”.

As cenas de tal filme são conhecidas e evidentes, conformam-se com o que ensinam as regras da experiência comuns aos utentes das vias públicas, sejam eles pedestres ou tripulantes de automóveis, quando marginadas por casas e quintais – como era o caso – onde são mantidos presos cães que, uma vez soltos e por descuido dos donos em detê-los e vedar-lhes a fuga, invadem a rodovia e, extravasando a sua tensão, ladram ameaçadoramente e investem contra os passantes procurando abocanhar rodas e pernas, sendo conhecida a sua especial predileção pelo conjunto mota-motociclista cuja deslocação e sonoridade os atiça e enfurece.

Tendo a ré negado que – contra as evidências – os cães lhe pertencessem, discutiu-se, e sobre isso foram instados e contra-instados o autor e a testemunha M. D. (que nas singelas palavras do autor era a “testemunha número um”, pois “não estava lá mais ninguém”), de onde, mais concretamente de que porta, eles saíram antes de “se fazerem ao autor” (e à mota).

É no contexto específico dessa discussão e na busca do esclarecimento desse aspecto naturalmente relevante para se apurar a proveniência dos canídeos e deduzir a quem pertenciam – não propriamente tendo por alvo fixar a cadência ou sequência com que eles foram avistados pela testemunha e pelo autor – que este asseverou que os viu a esgueirar-se do “portão grande”.

Assim, “eu vi”, eles “vieram”, “entre a carrinha e a entrada que dá para a D. M. F. aquilo são seis metros, cinco, seis metros”, “eu vi eles a sair por lá fora”, “eles vieram em direcção a mim”, “eu para me tentar defender deles, faço uma guinada ao volante a ver se, se…se não passava por cima deles, para não cair”, todavia “a mota entrou-me logo em despiste”, “não tive hipótese”.

O autor não descreve, portanto, que avistou os cães à distância (a mais que os cinco/seis metros que separavam a carrinha estacionada do portão situado do seu lado esquerdo, espaço por onde estava a ultrapassar aquela), nem que os presenciou a percorrer, pata-ante-pata, a berma da rodovia durante um tal período de tempo que permita afirmar, sequer sugerir, que, entretanto, “apesar de os ter visto a circular na berma” [6] decidiu “continuar a marcha” e só depois – como induz a descrição vertida no ponto 6 – foi “abordado” [7] pelos cães. Até porque, quer nas fotos do local (fls. 120 a 122) quer no “croquis” elaborado pela GNR (fls. 125), não se vê nem se assinala qualquer berma demarcada, sendo o pavimento em “paralelos” de granito de “borda-a-borda”.

O autor assegura, isso sim, convincentemente, que os viu sair do portão e que logo “se fizeram” a ele, “eu vi os cães a sair dali e a vir em direcção a mim”, “eu vi os cães a sair”.

Deste modo se dissipando dúvidas sobre a procedência dos animais (e, portanto, sobre a sua pertença que, aliás, agora se não discute), no filme por ele descrito não se intercala a cena que da conjugação dos pontos 5 e 6 resulta – e que, aliás, refutou, quando, no decurso da contra-instância feita pela Mandatária da 2ª ré, foi confrontado com a pretensa versão da testemunha M. D., de acordo com a qual esta teria dito, nas palavras daquela causídica, que os cães “vieram pela beirinha”, retorquindo-lhe o autor, pronta e firmemente, que “se viessem pela beirinha …eu não caía para o chão”, “se viessem na beirinha eu não caía por causa dos cães”.

A testemunha M. D., apesar de pormenorizar que os animais, depois de saírem do portão e antes de atravessarem, ainda percorreram algum espaço para a frente, não utilizou tal expressão, nem a de que os cães “circularam” pela berma [8], assim como não disse, nem o autor, que imobilizou o seu veículo “ao ver os cães sair da porta”.

Com efeito, foi muito clara e assertiva ao dizer, repetidamente, que sempre teria de parar e parou porque a carrinha estacionada na curva, embora do outro lado, lhe retirava visibilidade para prosseguir em segurança, receando que lhe surgisse outro veículo em sentido contrário e também por causa dos cães.

Como consta da gravação e das transcrições parciais – cuja X verificámos – disse ela, sempre de forma coerente, sem vacilar: “os cães saíram de uma casa, do portão grande, do meu lado, E eu como tinha a carrinha, tive que parar, para ver se não vinha carro ou qualquer coisa”, “e parei também por causa dos cães. Ao mesmo tempo que isso, um senhor da mota está a ultrapassar a carrinha que está mal-estacionada e os cães atravessaram-se à frente dele. Ele depois despista-se e veio logo contra mim”; “Eu vi mesmo os cães a vir do portão grande”; “A mota e o senhor vieram a rastos mesmo”.

Questionada, de resto, sobre se os cães saíram a correr, respondeu “sim, sim” e, insistindo-se sobre se não tinha dúvidas quanto a isso, respondeu solidamente: “Não, não. Eles saíram mesmo a correr, do meu lado”.

Quando, novamente, perguntada sobre a trajectória dos cães, explicitou “eles dirigiram-se mais à frente um bocado e atravessaram a estrada” e “ao mesmo tempo que eles atravessaram a estrada o senhor da mota está a atravessar a carrinha”. Perguntada novamente sobre se assim ele se desequilibrou com os cães, respondeu “sim”, embora cuidando de precisar “eu não sei se ele bateu contra algum cão, ou se travou”, “despistou-se e veio contra mim”. Confirmou a seguir que os cães se dirigiram ao senhor da mota, “passaram mesmo à frente dele”, que atravessaram “mesmo à frente dele, exactamente”. Confirmou também, ao ser confrontada com aquilo que ela própria escreveu e integra a participação policial junta que lhe foi lida, que “o condutor da mota atrapalhou-se com os canídeos”.

Mesmo quando, mais uma vez insistentemente contra-instada pela Mandatária da 2ª ré, designadamente sobre em que momento avistou os cães, manteve que “foi mesmo ao passar no portão” [portão de onde eles saíram], “estava mesmo a passar, eles estavam a sair a correr e passaram mesmo ao meu lado”, “estavam mesmo a sair, exactamente”. Sugestivamente também perguntada sobre se parou quando avistou a saída deles, contrapôs, detalhando: “não, não, não parei. Eu continuei porque eles não foram mesmo para a frente [para a frente do seu carro] para bater, pronto. Eles continuaram na beira da casa, a correr para a frente”.

Foi, pois, logo a seguir que ela parou e os animais atravessaram, obviamente atraídos pelo motociclo.

Houve, portanto, após a saída do portão, um momento em que eles correram ainda no seu sentido (para a frente), em paralelo com a casa de onde saíram, até encetarem, a travessia da via, o que não é exactamente o mesmo, em termos descritivos, que “vieram pela beirinha”, nem que “circularam pela berma”. Só após esses instantes (não quantificados no tempo e no espaço), é que parou a sua viatura, tendo isso acontecido “quando os cães atravessaram a rua e ao mesmo tempo o senhor da mota está a ultrapassar a carrinha [a mal estacionada].

Perante mais uma insistência, perguntando-lhe “a senhora parou, os cães passaram à frente da sua carrinha e atravessaram para o outro lado”, respondeu “exactamente” e perguntada ainda – com a justificação da Sr. Advogada que não conseguia perceber a cena, como disse para se justificar – sobre por que é que o autor “se atrapalha” respondeu, inequivocamente, “porque os cães atravessaram mesmo à frente do senhor da mota”, eles “passaram ao meu lado, onde tem o portão” e “logo à frente eles atravessaram a rua para o lado esquerdo” [lado por onde seguia o autor]”; “Ao mesmo tempo que os cães estão a passar a rua o senhor da mota está a ultrapassar a carrinha ali, também”.

Questionada, de novo sugestivamente, sobre se os cães “circularam pela berma”, corrigiu “eles passam. Não pretendem, eles passam mesmo” e “ao mesmo tempo que eles passam, o senhor da mota também está a ultrapassar a carrinha”, “eles passaram mesmo [atravessaram] no sítio onde o senhor estava a passar a carrinha”. Repetiu: “os cães estavam a passar ao meu lado. Passaram. Eles não passaram mesmo logo ali à minha frente, eles passaram mais à frente um bocado”. Respondendo, a outra pergunta, não menos sugestiva, sobre se parou por causa dos cães, manteve: “Também parei por causa da carrinha, porque eu também não tinha visibilidade suficiente para ver para o outro lado da estrada”. “Eu parei também porque os cães passaram à minha frente e parei também por causa…para ter a visibilidade, se vinha carro à minha frente ou não” e “só depois os cães iam, foram a correr, passaram no sítio onde estava a carrinha e ao mesmo tempo o senhor da mota está a ultrapassar.”

A seguir, depois de repetidas insistências e de perguntada, mais uma vez, se os cães “circulam pela berma do seu lado”, aquiesceu respondendo “exactamente”, sem abdicar da sua versão, pois logo voltou a repetir que os cães não passaram logo à frente do seu veículo mas, concordando que foi à frente um bocadinho e precisando “no sítio onde está a outra carrinha estacionada”.

De novo questionada pela mesma mandatária – que também nisso “não conseguiu mudar a sua opinião” [9] –, sobre “como é que depois os cães atrapalharam o senhor do motociclo”, reiterou a explicação: “eles atravessam a estrada quando o senhor está a ultrapassar a carrinha” e “o senhor atrapalhou-se com os cães que passaram no momento” e, novamente mais adiante, “o senhor da mota, ao passar a carrinha, atrapalha-se com os próprios cães ali no meio”; “Ao mesmo tempo que eles estão a passar, o senhor da mota está a ultrapassar e ele deve-se ter atrapalhado”.

De resto na mesma linha da sua descrição, respondeu à pergunta da Mandatária da 1ª ré “se não fossem os cães, o senhor passava tranquilamente” que “passava”, isto depois de, noutro passo anterior, ter dito que “a mota conseguia passar na boa”.

A convergência dos depoimentos é notória, de facto. Nisso se baseou o Tribunal recorrido. Não o é, porém, quanto à exacta versão que foi percepcionada ou deduzida por ele e que acabou acolhida nos pontos de facto questionados. Os cães, depois de transporem o portão e invadirem a rodovia ainda correram longitudinalmente por esta, até que a atravessaram. A testemunha M. D. viu-os sair dali, tal como o autor. Ela registou e narrou os instantes imediatos. Ele não os reproduziu na íntegra, compreensivelmente porque, focado na manobra de se desviar da carrinha estacionada, não terá atentado (e captado) – tendo sido porventura até insignificante para ele –, aquele rápido e curto trajecto dos animais, uma vez que, mesmo tendo-se este, imediatamente depois da transposição do portão grande, desenvolvido ainda em sentido longitudinal (paralelo à parede respectiva que ladeia a rua), o que importa é que, obviamente, logo flectiu e se orientou no transversal, visando alcançar o motociclo, que era o alvo.

Na descrição da cena subsequente, coincidem: quando o autor estava precisamente a ultrapassar a carrinha mal estacionada do seu lado, eles, num ápice, vieram no seu encalce “fazendo-se a ele” e atravessaram a via, provindos do lado contrário de onde haviam saído, mesmo à sua frente, atrapalhando-o, fazendo-o perder o controlo da trajectória do veículo e desequilibrando-o, seguindo-se a queda e projecção, de rastos, contra o veículo da referida testemunha.

Deste modo, na linha do que defende o autor, devem aqueles pontos ser alterados, em parte como ele pretende e também oficiosamente ao abrigo do artº 662º, nºs 1 e 2, CPC, mas de maneira a retratarem fielmente, em termos muito simples mas concretamente mais expressivos, a realidade tal como descrita pelos protagonistas.

Assim, o ponto 5 passará a ter a seguinte redacção:

A condutora do veículo OI, que provinha em sentido contrário ao do Autor, observando o veículo NX estacionado na hemi-faixa de rodagem contrária à sua e que lhe retirava visibilidade do trânsito desse lado, bem como a saída dos cães, à solta, do portão e o trajecto por eles encetado, porque temeu a eventual aproximação de algum outro veículo do lado contrário e porque os animais, entretanto, começaram a atravessar a rua à sua frente e receou embater com eles, imobilizou o seu.”

O ponto 6 ficará assim:

Por sua vez, o autor, estando a circular conforme descrito em 3, no momento em que passava pelo NX, foi surpreendido pelos cães que, em correria, atravessaram a faixa de rodagem no encalce da mota e se meteram à frente desta.”

Deste modo, eliminar-se-ão os pontos não provados dos 1ª e 2º parágrafos do respectivo elenco.

Impugnação da ré

Defende ela, em termos simplistas, que “o Tribunal recorrido jamais poderia ter dado como provado o facto mencionado sob o ponto 3, pelo que, ao fazê-lo incorreu num erro de julgamento”.

Refere-se em tal ponto: “Nas referidas circunstâncias, o Autor circulava no sentido São Martinho Leitões e teve de contornar o veículo automóvel NX – estacionado encostado ao seu lado direito -, circulando mais perto do meio da faixa de rodagem”.

Baseia-se, desgarradamente, numa expressão, que foi, de facto, proferida pelo autor: “Então, se eu vou na minha direita para cima, claro, cacei a esquerda, que é a outra faixa, por causa da carrinha estacionada”.

Acontece, porém, que isto não é impugnação obediente, primeiro, às regras formais do artº 640º, CPC, uma vez que não se aponta nem explica onde está o erro nem se especifica qual a decisão que deve ser proferida; e, depois, porque meramente baseada num aspecto truncado que não exprime a razão e o sentido do diálogo em que ele surgiu; finalmente, porque é inócua.

Na verdade, para o que aqui releva, não interessa nada saber se o autor estava “mais perto do meio” ou se até “caçou” a esquerda e mesmo a “outra faixa”. Importa é perceber a dinâmica real do acontecimento e, sobretudo, a trajectória dos cães e o modo como estes e o motociclo se defrontaram, a fim de se perceber a explicação do resultado subsequente.

Além disso, aquela afirmação surgiu no contexto da contra-instância, feita pela Mandatária da 2ª ré, insistindo sobre a visualização que o autor asseverou dos cães, a saírem do portão dela. O que ele quis contrapor e justificar foi, claramente, que, indo na sua mão de trânsito, tendo necessariamente que contornar a carrinha que, na curva, se lhe deparou aí mal estacionada e, para tal efeito, desviar-se mais para o meio da faixa de rodagem, assim ficou numa posição que lhe permitia observar, bem e de perto, o movimento dos cães do lado contrário (a saírem do portão “em direcção” e a “fazerem-se” a ele, “caçou a esquerda”).

Ao acrescentar “que é a outra faixa”, manifestamente quis vincar a posição, a proximidade, e consequentemente a possibilidade que efectivamente tinha, por estar a contornar a carrinha e necessariamente mais perto do meio, de observar a trajectória dos cães – que era o que estava em discussão. Não pretendeu asseverar nem assumir que transpôs a linha divisória, que invadiu a hemi-faixa contrária à sua e que foi nesta que ocorreu o encontro com eles, até porque ainda foi “de rastos” (como também referiu a M. D.) e nela se encontrava o veículo desta testemunha entretanto já parado.

Foi aquela localização que o Tribunal quis espelhar no facto.

Não se patenteando, pois, erro que justifique, nem se descortinando a utilidade, de qualquer alteração (aliás, não pedida especificamente, como se salientou), mantém-se o ponto 3.

Relativamente ao ponto 4, onde se descreve como provado que “Momentos antes, dois cães de porte médio, pertença da 2ª ré M. F., tinham saído por um portão aberto com o número de polícia …, residência daquela, circulando junto ao muro por uma distância de cerca de 5 metros”, defende também a recorrente que “o tribunal recorrido não poderia ter dado como provado o facto mencionado” nele e que “incorreu num erro de julgamento”.

Com as mesmas deficiências anteriormente assinaladas a respeito do ponto 3, limita-se a argumentar com “a coerência das declarações prestadas pelo Autor e as prestadas pela testemunha M. D.” e a transcrever parcelas do depoimento daquele e desta que, na sua perspectiva, evidenciam ser “manifesta a divergência”.

Infere-se dessas partes que tal oposição consistiria em a testemunha relatar que os cães, depois de transporem o portão, correram ainda ao longo da via (não a atravessaram logo), ao passo que o autor refere que os viu sair e irem em direcção a ele, não assinalando aquele momento intermédio (trajecto em posição longitudinal).

Já atrás amplamente a isso nos referimos. Não há coincidência integral, mas também não há divergência relevante, como se justificou.

Não decorre daí, portanto, qualquer erro de julgamento quanto à matéria do ponto em apreço, sequer quanto àquele detalhe.

Há, isso sim, uma precisão que deve introduzir-se na redacção: os cães, em bom rigor, não “circulam”. No caso, eles seguiram “a correr”, como explicitou a M. D., descreveu implícita mas sugestivamente o autor – “eles fizeram-se a mim” – e se coaduna com a normalidade do acontecer.

Por isso, ninguém discutindo que a referida corrida inicial ainda “junto ao muro” se prolongou por cinco metros até inflectirem e atravesseram – cálculo do Tribunal a quo cujo resultado se admite plausível em função do “croquis”, das fotos e do que é inferível das narrativas (pois que ninguém verbalizou essa medida) –, o facto ficará assim:

Momentos antes, dois cães de porte médio, pertença da 2ª ré M. F., tinham saído por um portão aberto com o número de polícia …, residência daquela, correndo primeiro ao longo do muro, no sentido do OI e mais à frente em relação a este, por cerca de 5 metros, até que enveredaram pelo atravessamento da rua na direcção do motociclo do autor”.

Relativamente aos pontos 5 e 6, já tratados e alterados por efeito da apreciação do recurso do autor, sofrendo a impugnação da ré das mesmas deficiências, diz ela que há “erro de julgamento” no primeiro, porque a testemunha M. D. não disse que parou logo, mal os avistou a sair do portão, mas instantes depois de eles ainda terem corrido à sua frente e à beira do muro da casa, e que há “incongruência” entre os relatos.

Além do que já atrás se disse e decidiu alterar, evidentemente nenhuma modificação mais suscita a impugnação da ré.

Por último, quanto ao ponto provado 25, segundo o qual “Com a reparação do motociclo o Autor despendeu o montante de €776,33”, refere a recorrente que “existiu erro de julgamento” porque “o único documento de prova” a tal respeitante é o documento 14 junto com a petição, mas trata-se de uma factura e não de um recibo comprovativo do pagamento e datado de 12 de Janeiro de 2017, ou seja, nove meses antes da data do acidente.

Ora, é verdade que o documento 14 (fls. 16 dos autos), na parte da frente que reproduz a factura, menciona aquela data impossível. Tão impossível que o orçamento vertido no seu verso descreve materiais e serviços iguais e apura o mesmo valor da reparação e ostenta, aí sim, a data, inteiramente plausível, de 25 de Outubro de 2017. Trata-se, segundo cremos, de lapso e não de factura desconforme à prestação dos serviços e fornecimento dos materiais para reparação. Sequer merecedora de dúvida quanto à sua necessidade, montante e pagamento.

Os estragos na mota ocorreram. As peças e os serviços descritos para os reparar são compatíveis com o acidente, modo como este se deu e danos plausivelmente resultantes na quase “destruição” da mota (palavras do autor). Este asseverou que “teve” de os “arranjar”, primeiro pediu orçamento e pagou o custo, na casa dos 700 euros, como tem pago as demais despesas implicadas. O orçamento pormenoriza aquilo que está na factura e menciona os mesmos valores, com IVA incluído, estando assinado. Não foi produzida contraprova que o ponha em dúvida, nem a credibilidade das declarações de parte.

Julgando tratar-se, na factura, de um mero lapso quanto à data, ela não abala a convicção sobre a realidade do valor despendido.

Manter-se-á, pois, o ponto 25, devendo julgar-se improcedente em relação a ele, como a todos os demais e salvo quanto ao decidido a respeito do ponto 4, a impugnação da ré M. F..
*
Aditamento

É manifesto que a sentença omitiu completamente os factos relevantes, logo indispensáveis, concernentes ao pedido de reembolso deduzido pelo Centro Distrital de Braga do Instituto da Segurança Social, IP (fls. 55 e 56), e fundamentadores da procedência de tal pedido.

Uma vez que apenas a ré seguradora os contestou, mas limitando-se a impugná-los por desconhecimento, tendo em conta a demais prova produzida e a certidão de fls. 56-verso, importa, ao abrigo do artº 662º, nº 2, alínea c), do CPC, oficiosamente, aditar os provados, na sequência dos já existentes.

Assim, julga-se provado que:

26. Em consequência do acidente descrito, o autor, que é beneficiário da Segurança Social nº .......72, esteve incapacitado para o exercício da sua actividade profissional desde 10-10-2017 até 19-01-2018.
27. No âmbito das suas obrigações, aquela pagou-lhe, a título de subsídio de doença, a importância de 1.351,89€ correspondente àquele período.
*
Posto isto, consideram-se eliminados os dois primeiros parágrafos do elenco dos factos não provados.

Introduzem-se as alterações atrás referidas, pelo que os 8 primeiros pontos descritivos do evento, ficam assim fixados:

1. No dia 07/10/2017, pelas 17:00h, ocorreu um acidente de viação, na Rua ..., freguesia de ..., ..., concelho de Guimarães, em que foram intervenientes o motociclo de matrícula JP, conduzido pelo Autor, e o veículo automóvel ligeiro de passageiros, com a matrícula OI, conduzido por M. D..
2. A faixa de rodagem no local tem a largura de 7 metros, em paralelo, sem passeios, nem marcações; o tempo estava bom.
3. Nas referidas circunstâncias, o Autor circulava no sentido São Martinho/Leitões e teve de contornar o veículo automóvel NX – estacionado encostado ao seu lado direito –, circulando mais perto do meio da faixa de rodagem.
4. Momentos antes, dois cães de porte médio, pertença da 2ª ré M. F., tinham saído por um portão aberto com o número de polícia …, residência daquela, correndo primeiro ao longo do muro, no sentido do OI e mais à frente em relação a este, por cerca de 5 metros, até que enveredaram pelo atravessamento da rua na direcção do motociclo do autor.
5. A condutora do veículo OI, que provinha em sentido contrário ao do Autor, observando o veículo NX estacionado na hemi-faixa de rodagem contrária à sua e que lhe retirava visibilidade do trânsito desse lado, bem como a saída dos cães, à solta, do portão e o trajecto por eles encetado, porque temeu a eventual aproximação de algum outro veículo do lado contrário e porque os animais, entretanto, começaram a atravessar a rua à sua frente e receou embater com eles, imobilizou o seu.
6. Por sua vez, o autor, estando a circular conforme descrito em 3, no momento em que passava pelo NX, foi surpreendido pelos cães que, em correria, atravessaram a faixa de rodagem no encalce da mota e se meteram à frente desta.
7. O Autor atrapalhou-se, tentou desviar-se, dando uma guinada, e perdeu o controlo do motociclo, que derrapou, tendo indo de rastos, até embater na frente do veículo BMW OI.
8. Fruto desse embate, o Autor caiu no solo juntamente com o ciclomotor.

Mantêm-se os pontos provados 9 a 25 e os demais não provados.

E aditam-se àqueles os seguintes:

26. Em consequência do acidente descrito, o autor, que é beneficiário da Segurança Social nº .......72, esteve incapacitado para o exercício da sua actividade profissional desde 10-10-2017 até 19-01-2018.
27. No âmbito das suas obrigações, aquela pagou-lhe, a título de subsídio de doença, a importância de 1.351,89€ correspondente àquele período.

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Imputação do evento

Na sentença afastou-se a responsabilidade concorrente do veículo seguro mal-estacionado (o NX). Não se discute aqui a absolvição da ré seguradora do pedido.

Resta, pois, a da ré M. F., dona dos cães.

Para decidir que a responsabilidade pelo evento é imputável a esta, apenas em 25%, e ao autor ciclomotorista, em 75%, e para a condenar na referida proporção, considerou o Tribunal a quo que não se provou totalmente a factualidade por si descrita na petição inicial – o que é certo e intocável quanto ao veículo NX e contributo deste e seu responsável para o eclodir do acidente – e, ainda, que, diferentemente do alegado, o autor avistou os cães que tinham saído do portão da 2ª ré e, por isso, devia ter procedido de modo a evitar aquele.

Assim, entendeu:

“…estando o veículo seguro totalmente parado, e tendo o Autor contornado o mesmo em segurança, e depois visto os possíveis obstáculos na via, podia e devia o Autor ter adequado a sua velocidade de modo a que conseguisse parar ou controlar o seu motociclo.
Nos termos dos artigos 18.º e 24.º do CE, os condutores devem regular a velocidade de modo a que, em função do estado da via e do veículo, das condições meteorológicas ou ambientais, da intensidade de tráfego e de quaisquer outras circunstâncias relevantes, possam, em segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente, mesmo em casos de súbita paragem ou diminuição de velocidade.
O Autor atrapalhou-se com os cães que já circulavam na via e que já tinha visto, pelo que deveria ter considerado algum comportamento imprevisto dos mesmos, sendo que o outro veículo já se encontrava parado também por esta razão e se constata que ainda tinha espaço para se desviar pela sua mão entre os dois veículos.
E, na realidade os animais tiveram um movimento não previsto pelo Autor, mas não totalmente imprevisível, uma vez que é normal que os cães se atirem aos veículos, especialmente de duas rodas.”

Acrescentou:

“No entanto, este risco e invasão da estrada pelos cães também terá de onerar o seu proprietário, a aqui 2.ª Ré, que terá que garantir a circulação destes na via pública com trela e acompanhados (artigo 7.º do DL n.º 314/2003, de 17 de dezembro) e especialmente evitar que estes embaracem o trânsito e comprometam a segurança dos utentes das vias (artigo 3.º do CE).
A Ré, como proprietária dos animais, teria de garantir que estes estavam bem guardados de forma a impedir que estes fugissem para a via pública, desacompanhados e sem trela.

À obrigação de indemnizar de dano causado por animal referem-se expressamente os seguintes artigos:
- artigo 493.º do Código Civil que dispõe no seu n.º 1 que “Quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar, e bem assim quem tiver assumido o encargo da vigilância de quaisquer animais, responde pelos danos que a coisa ou os animais causarem, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua.”;
- artigo 502.º do Código Civil: “Quem no seu próprio interesse utilizar quaisquer animais responde pelos danos que eles causarem, desde que os danos resultem do perigo especial que envolve a sua utilização”.

Assim, nos termos deste dispositivo legal, um dono de um animal responde pelos danos por este provocados não só com base na culpa, mas também com base no risco, responsável deve ser “quem cria esse risco”, representado pelo animal.”

Em função do exposto, repartiu deste modo a responsabilidade:

Assim, tomando tudo isto em consideração, entendemos que o acidente nos autos resultou, em termos de causalidade direta e adequada, quer do comportamento do Autor, quer da 2.ª Ré, fixando-se a responsabilidade desta em 25%. “

Perante isto, defende o autor, citando Doutrina e Jurisprudência no seu entender apropriada, que, mesmo sem qualquer alteração da matéria de facto, sempre a culpa é exclusivamente da referida ré por não ter conseguido ilidir a presunção legal estabelecida no artº 493º, do CC, e que, de todo o modo, com a alteração fáctica que preconizou, sempre é de concluir que o acidente resultou, única e exclusivamente, do aparecimento dos cães e que, portanto, toda a responsabilidade pelas consequências deve recair sobre a sua dona, ainda que objectivamente, nos termos do artº 502º.

Ao invés, a 2ª ré, no seu recurso subordinado, além de impugnar, nos termos e com o resultado supra ditos, a matéria de facto, limitou-se a pedir a revogação da sentença, dizendo vagamente que esta fez “errada interpretação e aplicação da lei” e que “o Tribunal a quo violou, desta feita, várias disposições legais” mas nada dizendo, sequer esboçando, sobre a que normas jurídicas, de entre as diversas aplicadas, se refere, nenhum esforço de fundamentação a tal propósito desenvolvendo e, portanto, omitindo por completo onde, seja na escolha seja na interpretação ou na aplicação, foi cometido o erro de julgamento – como é expectável em qualquer recurso e também o seria no caso.

Por isso e porque, afinal de contas, não logrou obter qualquer das alterações nos apontados pontos preconizadas em sentido que eventualmente pudesse implicar decisão excludente da sua responsabilidade e sua absolvição do pedido, é manifesta a improcedência do seu dito recurso.

Passemos, então, à apreciação do do autor, adiantando-se, desde já que ele, mesmo sem qualquer alteração dos factos, tem razão.

Não cremos que sobre ele, apesar da sua condição de condutor do motociclo, impendesse o dever de, mesmo que tal lhe tivesse sido possível atempadamente depois que se apercebeu da presença dos cães na via, “ter adequado a sua velocidade de modo a que conseguisse parar ou controlar o seu veículo”.

Os artigos 18º e 24º, do Código da Estrada, estabelecem regras para o condutor, relativas ao distanciamento em relação a outros veículos e a outros utilizadores ou utentes da via. Não quanto a cães.

Todas elas se orientam no sentido de prevenir quaisquer perturbações à liberdade de circulação. Dirigem-se às pessoas, condutores ou outras – artº 3º, nº 2.

Mesmo as que preveem a circulação de animais na via pública, impõem-se a quem precisar de por aí os conduzir. Aos humanos, portanto.

Assim, todo o animal deve ter um condutor e este, durante a condução dele, além do dever geral referido no citado artº 3º, é que deve – deve a pessoa – abster-se da prática de quaisquer actos que sejam susceptíveis de prejudicar o exercício da condução com segurança, não podendo pôr em perigo, designadamente os utilizadores vulneráveis, como os dos velocípedes – artº 11º.

Não são, pois, os condutores que têm de se precaver, por princípio, contra a presença e os movimentos imprevistos de animais na via pública. Mesmo que, seja por remoto palpite seja porque os aviste, e que, portanto, o comportamento perturbador e perigoso deles não se lhe apresente “totalmente imprevisível”, precisamente porque “é normal que os cães se atirem aos veículos, especialmente de duas rodas” como refere a sentença, a causa originária desencadeante do acidente radica na circunstância de os animais se terem libertado e escapulido e do perigo que é co-natural à sua livre presença na rodovia sem qualquer controlo pelo seu dono.

Como resulta da sentença e ora não se discute, à presença do NX mal estacionado nenhum contributo para o acidente foi atribuído. O autor passaria à vontade (como ele disse) ou “numa boa” (na expressão eloquente da testemunha M. D.).

O mesmo aconteceria apesar de, em sentido contrário, se aproximar o OI.

Não se deve a qualquer falta cometida por qualquer dos então utentes da via (autor e os demais) a ocorrência e o resultado lesivo. Não é nesse plano que se encontra qualquer responsabilidade, seja pela criação da fonte do perigo da sua ocorrência seja pela violação de algum daqueles deveres que compõem, com os inerentes direitos, o feixe da relação jurídica por todos aqueles titulada, na referida circunstância e enquanto dela sujeitos co-responsáveis.

Como já reconhecia a sentença, “o autor atrapalhou-se com os cães” e com o seu “movimento não previsto”.

Não se atrapalhou, caiu e foi de rastos bater no OI, por imperícia sua, por seguir a velocidade inadequada, por não ter guardado distância, enfim, por não ter observado regra de circulação que, em geral ou em especial, ali se lhe impusesse ou por ter falhado censuravelmente qualquer conduta devida (mas omitida) ou proibida (mas cometida) que, de todo, excluísse a culpa da dona por ter permitido ou não ter impedido que os animais escapassem e vagueassem na rua.

Nem se descortina que o eclodir do evento possa e deva ser justamente atribuível a outra causa estranha ao perigo resultante dessa facilitação ou que sempre os resultados daquele se produziriam independentemente desta conduta.

Como também se diz na sentença, é certo que “a ré, como proprietária dos animais, teria de garantir que estes estavam bem guardados de forma a impedir que estes fugissem para a via pública, desacompanhados e sem trela”.

Não exactamente porque tal decorra de regras específicas como as estabelecidas no citado Decreto-Lei nº 314/2003, de 17 de Dezembro, ou até mesmo do Decreto Lei nº 82/2019, de 27 de Junho.

Sendo certo que aquele, no seu artº 7º, obriga os cães – melhor, impõe aos seus donos colocarem-lha – a usarem uma coleira ou um peitoral na via pública e proíbe a sua presença aí sem estarem acompanhados pelo respectivo detentor e devidamente contidos, a verdade é que tal diploma provê em matéria de combate à raiva (doença), não quanto ao perigo natural deles adveniente quando à solta nas rodovias. É esse o fim social da norma. Não o de regular entre utentes a circulação rodoviária.

O mesmo se diga quanto ao segundo diploma citado que dispõe quanto à identificação, registo e licenciamento de animais de companhia.

Nem mesmo ao caso se aplica o Decreto-lei nº 315/2009, de 29 de Outubro, que trata da criação, reprodução e detenção de animais perigosos e potencialmente perigosos, enquanto animais de companhia, pois sendo certo que, no seu artigo 11º, estabelece que “O detentor de animal perigoso ou potencialmente perigoso fica obrigado ao dever especial de o vigiar, de forma a evitar que este ponha em risco a vida ou a integridade física de outras pessoas e de outros animais”, a verdade é que, no caso, se desconhece a espécie e características dos cães de modo a poderem ser assim classificados e sujeitos às prescrições de tal diploma, sabendo-se apenas que eles eram de “porte médio”.

É por estar em causa a responsabilidade civil que a obrigação da ré tem de ser aferida nos termos gerais e, assim, à luz dos artºs 493º, nº 1, e 502º, do Código Civil, o primeiro dos quais estabelece que quem tiver assumido o encargo da vigilância de quaisquer animais, responde pelos danos que estes causarem, salvo se se provar que nenhuma culpa houve da parte do vigilante ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que houvesse culpa sua; e, o segundo, que quem utilizar no seu próprio interesse quaisquer animais responde pelos danos que eles causarem desde que estes resultem do perigo especial que envolve a sua utilização.

Trata-se ali (artº493º) de uma presunção legal de culpa, implicante da inversão do ónus da prova, que responsabiliza desde logo o dono do animal e depois mesmo quem apenas for encarregado da sua vigilância, pois, como se diz na fundamentação do Acórdão da Relação de Coimbra, de 11-07-2012 [10], “O dever de vigilância decorre natural e logicamente do poder de facto sobre o animal, não podendo o dono do animal subtrair-se a esse dever e às consequências da violação do mesmo, como se conclui no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 23.04.2009 Proferido no Processo n.º 7/09.2YFLSB, acessível em http://www.dgsi.pt : «Como é evidente, um proprietário de um animal, para além de poder ser considerado como utilizador do mesmo no seu próprio interesse, pode também ser considerado como encarregado de sua vigilância. Aliás, será esse o caso normal. Na verdade, um proprietário que utiliza um animal no seu próprio interesse, naturalmente assume o encargo de o vigiar…».

Trata-se aqui (artº 502º) de responsabilidade objectiva ou pelo risco, aplicável “aos que utilizam os animais no seu próprio interesse”, sendo quanto a estes utilizadores que “tem inteiro cabimento a ideia de risco: quem utiliza em seu proveito animais, que, como seres irracionais, são quase sempre uma fonte de perigos, deve suportar as consequências do risco especial que acarreta a sua utilização”, fundamento este de responsabilidade que “normalmente atinge o proprietário ou aqueles que, como o usufrutuário ou o possuidor, têm um direito real de gozo sobre o animal”. [11]

Assim, como sintetiza o já referido acórdão de Coimbra: “1. O dever de vigilância previsto no n.º 1 do artigo 493.º do Código Civil decorre do poder de facto sobre o animal, não tendo necessariamente que recair sobre o dono, podendo incumbir ao comodatário, ao depositário, ou o tratador, em suma, àquele à guarda de quem o animal se encontrava no momento do acidente. 2. Provando-se que um bovino que atravessou a estrada e deu causa à ocorrência de um acidente pertencia à ré, não tendo esta alegado nem provado que o mesmo se encontrava à guarda de terceiro, sobre ela recai o referido dever de vigilância e, consequentemente, a presunção de culpa decorrente do normativo citado. 3. O artigo 493.º do Código Civil reporta-se à responsabilidade do vigilante do animal e funda-se na culpa; a previsão do 502.º reporta-se à responsabilidade decorrente da utilização perigosa de animais e alicerça-se no risco que se cria em relação a terceiros.” [12]

Tal como se desconhece a espécie dos animais em causa, ignora-se a razão por que a ré sua dona os possuía, a função que lhes destinava ou a utilização que lhes dava. Sabe-se, apenas, que eles eram sua “pertença” e saíram do portão de acesso à sua residência (ponto 4) onde os detinha (ponto 10), o que, no contexto dos autos, significa que deles era dona e, portanto, possuidora.

Não estando a “utilizá-los” nem, portanto, podendo dizer-se que foi em resultado de um “perigo especial” envolvente de tal utilização [13] que eles atravessaram a via, correram no encalce da mota, surpreenderam o autor e se meteram à frente e, assim, o atrapalharam, obrigando-o a tentar desviar-se, a dar uma guinada e a perder o controlo do motociclo que derrapou, caindo e indo de rastos embater no automóvel OI parado no lado contrário, mas não tendo ela provado que nenhuma culpa houve da sua parte por eles se terem soltado, abandonado as instalações onde os guardava, transposto o portão e invadido a rodovia, nem que os danos verificados na pessoa e património do autor se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua (relevância negativa de uma causa virtual), é óbvio que responde pelos danos apurados. [14]

E só ela responde por todos eles. [15]

Não releva que, pelo facto de a condutora do OI ter, entretanto, avistado os cães e parado, o autor assim devesse ter procedido igualmente uma vez que também os viu e a dirigirem-se no encalce do seu motociclo e que, por não ter feito como aquela fez, deva ele ser censurado. A decisão da referida condutora nem sequer foi impulsionada pela presciência de perigo adveniente dos cães que, segundo ela, no primeiro momento e após saírem do portão, seguiram adiante. Foi-o pela falta de visibilidade para a sua frente por causa da carrinha estacionada na curva, ainda que potenciada, depois, essa medida preventiva pela percepção de que, entretanto, eles começaram a atravessar à sua frente.

O autor, embora avistando-os, estava a descrever a curva, defrontou-se com o veículo mal-estacionado na sua hemi-faixa, curou de o contornar dirigindo o seu motociclo mais para o meio da via, foi aí surpreendido, tentou desviar-se (como é razoável que fizesse até com receio de ser mordido), guinando, atrapalhou-se face ao perceptível assédio, perdeu o controlo, caiu.

Não cremos que, contra o que defende a ré, nas suas contra-alegações, ao autor se impusesse “um especial dever de cuidado e zelo pelo facto de avistar cães que poderiam vir em direcção a si”. É que, mesmo avistando-os, ele estava no exercício da liberdade de circulação por um lado, e a tratar de ultrapassar a carrinha que o estorva e de evitar males maiores para ele e para os utentes da via, por outro.

Não tem o “especial dever” de parar, de fugir, de se esconder dos canídeos à solta.

Nem sequer, ao contrário do que se contra-alega, está demonstrado que o autor “conhecia bem o local e sabia que das várias vezes em que lá passava havia cães soltos que às vezes iam ter na sua direcção” e que, por isso, “deveria ter adoptado uma postura de especial cuidado e prudência”, parar antecipadamente como fez a testemunha M. D. e “certificar-se de que não embateria no carro” dela. Com este veículo não tinha ele que se preocupar, pois passava bem, “na boa”. A exigir-se aquela conduta, legitimar-se-ia a vadiagem dos cães pelas artérias públicas, eximir-se-iam os donos de qualquer responsabilidade e teriam os cidadãos utentes da via de, no limite, se abster de por ali passar, de abdicar do seu direito, para não se sujeitar ao ataque dos cães e para evitar perturbá-los … .

É que “o especial cuidado e prudência” impõe-se à dona dos cães. E impõe-se de tal maneira que se presume legalmente a sua culpa e só não responde se se provar que “nenhuma” teve. [16]

Não parece que alguma censura mereça a conduta do autor e a sua reacção, muito menos que de todo se exclua a culpa da dona dos cães. [17]

A esta, portanto, deve imputar-se exclusivamente a causa e a culpa do acidente e, assim, a responsabilidade integral por todos os danos dele resultantes – e não apenas em parte e na proporção de 25% como, incompreensivelmente, se entendeu na sentença recorrida.

Daí que procede, nesta parte, o recurso do autor.

Improcedendo, consequentemente, in totum, o subordinado da ré, que, como se viu, se limitou a pedir a revogação da sentença e sua absolvição total do pedido em consequência da modificação da matéria de facto que impugnou relativa à culpa mas que não logrou.

Assim resolvidas desta assentada as questões que elencámos em a), b) e e), importa prosseguir com a apreciação das das alíneas c) e d).

Montantes indemnizatórios

Manifesta o autor a pretensão de que o “dano patrimonial pela afectação da capacidade de ganho” seja elevado para 7.000,00€.

Invocando e reproduzindo as considerações que normalmente são tecidas na Jurisprudência e na Doutrina em torno da natureza e dos objectivos indemnizatórios de tais danos e dos critérios usualmente referidos a tal propósito, como o da equidade, e destacando os factos provados que, no caso, entende deverem relevar para o efeito, sustenta ele, apenas, que “discorda” do valor fixado e que “afigura-se mais acertada a fixação do montante indemnizatório” no que indica.

Na sentença, ponderou-se:

“Relativamente aos restantes danos patrimoniais, neste caso, a perícia fixou os danos permanentes na integridade físico-psíquica em 3 pontos, não chegando o Autor a sofrer nenhuma perda na capacidade de ganho, não havendo sequelas que impliquem a repercussões no efetivo exercício da sua atividade profissional. [18]
Não obstante não existir prejuízo efetivo patrimonial, há uma lesão da pessoa que não existia antes do acidente.

Exigindo-se a reparação integral dos danos, há que reparar este chamado “dano biológico”, sendo valorizáveis, entre os diversos parâmetros de dano, os seguintes:
- défice funcional temporário total de 8 dias e parcial de 156 dias;
-o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica (correspondente à afetação definitiva da integridade física e/ou psíquica da pessoa, com repercussão nas atividades da vida diária, incluindo as familiares, sociais, de lazer e desportivas), na qual, tendo em conta as sequelas se fixou em 3 pontos, atendendo à limitação funcional e dor, por ligeira rigidez do ombro, com mobilidade conservada e simétrica;
- as sequelas não afetam o Autor em termos de autonomia e independência.

Ora, a afetação da capacidade para o trabalho constitui um dano patrimonial que importa reparar, independentemente de se traduzir ou não em perda efetiva ou imediata de salários e é devida mesmo que o lesado não exerça profissão remunerada, e mesmo que não acarrete efetiva perda ou diminuição da sua retribuição (Ac. RC de 08/04/2008, p. 5/1999.C1, www.dgsi.pt).
Por inexistir um critério “matemático” para o efeito, cada vez mais a jurisprudência tem evoluído para utilizar o método das tabelas financeiras apenas como ponto de partida, mitigado pelo prudente arbítrio do julgador.
Neste cálculo do referido capital, à luz de um juízo de equidade, devem levar-se em conta, além de outros elementos, a idade do lesado à data do acidente, e o grau de incapacidade sofrido em consequência do acidente, sendo ainda certo que há que ter em atenção que findo o período de vida ativa do lesado, não é possível ficcionar que desapareçam instantaneamente todas as necessidades decorrentes da sua vida física, sendo ainda de considerar a respetiva esperança média de vida (Acórdão STJ de 05-11-2009, p. 381-2002.S1, www.dgsi.pt).
Neste caso, estamos perante uma incapacidade de 3%, que não afeta o Autor em termos de autonomia e independência, mas que é causa de esforço acrescido, não existindo factos que consubstanciem repercussão direta sobre a capacidade de ganho, e considerando a idade do Autor, que se encontra perto da reforma, entendemos ser adequado fixar o montante de tal indemnização em € 3.500 (três mil e quinhentos Euros).

Além da discordância e do que se lhe afigura, não refere o recorrente, em termos salientes, qualquer erro de julgamento no percurso empreendido pelo Tribunal a quo para chegar àquele valor e à decisão quanto a ele proferida.

Nenhuma conexão estabelece entre o caso ou alguma das suas dimensões concretas e as abstractas premissas brandidas que aponte para qualquer desconformidade.

Não diz que algum critério ou factor tenha sido mal ponderado ou não o tivesse sido e devesse sê-lo ou corrigir-se. Nem que algum facto, princípio ou regra tenham sido desconsiderados ou indevidamente aplicados e devam ser atendidos e reflectidos no apuramento do montante em causa.

Sequer aponta qualquer erro de cálculo.

Não se invocam casos análogos relevantes que não tenham sido mas, em sua perspectiva, devam ser utilizados como bitola.

Bem se pode dizer, pois, que o seu apelo se reconduz a não mais que a manifestação de um desejo, porém sem qualquer suporte em fundamentos que, promovendo a reapreciação do decidido, convençam existir qualquer erro e justifiquem a alteração.

Conquanto se esteja no âmbito de matéria de direito e na indagação, interpretação e aplicação desta o juiz não esteja sujeito às alegações das partes (artº 5º, nº 3, CPC), o certo é que, tal como o nosso sistema de recursos está arquitectado, a tarefa de reapreciação e modificação do decidido pelo Tribunal ad quem pressupõe que, mesmo àquele nível, o recorrente indique dispositivamente objectivos e específicos fundamentos da recorribilidade e que obrigatoriamente alegue sobre eles pondo a descoberto os erros que devam ser corrigidos (artº 637º, nº 2).

Por tal não ter feito, nenhuma alteração tem lugar.
*
No capítulo dos danos não patrimoniais, que o Tribunal a quo fixou no montante de 4.000,00€, pretende o recorrente que este seja alterado para quantia não inferior a 10.000,00€.

Na sentença justificou-se assim a determinação daquele valor:

“Já relativamente aos danos não patrimoniais e sem qualquer duplicação com os danos já apurados, atendendo aos factos provados, como as dores, incapacidade parcial e permanente, dano estético, e ainda à culpa no acidente e à idade do Autor, na ponderação com casos de indemnizações atribuídas em situações de maior e menor gravidade, sendo que neste caso, não implicou qualquer internamento hospitalar, nem cirurgia, mas um período de 8 dias de imobilidade total e as sequelas menores, entendemos que o valor atualmente adequado para ressarcir os danos sofridos ascende a €4.000 (quatro mil euros).”

O teor e sentido das alegações e conclusões produzidas pelo recorrente é semelhante às apresentadas a propósito dos danos patrimoniais. Merecedor de idêntico juízo.

Para além de asserções teóricas e genéricas, nada mais, a respeito do caso, refere, a não ser que aquele valor “é manifestamente exíguo e desproporcional”. Bem assim que “deve ser alterado”. Não explica porquê. Não mostra como.

Diferentemente, porém, há um aspecto jurídico suscitado no contexto do recurso e especificamente quanto à culpa que, nesta sede da determinação do quantum, também tem de considerar-se reflectido e questionado, ainda que de modo implícito.

Com efeito, como se lê na parte da sentença acabada de transcrever, pesou-se a culpa (do recorrente, claro) como factor de evidente rebaixamento do valor correspondente a tal dano (não patrimonial).

Essa culpa foi proficientemente questionada no recurso. Em resultado disso e como se viu, embora o Tribunal recorrido também a atribuísse ao lesado e a medisse até em 75%, entendemos que nenhuma lhe poderá ser imputada.

Por outro lado, ao dividir-se a culpa pelo autor e pela ré como concorrentes e ao repercuti-la, de novo, na determinação da indemnização pelos danos não patrimoniais, ela foi duplamente utilizada para desvalorizar a obrigação daquela.

Ora, só devendo a culpa do lesado interferir nos termos do artº 570º (na medida em que ela concorra para a produção ou agravamento dos danos) e a do lesante nos termos do artº 494º, ambos do CC, nenhuma tendo tido aquele, como defendeu no recurso, aí sim há que forçosamente retirar do valor arbitrado o peso que em 1ª instância aquela teve nele.

Desconhecendo-se exactamente a medida respectiva mas procurando, em cotejo com todas os demais princípios, regras, critérios e factores, à luz da factualidade recolhida e dentro dos mesmos padrões que nortearam o Mº Juiz recorrido, restabelecer o valor considerável como ajustado sem ela (a dita culpa), concluímos, testando-o com a prática jurisprudencial facultada por casos análogos [19], que seria justo o valor de 6.000,00€, na data da sentença, posto que aí havia sido fixado “actualmente”, como nela consta.

Acolhendo-o, só nesta medida e por estes fundamentos procederá, pois, a questão.
*

Sendo assim, não vindo questionados o valor relativo a despesas (1.304,23€) nem o respeitante a perdas salariais (728,11€), mantendo-se inalterado o atribuído a título de dano biológico (3.500,00€) e aumentando-se o devido por danos não patrimoniais (6.000,00€), alcança-se o valor indemnizatório total de 11.532,34€.
*
Do mesmo passo, relativamente ao pedido de reembolso deduzido pela Segurança Social que foi julgado totalmente procedente e apenas repartido também em função da atribuição dividida de culpas, importa, já que nada mais quanto aos respectivos fundamentos, de facto e de direito, especificamente se questionou, repô-lo na sua totalidade, em consequência do ora decidido quanto àquele pressuposto [20]: 1.351,89€.
*
O regime de juros, também inquestionado, sobre a indemnização e sobre o reembolso, manter-se-á inalterado: desde a citação e a notificação respectivamente, salvo quanto aos danos não patrimoniais, únicos que, como se notou, foram fixados “actualmente”, por referência à data da sentença recorrida – 15-06-2021.

Assim se respeita, como é devido, por inexistência de razão fundada de divergência, o AUJ, do STJ, nº 4/02: “Sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do nº 2 do artº 566º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artºs 805º, nº 3 (interpretado restritivamente) e 806º, nº 1, também do Código Civil, a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação”. [21]
*
V. DECISÃO

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes desta Relação em:

A) Julgar parcialmente procedente o recurso do autor D. C. e, em consequência, dando parcial provimento à sua apelação, alteram a decisão recorrida, nos seguintes termos:

Julga-se a ação parcialmente procedente, por provada, e, em consequência, condena-se a Ré M. F. a pagar àquele autor D. C. a quantia total de 11.532,34€ (onze mil quinhentos e trinta e dois euros e trinta e quatro cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa legal, contando-se os mesmos desde a data da citação e até efetivo e integral pagamento, salvo quanto à quantia de 6.000,00€ (seis mil euros) que o será desde a data da sentença (15-07-2021).

Julga-se o pedido formulado pelo Interveniente INSTITUTO DE SEGURANÇA SOCIAL, I.P., totalmente procedente e, em consequência, condena-se a Ré M. F. a pagar-lhe, a título de reembolso de subsídio de doença, a quantia de 1.351,89€ (mil trezentos e cinquenta e um euros e oitenta e nove cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a notificação até efetivo e integral pagamento.

Do peticionado, absolve-se totalmente a 1.ª Ré “X - Companhia de Seguros, SA” e, no mais, a referida 2ª ré M. F..
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B) Julgar improcedente o recurso subordinado da ré M. F. e, em consequência, negar provimento à sua apelação.
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Custas da acção pelo Autor e 2.ª Ré M. F., fixando-se em 75% a responsabilidade dele, pelo seu decaimento proporcional, e em 25% a dela.

Custas relativas ao pedido de reembolso da Segurança Social pela dita 2ª Ré, na totalidade.
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Custas da apelação principal pelo autor e pela ré, na proporção de 65% por ele e de 35% por ela – (artºs 527º, nºs 1 e 2, e 529º, do novo CPC, e 1º, nºs 1 e 2, 3º, nº 1, 6º, nº 2, referido à Tabela anexa I-B, 7º, nº 2, 12º, nº 2, 13º, nº 1 e 16º, do RCP).

Custas do recurso subordinado pela ré M. F. (por decaimento total).
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Notifique.
Guimarães, 03 de Fevereiro 2022

Este Acórdão vai assinado digitalmente no Citius, pelos Juízes-Desembargadores:

Relator: José Fernando Cardoso Amaral

Adjuntos: Eduardo José Oliveira Azevedo
Maria João Marques Pinto de Matos



1. Por opção do relator, o texto próprio não segue as regras do novo acordo ortográfico.
2. Acto praticado extemporaneamente mas validado pelo legal pagamento da respectiva multa.
3. Caso não seja arguida a nulidade com base em tal omissão de pronúncia e se não trate de matéria de conhecimento oficioso.
4. Isto mesmo foi lembrado no recentíssimo Acórdão desta Relação de 07-10-2021, proferido no processo nº 886/19.5T8BRG.G1.
5. Não sendo esse o entendimento que predomina nas Relações, como frequentemente temos observado e em muitos casos mais complexos seguido, mas o defendido pelo nosso STJ ante a por este reconhecida “impotência para obviar a um tão generalizado e reiterado afastamento dos padrões legalmente estabelecidos” de modo a justamente colocar acima das eventuais consequências preclusivas derivadas da ineficiência das partes no cumprimento das regras de natureza formal “os valores da justiça, da celeridade e da eficácia” – cfr. Acórdãos de 18-02-2021, processo nº 18625/18.6T8PRT.P1.S1, de 28-10-2021, processo nº 8975/17.4TSTB.E1.S1, e de 16-12-2021, processo nº 513/19.0T8VPA.G1.S1.
6. Como se, em linguagem simples mas rigorosa que deve ser a dos factos, os cães “circulem” e (em geral) conheçam e se determinem pela regra de que a deslocação na via pública deve fazer-se pela berma (onde ela exista, que não era o caso).
7. Verbo cuja sugestiva pacatez, como é óbvio, não se coaduna com a normal conduta objectiva daquela espécie de animais, em circunstâncias similares, nem com o seu instinto naturalmente impulsivo, aguerrido e ameaçador, do que em geral qualquer pessoa tem consciência.
8. A expressão foi utilizada, isso sim, por duas vezes, pela Mandatária da 2ª ré, sugerindo que ela resumia ou traduzia a descrição da testemunha M. D., mas por esta também prontamente refutada e corrigida para a que manteve firme e claramente.
9. Parafraseamos, com o devido respeito, a expressão da própria quando, a dada altura do depoimento, desabafou, quanto a um outro aspecto sobre que instava a testemunha, “não consigo mudar a sua opinião!”, o que bem revela a firmeza e certeza da testemunha.
10. Processo nº 281/10.1TBCV.C1.
11. Pires de Lima – Antunes Varela, CC Anotado, I, 4ª, páginas 495, 512 e 513.
12. Processo nº 281/10.1TBCV.C1.
13. Cfr. Acórdão do STJ, de 14-11-2013, processo nº 478/05.6TBMGL.C1.S1: “1. No tocante aos danos provocados por animais pode distinguir-se a diversidade de situações previstas nos arts 493.º (presunção de culpa do que tiver assumido o encargo de vigilância de quaisquer animais, estando-se, então, em sede de responsabilidade delitual) e 502.º, ambos do CC (responsabilidade com base no risco daquele que, no seu próprio interesse, utilizar quaisquer animais desde que os danos resultem do perigo especial que envolve a sua utilização. 2. O proprietário que tiver o poder de facto sobre o animal, a ele lhe incumbindo a respectiva vigilância, pode incorrer em responsabilidade delitual se caso disso for e se não se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam ainda verificado mesmo que não houvesse culpa sua. 3. O art. 493.º do CC tem em vista os animais que, por sua natureza, estão sujeitos à guarda e vigilância dos respectivos donos (ou de outrem sobre quem recaia tal obrigação). Presumindo-se que o seu guarda tem culpa no facto causador do dano, dado ter o animal sob a sua custódia, pelo que deve tomar as medidas necessárias para evitar aquele prejuízo. 4. O art. 502.º tem em vista aquele que utiliza os animais no seu próprio interesse, sendo, ainda necessário que o dano proceda do perigo especial que envolve a sua utilização. Assentando tal responsabilidade no risco que se cria, em relação a terceiro, com a utilização perigosa dos animais. 5. Podendo qualquer uma destas responsabilidades não excluir a outra.”
14. Cfr. Acórdão da Relação de Coimbra, de 13-04-2010, processo nº 643/07.1TBSCD.C2, que parece inclinar-se, em situação algo aparentada, mais para a aplicação do regime do artº 502º, do que do artº 493º, nº 1, CC, apesar de reconhecer a possibilidade de coexistência de ambos.
15. Cfr. Acórdão do STJ, de 13-09-2012, processo nº 1070/08.9TBGRD.C1.S1: “I O proprietário de um animal doméstico, vg de raça canina, tem o encargo de o vigiar sob pena de responder pelos danos que ele causar, salvo se provar que não houve culpa da sua parte, artigo 493º, nº1 do CCivil. II Impendia sobre o Réu, proprietário do animal causador do acidente que se encontrava à solta na via pública, a ilisão da presunção de culpa ali estatuída, porquanto na sua efectiva detenção assumiu o encargo da vigilância daquele ser, por sua natureza, irracional, sobre si recaindo o dever de tomar todas as providências indispensáveis a evitar qualquer possível lesão. III Diferente é a responsabilidade decorrente do artigo 502º do CCivil onde se dispõe que «Quem no seu próprio interesse utilizar quaisquer animais responde pelos danos que eles causarem, desde que os danos resultem do processo especial que envolve a sua utilização.». IV Do confronto entre estes dois normativos, podemos concluir que na abrangência do primeiro se situam as hipóteses dos animais domésticos, os quais por sua natureza estão sujeitos à guarda e/ou vigilância dos respectivos donos ou de outrem sobre quem recaia essa obrigação específica, enquanto este segundo preceito legal tem em vista aqueles que utilizam os animais no seu próprio interesse. V No primeiro caso temos uma situação de culpa presumida e no segundo vigora a responsabilidade pelo risco, sempre que os danos estejam em conexão com os perigos especiais que sejam inerentes à utilização do animal, o que não ocorreu no caso sujeito.”.
16. É de todo inconsequente e mesmo incompreensível a contra-alegação da ré de que “os danos ter-se-iam igualmente produzido, com ou sem canídeos” com a explicação de que “a probabilidade do Recorrente ter colidido com a viatura da testemunha M. D., não deixa de ser muito grande, desde logo pelo facto do Recorrente se mostrar a circular na faixa contrária à sua e a contornar o veículo que se encontrava estacionado na sua faixa de rodagem”…!
17. Não se percebe a contra-alegação da ré quando refere que não aceita que os cães são sua propriedade. Na verdade, tal pertença está provada no ponto 4. Sendo certo que globalmente o impugnou, apenas argumentou quanto ao segmento dele respeitante ao trajecto dos cães e não quanto ao domínio destes. Não vale, pois, face aos princípios básicos do processo, estruturar deste modo alegações recursivas!
18. Com esta afirmação parece não ter o Tribunal a quo levado em linha de conta que, conforme facto provado 18, as sequelas, apesar de não obstarem ao exercício da actividade profissional, “implicam esforços suplementares”. Verifica-se, porém, que no último parágrafo citado, esta circunstância foi realmente pesada.
19. Cfr. Acórdão da Relação de Guimarães, de 21-10-2021, processo 5405/19.0T8GMR.G1.
20. Que, nos termos do artº 634º, CPC, e do artº 4º, do Decreto-Lei nº 59/89, de 22 de Fevereiro, aproveita à Segurança Social.
21. Sobre isso, leia-se o elucidativo Acórdão da Relação do Porto, de 27-09-2018, de cujo sumário consta: “I - O Ac. UJ nº 4/02 veio fixar a seguinte jurisprudência […]. II - O que se conclui daquele Ac. UJ é que não há que distinguir se os danos são de natureza patrimonial ou não patrimonial, de acordo com a actual redacção do nº 3 do artº 805º, incidindo os juros sobre todos eles, na mesma medida. III - Porém, os juros são devidos desde a data da decisão que os atribui, se o valor do capital tiver sido arbitrado nessa data de forma actualizada; e são devidos desde a data da citação se o valor do capital arbitrado não se reportar à data da decisão. IV - Ou seja, se a indemnização já foi fixada em valor actualizado à data da sentença, não podem ser arbitrados juros desde a data da citação que é anterior, porque tal se traduziria num enriquecimento ilícito do lesado. V - Se o juiz arbitra juros apenas a partir da data da decisão em relação à indemnização por danos não patrimoniais, tem não só de dizer expressamente como de demonstrar, na sentença, que fixou a indemnização de forma actualizada. Só assim pode aplicar a doutrina do Ac. UJ acima citado. Não se pode presumir que os danos não patrimoniais fixados na sentença são actualizados[13]. VI - Assim, se o juiz não explica, nem demonstra, que tenha fixado a indemnização por danos não patrimoniais de forma actualizada, são devidos juros desde a citação, por aplicação das disposições conjugadas dos citados artºs 566º, nº 2 e 805º, nº 3 do CC.”.