Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
283/08.8TBCHV-B.G1
Relator: JORGE SANTOS
Descritores: ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
INCIDENTE DA INSTÂNCIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/23/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECLAMAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
- Nos termos do art. 644º, nº 1, al. a) do CPC, é admissível recurso de apelação da decisão proferida em 1ª instância, que ponha termo à causa ou a procedimento cautelar ou incidente processado autonomamente;

- Assim, de harmonia com tal preceito legal, a apelação autónoma, na parte relativa aos incidentes, apenas abrange os processados autonomamente, ou seja, somente os incidentes que a lei processual civil expressamente prevê e regula de forma autónoma relativamente à acção principal, nos art. 296º a 361º do CPC.

- Não se inserindo a decisão recorrida (que pôs termo ao incidente de reclamação das custas) em nenhum dos mencionados incidentes de instância, o respectivo recurso não se enquadra na previsão do referido art. 644º, nº 1, al. a), mas sim no nº 2, al. g) de tal artigo, sendo, por isso, o respectivo prazo interposição de 15 dias, nos termos do art. 638º, nº 1, do CPC.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I – RELATÓRIO

F. R. e mulher, I. A., expropriados nos presentes autos, notificados do douto despacho de 24/10/2019, que não admitiu o recurso interposto em 30/09/2019, por ter considerado o mesmo interposto de forma extemporânea, vieram deduzir reclamação ao mesmo.

Notificado que foi do teor da reclamação apresentada, a Reclamada não ofereceu resposta.

Pelo presente tribunal foi proferida decisão singular que indeferiu a reclamação apresentada, e, em consequência, não admitiu o recurso.

Inconformada com tal decisão, vieram os Recorrentes requerer que sobre a matéria recaia um acórdão, nos termos do art. 652º, nº 3, do Cód. Proc. Civil, alegando, em síntese que:

- No douto aresto proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, em 12-12-2017, no processo n.º 1638/08.3TBACB-C.C1 (disponível in DGSI), está sumariado que:

“I - O incidente da reclamação da conta deve ser entendido, face à sua tramitação própria relativamente ao processado que conduz à decisão final da ação, como um “incidente processado autonomamente”, para efeitos do disposto no 644, n°1, al. a) parte final do CPC.
(…)
V - Ao recurso de decisão da 1ª instância que ponha termo a “incidente processado autonomamente”, ainda que tal decisão seja proferida depois daquela que colocou termo à causa principal, aplica-se o prazo de interposição de 30 dias, “ex vi” do nº 1, a) do artº 644º e da 1ª parte do nº 1 do artº 638º, ambos do NCPC, não havendo que chamar à colação o disposto na nº 2, g) desse artº 644º, nem, consequentemente, o prazo de 15 dias previsto na parte final do citado artº 638º, nº 1.”

- Reportada à mesma questão fundamental de direito e verificando-se, no caso concreto, um núcleo factual similar, a decisão singular foi em sentido diametralmente oposto ao supra identificado Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra.

Notificada a parte contrária, nada veio dizer.

Colhidos os vitos legais, cumpre apreciar e decidir

II – OBJECTO DO RECURSO

A – Atento o teor da reclamação do recurso apresentado e da reclamação agora deduzida, impõe-se antes de mais, conhecer das questões colocadas pelos recorrentes, quanto à questão da admissibilidade do recurso.

IV - Fundamentação de facto:

Com interesse para a questão a decidir, há a considerar factualidade constante do relatório supra e ainda a seguinte:

- Em 24/10./2019, foi proferido despacho nestes autos que, pronunciando-se sobre a admissibilidade do recurso interposto pelos reclamantes, tem o seguinte teor:

- “A fls. 1529 e ss., por requerimento de 30/09/2019 vieram os expropriados apresentar recurso do despacho de fls. 1523 e ss. que lhes indeferiu as rectificações à nota discriminativa e justificativa de custas de parte apresentadas por aqueles com as refªs 1996815 e 1997744.
Em contra-alegações veio a entidade expropriante pronunciar-se, além do mais, no sentido da inadmissibilidade do recurso por o mesmo ser extemporâneo.
Vejamos então se o recurso é de admitir.
Referem os expropriados que interpõem o seu recurso ao abrigo do disposto nos artigos 644º nº 1 alínea a) parte final do CPC, por se tratar de “incidente processado autonomamente”.

Por sua vez, estipula o art. 644º do CPC que:

“1. Cabe recurso de apelação: a) da decisão, proferida em 1ª instância, que ponha termo à causa ou a procedimento cautelar ou incidente processado autonomamente. (…)
2. Cabe ainda recurso de apelação das seguintes decisões do tribunal de 1ª instância:
(…) Al. g): de decisão proferida depois da decisão final”.
E prevê o art. 638º, nº 1 do CPC que “o prazo para a interposição do recurso é de 30 dias e conta-se a partir da notificação da decisão, reduzindo-se para 15 dias nos processos urgentes e nos casos previstos no nº 2 do artigo 644º e no art. 677º”.

Ora, importa determinar se o presente recurso de apelação está sujeito ao prazo de 30 dias, por constituir um “incidente processado autonomamente” (art. 644º, nº 1, al. a) do CPC) ou, ao invés, se deve ter o prazo de 15 dias por consubstanciar uma “decisão proferida depois da decisão final” (art. 644º, nº 2, al. g) do CPC).
Consideram-se incidentes processados autonomamente aqueles que “impliquem trâmites específicos que não se confundem com os da acção em que estão integrados (v.g. habilitação, verificação do valor da causa, intervenção de terceiros”. (GPS, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, p. 777).
Ou como define o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 23.11.2017, proc. 258/05.9T8TMC-A, relator Alcides Rodrigues, disponível em www.dgsi.pt “os incidentes a que a lei considera como dispondo de processado autónomo (art. 644º, n.º 1, al. a) do CPC) são apenas aqueles a que atribui tal processado independentemente do que é próprio das acções em que se possam suscitar, encontrando-se regulados nos arts. 296º a 361º: verificação do valor da causa, intervenção de terceiros, habilitação, liquidação”.
Ora, a reclamação da conta de custas é um incidente que corre nos próprios autos, que faz parte da tramitação normal da causa e que ocorre após a sua decisão.
Na verdade, não se está perante um incidente que tem um processado próprio e específico, mas sim perante um incidente que se insere na tramitação normal e típica da acção.
Deste modo, este incidente, que ocorre após a decisão da causa, deve ser inserido na al. g) do nº 2 do art. 644º do CPC.
Por sua vez, a al. a) do nº 1 do art. 644º deve englobar os incidentes que ocorrem autónoma e independentemente dos trâmites processuais da causa, o que pressupõe que não tenha sido proferida decisão final; o que no caso não se verifica.

Assim, o prazo de recurso é de 15 dias, tendo-se iniciado em 02.09.2019 e findado em 16.09.2019. Considerando que os recorrentes instauraram o recurso no dia 30.09.2019, fizeram-no fora do prazo.
Deste modo, tendo em conta o disposto nos artigos 638º nº 1, 641º nº 2 e 644º nº 2 alínea g), indefiro o requerimento de interposição de recurso de fls. 1529 e ss. por extemporâneo.”

A decisão cujo recurso não foi admitido tem o seguinte teor:

- “Das rectificações apresentadas pelos expropriados (refªs 1996815 e 1997744):

Foi elaborada a competente conta de custas a cargo da Expropriante e dos Expropriados (fls. 1490 e 1493).
A notificação da aludida conta de custas aos intervenientes processuais, cuja data de elaboração é de 13 de Maio de 2019, presume-se feita em 16 de Maio de 2019 (artigo 248.º do CPC).
Ora, dispõe o artigo 25.º, n.º1 do Regulamento das Custas Processuais que «Até 10 dias após o trânsito em julgado ou após a notificação de que foi obtida a totalidade do pagamento ou do produto da penhora, consoante os casos, as partes que tenham direito a custas de parte remetem para o tribunal, para a parte vencida e para o agente de execução, quando aplicável, a respetiva nota discriminativa e justificativa, sem prejuízo de esta poder vir a ser retificada para todos os efeitos legais até 10 dias após a notificação da conta de custas».

Significa isto que no dia 12 de Junho de 2019, data em que deu entrada o requerimento identificado pela referência CITIUS n.º 1996815, há muito se tinha esgotado o prazo previsto na lei para a rectificação a que alude a norma legal supra citada.
É, portanto, manifestamente extemporâneo o requerimento ora formulado pelos Expropriados que, por esse motivo, se indefere, ficando por isso prejudicada a apreciação da matéria invocada no exercício do contraditório pela Expropriante.
Custas do incidente pelos expropriados, as quais se fixam em 1UC (artigos 527 nºs 1 e 2 e 539º nº 1 do CPC e artigo 7º nºs 4 e 7 do RCP, por referência à tabela II anexa).
Notifique.”

IV - Fundamentação de direito.

Como é consabido, a interposição de recurso constitui o principal instrumento de impugnação de decisões judiciais (cfr. art. 627º do C.P.C.), sendo o seu objectivo o de provocar a intervenção de um tribunal de categoria hierarquicamente superior, com o objectivo de obter a sua anulação, por erro de procedimento ou de julgamento, ou a sua substituição por outra (1).

A admissibilidade dos recursos constitui um dos reflexos do direito constitucionalmente consagrado de acesso aos tribunais, pois que a reapreciação da decisão por um órgão jurisdicional hierarquicamente superior confere maiores garantias de acerto na solução do conflito que o processo tem por finalidade alcançar (2).

Mas, o direito de acesso aos tribunais não integra, necessariamente, o direito ao recurso ou o duplo grau de jurisdição, podendo o legislador ordinário, ampliar ou restringir os recursos civis, designadamente, através do estabelecimento de pressupostos de admissibilidade (3), em que a possibilidade de interposição de um determinado recurso fica dependente da respectiva verificação.

Como refere Cardona Ferreira, “Em termos de viabilidade de recursos, há duas hipóteses: ou se admite recurso de todas e quaisquer decisões em todas e quaisquer causas – o que seria o ideal, mas é irrealizável, pelos impasses que criaria, nos tribunais sopriores, impedindo-os, afinal de decidir, atempadamente, o que justificaria realmente, o recurso; Ou existem limites às possibilidades de recurso e todos os limites são discutíveis. (4)

E é neste contexto, e para solucionar esta questão, que surge o princípio da limitação dos recursos em função do valor da causa e as excepções que a lei introduz a esse princípio, previsto no artigo 629.º, nº1, do C.P.C.

Por outro lado, as decisões proferidas em 1ª instância seguem regimes diversos de oportunidade recursória em sede de apelação. Esses regimes podem ser de modo simplificado, divididos entre apelação imediata e apelação diferida.

Assim, nos termos do disposto no art. 644º do C.P.C., beneficiam de apelação imediata as decisões finais e as decisões interlocutórias procedimentalmente significativas conforme, respectivamente, os nºs 1 e 2 do referido artigo (cfr. Rui Pinto, C.P.C. Anot., Vol. II, pag. 297 e ss).

Sujeitam-se a apelação diferida todas as demais decisões interlocutórias, atento o disposto no nº3 do citado artigo.

Deste modo, o nosso regime processual civil prevê a possibilidade de algumas decisões interlocutórias merecerem recurso de apelação imediata e autónomo (em excepção à regra do nº3 do art. 644º do C.P.C.), as quais se encontram elencadas de modo típico e descriminado no nº2 do art. 644º do C.P.C., à semelhança das decisões finais.

Do elenco de tais decisões, prevê-se que beneficiam de apelação imediata, entre outras, a decisão proferida depois da decisão final (cfr al. g) do nº2 do referido art. 644º do C.P.C.).

Tecidos estes considerandos e passemos agora à análise da concreta situação.

O despacho reclamado sustenta que a reclamação da conta de custas é um incidente que corre nos próprios autos, que faz parte da tramitação normal da causa e que ocorre após a sua decisão, não se está perante um incidente que tem um processado próprio e específico, mas sim perante um incidente que se insere na tramitação normal e típica da acção. E conclui que ocorrendo este incidente após a decisão da causa, deve ser inserido na al. g) do nº 2 do art. 644º do CPC.

Por sua vez, os reclamantes sustentam que o incidente da reclamação da conta deve ser entendido, face a sua tramitação própria relativamente ao processado que conduz à decisão final da ação, como um incidente processado autonomamente, para efeitos do disposto no 644, n°1, al. a) parte final do CPC., e, por isso, ao recurso de decisão da 1ª instância que ponha termo, ainda que tal decisão seja proferida depois da sentença que colocou termo à causa principal, aplica-se o prazo de interposição de 30 dias, “ex vi” do nº 1, a) do artº 644º e da 1ª parte do nº 1 do artº 638º, ambos do CPC,.

Ora, salvo o devido respeito por melhor opinião, discordamos deste entendimento dos reclamantes.

Com efeito, os n.ºs 1 e 2 do citado artigo 644.º preveem um elenco taxativo de situações que o legislador consagrou como estando sujeitas a impugnação imediata, - no caso do n.º 2, mesmo apesar de não ter havido ainda decisão que ponha termo ao processo -, sendo que as restantes decisões que ali não se encontram elencadas apenas podem ser impugnadas nos termos previstos no n.º 3.

Assim, não se encontrando expressamente prevista a decisão relativa à reclamação da conta de custas, o recurso interposto não é admissível nos termos das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 644º.

Na verdade, de harmonia com o disposto no art. 644º, nº 1, al. a), a apelação autónoma, na parte relativa aos incidentes, apenas abrange os incidentes processados autonomamente. No dizer de A. Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, pg. 204, aqui a lei reporta-se “aos incidentes de instância processados por apenso, como ocorre com a habilitação, mas que é extensiva a outros incidentes tramitados no âmbito da própria acção, desde que sejam dotados de autonomia. Tal como ocorre com os incidentes de intervenção de terceiros, com o da liquidação ou com o de verificação do valor da causa, cada um deles a implicar trâmites específicos que não se confundem com os da acção em que estão integrados”.

Assim, e tendo presente que qualquer incidente dispõe sempre de algum grau de autonomia, afigura-se-nos que foi intenção do legislador incluir na referida al. a) do nº1 do art. 644º apenas os incidentes que a lei processual civil expressamente prevê e regula de forma autónoma relativamente à acção principal, nos art. 296º a 361º do CPC. Neste sentido, o Ac. do STJ de 16.06.2015, CJ, III, 123, refere que esses incidentes “são apenas aqueles a que a lei atribui tal processado independentemente do que é próprio das acções em que se possam suscitar, encontrando-se regulados nos art. 296º a 361º: verificação do valor da causa, intervenção de terceiros, liquidação”.(…)- veja-se também no mesmo sentido, entre outros, o Ac. da RE. de 15.12.2016, relatado por Albertina Pedroso.


Deste modo, não se inserindo a decisão recorrida em nenhum dos mencionados incidentes de instância, o respectivo recurso não se enquadra na previsão do referido art. 644º, nº 1, al. a), mas sim no nº 2, al. g) de tal artigo, sendo, por isso, o respectivo prazo interposição de 15 dias, nos termos do art. 638º, nº 1, do CPC.

Consequentemente, tendo o recurso sido apresentado depois de integralmente decorrido esse prazo legal, não poderia o mesmo ser admitido.

Pelo exposto, tem de improceder a reclamação em apreço.
*

DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a reclamação apresentada e, em consequência, não admitir o recurso em causa.
Custas pelos Recorrentes.
TRG, Guimarães, 23.04.2020

Relator: Jorge Santos
Adjuntos: Heitor Pereira Carvalho Gonçalves
António Sobrinho (que dispensa os vistos)


1. Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, 2ª edição, pg. 19.
2. Cfr. Autor e obra citados, pg.. 20.
3. Cfr. Autor e obra citados, pags. 20 e 21.
4. Cfr. Cardona Ferreira, Notas Práticas 1966, pg. 60 e segs.