Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1048/19.7T8GMR-A.G1
Relator: ANIZABEL PEREIRA
Descritores: INCIDENTE DE QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
INSOLVÊNCIA CULPOSA
GERENTE DE DIREITO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/21/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
- A insolvência de uma sociedade comercial deve forçosamente ser qualificada como culposa quando provada factualidade subsumível à previsão de qualquer uma das als. do n° 2 do art. 186° do CIRE, pelo que a constatação da existência de culpa ( quer o nexo de causalidade entre esse facto e a criação ou agravamento da situação de insolvência), relevante para efeitos de qualificação da insolvência como culposa não admite prova em contrário ( atenta a presunção iuris et de iure).
- Detendo o requerido a qualidade de gerente de direito é manifesto que a insolvência que seja declarada culposa nos termos do nº2 do art. 186º do CIRE o tem de abranger, ainda que a gerência de facto seja exercida por terceiro.
- Foi o próprio legislador quem quis - ao criar o instituto da insolvência culposa - responsabilizar os devedores e administradores, no pressuposto de que, quem assume determinadas funções, deve estar à altura de poder responder, em toda a linha.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:
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I. Relatório:

Este Incidente de qualificação da Insolvência é processado por apenso aos autos de insolvência da sociedade M. F., Unipessoal, Limitada.
No âmbito do incidente a Exma. Sra. Administradora de Insolvência e o Ministério Público pugnam pela qualificação como culposa de tal insolvência, bem como pela afectação dessa qualificação o sócio e gerente M. F., defendendo ainda o Ministério Público que deve ser também afectada pela qualificação a mãe daquele, E. F., enquanto gerente de facto.
A Sociedade Requerida e os Requeridos M. F. e E. F. foram notificados/citados, tendo o gerente de direito, M. F. deduzido oposição ao presente incidente de qualificação de insolvência.
Assim, alega em síntese, que nunca exerceu a gerência de facto da empresa insolvente, a qual era exercida pela sua mãe, sendo que era esta a responsável, nunca contratou trabalhadoras, nunca deu ordens aos mesmos, não negociou com fornecedores e nem com clientes, nunca foi responsável pela organização da escrituração ou documentação da aludida firma, nem nunca teve a incumbência de efectuar pagamentos ao Estado, pelo que nenhuma responsabilidade lhe poderá ser imputada pelo pagamento de quaisquer dívidas ao Estado.
Alega ainda que desconhecia a existência de qualquer dívida aquando do encerramento da empresa, levado a cabo pela mãe, tendo tido conhecimento da existência de dividas quando foi notificado pela segurança Social e pelas Finanças para proceder aos seus pagamentos e tendo verificado o valor global da dívida, apresentou a empresa do qual foi gerente de direito à insolvência, e até inícios de 2019 desconhecia totalmente a existência de quaisquer dividas, atendendo que toda a documentação estava sobre a responsabilidade da sua mãe, daí que não se tenha apresentado à insolvência na data referida pela Sr.ª Administradora de Insolvência.
Conclui ser evidente que não teve qualquer culpa nem dolo na situação de insolvência dos presentes autos e quanto a si deve ser declarada fortuita, com as legais consequências.
Notificada da oposição deduzida, mediante requerimento junto aos autos a 03/07/2019, a Sr.(a) Administrador (a) de Insolvência respondeu à mesma mantendo todo o vertido no seu parecer (cfr. fls. 60 a 62).
Com vista nos autos a Digna Magistrada do Ministério Público aderiu à posição expressa pela Sr.(a) Administrador (a) de Insolvência (cfr. fls. 66).
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Procedeu-se a julgamento, com observância do formalismo legal.
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Realizado o julgamento, foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:

- Qualifica-se como culposa a insolvência de M. F., Unipessoal, Lda.
- Considera-se afectada pela qualificação culposa a gerente de facto E. F..
- Declara-se E. F., pelo período de três anos, inibida para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa ou administração de património alheio.
- Determina-se a perda de quaisquer créditos de E. F. sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente, condenando-a na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos.
- Condena-se a afectada pela qualificação E. F. a indemnizar os credores no montante global dos créditos reclamados e reconhecidos pela Sr(a). Administrador(a) de Insolvência e que ascende à quantia de € 37.396,20.
- Absolve-se o Requerido M. F. do pedido contra o mesmo formulado nestes autos.
Proceda ao registo da inibição na Conservatória do Registo Civil - artigo 189º, nº. 3, do C.I.R.E.
Custas em partes iguais pela Insolvente e pela Requerida E. F..
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Inconformada com a decisão a respeito da absolvição do requerido M. F., veio a Digna Magistrada do MP interpor recurso, e formulou as seguintes conclusões (que se transcrevem):

“1 – O único sócio e gerente M. F. foi quem em 2013, constituiu a ora insolvente “M. F. Unipessoal, Ldª, e até à insolvência desta, foi sempre o único sócio e gerente;
2 – Apesar de, a nosso ver, os factos dados como provados, em que a Mmª Juiz 2 a quo”, se baseia para concluir que tal sócio e gerente, nunca exercer a gerência de facto da insolvente, mas sim a sua mãe, serem meramente conclusivos ou pelo menos, em grande parte conclusivos, e não provarem que o sócio e gerente M. F., também ele não exerceu a gerência de factos e não apenas de direito.
3 – sempre o M. F., na qualidade de único sócio e gerente, mesmo que apenas de direito, deve ser afetado na qualificação da insolvência como culposa, pois sobre ele impendiam os especiais deveres de vigilância e controle da insolvente, nomeadamente, a obrigação de manter contabilidade organizada, a obrigação de elaborar as contas anuais no prazo legal, de as submeter á devida fiscalização e o dever de se informar e controlar sobre a vida da sociedade, a sua situação económico – financeira e o dever de se apresentar à insolvência.
4 – O referido sócio gerente nada disso fez, teve um comportamento absolutamente omissivo, revelando um desinteresse total pela empresa de que era o único sócio e gerente, não organizando qualquer escrita, nem se interessando por tal, não elaborando contas, não procurando informar – se e saber sobre a real situação económico financeira da insolvente.
5 – Tal conduta, atento os especiais deveres legais que sobre o M. F. impendiam, revela da sua parte uma culpa muito grave, absolutamente omissiva, a revelar quase uma conduta intencional.
6 – Devia, por isso, o referido sócio e gerente, M. F., na qualificação da insolvência como culposa.
7- Ao não decidir, assim, na douta sentença recorrida, a Mmª Juiz “ a quo” violou, entre outros, os artigos 6º, nº 1 e 2, e 186º, n1 e 2, alínea h) e nº 3, alíneas a) e b), todos do CIRE.

Deve, assim, o recurso interposto ser julgado procedente por provado e, consequentemente, a douta sentença recorrida, na parte em que absolve o M. F., ser revogada e substituída por outra que o condene como sócio e gerente, afetando – o na qualificação da insolvência como culposa.”
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. Questões a decidir.

Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal consistem em saber:

1. Da impugnação da matéria de facto (nomeadamente da utilidade do seu conhecimento).
2. Da reapreciação da matéria de direito, no sentido de se considerar se os administradores de direito que não são administradores de facto podem ser declarados afetados pela qualificação.
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III. Fundamentação de facto.

Os factos que foram dados como provados na sentença sob recurso são os seguintes:

1. A sociedade M. F., Unipessoal, Lda., constituiu-se como sociedade unipessoal por quotas, de responsabilidade limitada, em 21 de Maio de 2013, tendo como objecto social o comércio de artigos de vestuário, calçado, malas e acessórios de moda, tal como resulta da certidão permanente junta a fls. 82-83 deste apenso e cujo teor no mais aqui se dá por integralmente reproduzido.
2. A sociedade tinha como único sócio à data da sua constituição, M. F., o qual era possuidor de uma quota no valor nominal de cinco mil euros, tal como resulta da certidão supra referida.
3. O capital social é no montante de € 5.000,0.0 (Cinco mil euros), correspondente ao valor da quota referida no número antecedente, tal como resulta da certidão supra referida.
4. A sociedade Insolvente está matriculada na Conservatória do Registo Comercial de … com o n.º …, tendo iniciado a sua actividade em termos fiscais em Maio de 2013.
5. Nos termos estabelecidos no registo comercial a forma de obrigar a sociedade Requerida é com a intervenção de um gerente, tendo sido nomeado enquanto tal M. F., tal como resulta da certidão permanente junta a fls. 82-83 deste apenso e cujo teor no mais aqui se dá por integralmente reproduzido.
6. Mediante petição entrada em juízo em 20 de Fevereiro de 2019, a Sociedade Requerida apresentou-se a requerer a sua declaração de insolvência, conforme resulta do teor de fls. 1 a 9 dos autos principais e cujo teor no mais aqui se dá por integralmente reproduzido.
7. Após convite ao aperfeiçoamento da petição inicial onde se pediu à sociedade insolvente a junção aos autos de elementos constantes do artigo 24º do CIRE e que não acompanhavam a petição inicial, e das informações pela mesma prestadas, mediante sentença proferida a 06 de Março de 2019, já transitada em julgado, foi a devedora, M. F., Unipessoal, Lda., declarada insolvente, conforme resulta de fls. 16 a 19 dos autos principais de insolvência a que os presentes se encontram apensos, e cujo teor no mais aqui se dá por integralmente reproduzido.
8. O total de créditos reconhecidos pela Sr(a). Administrador(a) de Insolvência ascende a € 37.396,20, os quais assumem natureza comum, com excepção da quantia de € 3.277,06 referente a IVA e IRC que assumem natureza privilegiada por se tratar de créditos constituídos nos 12 meses anteriores ao início do processo de insolvência, tal como resulta da lista de fls. 3 verso e fls. 4 junta ao apenso B e da cópia das reclamações de créditos juntas aos autos a fls. 45 a 50 deste apenso, e cujo teor no mais aqui se dá por integralmente reproduzido.
9. Os únicos credores da sociedade Requerida são o Instituto da Segurança Social, a Autoridade Tributária e Aduaneira e uma empresa de telecomunicações (… Comunicações, S.A.), sendo o maior credor a Autoridade Tributária com um crédito global de € 35.280,21 referente a IVA, IRC, Coimas e Custas, o qual representa 94,34% dos créditos reclamados e reconhecidos.
10. Na sequência das informações prestadas pela Autoridade Tributária à Sr.(a) Administrador (a) de Insolvência apurou-se que, relativamente à sociedade insolvente, encontravam-se em falta as declarações periódicas de IVA dos anos de 2017 e 2018, assim como não foram apresentadas as declarações modelo 22 de IRC e declarações anuais (IES) dos anos de 2014 a 2017, estão em falta também as declarações mensais de remunerações (DMR) a partir de Outubro de 2014 e não consta a existência de quaisquer bens em nome da insolvente, tal como resulta da certidão de fls. 22 a 28 deste apenso e cujo teor no mais aqui se dá por integralmente reproduzido.
11. A atividade laboral da insolvente já se encontrava encerrada à data da declaração de insolvência.
12. Mediante carta registada dirigida pela Sr.(a) Administrador (a) de Insolvência ao Serviço de Finanças de Fafe, datada de 08 de Março de 2019, foram solicitadas informações quanto à identificação do TOC, estado de cumprimento das obrigações declarativas, certidão de dívidas e informação sobre bens existentes e registados em nome da Insolvente, tal como resulta de fls. 20 a 28 deste incidente e cujo teor no mais aqui se dá por integralmente reproduzido.
13. Em consequência das informações prestadas pela Autoridade Tributária, a Sr.(a) Administrador (a) de Insolvência dirigiu carta registada ao TOC identificado na informação tributária, em 09/04/2019, tendo recebido deste a informação que não era o contabilista certificado da empresa desde Janeiro de 2014, por motivo de renúncia efectivada a 16/01/2014, pelo que nenhuns elementos ou documentos podia fornecer, identificando um novo TOC que, eventualmente, poderia fornecer tais informações, tudo como resulta de fls. 29 a 32 deste incidente e cujo teor no mais aqui se dá por integralmente reproduzido.
14. Mediante prévia solicitação por parte da Sr.(a) Administrador (a) de Insolvência, V. S., da empresa X – Contabilidade, Lda., mediante e-mail datado de 30/04/2019, comunicou àquela que não foram cumpridas as obrigações fiscais desde o ano de 2014, pois os elementos contabilísticos apenas foram lançados até Junho de 2014, tendo ainda sido enviados os balancetes de 2014, 2015 e 2016, sem que o que deles consta possa ser considerado totalmente fidedigno, pois apenas até Junho de 2014 terão sido fornecidos todos os elementos/documentos, sendo que a partir daquela data apenas os documentos referentes às compras se podem considerar como credíveis, tal como resulta de fls. 33 a 38 destes autos e cujo teor no mais aqui se dá por integralmente reproduzido.
15. Em sede de requerimento inicial com que se apresentou à Insolvência é alegado pela Insolvente (artigos 30, 31 e 34) que procedeu ao encerramento do estabelecimento onde exercia actividade em meados de 2016 e quando em deslocação ao local por parte da Sr.(a) Administrador (a) de Insolvência os representantes da Insolvente comunicaram àquela que a Insolvente não tinha actividade operacional desde 2013, tal como resulta de fls. 3 verso dos autos principais e fls. 39-40 deste incidente e cujo teor no mais aqui se dá por integralmente reproduzido.
16. Até à apresentação ao processo de insolvência a insolvente não procedeu à cessação de actividade para efeitos de IVA ou para qualquer outro efeito.
17. Não foi possível à Sr.(a) Administrador (a) de Insolvência proceder à análise da situação económica da Insolvente e dos elementos e documentos contabilísticos, por os mesmos não existirem.
18. Dos balancetes fornecidos, supra referidos no ponto 14 deste elenco dos factos provados, consta que a empresa procedeu a compras em 2014 e 2015, apesar de neste último ano os valores serem diminutos (5.247,02 €), tendo mantido a sua laboração, pelo menos, até data incerta do ano de 2016, sendo que no balancete geral acumulado de 2016 os valores das compras de mercadorias e doutras rubricas estão a 0 €.
19. A situação de incumprimento para com a Autoridade Tributária e Aduaneira tem início em 28/08/2014, proveniente de IRC, IVA, Coimas e Custas, no total de € 35.280,21.
20. A situação de incumprimento para com o Instituto da Segurança Social é desde Fevereiro de 2014, proveniente de contribuições, no montante de € 1.324,27.
21. A situação de incumprimento para com a … Comunicações S.A. é desde 27/07/2015, no montante de € 781,67.
22. Da certidão de registo comercial verifica-se que a Insolvente incumpriu o dever de proceder ao registo das suas contas, pois a última prestação de contas registada refere-se ao ano de 2013, não se encontrando registadas as prestações de contas dos anos de 2014 e seguintes, tal como resulta da certidão permanente junta a estes autos a fls. 82-83 e cujo teor no mais aqui se dá por integralmente reproduzido.
23. Em consequência da não apreensão de quaisquer bens, por despacho proferido a 12/06/2019 foram os autos principais declarados encerrados com fundamento na insuficiência da massa insolvente para a satisfação das custas do processo e restantes dívidas da massa, tal como resulta de fls. 56 daqueles autos.
24. O Requerido M. F. nasceu a -/09/1992 e foi registado como filho de A. S. e E. F., tal como resulta do assento de nascimento junto a fls. 71 deste apenso e cujo teor no mais aqui se dá por integralmente reproduzido.
25. Quem sempre exerceu de facto a gerência da Insolvente foi a Requerida E. F., mãe do requerido M. F..
26. O requerido M. F. nunca exerceu funções de gerência de facto na empresa Insolvente, nunca contratou trabalhadores, nunca deu ordens aos mesmos, não negociou com fornecedores e nem com clientes, assim como nunca foi responsável pela organização da escrituração ou documentação da aludida firma, nem nunca teve a incumbência de efectuar pagamentos ao Estado.
27. O requerido M. F. desconhecia a existência de qualquer dívida quando a mãe encerrou a empresa, tendo tido conhecimento da existência de dívidas quando foi notificado pela segurança Social e pelas Finanças para proceder aos seus pagamentos e tendo verificado o valor global da dívida, logo apresentou a empresa da qual foi gerente de direito à insolvência.
28. Até à data em que foi notificado para tais pagamentos, o Requerido M. F. desconhecia totalmente a existência de quaisquer dívidas, atendendo a que toda a documentação estava sobre a responsabilidade da sua mãe.
29. O Requerido M. F. iniciou a sua colaboração com a Y ao abrigo do programa “Ser Solidário”, promovido pelo Município de ..., desde Outubro de 2012 a Maio de 2013, posteriormente foi contratado a termo incerto, por motivos de substituição de uma funcionária do quadro, exercendo funções de Auxiliar de Acção Directa desde 7 de Novembro de 2013 até 08 de Setembro de 2014 e nesta última data celebrou contrato de trabalho sem termo, estando a exercer funções para as quais foi contratado no Lar Residencial da Y, tal como resulta da declaração junta a fls. 77 destes autos e cujo teor no mais aqui se dá por integralmente reproduzido.
30. A parte das dívidas à Segurança Social e à Autoridade Tributária e Aduaneira que reverteram contra o Requerido M. F. estão a ser pagas em prestações.
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FACTOS NÃO PROVADOS:
Com interesse para a decisão da causa não resultaram como não provados quaisquer factos.
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IV. Do objecto do recurso.

1. Da impugnação da matéria de facto ( o MP apenas impugnou os factos nº26, 27º, 28º dados como provados argumentando que são meramente conclusivos, não aludindo nem sequer na motivação a consequência pretendida ( porventura, naturalmente a eliminação dos mesmos), não cumprindo absolutamente conforme delineado no art. 640º do CPC ).
Sem embargo, tem vindo a ser entendido de forma maioritária pelos Tribunais Superiores (1) que, por força dos princípios da utilidade, da economia e da celeridade processual, o Tribunal da Relação não deve reapreciar a matéria de facto quando os factos objeto da impugnação não forem suscetíveis de, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, terem relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe ser inútil (arts. 2º, n.º 1 e 130º, ambos do C.P.C.).
Nessa medida, e seguindo esse entendimento, temos que, no caso em concreto, somos de entender que não se mostra necessária a reapreciação da matéria de facto impugnada, pois que, o presente recurso, ainda que não apreciada tal questão, será sempre de proceder.
De facto, e no que respeita à matéria que o recorrente pretende que seja alterada, a mesma não relevará para a decisão a proferir, como a seguir veremos, porquanto a questão objeto do recurso prende-se apenas com a apreciação simples de saber se o Requerido M. F., administrador de direito, ainda que não sendo administrador de facto, pode ser declarado afetado pela qualificação da insolvência como culposa.
Com efeito, em relação a tal facto ( ser gerente de direito) o mesmo não é discutido.
Face a tal, por se tratar de ato inútil, não se reapreciará a matéria de facto impugnada, passando-se, desde já a apreciar a questão enunciada e essencialmente objeto do presente recurso: se os administradores de direito que não são administradores de facto podem ser declarados afetados pela qualificação culposa da insolvência.
Com efeito, nos presentes autos de recurso apenas se discute se se verificam os pressupostos de afetação da insolvência culposa relativamente à pessoa do gerente de direito requerido M. F. ( ainda que não tenha sido gerente de facto).

Vejamos.

Decorre do disposto no art.º 185.º do CIRE que a insolvência pode ser qualificada como culposa ou fortuita.
A definição de insolvência culposa consta do artigo seguinte.
O art.º 186.º do CIRE define como insolvência culposa aquela em que a “situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.”
A regra é, pois, a de que a actuação do devedor, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, tem que ser apta à criação ou agravação do estado de insolvência, em termos de nexo de causalidade, e levada a cabo com dolo ou culpa grave.
O nº2 do citado art. 186º do CIRE “estabelece uma presunção inilidível e que complementa aquela noção geral do seu nº1. Finalmente, o nº3, mediante uma presunção ilidível, dá por verificada a existência de culpa grave quando ocorram determinadas situações nele previstas. (2)
Nos presentes autos, a decisão recorrida - na parte abrangida pelo recurso do MP– entendeu que “Daqui resulta que temos que considerar que ocorreram irregularidades com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira da Devedora, o que significa o preenchimento da previsão da alínea h) do nº 2 do art. 186º do CIRE e a consequente verificação de presunção, inilidível, de culpa grave na atuação da insolvente.
A insolvência dos autos deve, pois, sem necessidade de mais considerações, ser considerada culposa, com afectação directa da gerente de facto E. F., responsável pela situação verificada (artigo 186º nº 2 al. h), do CIRE).
Como já supra se aludiu, todas as circunstâncias previstas no nº 2 do art. 186º são presunções iure et de iure que atiram irremediavelmente a gerente de facto para a qualificação da insolvência como culposa.
Uma vez que se tratam de fundamentos para a qualificação da insolvência inilidíveis, forçoso é considerar a insolvência dos autos como culposa.
Ou seja, está absolutamente estabelecido o nexo de causalidade adequada entre a actuação e omissões levadas a cabo pela gerente de facto da devedora em causa e a situação de insolvência, o que, sem mais, permite concluir que esta deve ser qualificada como culposa.
Ainda que se diga que a previsão do artº 186º nºs 1 e 2 CIRE não visou excluir os administradores de direito, que o não sejam de facto, mas, inversamente, estender a qualificação a actos praticados por administradores de facto e que a ignorância e o alheamento dos destinos da sociedade constituem, por si só, uma violação dos deveres gerais que se impunham ao gerente da insolvente (artº 64º nº1 Código das Sociedades Comerciais), o certo é que da audiência de julgamento não resultou demonstrado que o Requerido M. F. tivesse qualquer intervenção na Insolvente, o mesmo apenas foi formalmente designado como gerente de direito, estando afastado do dia-a-dia da sociedade, estando a mesma sociedade absolutamente entregue nas mãos da sua mãe, em quem confiava e a quem emprestou o nome numa altura em que a mesma se estava a divorciar do próprio pai. Por outro lado, resultou igualmente demonstrado que o Requerido M. F. iniciou a sua colaboração com a Y ao abrigo do programa “Ser Solidário”, promovido pelo Município de ..., desde Outubro de 2012 a Maio de 2013, posteriormente foi contratado a termo incerto, por motivos de substituição de uma funcionária do quadro, exercendo funções de Auxiliar de Acção Directa desde 7 de Novembro de 2013 até 08 de Setembro de 2014 e nesta última data celebrou contrato de trabalho sem termo, estando a exercer funções para as quais foi contratado no Lar Residencial da Y. Ora, exceptuando o curto período que vai de Maio a 7 de Novembro de 2013, o Requerido M. F. tinha uma ocupação profissional, a qual não se coaduna com a presença numa loja de comércio de vestuário, calçado, malas e acessórios de moda, sendo certo que o contabilista certificado referiu que sempre tratou de tudo com a Requerida E. F., sendo esta quem se encontrava na loja, identificou o Requerido M. F. como trabalhador da Y, além de que o mesmo teria 21 anos quando a empresa foi constituída e ainda estava em formação, sendo que por sua vez a Sr.(a) Administrador (a) de Insolvência também referiu que o seu parecer se baseou no que constava da certidão permanente, requerendo que a afectação abarcasse o gerente de direito.
O Recorrente defende – em contrário – a existência do nexo causal: de um especial dever de cuidado, de vigilância e de controle que, por inerência legal, incumbem ao sócio e gerente de direito, sobretudo como, no caso dos autos, impendem sobre o M. F., o único sócio e gerente da sociedade insolvente que o próprio constituiu, sobretudo quando, como no caso dos autos, os atos que qualificam a insolvência se prendem com o incumprimento, em termos substanciais , da obrigação de manter a contabilidade organizada, o dever de requerer a declaração de insolvência, bem como a obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submete – las á devida fiscalização ou de as depositar na Conservatória do Registo Comercial; Que o gerente, sócio ou administrador de direito deve ser, em princípio, o primeiro responsável.
Entende, em suma, que o sócio e gerente M. F., mesmo que se dê como assente que apenas era sócio e gerente da insolvente de direito, deve ser afetado na qualificação culposa da insolvência, porquanto a sua conduta é reveladora duma absoluta falta de cuidado, duma absoluta inação e dum absoluto e total desrespeito pelos deveres de vigilância e controle que sobre ele impendiam e lhe impunha a Lei, uma conduta altamente temerária, altamente negligente para não dizer dolosa, que implica, como se disse, a sua afetação na qualificação como culposa da insolvência.
Defende, assim, que este incumpriu em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, deixando a cargo da sua mãe-gerente de facto- todas as funções a que estava obrigado- artigo 186.º, n.º 2, al. h) do CIRE- pelo que há um claro nexo causal, ainda que com conduta negligente, devendo por isso o gerente de direito, também, ser afetado pela qualificação da insolvência como culposa.

Cumpre decidir.

O n.º 2 do art.º 186.º do CIRE elenca um conjunto de situações em que se considera “sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular”, designadamente quando “os seus administradores, de direito ou de facto tenham: (…) h) Incumprido, em termos substanciais, a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor.”
Assim sendo, a verificação de alguma das situações previstas naquele nº2 faz presumir, de forma inilidível, quer a culpabilidade na insolvência, quer o nexo de causalidade entre esse facto e a criação ou agravamento da situação de insolvência. (3)
De facto, provada qualquer uma das situações enunciadas nas alíneas do citado n.º 2, estabelece-se de forma automática o juízo normativo de culpa do administrador, sem necessidade de demonstração do nexo causal entre a omissão dos deveres constantes das diversas alíneas e a situação de insolvência ou o seu agravamento ( sublinhado nosso) (4)
Aliás, este é o entendimento que vem sendo defendido, de forma pacífica e reiterada, na doutrina e na jurisprudência.
Destarte, a sentença assim subsumiu a gerente de facto, mãe do requerido M. F., declarando-a afetada, o que não foi posto em causa.
Entre o mais, está verificada a situação consagrada na alínea h), do n.º 2, do art.º 186.º do CIRE, ao aludir ao incumprimento, em termos substanciais, da obrigação de manter contabilidade organizada, com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor, por aplicação das indicadas presunções quer de culpa, quer de nexo de causalidade.
Ora, tratando-se de uma presunção iuris et de iure, tal como referido na sentença e assim aplicado ao caso do gerente de facto ( mãe do requerido), não se percebe muito bem como se afastou tal presunção em relação ao gerente de direito, tratando o caso, neste particular, como se se tratasse de uma presunção iuris tantum.
É que se para a mãe do requerido ainda foi necessário provarem-se factos consbstanciadores de a mesma ser gerente de facto, por forma a se concluir pelo desempenho de um papel administrativo (na devedora/insolvente) com a independência decisória que caracterizam uma atuação funcionalmente administrativa, já em relação ao requerido M. F., diversamente, bastou invocar o que consta da certidão da matrícula da insolvente – isto é, que o mesmo era o designado gerente da devedora/insolvente nos 3 anos que antecederam a insolvência – para ficar estabelecida a sua qualidade de administrador/gerente da devedora/insolvente e para, enquanto parte componente da mesma, lhe poder/dever ser diretamente imputada a qualificação culposa da insolvência.
Com efeito, não sendo discutida nestes autos de recurso a qualificação da insolvência como culposa, com base na al. h) do nº2 do art. 182º do CIRE, na verdade poderá excluir-se a afetação do gerente de direito por não ter sido nunca gerente de facto e nunca ter tido qualquer atuação como gerente de facto, conforme decidido na sentença?
Perentoriamente diremos que não.
Detendo o requerido M. F. a qualidade de gerente de direito é manifesto que a insolvência que seja declarada culposa o tem de abranger, ainda que a gerência de facto seja exercida por terceiro. Na verdade, a finalidade da lei foi alargar a responsabilização, incluindo quer os gerentes de facto quer os de direito, nos casos em que as funções de gerência não estão reunidas na mesma pessoa, e não restringi-la aos gerentes de facto, com exclusão dos gerentes de direito, conforme é dito várias vezes na jurisprudência (5) e inclusive foi dito na sentença, quando se refere na mesma “ Ainda que se diga que a previsão do artº 186º nºs 1 e 2 CIRE não visou excluir os administradores de direito, que o não sejam de facto, mas, inversamente, estender a qualificação a actos praticados por administradores de facto e que a ignorância e o alheamento dos destinos da sociedade constituem, por si só, uma violação dos deveres gerais que se impunham ao gerente da insolvente (artº 64º nº1 Código das Sociedades Comerciais)”. Sem embargo, e apesar de ter afetado a gerente de facto, na verdade excluiu da afetação como culposa do gerente de direito (o requerido M. F.) pelo facto de o mesmo nunca ter exercido funções de gerente de facto.
A este propósito a jurisprudência tem sido unânime em considerar que a qualidade de gerente de direito permite-lhe acompanhar a vida da sociedade, inteirar-se da gerência e modo como é exercida, zelar pelo cumprimento dos deveres legais, designadamente, a existência de contabilidade organizada, sendo esse o conteúdo funcional do ofício/função, cuja omissão o faz incorrer em responsabilidade( neste sentido, entre outros, o AC da RP de 10-12-2019 e citado nas alegações de recurso).
Em verdade, concluindo-se como se concluiu, isto é, que o comportamento apurado é relevante do ponto de vista do preenchimento da alínea h) do n.° 2, haverá que referir, como já se salientou, que a constatação da existência de culpa, relevante para efeitos de qualificação da insolvência como culposa não admite prova em contrário.
Com efeito, foi o próprio legislador quem quis - ao criar o instituto da insolvência culposa - responsabilizar os devedores e administradores, no pressuposto de que, quem assume determinadas funções, deve estar à altura de poder responder, em toda a linha.
Daí concluir-se, conforme o recorrente afirma, que a conduta omissiva do requerido M. F. é reveladora duma absoluta falta de cuidado, duma absoluta inação e dum absoluto e total desrespeito pelos deveres de vigilância e controle que sobre ele impendiam e lhe impunha a Lei, uma conduta altamente temerária, altamente negligente, que implica, como se disse, a sua afetação na qualificação como culposa da insolvência.
Por tudo o exposto, considera-se afetado pela qualificação culposa o sócio-gerente M. F..

Em consequência, nos termos do disposto no art. 189º,nº2 do CIRE e ponderando a gravidade do caso concreto, em moldes idênticos aos ponderados na sentença a respeito da gerente de facto, nomeadamente atento a lapso temporal em causa ser o mesmo:

- Declara-se M. F., pelo período de três anos, inibido para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa ou administração de património alheio.
- Determina-se a perda de quaisquer créditos de M. F. sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente, condenando-o na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos.
- Condena-se o afetado pela qualificação M. F., a par da requerida E. F., a indemnizar os credores no montante global dos créditos reclamados e reconhecidos pela Sr(a). Administrador(a) de Insolvência e que ascende à quantia de € 37.396,20.
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VI. Decisão.

Por tudo o exposto, acordam as Juízes que constituem esta 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar procedente a apelação, e consequentemente revogar a decisão recorrida no segmento correspondente à absolvição do requerido, substituindo-se por outra decisão, na parte respeitante ao pedido formulado quanto ao requerido M. F., nos termos da qual e para além do mais, deverá passar a constar o seguinte:

- Considera-se afetado pela qualificação culposa o sócio-gerente M. F..

- Declara-se M. F., pelo período de três anos, inibido para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa ou administração de património alheio.

- Determina-se a perda de quaisquer créditos de M. F. sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente, condenando-o na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos.

- Condena-se o afetado pela qualificação M. F. , a par da requerida E. F., a indemnizar os credores no montante global dos créditos reclamados e reconhecidos pela Sr(a). Administrador(a) de Insolvência e que ascende à quantia de € 37.396,20.
Proceda ao registo da inibição na Conservatória do Registo Civil - artigo 189º, nº. 3, do C.I.R.E.
Custas da ação em partes iguais pela Insolvente e pela Requerida E. F. e requerido M. F. e custas do recurso pelo requerido M. F..
No mais: a sentença mantém-se.
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Guimarães, 21 de Maio de 2020
Assinado electronicamente por:

Anizabel Pereira
Rosália Cunha e
Lígia Venade


1. Vide, por todos, o AC do STJ de 17-05-2017, in dgsi.
2. Vide CIRE Anotado, A. Carvalho Fernandes e João Labareda, VOl II.p. 14 ( nota 3)
3. Como se refere no AC RG de 1.10.2013 “ … o preenchimento de qualquer das situações ou factos-índice previstos no n.º 2 deste artigo, determina a qualificação da insolvência como culposa, pois que da ocorrência dos mesmos estipula a lei uma presunção inilidível, juris et de jure, de culpa. O que dimana do advérbio «sempre». Por isso que seja mais correcto afirmar-se, em nosso entender, que nas situações a que se faz […] referência no art.º 186º, nº 2, do CIRE, mais do que uma presunção legal, se verifica o que BAPTISTA MACHADO, “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, Almedina, págs. 108 e 109, designa por “ ficções legais ”, pois que, o que o legislador extrai a partir do facto base, não é um outro facto, mas antes uma conclusão jurídica, numa remissão implícita para a situação definida no nº 1 do art.º 186º do CIRE”.
4. Neste sentido, igualmente, para além da demais jurisprudência citada nas alegações de recurso, o AC da RG de 01.06.2017 e ainda recentemente o AC da RG de 05.03.2020, de que é relatora uma das ora Juízes- Desembargadoras- Adjuntas, Drª Rosália Cunha.
5. Vide neste sentido o citado AC desta RG de 05.03.2020.