Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
800/11.6GAFAF.G1
Relator: FERNANDO MONTERROSO
Descritores: ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
OFENSAS À HONRA
INJÚRIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/10/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO PARCIAL
Sumário: I – Existem expressões, comunitariamente tidas como obscenas ou soezes, que objetivamente atingem o património pessoal das pessoas a quem são dirigidas, enxovalhando-as e humilhando-as.
II – Provando-se que o arguido, durante uma contenda física, apelidou o seu adversário de “filho da puta” e “cabrão”, ocorre o vício do erro notório na apreciação da prova (art. 410 nº 2 al. c) do CPP), se se considerar que agiu sem intenção de ofender a honra do visado, apenas “pretendendo expressar raiva e exaltação durante a contenda”.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
No 1º Juízo do Tribunal Judicial de Fafe, em processo comum com intervenção do tribunal singular (Proc. nº 800/11.6GAFAF), foi proferida sentença que:
a) Absolveu o arguido ANTÓNIO R... do crime de injúria de que vinha acusado;
b) Condenou o arguido JOAQUIM C... como autor material de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punível pelo art. 143.º, n.º 1, do CP, na pena de 80 (oitenta) dias de multa à razão diária de €8,00 (oito euros) o que perfaz a multa global de €640,00 (seiscentos e quarenta euros);
c) Condenou o arguido ANTÓNIO R... como autor material de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punível pelo art. 143.º, n.º 1, do CP, na pena de 80 (oitenta) dias de multa à razão diária de €6,00 (seis euros) o que perfaz a multa global de €480,00 (quatrocentos e oitenta euros);
d) Condenou o demandado ANTÓNIO R... a pagar ao demandante JOAQUIM C... a quantia de €500,00 (quinhentos euros), quantia acrescida juros de mora a contar da data da presente sentença e até efetivo e integral pagamento, à taxa de 4%, absolvendo-o do demais peticionado;
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O arguido, assistente e demandante cível JOAQUIM C... interpôs recurso desta sentença, suscitando as seguintes questões:

- argui a nulidade da sentença por falta de exame crítico das provas;

- invoca a existência do vício previsto no art. 410 nº 2 al. b) do CPP (a contradição entre a fundamentação e a decisão de facto), na parte relativa à absolvição o arguido António R... pelo crime de injúria;
- impugna decisão sobre a matéria de facto visando, alterada esta, a sua absolvição; e
- reclama a procedência total do pedido de indemnização cível por si deduzido.

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Respondendo, a magistrada do Ministério Público junto do tribunal recorrido defendeu a improcedência do recurso.

Nesta instância, a sra. procuradora-geral adjunta emitiu parecer no sentido da procedência parcial do recurso, devendo o arguido António R... ser condenado pelo imputado crime de injúria.

Cumpriu-se o disposto no art. 417 nº 2 do CPP.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.


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I – Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos (transcrição):
a) No dia 28 de Julho de 2011, cerca das 09h30, na Praça 25 de Abril, área desta cidade e comarca de Fafe, por motivos não concretamente apurados, gerou-se uma discussão entre os arguidos.
b) No decurso da contenda, e numa sequência cronológica não concretamente apurada, os arguidos envolveram-se em agressões.
c) Assim, o arguido JOAQUIM C... desferiu murros na face de António R....
d) Por sua vez, o arguido António R... desferiu murros no corpo de JOAQUIM C..., nomeadamente na cabeça e nas costas.
e) Nessa sequência caíram altura em que JOAQUIM C... bateu com a cabeça no chão.
f) O ofendido António R... recebeu assistência médica no Centro de Saúde de Fafe e o ofendido JOAQUIM C... no Hospital de Fafe.
g) Em consequência directa e necessária da conduta do arguido JOAQUIM C..., o ofendido António R... sofreu as lesões melhor descritas no relatório médico-legal junto aos autos, que aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais, nomeadamente: - face: escoriação linear vertical, com um centímetro de maiores dimensões, localizada na região temporal esquerda; - membro superior direito: edema polegar; mobilidades conservadas despertando dor; pinças conservadas, que lhe determinaram 6 dias para cura, com afectação da capacidade de trabalho geral e profissional pelo período de 8 dias.
h) Por sua vez, em consequência directa e necessária da conduta do arguido António R..., JOAQUIM C... sofreu as lesões melhor descritas no relatório médico-legal junto aos autos, que aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais, nomeadamente: - face: equimose malar esquerda; - membro superior direito: resultou sequela consubstanciada em cicatriz linear sem alterações distróficas, com dois centímetros, localizada na face interna do polegar; - membro superior esquerdo: escoriação com dois centímetros de diâmetro, com crosta, localizada no cotovelo; - membro inferior direito: edema e eritema na face externa do tornozelo, que lhe determinaram 14 dias para cura, com afectação da capacidade de trabalho geral por igual período e sem afectação da capacidade de trabalho profissional.
i) O arguido JOAQUIM C... actuou com o propósito de ofender o corpo de António R... e este com o propósito de atingir o corpo daquele, como efectivamente ofenderam, bem sabendo que as suas condutas são proibidas e punidas por lei penal.
j) Os arguidos actuaram livre, voluntária e conscientemente.
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k) Naquele circunstancialismo, durante as agressões, o arguido António, exaltado, apelidou, em voz alta, JOAQUIM C... de filho da puta, cabrão.
l) JOAQUIM C... sofreu dores, vergonha e tristeza pela conduta do outro arguido.
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m) Do CRC dos arguidos não constam antecedentes criminais.
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n) O arguido Joaquim é reformado e aufere €800,00, de uma reforma de França.
o) Mora sozinho em casa própria.
p) Possui um Fiat.
q) Organiza excursões.
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r) O arguido António está reformado por invalidez, recebendo de pensão a quantia de €270,00.
s) Organiza excursões aos sábados e domingos.
t) Mora com a mulher na casa de um filho.
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Considerou-se não provado que:
O arguido António agiu com o propósito de ofender a honra do arguido Joaquim.
Após, e quando JOAQUIM C... se tentava levantar, o arguido António R... desferiu-lhe um pontapé na zona abdominal.
O arguido António agarrou o outro arguido pela parte de trás do pescoço, fazendo-lhe uma gravata, imobilizando-o e de seguida desferiu murros e cotoveladas na zona da cabeça e nas costas.
JOAQUIM C... apenas se defendeu, encolhendo-se e colocando as mãos na cabeça.
O arguido António deu-lhe uma patada no abdómen, e Joaquim caiu ao chao e bateu com a cabeça no chão.
No chão colocou-se em posição fetal e continuou a ser agredido.
Tentou levantar-se e o arguido António desferiu-lhe pontapés.
Nessa sequência, JOAQUIM C... ficou com as cuecas ensanguentadas devido a uma hemorragia.
Nessa altura, Miguel P... agarra o arguido António, cessando assim as agressões.
Na sequência e por força da conduta do arguido, o estado de saúde do arguido Joaquim agravou-se, designadamente gastando mais em despesas de saúde, padecendo de insónias, irritabilidade fácil, deprimido (transtorno depressivo recorrente), desesperado, instabilidade emocional e choro frequente, perdeu o interesse pela vida, passou a realizar permanentemente exames médicos (ecografias, TAC, radiologia, padece de zumbido intenso no ouvido esquerdo
O assistente despendeu €268,00, no dentista por força da conduta do arguido António.
O assistente despendeu €180,00, no ortopedista por força da conduta do arguido António.
O assistente despendeu €100,00, no otorrinolaringologista por força da conduta do arguido António.
O assistente despendeu €155,00, em neurologia por força da conduta do arguido António.
O assistente despendeu €91,23, em medicamentos por força da conduta do arguido António.
O arguido António partiu os óculos do assistente os quais valiam €40,00.
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Transcreve-se igualmente a motivação da decisão sobre a matéria de facto
Em termos genéricos pode afirmar-se o seguinte:
Resultou unânime que os arguidos têm divergências sérias relativamente à actividade de organização de excursões que ambos desenvolvem (cfr. depoimentos das testemunhas arroladas pelo arguido António e as declarações dos arguidos e documentação que foi junta durante o inquérito). No fundo, são concorrentes.
Por outro lado, da documentação dos autos (cfr. exames de f. 8-12, 64-66, 100-102 e documentação clínica de f. 47-52) é possível concluir, com muita segurança, que os arguidos, no dia dos factos, foram agredidos. Isto é, foram atingidos na sua integridade física. Aqueles elementos objectivos são inequívocos nesse sentido.
Desde já se diga que, atenta aquela documentação, analisada com a atenção devida, muito se estranham as diversas maleitas, doenças, dores, perturbações e enfermidades de que o arguido Joaquim se queixa nos seus articulados. Mais, desde já se diga o fenómeno das cuecas ensanguentadas revelar-se, a todos os títulos, extraordinário, pois não foi percepcionado pelos médicos.
Ouvidos os arguidos, JOAQUIM C... apresentou uma versão capciosa e desadequada atentas as regras da experiência. Revelou depois um discurso hiperbólico e teatral quanto aos factos e às alegadas consequências. No fundo, este foi brutalmente agredido (o que não é compaginável com aqueles elementos objectivos aferidos por pessoal médico e imparcial) e, em nenhum momento, atingiu António R..., seja através de agressões, gestos ou palavras (nas felizes e convenientes palavras da testemunha Maria C..., estava como um bébé a ser massacrado). A sua postura, o seu discurso e a sua atitude não se mostraram, de todo, credíveis. Muito pelo contrário, o que narrou, ao fim e ao resto, mostrou-se imprestável por ser inconsistente, inverosímil, incongruente e frágil (este, em síntese, disse que já na praça o outro arguido veio por detrás e faz-lhe uma gravata. Ao mesmo tempo disse-lhe que andava a tirar-lhe os papéis, apelidando-o de filho da puta, corno, vais levar mais. Depois acaba-lhe por desferir murros e ele tenta, tão só, defender-se. quando se ia a virar, o outro dá-lhe uma patada no abdómen, acabando por cair no chão com o braço. Graças a um Miguel [pessoa não ouvida e totalmente desconhecida] as agressões terminaram. Nunca bateu no outro arguido e ele não teve nada. Descreveu depois um rol interminável de dores e lesões que ainda hoje padece. Referiu-se até a problemas na tiroide, nos pulmões, de intestino, estômago, coração, na cervical, etc.. mais tarde, falou-se num tratamento dentário na sequência do edema malar, bem como no tratamento psiquiátrico: tinha um tumor e o seu estado depressivo agravou-se com a agressão).
Por sua vez, o arguido António R... veio assumir as suas responsabilidades. Isto é, ao contrário daquele arguido, este não se quis eximir, totalmente, a culpas. Na verdade, poderá ter agredido o corpo do outro depois daquele lhe ter esfregado um papel publicitário na sua cara. Nessa altura, embrulharam-se e agrediram-se. É de realçar que este arguido, atento o que vai dito na declaração de f. 319, tem um problema na perna direita estando impedido de a dobrar – isto foi por nós percepcionado e nenhuma testemunha, nem o outro arguido, ousaram pôr em causa. Limitaram-se, isso sim, a dizer, que tal não o impedia de agredir quem quer que fosse (em síntese, declarou que, por força de um acidente, há 18 anos, partiu a bacia, a anca, etc.: desde aí que não pode dobrar a perna. Este arguido disse que estava na praça, quando o outro passa por lá e tira a publicidade da excursão por si organizada, e vai ter com ele. Nessa altura, deu-me com o papel na testa duas vezes, agarra-me pelos colarinhos, sendo que nesse momento, é ele que o agarra e acabam por cair os dois no passeio. Admite que pode ter dito nomes, mas estava exaltado. As relações entre ambos são muito más e a divergência é sobre as excursões. Refere que não lhe bateu com a perna porque não pode, mas no chão é natural que lhe tenha dado uma murraça, sendo que a ele o outro acertou-lhe. Foram os dois que se puseram de pé, não tendo avistado ninguém naquele momento).
Posteriormente, foram ouvidas as testemunhas arroladas pelo arguido JOAQUIM C.... Quanto a Domingos N..., este disse que não esteve presente no dia dos factos. Apenas acompanhou o arguido Joaquim ao INML. Diz que este mal se mexia, sentia dores e diz ter visto as cuecas ensanguentadas que o arguido lhe mostrou. O arguido António também estava lá, mas nada viu nele que demonstrasse alguma maleita. Depois descreveu uma série de consultas em que acompanhou o arguido (exames à cabeça, barriga, intestinos, ortopedia, fisioterapia, neurologia, dentista). No final, acaba por ser uma testemunha abonatória do arguido Joaquim o qual ficou muito afectado com esta situação. Perguntado se tinha medo, respondeu que talvez e que era acompanhado por uma psiquiatra. Como se disse supra, face ao que consta dos exames, cria uma certa e aflitiva perplexidade perante tantas enfermidades face a exames médicos tão pobres de maleitas.
Por sua vez, Joaquim O..., amigo e vizinho de JOAQUIM C..., declarou que assistiu aos factos. Mencionou o dia específico dos factos, o que não deixa de ser estranho e revelador de que vinha com um discurso ensaiado. Estava num café próximo e começou a ouvir barulho vindo de fora: filho da puta, corno, hás-de levar. Diz que viu o arguido António a agarrar o Joaquim por trás (tipo gravata) e depois a dar-lhe murros. Só depois é que percebeu que era o JOAQUIM C... a ser agarrado pelo outro arguido. Estranhamente disse que não foi socorre-lo porque estava lá outro senhor a separá-los. Depois acaba por ser testemunha abonatória do JOAQUIM C.... Afirmou que este não agrediu o outro arguido e que os murros foram desferidos com a mão esquerda. Por sua vez, a gravata foi efectuada com a mão direita. Já os pontapés realizados com a perna direita (a perna de que o arguido António padece de uma incapacidade).
Esta testemunha veio com um discurso ensaiado, tendo até respondido que tudo isto agravou a doença do arguido Joaquim. E reconheceu que na fase da instrução não disse o mesmo. Mais atestou a supra mencionada hemorragia (sangue nas cuecas). Perguntado sobre o que o vizinho e amigo do arguido Joaquim estava a fazer no dito café, declarou que estava a tomar o pequeno almoço. Isto num dia da semana e a hora laboral. E aquela refeição não passou de um café. A postura desta testemunha, o modo como narrou os factos, as estranhas coincidências e estranhezas supra enunciadas, a nosso ver, fazem deste depoimento uma tentativa de corroborar a versão de um dos arguidos de um modo totalmente frágil e, dir-se-ia, amador. É que logo após ouviu-se a mulher desta testemunha, também amiga e vizinha do JOAQUIM C... a qual também estava no dito café. Todavia, como não podia deixar de ser, entrou em contradições com o seu marido e também se mostrou comprometida e nada sincera. Aliás, diga-se que esta revelou um certo incomodo por estar a realizar este papel, ao contrário do seu marido cujo à vontade foi notório. A título meramente exemplificativo, Mónica Oliveira disse, ao contrário daquele, que afinal estava no quarto de banho e que não viu nada em concreto. Disse que o marido entra às 10, quando o marido disse outra coisa.
Por fim, ouviu-se Maria C..., mulher da 1.ª testemunha, e amiga do arguido JOAQUIM C... que, igualmente, presenciou os factos. Primeiro começou por ouvir insultos: filho da puta, corno, vais levar. Estava àquela hora no local porque pediu autorização para chegar mais tarde ao seu local de trabalho. Disse que o viu a agarrar pelo pescoço com a direita e a socá-lo com a esquerda. Já os pontapés foram com a perna esquerda. Depois um senhor separou-os. Perante esta expressão, melhor, perante este verbo, perguntou-se porque disse separar quando disse que o arguido JOAQUIM C... estava como um bébé indefeso e não reagia. Naturalmente, tratou-se de um descuido de linguagem.
Perante tudo isto, consideramos inútil estar a descrever mais perplexidades, incongruências, coincidências e estranhezas de todos estes depoimentos, finalizamos tão só com o facto deste arguido Costa, na altura da queixa (ver f. 3 do apenso A), não ter indicado nenhuma testemunha, para depois acabar por indicar, imagine-se, 3 amigos que se encontravam no local, que tudo viram e, note-se, nenhum deles o acudiu, uma vez que uma pessoa (desconhecida, claro está) os separou. Logo após a queixa foi junta procuração e ainda assim este arguido apenas arrolou testemunhas aquando da fase de instrução.
Quanto às testemunhas arroladas pelo arguido António R..., José Rodrigues e Maria Pereira apenas disseram ter visto, noutro dia que não o dos autos, o arguido Costa a rasgar publicidade das excursões do arguido Rodrigues.
Quanto aos elementos subjectivos considerados provados, o tribunal considera que a forma como os factos foram praticados e atentas as regras da experiência, é forçoso concluir pela sua ocorrência. Uma vez que o arguido António se encontrava exaltado e pretendia tão só agredir o outro, o tribunal entende que quanto às expressões o mesmo não tinha intenção de ofender. Pretendia era expressar raiva e exaltação durante a contenda.
As demais consequências das condutas dos arguidos resultam desde logo das regras da experiência. E atentos os documentos clínicos supra mencionados.
Os antecedentes criminais resultam do teor dos CRC’s juntos aos autos.
Quanto à condição económica dos arguidos, tal resultou das declarações dos próprios.
Relativamente aos factos não provados cfr. supra. Em síntese, as declarações do arguido Joaquim e das testemunhas arroladas não foram atendidas. Quanto às consequências, diga-se desde já que face a tantas despesas e a tantas maleitas, não basta juntar prova documental. Seria necessário realizar mais prova. A tudo isto acresce o que supra se referiu: atentas as regras de experiência, afigura-se a inexistência de nexo causal entre as agressões e as consequências alegadas face ao exame médico legal realizado ao arguido Joaquim (cfr. f. 17 e 102). Note-se o período de cura. Mais, os recibos juntos são, em grande parte, bem posteriores aos factos. E de f. 16 já se depreende uma série de antecedentes de saúde.

FUNDAMENTAÇÃO
1 – A nulidade da sentença
Alega o recorrente que “a sentença viola os artigos 374 nº 2 e 379 nº 1 al. a) do CPP, por falta de exame crítico das provas”.
Vejamos:
No ato decisório o juiz opta por uma solução, entre várias possíveis e alternativas. O dever de fundamentação destina-se a permitir perceber porque é que a decisão se orientou num sentido e não noutro. A sentença deve explanar os critérios lógicos que constituíram o substrato racional da decisão – cfr., ac. Trib. Constitucional de 2-12-98 DR IIª Série de 5-3-99. Trata-se de uma garantia que tem consagração constitucional – art. 205 nº 1 do CPP.
Uma sentença só não estará fundamentada se não for possível entender o «porquê» do seu conteúdo e não também quando forem incorretas ou passíveis de censura as conclusões a que o juiz chegou.

Com isso se esgota a questão da «nulidade».
Questão diferente é a de saber se o raciocínio do julgador pode validamente levar à condenação. Isso é matéria para a interposição de recurso.

O que constitui nulidade é a «falta» e não o «erro» na indicação das razões que levaram o julgador a decidir a matéria de facto em determinado sentido. Saber se essas razões podem sustentar a decisão a que se chegou, já cabe em sede de impugnação da matéria de facto ou de invocação dos vícios previstos no art. 410 nº 2 do CPP.
Ora, o recorrente não indica algum facto relativamente ao qual não tenha percebido as razões do julgador. Discorda delas, o que é diferente.
2 – A matéria de facto
a) Os factos relativos ao crime de injúria imputado ao arguido António R...
Considerou-se «provado» que “durante as agressões, o arguido António, exaltado, apelidou, em voz alta, JOAQUIM C... de filho da puta, cabrão” (al. k).
E «não provado» que “o arguido António agiu com o propósito de ofender a honra do arguido Joaquim”.
Fundamentando esta decisão escreveu-se (volta a transcrever-se): “Uma vez que o arguido António se encontrava exaltado e pretendia tão só agredir o outro, o tribunal entende que quanto às expressões o mesmo não tinha intenção de ofender. Pretendia era expressar raiva e exaltação durante a contenda”.
É uma decisão que configura a existência de um erro notório na apreciação da prova – art. 410 nº 2 al. c) do CPP Este vício, como, aliás, todos os do art. 410 nº 2 do CPP, tem forçosamente que resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso a elementos a ela estranhos. “O erro notório existe quando determinado facto provado é incompatível, ou irremediavelmente contraditório, com outro facto contido no texto da decisão, em termos de as conclusões desta surgirem como intoleravelmente ilógicas” - ac. STJ de 29-2-96, Revista de Ciência Criminal ano 6 pag. 55 e ss..
Embora se esteja ainda em sede de matéria de facto, cita-se o acórdão desta relação de 30-11-2009, proferido no recurso nº 574/06.2TAVVD.G1 (relatora Nazaré Saraiva), disponível no sítio ITIJ:
I – Existem expressões, comunitariamente tidas como obscenas ou soezes, que objetivamente atingem o património pessoal das pessoas a quem são dirigidas, enxovalhando-as e humilhando-as.
II – Tais expressões atingem necessariamente a honra do visado, a não ser que se demonstre que este as emprega usualmente e aceita sempre receber a carga de ofensividade que é inerente a elas.
É certo que as expressões foram proferidas durante uma contenda física, mas desse facto apenas é possível concluir que quem as proferiu, para além de pretender atingir integridade física do seu contendor, visou igualmente a sua honra. É isso que indicam as «regras da experiência comum» (corpo da norma do art. 410 nº 2 do CPP). Trata-se de uma situação conhecida do direito penal, a possibilidade de com o mesmo comportamento ser violada uma pluralidade de tipos de crime.
Questão diferente é a de determinar a relevância das expressões em causa na gravidade penal global do comportamento. Essa questão será tratada aquando da determinação da pena.

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A constatação dos vícios do art. 410 nº 2 do CPP apenas importa o reenvio do processo para novo julgamento, se não for possível decidir a causa, isto é se o tribunal de recurso não estiver em poder de todos os elementos necessários para corrigir o vício.
No caso, a declaração do vício decorre unicamente duma diversa perceção do que do alcance das «regras da experiência comum».
Assim, altera-se a matéria de facto nos seguintes termos:
Passa a constar dos factos provados:
«O arguido António agiu com o propósito de ofender a honra do arguido Joaquim, sabendo que essa conduta é proibida».
Elimina-se dos factos não provados o seguinte:
«O arguido António agiu com o propósito de ofender a honra do arguido Joaquim».
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Deixa-se só mais uma nota:
Ao contrário do alegado pelo recorrente o vício não é o previsto na última parte da norma do art. 410 nº 2 al. b) do CPP – a contradição entre a fundamentação e a decisão de facto.
A sentença não pode limitar-se a indicar os factos considerados provados e não provados, devendo também conter uma exposição dos motivos que fundamentaram a decisão de considerar determinados factos provados e outros não provados (art. 374 nº 2 do CPP). Esta contradição existe quando, de acordo com um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação justificaria uma diferente decisão da matéria de facto.
Pois bem, no caso a fundamentação da sentença não é contraditória com a decisão de considerar não provado que “o arguido António agiu com o propósito de ofender a honra do arguido Joaquim”. Antes é harmoniosa. No contexto da fundamentação (ao considerar-se que o António apenas quis “expressar raiva e exaltação”) é uma decisão que se impunha.
b) A impugnação da decisão sobre a matéria de facto
Impugna-se os factos que integram a autoria por parte do recorrente do crime de ofensa à integridade física.
Porém, nesta parte, a argumentação do recurso assenta num equívoco: o de que a relação pode fazer um novo julgamento da matéria de facto, decidindo, através da consulta do registo da prova e dos elementos dos autos, quais os factos que considera «provados» e «não provados». Como escreveu o Prof. Germano Marques da Silva, talvez o principal responsável pelas alterações introduzidas no CPP pela Lei 59/98 de 25-8, “o recurso em matéria de facto não se destina a um novo julgamento, constituindo apenas um remédio para os vícios do julgamento em primeira instância” – Forum Justitiae, Maio/99. É que “o julgamento a efetuar em 2ª instância está condicionado pela natureza própria do meio de impugnação em causa, isto é, o recurso… Na verdade, seria manifestamente improcedente sustentar que o recurso para o tribunal da Relação da parte da decisão relativa à matéria de facto devia implicar necessariamente a realização de um novo julgamento, que ignorasse o julgamento realizado em 1ª instância. Essa solução traduzir-se-ia num sistema de “duplo julgamento”. A Constituição em nenhum dos seus preceitos impõe tal solução…” – ac. TC de 18-1-06, DR, iiª série de 13-4-06.
Por isso é que as als. a) e b) do nº 3 do art. 412 do CPP dispõem que a impugnação da matéria de facto implica a especificação dos «concretos» pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados e das «concretas» provas que impõem decisão diversa. Este ónus tem de ser observado para cada um dos factos impugnados. Em relação a cada um têm de ser indicadas as provas concretas que impõem decisão diversa (é mesmo este o verbo - «impor» - utilizado pelo legislador) e em que sentido devia ter sido a decisão. É que há casos em que, face à prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução.
Não concretiza aquele Professor a que “vícios” se refere, mas alguns poderão ser sumariamente indicados.

Por exemplo, se o tribunal a quo tiver dado como provado que A bateu em B com base no depoimento da testemunha Z, mas se da transcrição do depoimento de tal testemunha não constar que ela afirmou esse facto, então estaremos perante um erro manifesto no julgamento. Aproveitando ainda o mesmo exemplo, também haverá um erro no julgamento da matéria de facto se, apesar da testemunha Z afirmar que A bateu em B, souber de tal facto apenas por o ter ouvido a terceiro e este não tiver sido chamado a depor. Aqui poderemos estar perante uma indevida valoração de meio de prova proibido (arts. 129 e 130 do CPP), que pode ser sindicada pela relação. Poderá ainda afirmar-se a existência de um “vício” no julgamento da matéria de facto, quando a decisão estiver apoiada num depoimento cujo conteúdo, objetivamente considerado à luz das regras da experiência, deva ser considerado fruto de pura fantasia de quem o prestou.
O recurso da matéria de facto não se destina a postergar o princípio da livre apreciação da prova, que tem consagração expressa no art. 127 do CPP. A decisão do tribunal há-de ser sempre uma “convicção pessoal – até porque nela desempenham um papel de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais” – Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, vol. I, ed.1974, pag. 204.
Por outro lado, a livre apreciação da prova é indissociável da oralidade com que decorre o julgamento em primeira instância. Como ensinava o Prof. Alberto do Reis “a oralidade, entendida como imediação de relações (contacto direto) entre o juiz que há-de julgar e os elementos de que tem de extrair a sua convicção (pessoas, coisas, lugares), é condição indispensável para a atuação do princípio da livre convicção do juiz, em oposição ao sistema de prova legal”. E concluía aquele Professor, citando Chiovenda, que “ao juiz que haja de julgar segundo o princípio da livre convicção é tão indispensável a oralidade, como o ar é necessário para respirar” – Anotado, vol. IV, pags. 566 e ss.

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A argumentação da motivação do recurso consiste na análise da prova produzida no julgamento e na extração das conclusões que a recorrente tem por pertinentes.
Na realidade, o recorrente faz a sua própria análise crítica da prova para concluir que o essencial dos factos que o responsabilizam deveria ter sido considerado não provado. Mas o momento processualmente previsto para o efeito são as alegações finais orais a que alude o artigo 360 do CPP. A impugnação da decisão da matéria de facto não se destina à repetição, agora por escrito, do que então terá sido dito. Fica-se a saber qual teria sido a decisão se o arguido/recorrente tivesse sido o juiz do seu próprio caso, mas isso nenhumas consequências pode ter, pois é ao juiz e não a outros sujeitos processuais, naturalmente condicionados pelas específicas posições que ocupam, que compete o ofício de julgar. Verdadeiramente, nesta parte, a procedência do recurso implicava que a Relação censurasse o tribunal recorrido por, cumprindo a lei, ter decidido segundo a sua livre convicção, conforme lhe determina o art. 127 do CPP.
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Apenas se acrescentará o seguinte: a sentença é bem clara ao indicar os motivos porque foram descredibilizados os depoimentos das testemunhas Joaquim O... e Maria C... e os desembargadores não encontram motivo para, nesta parte, censurar a decisão. Sendo certo que algo ocorreu entre os dois, a versão de que o recorrente JOAQUIM C... nenhuma agressão perpetrou contra o arguido António R... não é congruente com os ferimentos que este apresentou e que foram examinados nos autos.
Assim, com a exceção acima indicada, relativa ao crime de injúria, mantém-se a matéria de facto fixada na primeira instância.
c) A violação do princípio in dubio pro reo.
Este princípio é uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não houver a certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Mas daqui não resulta que, tendo havido versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido em obediência a tal princípio. A sua violação pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador, só podendo ser afirmada, quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma evidente, que o tribunal, na dúvida, optou por decidir contra o arguido – ac. STJ de 24-3-99 CJ stj tomo I, pag. 247.
Ora no texto da sentença não se vislumbra que os sr. juiz tenham tido dúvidas sobre a prova de qualquer dos factos que considerou provados, pelo que improcede a invocada violação.

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Em face da decidida alteração da matéria de facto, cometeu o arguido António R... um crime de injúria p. e p. pelo art. 181 nº 1 do Cod. Penal, punível com pena de prisão de 30 dias a 3 meses ou multa de 10 a 120 dias.
Pelas razões indicadas na sentença recorrida, deve optar-se pela pena não privativa da liberdade (art. 70 do Cod. Penal), mantendo-se igualmente o montante ficado para cada dia de multa.
A gravidade objetiva do facto, quer quanto à culpa quer quanto à ilicitude, é bem inferior à média, considerando o contexto, de ofensas corporais mútuas, em que as palavras foram proferidas. Pouca relevância tem no conjunto do comportamento.
A favor do arguido António R... há que atender igualmente à inexistência de antecedentes criminais, o que releva para o efeito da aferição das exigências de prevenção, que são diminutas.
Impõe-se, assim, uma pena concreta significativamente abaixo do meio da moldura penal abstrata, fixando-se a mesma em 30 (trinta) dias de multa, à referida taxa de € 6 (seis euros).
Há, finalmente, que fixar a pena única.
O art. 77 do Cod. Penal fornece um critério especial para a fixação concreta da pena em caso de concurso, para além das exigências gerais de culpa e prevenção: devem ser considerados em conjunto os factos e a personalidade do agente.
Os «factos» indicam-nos a gravidade do ilícito global perpetrado.

Na avaliação da «personalidade» do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma carreira) criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: Só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta.
De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização) – Figueiredo Dias, As consequências Jurídicas do Crime, pags. 190 e ss.
Todos os referidos fatores militam favoravelmente em relação ao arguido António. Como já se referiu as expressões proferidas pouco relevam na gravidade do comportamento, considerado globalmente, e nenhum dado permite o juízo de que se trata de uma personalidade votada à prática de crimes.
Fixa-se, assim, a pena única de 90 (noventa) dias de multa.

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O pedido cível
Após a ampliação de fls. 278, o pedido cível do recorrente passou a ser de € 4.040,00.
O recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada” – art. 400 nº 2 do CPP.
Sendo de € 5.000,00 a alçada do tribunal recorrido (art. 24 da Lei 3/99 de 13-1 – LOFTJ, na redacção do Dec.-Lei 303/07 de 24-8), não pode esta Relação conhecer do recurso nesta parte.

DECISÃO
Os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães concedendo provimento parcial ao recurso condenam o arguido ANTÓNIO R... por um crime de injúria p. e p. pelo art. 181 nº 1 do Cod. Penal, em 30 (trinta) dias de multa à taxa diária de € 6 (seis euros).
E, em cúmulo jurídico desta pena com a pena parcelar em que foi condenado pelo crime de ofensa à integridade física simples, na pena única de 90 (noventa) dias de multa à taxa diária de € 6,00 (seis euros).
Sem custas.