Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3170/19.0T8VCT-A.G1
Relator: LÍGIA VENADE
Descritores: COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
CONCORRÊNCIA DESLEAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/23/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I A competência material para o procedimento cautelar intentado como preliminar deriva da configuração ou projeção da ação principal.

II Compete aos requerentes identificar a ação que vão propor e respetivo pedido.

III Não tendo feito, impõe-se ao Tribunal um esforço interpretativo face ao alegado nos autos para identificação das hipóteses que daí resultam.

IV A ação em que se visa por cobro à concorrência desleal não é da competência do Juízo de Comércio, mas dos Juízos Locais ou Centrais Cíveis, como não é da sua competência a providência que a precede, ainda que o pedido seja uma entrega de bens/informações –não tem de haver coincidência de pedidos entre ação principal e procedimento cautelar.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I RELATÓRIO.

“XFOGO, Lda.” e H. S. vieram interpor providência cautelar não especificada contra J. C. e “FT., Unipessoal, Lda.” pedindo que se ordenasse a entrega aos Requerentes dos bens elencados no artigo 84 do requerimento inicial e quaisquer outros que tenham base de dados/informações da 1ª Requerente, ou a designação “XFOGO”, que se encontrem nas moradas dos Requeridos, o que veio a ser decretado sem prévia audiência destes últimos.

Para tanto alega:

. o 2º A. é o único sócio e gerente da 1ªA;
. o 1º R. foi sócio e gerente da 1ª A., tendo cessado funções de gerência em 3/7/2019 e cedido a sua quota ao 2º A. em 5/8/2019, desvinculando-se da 1ª A. nesta data;
. isso deu-se na sequência de transação realizada no processo n.º 1735/19.0T8VCT que correu termos neste Juízo de Comércio a qual foi homologada por sentença;
. nos artigos 9 a 30 do requerimento inicial, o modo de funcionamento da gerência da 1ª A. até 3/7, e os atos do 1º R. que alegou naquele processo de suspensão ou destituição de titulares de órgãos sociais e que aí serviam de fundamento ao pedido contra o 1º R.,

. os termos da transação são estes que aqui se reproduzem:

“Cláusula Primeira
O Requerido J. C. é titular de uma quota no valor nominal de 25.000,00 (vinte e cinco mil euros), que possui na sociedade “XFOGO, LIMITADA”, sociedade comercial por quotas, com sede na Rua …, nº …, freguesia de …, concelho de Viana do Castelo, com o capital social de cinquenta mil euros, com o NIPC …, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de ….
Cláusula Segunda
O Requerido J. C. obriga-se a ceder ao Requerente H. S., a referida quota no valor nominal de 25.000,00 (vinte e cinco mil euros), que é o correspondente à totalidade da quota que possui na sociedade “XFOGO, LIMITADA”.
Cláusula Terceira
O preço da cessão é de 350.000,00 Euros (trezentos e cinquenta mil euros).
Cláusula Quarta
A título de sinal e princípio de pagamento, recebeu já, nesta data, do Requerente a quantia de € 40.000,00 (quarenta mil euros), titulada pelo cheque nº 6358132296 do Banco …, e da qual dá inteira e plena quitação.
Cláusula Quinta
A restante parte do preço, ou seja, a quantia de € 310.000,00 (trezentos e dez mil euros) será paga na data da celebração do contrato definitivo correspondente ao contrato prometido.
Cláusula Sexta
O contrato definitivo correspondente ao contrato prometido será celebrado até ao dia cinco de Agosto de 2019, ficando a sua marcação a cargo do Requerente, que deverá avisar o Requerido com um dia de antecedência.
Cláusula Sétima
A presente cessão de quotas é cedida expressamente com todos os direitos e obrigações a ela inerentes e com a cedência todos e quaisquer direitos que o Requerido J. C. detém na referida sociedade, assumindo o Requerente todos os direitos e todas as responsabilidades relativamente à sociedade.
Cláusula Oitava
O Requerido J. C. renuncia expressamente à gerência da sociedade com efeitos a partir da presente data.
Cláusula Nona
O Requerente obriga-se a emitir, em representação da referida sociedade, nota de crédito relativa ao valor dos veículos de matrícula VJ, marca Mitshubishi Outlander e BMW de matrícula VI.
Cláusula Décima
O Requerente obriga-se, ainda, até à data da celebração do contrato definitivo exonerar o Requerido de todas e quaisquer responsabilidades para com a sociedade, nomeadamente, a de fiador.
Cláusula Décima-Primeira
Por Requerente e Requerido, foi dito: Que, no caso de incumprimento pontual ou tempestivo do presente contrato ou de qualquer das suas cláusulas, concedem em reconhecer expressa e reciprocamente a faculdade de obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial dos faltosos, recorrendo portanto à execução específica, sem prejuízo da indemnização pelos demais danos que resultem dessas faltas de cumprimento voluntário ou tempestivo, e que, relativamente ao eventual incumprimento por parte do Requerente e/ou Requerido, desde já se fixa no montante de 50.000,00 euros, (cinquenta mil euros).
Cláusula Décima-Segunda
Para garantia do pagamento da quantia relativa ao remanescente do preço ora acordado, o Requerente constitui voluntariamente penhor sobre a quota detida na sociedade correspondente a 50%, a favor do Requerido.
Cláusula Décima-Terceira
O Requerido obriga-se a manter sigilo sobre os procedimentos, práticas e segredos da sociedade XFOGO, e não usar ou ceder a terceiros a base de dados da empresa.
Cláusula Décima-Quarta
O Requerido obriga-se a fornecer ao Requerente todas as palavras passe, nomeadamente, as relativas aos acessos ao servidor e sistema de videovigilância como administrador, no dia de hoje.
Cláusula Décima-Quinta
Com o cumprimento do presente acordo ambos declaram que nada mais têm a reclamar um do outro.
Cláusula Décima-Sexta
Até à data da assinatura do contrato definitivo o Requerente permite ao Requerido o acesso ao e-mail da empresa ficando sem acesso ao mesmo a partir daquela data e o Requerido compromete-se ainda a requerer junto da operadora a portabilidade do número de telemóvel que usa actualmente para o seu nome pessoal.
Cláusula Décima-Sétima
O Requerente e Requerido prescindem do prazo de recurso da decisão que homologa o presente acordo.” – sublinhado nosso. – Cfr. doc.02 que ora se junta e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos.”;
. a cessão de quotas foi outorgada em 05 de agosto de 2019;

. constando também do referido documento que:

Os primeiros outorgantes obrigam-se a manter sigilo sobre os procedimentos, práticas e segredos da sociedade XFOGO, e não usar nem ceder a terceiros a base de dados da empresa.”

. 1º Réu veio incumprir o acordo celebrado; apesar de várias vezes ter sido interpelado para o efeito pelo A., o R. vem incumprindo a obrigação de fornecer todas as palavras passes necessárias ao funcionamento da XFOGO, violando a cláusula décima-quarta da supra referida transação; para além disso, o Réu acedeu indevida e abusivamente ao sistema informático da XFOGO (servidor), apenas e só com o intuito de dele retirar informações confidenciais e essenciais da empresa, para o seu próprio uso e para a ceder a terceiros, e assim prejudicar a empresa, e apesar de ter expressa e livremente renunciado à gerência da XFOGO na cláusula oitava da referida transação de 03 de julho de 2019, o 1º R. continuou a praticar atos próprios de gerente; matérias desenvolvidas nos artigos seguinte;
. o 1º R. praticou atos abusivos em prejuízo da empresa, retirou bens e informações da mesma que usou ilicitamente, conforme pontos 40 a 43 e 44 e seguintes;
. o R. vem reiteradamente violando as obrigações que assumiu nas clausulas oitava, décima-terceira e décima-quarta da “supra” transcrita transação judicial;
. em 9/7/2019 foi criada a 2ª R. que desenvolve a mesma atividade no mesmo espaço geográfico que a 1ª A., sendo o 1º R. só cio e gerente da mesma;
. este desvia clientela usando bens e informações da 1ª A. que continuam na sua posse;
. pratica atos de concorrência ilícita e proibida e viola a obrigação de não concorrência a que estava vinculado (cfr. artº.s 311º, nº. 1, do Código da Propriedade Industrial e o artº. 242º do Código das Sociedades Comerciais);
. o 1º R. mantém na sua posse bens (os quais têm informações) –que descrimina- que são da 1ª A. e que aquele tinha enquanto gerente da mesma, e que usa em proveito próprio;
. o 2º A. confiou que o 1º Réu manteria uma conduta de acordo com a boa-fé, a lealdade e os costumes que se encontram subjacentes à celebração dos negócios jurídicos; o que não veio a suceder;
. conclui que face à conduta ilícita, desleal, contrária não só às normas e usos honestos de qualquer ramo de atividade, mas também contrária à boa fé e aos costumes subjacentes à celebração dos negócios jurídicos, dos RR., a presente ação mostrasse o único meio de ainda em tempo evitar a perda de clientela da A. XFOGO, salvaguardando a sua integridade económica e financeira e evitando perdas económicas elevadas para o A. H. S.;
. pede a entrega dos bens que se encontram na posse dos requeridos e que pertencem à requerente e que contém bases de dados e informações a ela respeitantes, como forma de impedir mais prejuízos.
*
O Tribunal decidiu decretar a providência requerida sem contraditório prévio dos requeridos.
*
Citados os R.R., além do mais invocaram em sede de oposição a exceção de incompetência absoluta em razão da matéria do Juízo de Comércio para apreciação dos presentes autos.
Dizem os Requeridos, e vistos os termos da previsão do art.º 128.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, concretizado o pedido, em termos estritos, nada mais se vislumbra do que uma providência cautelar comum para entrega de bens, revestindo natureza puramente civil e não se subsumindo a nenhuma das matérias cuja competência exclusiva se relega para o Juízo de Comércio.
Em resposta, vieram os Requerentes pugnar pela improcedência da exceção, defendendo que sendo o objeto da ação principal a propor (de que a presente providência depende) que serve de critério determinador da competência do Tribunal, e visando aquele, além do mais, a condenação do Requerido J. C. a abster-se de praticar atos ilícitos e contrários aos princípios da boa fé e costumes comerciais que consubstanciam, entre outros, concorrência ilícita e proibida, apropriação de bens da empresa, em total desrespeito pelo acordo celebrado no Processo n.º 1735/19.0T8VCT que correu termos neste Juízo de Comércio, será também este materialmente competente para a presente providência, para como para a ação principal.
Em sede de audiência final e preliminarmente à produção de prova o Tribunal julgou-se materialmente competente.

Inconformados os requeridos interpuseram recurso apresentando alegações com as seguintes
-CONCLUSÕES-

I. Destina-se o presente recurso a impugnar a decisão/despacho proferido pelo Tribunal de Primeira Instância, na pretérita data de 12-11-2019, que julgou improcedente a exceção dilatória de incompetência absoluta em razão da matéria aduzida pelos Apelantes, estando os Apelantes convictos de que Vossas Excelências, subsumindo a factualidade resultante dos autos, em confrontação com o disposto nas normas jurídicas aplicáveis, tudo no mais alto e ponderado critério, não deixarão de revogar a decisão recorrida e de a substituir por uma que julgue totalmente procedente a incompetência absoluta do Tribunal a quo para a decisão da causa, com as respetivas consequências legais.
II. Ora, salvo devido respeito, que é muito, por superior e melhor entendimento, discordam os Apelantes de tal decisão, porquanto consideram ser o Tribunal a quo materialmente incompetente para conhecer quer da providência cautelar instaurada, quer da ação principal a propor.

Vejamos,

III. O Apelado H. S., na qualidade de sócio-gerente da Apelada XFOGO, Lda., deu entrada, na data de 15 de Maio 2019, junto do Juízo de Comércio do Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, de ação para suspensão ou destituição de titular de órgãos sociais, contra o aqui Apelante J. C., sócio-gerente à referida data, a qual correu os seus termos sob o n.º 1735/19.0T8VCT. Lograram as partes a obtenção de um entendimento e celebraram, na data de 03 de Julho de 2019, uma transação judicial, estipulando que a quota do aqui Apelante J. C. seria cedida ao Apelado H. S., pelo preço de 350.000,00€, o que veio a suceder mediante a celebração do acordo definitivo na data de 05 de Agosto de 2019, tendo o aqui Apelante saído definitivamente daquela sociedade.

Após,

IV. na data de 26 de Setembro do corrente ano, os Apelados instauraram providência cautelar comum contra os aqui Apelantes, alegando, para tanto, uma mescla de fundamentos: por um lado, que o Apelante J. C. teria incumprido a transação celebrada, usando abusivamente da base de dados da sociedade XFOGO, Lda., e cedendo a terceiros tal informação, possuindo ainda bens pertencentes à sociedade Apelada; por outro, que teria tentado provocar um “desvio de clientela” da Apelada XFOGO, Lda., para a Apelante FT., Lda., sociedade em que o aqui Apelante exerce agora funções de sócio-gerente, acusando o Apelante de uma “conduta ilícita e contrária aos princípios da boa-fé e dos costumes comerciais”, consubstanciando “uma concorrência ilícita e proibida”, traduzindo-se em “claros actos de concorrência desleal, ilícitos nos termos do artigo 311º, nº 1 do Novo código da Propriedade Industrial.” (vide artigos 64.º a 67.º da petição inicial).
V. Assim, e a fim de “(…) ainda em tempo evitar a perda de clientela da A. XFOGO, salvaguardando a sua integridade económica e financeira e evitando perdas económicas elevadas para o A. H. S..”, culminaram os Apelados peticionando, stricto sensu, na sua peça processual, a “entrega dos bens elencados no art. 84º desta peça e quaisquer outros que tenham base de dados/informações da A. ou a designação “XFOGO, que se encontrem nas moradas dos Requeridos supra indicados.”.

Nessa sequência,
VI. em sede de Oposição à providência cautelar decretada sem a prévia audição dos Requeridos, os aqui Apelantes arguiram, entre outras, a exceção dilatória de incompetência absoluta do Tribunal a quo, em razão da matéria, nos termos do disposto nos artigos 96.º, 99.º n.º 1, 278.º n.º 1 a), 576.º n.º 2 e 577.º a) do CPC, uma vez que as questões sub judice não se prendiam com nenhuma das matérias reservadas à competência dos Juízos de Comércio, nos termos do artigo 128.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário (doravante LOSJ), pois que, devidamente esmiuçada a providência, e concretizado o pedido, em termos estritos, nada mais se vislumbrava do que uma providência cautelar comum para entrega de bens, revestindo natureza puramente civil, pelo que o Tribunal competente em razão da matéria seria o Juízo Local Cível de Viana do Castelo, (vide artigo 7.º e 8.º da Oposição).

Subsequentemente, e em sede de resposta às exceções aduzidas,

VII. pronunciaram-se os aqui Apelados e ali Requerentes, alegando que “3.

O objecto da acção principal a propor (de que a presente providência depende) é que serve de critério determinador da competência do Tribunal, que julgará a acção principal e a providência cautelar dependente. 4. O objecto da acção principal será pois a condenação do Requerido a abster-se de praticar actos ilícitos e contrários aos princípios da boa fé e costumes comerciais que consubstanciam, além do mais, concorrência ilícita e proibida, apropriação de bens da empresa,(…) 6. A presente providencia teve como finalidade, além do mais, impedir que o Requerido continuasse a praticar actos que em si configuram situação de concorrência desleal, em total desrespeito pelo acordo celebrado no processo 1735/19.0T8VCT que correu termos neste juízo de comercio.”.
descortinando, precisamente, que o objeto da ação principal a propor seria a “condenação do Requerido à abstenção da prática de atos ilícitos e contrários aos princípios da boa fé e costumes comerciais que consubstanciam, além do mais, concorrência ilícita e proibida, apropriação de bens da empresa”, isto é, assentaria no pressuposto do exercício da alegada concorrência desleal.
VIII. Não obstante, despachou a Mma. Juiz a quo, considerando que “contendo a petição inicial de providência cautelar comum, factos suficientes para implicar a propositura como acção principal de “uma ação relativa ao exercício de direitos sociais”, este Juízo de Comércio é competente em razão da matéria para a apreciar e conhecer, improcedendo assim a excepção dilatória de incompetência absoluta em razão da matéria arguida.”
IX. Ora, não concordam os aqui Recorrentes com tal decisão, porquanto se afigura diametralmente oposta ao espírito do legislador nesta matéria e à jurisprudência que nesta sede impera.

Contemplemos,
X. Prevê o disposto no artigo 128.º da LOSJ que “1 - Compete aos juízos de comércio preparar e julgar: a) Os processos de insolvência e os processos especiais de revitalização; b) As ações de declaração de inexistência, nulidade e anulação do contrato de sociedade; c) As ações relativas ao exercício de direitos sociais; d) As ações de suspensão e de anulação de deliberações sociais; e) As ações de liquidação judicial de sociedades; f) As ações de dissolução de sociedade anónima europeia; g) As ações de dissolução de sociedades gestoras de participações sociais; h) As ações a que se refere o Código do Registo Comercial; i) As ações de liquidação de instituição de crédito e sociedades financeiras. (…). Da análise cuidada do normativo em apreço, não resulta, in casu, que estejamos perante uma ação enquadrável em nenhuma das alíneas ou números supra enunciados, uma vez que não constitui a providência em crise, nem a respetiva ação a propor, uma “acção relativa ao exercício de direitos sociais”, pois que, o aqui Apelante J. C. já não é, desde a data da outorga do contrato definitivo (05 de Agosto de 2019), sócio da sociedade Apelada, nem a sociedade Apelante FT. tem qualquer ligação com os Apelados, apresentando-se, como parte na providência cautelar e na futura ação, uma sociedade comercial na qual o ali Autor e aqui Apelado não detém qualquer participação.
XI. Ora, a este propósito se pronuncia o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 05-07-2018, pelo relator Abrantes Geraldes, assentando que “1. Compete aos juízos do comércio, além do mais, a apreciação das ações relativas ao “exercício de direito sociais”, isto é, ao exercício de direitos que emergem especificamente do regime jurídico das sociedades comerciais. 2. Não se inscreve nessa esfera de competência especializada a ação interposta pelo sócio de uma sociedade comercial contra essa sociedade e uma outra, (…) 3. Para além de em tal ação também ser parte uma sociedade comercial na qual o A. não detém qualquer participação, o facto de estar em causa o vício de nulidade decorrente de simulação contratual afasta qualquer especificidade da matéria, objetivo que presidiu à delimitação da competência especializada dos juízos do comércio, inscrevendo-se a referida ação na competência residual dos juízos cíveis.”.
XII. Cumpre, ainda, salientar o entendimento preconizado pelo Tribunal da Relação de Coimbra, no Acórdão de 08-05-2019, pelo relator Vítor Amaral, que considera que “1.-Direitos sociais, para o efeito de fixação da competência das secções de comércio, a que alude o art.º 128.º, n.º 1, al.ª c), da LOSJ (Lei n.º 62/2013, de 26-08), são os inerentes à qualidade de sócio de determinada sociedade, decorrentes do contrato de sociedade e tendentes à proteção do sócio no âmbito dos seus interesses sociais.”,
XIII. bem como o preconizado pelo Tribunal da Relação do Porto, no Acórdão de 18-04-2016, pelo relator Carlos Querido, considerando que “I-A aferição da competência material do tribunal é feita com base na relação jurídica controvertida tal como a configura o autor, ou seja, nos precisos termos em que foi proposta a ação. II – Para efeitos de integração na alínea c) do n.º 1 do artigo 128.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário, «direitos sociais» são os que integram a esfera jurídica do sócio, por força do contrato de sociedade, sendo inerentes à qualidade e estatuto de sócio e dirigidos à protecção dos seus interesses sociais. III - Os “direitos sociais” ou corporativos, integráveis na previsão legal do normativo citado pressupõem: i) que o autor tenha a qualidade de sócio; ii) que o direito que visa realizar através da ação se alicerce no contrato de sociedade; iii) que com o pedido formulado vise a proteção de um qualquer dos seus interesses sociais. IV - A secção cível é competente para conhecer da acção sempre que a configuração dada pelo autor não permita a sua integração nos direitos sociais tal como definidos em II e III.”
XIV. Ora, não existe aqui a verificação cumulativa dos requisitos supra indicados, necessária para que estejamos perante o “exercício de direitos sociais”, uma vez que nenhum direito alegado em sede de peça inaugural da providência cautelar se alicerça no contrato de sociedade, nem o pedido formulado visa a proteção dos seus interesses sociais.
XV. Sustentando os Apelados a sua posição com base na alegada prática de atos de concorrência ilícita, proibida e desleal pelo aqui Apelante, cumpre salientar que nunca se obrigou o Apelante J. C., no acordo judicial celebrado, a uma obrigação de não concorrência, o que desde logo faz soçobrar qualquer alegada proteção de interesses sociais, ou o alicerce em qualquer contrato.
XVI. E não se diga, como se diz no douto despacho recorrido, que o alegado desrespeito pelo acordo celebrado e homologado judicialmente, não pode deixar de traduzir o exercício de direitos sociais e, portanto, tratar-se de matéria da competência dos Juízos de Comércio, pois que, a aqui Apelada FT., Unipessoal, Lda., não foi parte interveniente em tal acordo, não se encontrando sequer constituída à data.
XVII. Ademais, o “exercício de direitos sociais” contende essencialmente com os processos especiais para o exercício de direitos sociais, previstos no CPC, e com o regime jurídico das sociedades comerciais, matérias que, por revestirem alguma especificidade e complexidade, relegou o legislador para a competência exclusiva dos Juízos de Comércio, apenas e só nessas circunstâncias, e não na situação sub judice.

Destarte,
XVIII. No douto despacho proferido, atentou a Mma. Juiz a quo no argumento histórico da norma constante do artigo 128.º, considerando que «(…) como é frequentemente ponderado a respeito da competência dos tribunais de comércio de modo a orientar o intérprete na determinação do sentido das normas que se referem a tal competência, na proposta de Lei n.º 182/VII- que esteve na base da criação dos mesmos- refere-se que tais tribunais são competentes para as “ações relativas ao contencioso das sociedades comerciais, ao contencioso da propriedade industrial (…)”, o que nos permite concluir, em tese geral, que a competência dos tribunais de comércio- ou Juízos do Comércio- se prende com as questões relacionadas com a vida e a atividade das sociedades ligadas a matéria do foro comercial.».
XIX. Ora, desde logo não concordamos com tal ilação, uma vez que não é concebível que qualquer questão relacionada com a vida e a atividade das sociedades possa integrar o contencioso das sociedades comerciais, e, porventura, relegar-se para matéria de competência exclusiva dos Juízos de Comércio, nem tal conclusão se pode extrair do elemento histórico apresentado.
XX. Outrossim, cumpre não olvidar os restantes elementos de interpretação das normas jurídicas: quanto ao elemento literal, o que consta especificamente da norma jurídica é a expressão “ações relativas ao exercício de direitos sociais”, sendo que, no nosso modesto entendimento, se o legislador pretendesse alargar o âmbito da norma de forma a abranger todo e qualquer contencioso minimamente relacionado com a vida e atividade de uma sociedade, tê-lo-ia feito, ao invés de elencar taxativa e minuciosamente tal competência.
XXI. Além disso, importa ainda ter em consideração outros elementos lógicos- vide, a este propósito, o entendimento do Supremo Tribunal Administrativo no Acórdão de 29-11-2011, pelo relator Pires Esteves, segundo o qual “(…) b) o elemento sistemático que indica que as leis se interpretam umas pelas outras porque a ordem jurídica forma um sistema e a norma deve ser tomada como parte de um todo, parte do sistema; c) elemento racional ou teleológico que leva a atender-se ao fim ou objectivo que a norma visa realizar, qual foi a sua razão de ser (ratio legis).” No que concerne ao elemento sistemático, cumpre salientar que aquela norma jurídica (artigo 128.º da LOSJ), enquanto integrante do corpo normativo que é a LOSJ, deverá ser compaginada com as demais normas, designadamente com o artigo 130.º que prevê que “1- Os juízos locais cíveis, locais criminais e de competência genérica possuem competência na respetiva área territorial, tal como definida em decretolei, quando as causas não sejam atribuídas a outros juízos ou tribunal de competência territorial alargada.”. Ainda, no que concerne ao elemento racional ou teleológico, parece-nos que, com a redacção de tal norma jurídica, o legislador pretendeu especializar e restringir as matérias, e não alargar competências, pelo que não tem acolhimento o apregoado no despacho recorrido.
XXII. É bem assim, o entendimento do Tribunal da Relação de Coimbra, no Acórdão de 03-05-2016, pelo relator Fonte Ramos, “Na atribuição de competência especializada ao Tribunal do Comércio/Secção de Comércio para preparar e julgar as acções relativas ao exercício dos direitos sociais releva a circunstância de estarmos perante matérias que exigem especial preparação técnica e sensibilidade e envolvem dificuldades/complexidades que podem repercutir-se também na respectiva solução.”
XXIII. Ora, não estamos perante um caso que exija especial preparação técnica ou que envolva particular dificuldade ou complexidade, pelo que não se justifica, in casu, a atribuição de competência especializada do Juízo de Comércio.

Por outro lado,

XXIV. Alegaram os Requeridos, em resposta à oposição apresentada, que a ação principal teria como objeto “a condenação do Requerido a abster-se de praticar actos ilícitos e contrários aos princípios da boa fé e costumes comerciais que consubstanciam, além do mais, concorrência ilícita e proibida, apropriação de bens da empresa.”.
XXV. Assim, o leitmotiv quer da providência cautelar, quer da acção principal, reside, como expressamente alegado pelos Apelados, na prática de atos de concorrência ilícita, proibida e desleal.
XXVI. Ora, a este respeito se tem pronunciado a jurisprudência, designadamente o Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de 10- 02-2005, pelo relator Luís Fonseca, que entendeu que “É da competência do tribunal cível e não do tribunal de comércio a preparação e julgamento de uma acção declarativa de condenação fundada na utilização abusiva pela ré de um ficheiro de clientes pertencente às autoras, constituindo o ilícito previsto na alínea i) do art. 260º do C.P.I.”, bem como o Tribunal da Relação de Lisboa, no Acórdão de 20-05-2010, pelo relator Ferreira de Almeida, considerando que “O julgamento de acção, cuja causa de pedir assenta em actos de concorrência desleal resultantes da violação das regras da concorrência, desvio de funcionários para outras empresas, actos de confusão no mercado e utilização de informação confidencial, é da competência dos tribunais cíveis, e não dos tribunais de comércio.”, e no Acórdão de 26-09-2013, pelo relator Ezaguy Martins, “(…) III- É da competência material dos Juízos de Competência Cível de Oeirasjuízos de competência específica, residual- a providência cautelar requerida contra sociedade comercial sediada em Cascais, tendo como fundamento actos de concorrência desleal consubstanciados na invocação/publicitação, pela requerida, da autoria da execução de projectos que na realidade foram integralmente realizados pela requerente, tendo como efeito a valorização do nome da requerida no mercado, em detrimento do da requerente.”. De sua banda, o Tribunal da Relação do Porto, no Acórdão de 21-02-2018, pelo relator João Proença, entendeu que “Visando a acção efectuar direitos ofendidos por actos de concorrência desleal (que extravasam dos estritos direitos da propriedade industrial) é competente o tribunal comum.”, e, no Acórdão de 16-06-2009, pelo relator Guerra Banha, que considerou que “A competência em razão da matéria para conhecer de providência cautelar não especificada baseada em actos de concorrência pertence aos tribunais comuns ou de competência específica cível, e não aos tribunais de comércio.”., bem como, finalmente, no Acórdão de 13-05-2008, pelo relator Marques de Castilho, “Discutindo-se na acção a responsabilidade dos demandados por actos e omissões cometidas no exercício das suas funções de administradores de uma sociedade, não tendo como suporte qualquer dos direitos dos sócios ou accionistas enquanto tal, trata-se de responsabilidade obrigacional, sendo competente para a acção não o tribunal de comércio mas o tribunal civil.”

Alfim,
XXVII. Se, por um lado, no douto despacho recorrido, e ao longo da sua fundamentação, a Mma. Juiz a quo considera, para efeitos de improcedência da exceção dilatória de incompetência absoluta aduzida, que «a acção intentada com vista a impedir a prática de actos ílicitos e contrários aos princípios da boa fé e costumes comerciais, consubstanciados em concorrência ilícita e proibida, bem como a apropriação de bens de sociedade (…) não pode deixar de traduzir o exercício de direitos sociais.” e que, contém a petição inicial “(…) factos suficientes para implicar a propositura como acção principal de uma “ação relativa ao exercício de direitos sociais”(…).»
XXVIII. por outro, considera que “(…) teremos que será pela análise da pretensão dos Requerentes que se poderá verificar se a providência proposta é a que de acordo com a lei deveria ser intentada (….) os Requerentes pediram que se ordenasse a entrega dos bens entretanto elencados no art.º 84.º do respetivo articulado inicial e quaisquer outros que tenham base de dados/informações da 1.ª Requerente, ou a designação “XFOGO” (…) desde logo, os efeitos jurídicos enunciados pelos Requerentes são consentâneos com o procedimento cautelar. E são-no, em concreto, com o procedimento cautelar inominado ou comum, uma vez que a pretensão dos Requerentes, nesta sede, é tão só aquela entrega.”.
XXIX. Ora, existe uma evidente contradição entre os fundamentos apresentados e a decisão, pois, se num primeiro instante, a Mma. Juiz refuta a pretensão dos aqui Apelados que alegaram, em sede de oposição, que em termos estritos, a providência cautelar revestiria natureza puramente civil e com o mero propósito da entrega dos bens, num segundo instante, já se serve de tal argumento que anteriormente refutou para fazer prevalecer o seu entendimento sobre a improcedência da nulidade por erro na forma do processo, também arguida pelos aqui Apelantes.
XXX. Assim, e salvo respeito por superior entendimento, parece-nos verificar-se uma incongruência na narração jurisprudencial de que se recorre, que desde já se argui, utilizando o Tribunal a quo argumentos a seu bel-prazer, e caindo em contradição, o que desde logo se poderá traduzir numa causa de nulidade do despacho, encontrando-se os fundamentos em oposição com a decisão ou, pelo menos, ocorrendo alguma ambiguidade que torna a decisão ininteligível, nos termos do disposto no artigo 615.º n.º 1 c) do CPC ex vi do artigo 613.º n.º 3 do CPC.,
XXXI. Assim, e atendendo à integralidade da explanação supra, parecenos que o despacho a quo violou as normas jurídicas constantes dos artigos 65.º, 96.º, 99.º n.º 1, 278.º n.º 1 a), 576.º n.º 2 e 577.º
a) do CPC e artigos 128.º e 130.º da LOSJ, devendo tais normas ter sido interpretadas e aplicadas no sentido de atribuição de competência para a apreciação e decisão da causa controvertida ao Juízo Local Cível de Viana do Castelo, verificando-se a incompetência absoluta em razão da matéria do Tribunal a quo,
XXXII. sendo ainda patente a contradição entre os fundamentos apresentados e a decisão, e, consequentemente, a nulidade prevista no artigo 615.º n.º 1 c) do CPC ex vi do artigo 613.º n.º 3 do CPC.
XXXIII. Destarte, deverá V.ª Ex.ª revogar o despacho recorrido, enfermando de nulidade, substituindo-o por um outro que determine a incompetência absoluta do Tribunal a quo, com as respetivas consequências legais.

Conclui pedindo que a Apelação seja julgada totalmente procedente, revogando-se o despacho a quo ora recorrido, enfermando de nulidade, substituindo-o por um outro que determine a incompetência absoluta do Tribunal a quo, com as respetivas consequências legais.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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Importa todavia abordar duas questões prévias.

No caso dos autos foi decretada a providência sem contraditório prévio dos requeridos.

Citados, estes tinham dois meios de reação alternativos ao seu alcance –artº. 372º, nº. 1, C.P.C.: recorrer, nos termos gerais, do despacho que a decretou, quando entenda que, face aos elementos apurados, ela no devia ter sido deferida (no prazo reduzido de 15 dias por força do artº. 638º, nº. 1, C.P.C.); deduzir oposição, quando pretenda alegar factos ou produzir meios de prova não tidos em conta pelo tribunal e que possam afastar os fundamentos da providência ou determinem a sua redução, sendo que neste caso cabe recurso da nova decisão que vier a ser proferida que constitui complemento e parte integrante da inicialmente proferida –nº. 3.

Conforme José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º, 3º edição, pags. 54 a 61, a escolha do meio depende do fundamento invocado: se pretender alegar factos novos ou produzir novos meios de prova tem de apresentar oposição; se quiser apenas por em causa a apreciação da prova dos factos dados como assentes, apresentar documento novo respeitante a algum deles, ou impugnar a aplicação do direito aos factos dados como provados, recorrerá de apelação, a não ser que o valor do processo ou a sucumbência lhe não permitam; neste caso pode na oposição levantar questões que só pudesse suscitar no recurso. Mais dizem que se o requerido quiser deduzir uma exceção dilatória ou perentória de conhecimento oficioso e que o tribunal devia ter apreciado com base nos factos constantes do processo ou factos e conhecimento oficioso, o meio adequado é a apelação; já não será se a exceção está dependente de arguição (por exemplo, prescrição ou caducidade em matéria de direito disponíveis). Mais dizem que interpretam extensivamente a alínea b), de modo a abranger situações em que seja previsível a alegação de factos novos pelo requerente, em resposta á exceção deduzida pelo requerido, caso em que o requerente terá também o direito de propor novos meios de prova que entenda (e que dificilmente se concebe uma exceção em que esta situação não se coloque). Noutro ponto, dizem que no caso da opção pela oposição face à pretensão de alegar novos factos e /ou apresentar novos meios de prova, acessoriamente pode invocar fundamentos que, a não haver oposição, constituiria fundamento de recurso. Aventa ainda a hipótese de aplicação do artº. 193º, nº. 3, C.P.C., no caso do uso do meio inadequado.

António Santos Abrantes Geraldes, “in” “Temas da Reforma do Processo Civil”, III Volume, 230 e segs., aborda esta matéria, embora antes da revisão do CPC, mas em moldes que mantêm igual consideração. E coloca expressamente

No caso dos autos os recorrentes optaram pela oposição e nela, além do mais que não nos cumpre apreciar, invocaram a exceção de incompetência absoluta. O Tribunal “a quo” admitiu este meio uma vez que proferiu despacho apreciando a exceção (-sendo que o despacho tabelar antes proferido não faz caso julgado, como é unanimemente reconhecido).

Não foi invocada qualquer processual ou nulidade ao abrigo do artº. 615º, nº. 1, d), do C.P.C. (as quais não são de conhecimento oficioso).

Assim sendo, não cumpre também nesta fase apreciar se esta situação podia ser invocada em sede de oposição ou se tinha de ser apresentado recurso “direto” da decisão proferida sem contraditório.
*
A outra questão prende-se com o facto de estar impugnado o valor do processo. Todavia, tendo este recurso por objeto a incompetência absoluta da qual é sempre admissível recurso independente do valor do processo e da sucumbência (artº. 629º, nº. 2, a), do C.P.C.), tal não constitui questão prévia à sua apreciação.
***
II QUESTÕES A DECIDIR.

Decorre da conjugação do disposto nos artºs. 608º, nº. 2, 609º, nº. 1, 635º, nº. 4, e 639º, do Código de Processo Civil (C.P.C.) que são as conclusões das alegações de recurso que estabelecem o thema decidendum do mesmo. Impõe-se ainda ao Tribunal ad quem apreciar as questões de conhecimento oficioso que se resultem dos autos.

Impõe-se por isso no caso concreto e face às elencadas conclusões decidir se:

-o despacho proferido que julgou o Tribunal materialmente competente é nulo por contradição nos seus fundamentos;
-se o Juízo de Comércio e materialmente competente para a tramitação e decisão do presente procedimento cautelar comum.
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III MATÉRIA A CONSIDERAR.

A matéria a considerar traduz-se no que é alegado em sede de requerimento inicial e que configura a causa de pedir tal como já enunciado no relatório “supra” e respetivo pedido, e resulta da consulta dos respetivos autos.
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IV- O MÉRITO DO RECURSO.

Os recorrentes suscitam a nulidade do despacho proferido por contradição nos seus fundamentos (fundamentos em oposição com a decisão), ou pelo menos a ambiguidade da decisão que a torna ininteligível, o que se afigura se de analisar previamente, muito embora os recorrentes tenham apresentado esta como última questão.

Dispõe o art. 615º, nº 1, C.P.C. (aplicável aos despachos por força do artº. 613º, nº. 3, do mesmo, com as devidas considerações) que é nula a sentença quando:

a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e)O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.

As nulidades da sentença são vícios formais e intrínsecos de tal peça processual e encontram-se taxativamente previstos no normativo legal “supra” citado.
Os referidos vícios, designados como error in procedendo, respeitam unicamente à estrutura ou aos limites da sentença.
As nulidades da sentença, como seus vícios intrínsecos, são apreciadas em função do texto e do discurso lógico nela desenvolvidos, não se confundindo com erros de julgamento (error in judicando), que são erros quanto à decisão de mérito explanada na sentença, decorrentes de má perceção da realidade factual (error facti) e/ou na aplicação do direito (error juris), de forma que o decidido não corresponde à realidade ontológica ou normativa, com a errada aplicação das normas jurídicas aos factos, erros de julgamento estes a sindicar noutro âmbito (cf. Acórdão desta Relação de 4.10.2018 em que foi relatora a Exmª Srª Desembargadora Drª Eugénia Cunha, e do STJ de 17/10/2017, www.dgsi.pt).

Conforme Acórdão desta Relação relatado pela Exmª Srª desembargadora Drº Maria João Matos com a mesma data e igualmente publicado “As decisões judiciais proferidas pelos tribunais no exercício da sua função jurisdicional podem ser viciadas por duas distintas causas (qualquer uma delas obstando à sua eficácia ou validade): por se ter errado no julgamento dos factos e do direito, sendo então a respectiva consequência a sua revogação; e, como actos jurisdicionais que são, por se ter violado as regras próprias da sua elaboração e estruturação, ou as que balizam o conteúdo e os limites do poder à sombra do qual são decretadas, sendo então passíveis de nulidade, nos termos do art. 615.º do C.P.C. (neste sentido, Ac. do STA, de 09.07.2014, Carlos Carvalho, Processo nº 00858/14, in www.dgsi.pt, como todos os demais citados sem indicação de origem).”

Quanto ao vício consagrado na al. c): os fundamentos estarem em oposição com a decisão ou ocorrer ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível, cumpre referir que “entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença. Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já quando o raciocínio expresso na fundamentação aponta para determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correta, a nulidade verifica-se.
Seguimos nesta matéria a exposição feita no primeiro dos Acórdãos citados desta Relação, Acs. da Rel. do Porto de 27/9/2018, e de 05/03/2015, na mesma publicação, e o que nos dizem José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º da 3ª edição, pags. 735 a 737.

Referem os recorrentes que o Tribunal “a quo” considera, para efeitos de improcedência da exceção dilatória de incompetência absoluta aduzida, que «a acção intentada com vista a impedir a prática de actos ílicitos e contrários aos princípios da boa fé e costumes comerciais, consubstanciados em concorrência ilícita e proibida, bem como a apropriação de bens de sociedade (…) não pode deixar de traduzir o exercício de direitos sociais.” e que, contém a petição inicial “(…) factos suficientes para implicar a propositura como acção principal de uma “ação relativa ao exercício de direitos sociais”(…).». Por outro lado, considera que “(…) teremos que será pela análise da pretensão dos Requerentes que se poderá verificar se a providência proposta é a que de acordo com a lei deveria ser intentada (….) os Requerentes pediram que se ordenasse a entrega dos bens entretanto elencados no art.º 84.º do respetivo articulado inicial e quaisquer outros que tenham base de dados/informações da 1.ª Requerente, ou a designação “XFOGO” (…) desde logo, os efeitos jurídicos enunciados pelos Requerentes são consentâneos com o procedimento cautelar. E são-no, em concreto, com o procedimento cautelar inominado ou comum, uma vez que a pretensão dos Requerentes, nesta sede, é tão só aquela entrega.”.

Dizem os recorrentes que existe contradição entre os fundamentos apresentados e a decisão, “pois se, num primeiro instante, a Mma. Juiz refuta a pretensão dos aqui Apelados que alegaram, em sede de oposição, que em termos estritos, a providência cautelar revestiria natureza puramente civil e com o mero propósito da entrega dos bens, (…) num segundo instante, já se serve de tal argumento que anteriormente refutou para fazer prevalecer o seu entendimento sobre a improcedência da nulidade por erro na forma do processo, também arguida pelos aqui Apelantes.

Salvo o devido respeito, não deve proceder a argumentação dos recorrentes. O Tribunal analisou duas questões distintas –incompetência em razão da matéria e erro na forma de processo- que a seu ver pressupõem situações próprias e diversas.

Ou seja: para efeitos de competência interessa a causa de pedir e pedido e a configuração, face a tal, da ação principal. Para efeitos de erro na forma de processo, no caso o procedimento cautelar, interessa essencialmente o pedido. Portanto o tribunal destacou um e outro dos aspetos para decidir cada uma das questões. Se pela causa de pedir e pedido considerou que a ação principal respetiva seria de exercício de direitos sociais e por isso, competente o Tribunal para a principal, competente também para a preliminar providência; pelo pedido considerou que o procedimento cautelar não especificado seria o adequado a obter a tutela provisória do direito. Como iremos ver, a providência não especificada “serve” residualmente para tutelar todas as situações que não encontram providência especificada na lei, e por isso adequam-se a qualquer ação principal; já o contrário não se verifica, ou seja, a lei prevê procedimentos cautelares especificados cuja ação principal tem de ser necessariamente uma determinada; por exemplo os alimentos provisórios só podem ser a tutela provisória de uma ação em que se visa a fixação de alimentos definitivos, como o arbitramento de reparação provisória será sempre dependência de uma ação de indemnização –artºs. 384º e 388º do C.P.C. (…).

No caso de uma ação principal de exercício de direitos sociais (que o Tribunal não concretizou), tal como uma ação de concorrência desleal, poderia ser precedida de uma providência cautelar não especificada, como esta, dependendo do pedido e do que visa acautelar (obedecendo ao previsto no artº. 362º, nº. 1, do C.P.C.), e desde que não haja nenhuma providência especificada que se adeque ao fim visado. Mais se diga que em sede de Propriedade Industrial está previsto o recurso a providência cautelar aí regulada.

Estas questões serão mais à frente retomadas.
Não há por isso qualquer contradição ou ambiguidade, há prismas diferentes para a análise de cada questão, e cada uma foi justificada.
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Cumpre analisar então a exceção de incompetência absoluta – em razão da matéria.

A competência em razão da matéria é um pressuposto processual, constituindo condição necessária para que o tribunal se possa pronunciar sobre o mérito da causa, julgando da procedência ou improcedência do pedido formulado pelo autor. Representa a medida de jurisdição de cada tribunal para conhecer de determinado litígio e é aferida em função dos termos em que a acção é proposta, ou seja, em função da relação jurídica subjacente ao litígio, tal como o autor a configura, não importando para tal saber se, em substância, ao autor assiste ou não o direito que se arroga (cfr. Ac. da Rel. do Porto de 21/2/2018, dgsi.pt).
Quanto à extensão e limites de competência, o artº. 37º desta lei estabelece que, na ordem jurídica interna, a competência reparte-se pelos tribunais judiciais segundo a matéria, o valor, a hierarquia e o território, regra esta que também decorre do nº. 2 do artº. 60º, nº. 1, do C.P.C., quando diz que a competência dos tribunais judiciais, no âmbito da jurisdição civil, é regulada conjuntamente pelo estabelecido nas leis de organização judiciária e pelas disposições deste Código.
O momento a atender para fixar a competência do tribunal é o da propositura da acção, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei –artº. 38º, nº. 1 da Lei n.º 62/2013, de 26/8.
A Constituição da República Portuguesa prevê no artº. 211º, nº. 1, e como regra, que os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais. A atribuição da competência aos tribunais da jurisdição comum, como jurisdição residual que é (cfr. também os artº. 40º, n.º 1, da Lei nº. 62/2013, 64º e 65º do C.P.C.), depende da inexistência de norma específica atributiva de competência a outra ordem jurisdicional.
No âmbito dos tribunais da jurisdição comum há que distinguir entre os tribunais de competência genérica e de competência especializada (artº. 80º, nº. 2, da Lei nº. 62/2013). Os tribunais de comarca desdobram-se em juízos, que podem ser de competência especializada, de competência genérica e de proximidade (artº. 81º, nº. 1, da mesma lei), competindo aos juízos de competência genérica conhecer em 1.ª instância das causas que não sejam atribuídas a juízos de competência especializada.

A incompetência em razão da matéria é absoluta, no caso seria de conhecimento oficioso, sendo uma exceção dilatória –artºs. 96º, a), 97º, nº. 2, e 576, nº. 1, nº. 2, 577º, a), e 578º, C.P.C..
Para a análise da questão “sub judice” interessa ainda tecer prévias considerações sobre as providências cautelares.

O objetivo das providências cautelares há-de ser o de acautelar o efeito útil da ação –artº. 2º, nº. 2, C.P.C..
As providências cautelares têm a sua justificação no princípio do nosso sistema processual civil segundo o qual a demora de um processo não deve prejudicar a parte (-com maior desenvolvimento vide Marco Carvalho Gonçalves, “Providências Cautelares”, pags. 81 a 91 da 2ª edição). As providências cautelares são medidas que são requeridas e decretadas, tendo em vista acautelar o efeito útil da ação, mediante a composição provisória dos interesses conflituantes, mantendo ou restaurando a situação de facto necessária à eventual realização efetiva do direito. “Tais medidas visam precisamente impedir que, durante a pendência de qualquer ação declarativa (...), que a situação de facto se altere de modo a que a sentença nela proferida, sendo favorável, perca toda a sua eficácia ou parte dela. Pretende-se deste modo combater o “periculum in mora” (o prejuízo da demora inevitável do processo) a fim de que a sentença se não torne uma decisão puramente platónica” -Antunes Varela e Outros, in Manual de Processo Civil, pag. 23 e segs. da 2ª edição.

No Código de Processo Civil existe a figura do processo cautelar comum, “comportando a regulamentação dos aspectos comuns a toda a justiça cautelar. Institui-se, por esta via, uma verdadeira ação cautelar geral para a tutela provisória de quaisquer situações não especialmente previstas e disciplinadas, comportando o decretamento das providências conservatórias ou antecipatórias adequadas a remover o “periculum in mora” concretamente verificado e a assegurar a efectividade do direito ameaçado, que tanto pode ser um direito já efetivamente existente, como uma situação jurídica emergente de sentença constitutiva, porventura ainda não proferida” -preâmbulo do Dec. Lei n.º 329-A/95, de 12/12. O procedimento cautelar comum tem por isso carácter residual, quer no plano das regras adjetivas, quer no plano das providências que nele se podem integrar -cfr. António Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, Procedimento Cautelar Comum, Vol. III, pág. 56.

Os requerentes optaram pelo procedimento cautelar comum.

Ao procedimento cautelar comum aplicam-se os artºs. 362º a 376º do C.P.C..

Refere o nº. 1 do artº. 362º que sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória, concretamente adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado. O interesse do requerente pode fundar-se num direito já existente ou em direito emergente de decisão a proferir em ação constitutiva, já proposta ou a propor – nº. 2 do mesmo. “Não são aplicáveis as providências referidas no n.º 1 quando se pretenda acautelar o risco de lesão especialmente prevenido por alguma das providências tipificadas na secção seguinte” – nº 3 do mesmo. A providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão. – nº. 1 do artº. 368º. “A providência pode, não obstante, ser recusada pelo tribunal, quando o prejuízo dela resultante para o requerido exceda consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar” –nº. 2.

São então requisitos (de fundo e de forma) necessários ao decretamento desta providência:

1. - Probabilidade séria da existência de um direito (aparência do direito – “fumus bonis juris”).
2. - Fundado receio de que a demora natural na solução do litígio lhe causará uma lesão grave e dificilmente reparável (ao direito que se pretende fazer valer em ação pendente ou a instaurar) –“periculum in mora”.
3. - Desde que o prejuízo resultante de um tal recurso não exceda consideravelmente o dano que, através da providência, se pretenda evitar.
4. - E não cabimento da possibilidade de recorrer a qualquer outro tipo de procedimento cautelar nominado.

Veja-se nesta matéria e a propósito dos requisitos o Ac. da Rel. do Porto de 21/02/2018 (dgsi.pt, relatora Drª Maria de Jesus Pereira).

Nas providências nominadas pode ser dispensado um ou outro destes requisitos em concreto.
Mais se diz que se relativamente à probabilidade da existência do direito a lei contenta-se com a verificação de indícios razoáveis, ou a mera aparência do direito, já quanto ao “periculum in mora” (-a demora e o dano decorrente da demora) exige-se um juízo de certeza que se revele suficientemente forte; cabe ao requerente a alegação e demonstração da gravidade do dano e da sua natureza irreparável ou de difícil reparação; deve assentar em factos concretos e consistentes, valorados objectivamente, bem como a necessidade de ser acautelado por via provisória.
Relativamente à competência para o procedimento cautelar ela deriva da configuração ou projeção da ação principal (quando a providência é sua preliminar, já que quando não é simplesmente corre por apenso à principal). Tal resulta do caracter instrumental e subordinado relativamente à ação principal destinada a regular de fora definitiva o direito em litígio (salva a possibilidade de inversão do contencioso –artº. 364º, nº. 1, C.P.C.).
Competiria aos requerentes identificar de forma clara e precisa qual a ação que vão propor do qual o procedimento é instrumental, e o respetivo pedido –não tem de haver coincidência entre o pedido da providência cautelar e o da ação principal, o que vai entroncar com as modalidades e finalidades das providências cautelares (-conservatórias, antecipatórias, tendo por finalidade a garantia de um direito, a regulação provisória de uma situação jurídica ou a antecipação provisória de um determinado efeito jurídico).
Assim a competência para a ação principal ditará a competência, material, de acordo com o valor e por regra territorial, dos procedimentos cautelares –cfr. artigos da Lei nº. 62/2013 de 26/8, reguladores da competência material dos Tribunais e em função do valor das ações, e artº. 78º do C.P.C..
Por um lado, quer para a competência territorial (cf. Cons. Salvador da Costa, in “A injunção e as conexas acções e execuções”, 5ª ed, 2005, 47) quer para a competência material (cf. Des. Abrantes Geraldes, in “Temas da Reforma do Processo Civil”, III, 3ª ed; “Procedimento Cautelar Comum”, 221 – nota – e 213) o tribunal é competente para decidir as medidas cautelares dela dependentes. “Daí que o tribunal competente para o procedimento cautelar comum seja o da acção de que é instrumental e, quando requerido antes de instaurada essa lide, a competência material deve determinar-se face ao pedido, e causa de pedir, da acção, que devem ser alegados no requerimento da medida preventiva –Ac. do STJ 1/3/2007 (wwwdgsi.pt).

No caso dos autos os requerentes não identificaram a ação principal. Em sede de resposta á exceção vieram contudo adiantar que a ação principal se prende com a concorrência ilícita e proibida, apropriação de bens da empresa, desrespeito pela transação. Exige-se portanto um esforço de interpretação do Tribunal.
Note-se que a ação de suspensão ou destituição de gerente terminou por transação, pelo que é irrelevante a matéria alegada e que serviria para a fundamentar. E por outro lado ainda, no que concerne à cedência da quota societária o que está em causa já nem sequer é a transação uma vez que a mesma foi “substituída” pelo contrato entretanto levado a efeito para sua concretização.

As hipóteses que se podem colocar face ao alegado são:

-ação em que se pretenda impedir a concorrência desleal, responsabilidade civil (cumulativamente ou não), ou até de reivindicação dos bens da 1ª A.; ou ainda violação da transação que constitui um verdadeiro contrato, autónomo do processo em que se integra, para este efeito, ou ainda do contrato entretanto realizado e que a “substituiu” parcialmente.
Nenhuma destas hipóteses, na nossa opinião, é da competência do Juízo do Comércio, sendo antes, e consoante o valor, da competência do juízos centrais cíveis ou dos juízos locais cíveis. De facto, e excluída a situação da concorrência desleal a que nos vamos referir mais concretamente, todas as outras têm que ver com tutela de natureza claramente civil, em que não estão em causa nem interesses exclusiva ou eminentemente sociais, inerentes à qualidade de sócio, mas antes iguais aos de qualquer particular. Tão pouco a matéria respetiva seria de algum modo especializada e designadamente relativa a atos de comércio ou da vida societária, antes têm que ver com a aplicação de institutos (responsabilidade civil configurada no artº. 483º do C.C., posse ou propriedade) e interpretação de negócios do direito civil (transação, contrato ainda que tendo por objeto a cedência de quota).
Inclinamo-nos contudo para identificar a ação principal como aquela em que os requerentes pretendem por cobro a uma concorrência que entendem desleal, sendo a entrega dos bens em causa o modo de evitar que a mesma se prolongue com prejuízos para os requerentes (-providência cautelar conservatória na medida em que previne a continuação dos alegados danos graves ou de difícil reparação). Portanto, e diversamente em relação ao alegado pelos recorrentes, não está em causa uma simples entrega de bens, visto não só o pedido mas também a causa de pedir, que é por onde se conforma a competência material.
E neste particular caso a jurisprudência (que nos dispensamos de citar uma vez que os recorrentes já o fazem) inclina-se de forma maioritária para a atribuição da competência para a sua apreciação aos juízos locais/centrais cíveis e não ao juízo de comércio.
Não entendemos por isso o alcance do que se diz no despacho proferido quando se alude ao exercício de direito sociais que depois não se nomeia. Pois que, para que assim fosse e para que a competência do juízo de comércio estivesse verificada face ao artº. 128º, nº. 1, c), e nº. 3 (para a providência) da Lei nº. 62/2013, e permitindo-nos citar parte do Ac. da Rel. do Porto de 18/4/2016 citado pelos recorrentes, teríamos:“Para efeitos de integração na alínea c) do n.º 1 do artigo 128.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário, «direitos sociais» são os que integram a esfera jurídica do sócio, por força do contrato de sociedade, sendo inerentes à qualidade e estatuto de sócio e dirigidos à proteção dos seus interesses sociais. III - Os “direitos sociais” ou corporativos, integráveis na previsão legal do normativo citado pressupõem: i) que o autor tenha a qualidade de sócio; ii) que o direito que visa realizar através da ação se alicerce no contrato de sociedade; iii) que com o pedido formulado vise a proteção de um qualquer dos seus interesses sociais.” Como já destacamos o(s) direito(s) dos requerentes não se alicerça no contrato de sociedade, nem está em causa um interesse iminentemente de carácter social “stricu sensu”. O exercício dos direitos sociais, como avançam os recorrentes, estão previstos essencialmente nos artºs. 1048º e segs. do C.P.C., ou resultam do exercício de direitos previstos no Código das Sociedades Comerciais (CSC).
Reforce-se que já não está em causa a exclusão de sócio –os requerentes citam no seu requerimento o artº. 242º do CSC, sem significado para esta ação. Citam o artº. 311º do Código da Propriedade Industrial –este já relativo à concorrência desleal (veja-se ainda, acrescentamos, o artº. 313º).
O Código da Propriedade Industrial atual (DL nº. 110/2018 de 10/12) prevê procedimento cautelar cujo pedido será o que mais se adeque à concreta situação desde que visem um dos fins que se prevê no artº. 345º, nº. 1, do mesmo código. O artº. 347º do mesmo regula ainda o direito indemnizatório. Não nos debruçaremos sobre o uso da providência adequada (confronto entre a não especificada do Código de Processo Civil e esta do Código da Propriedade Industrial, se esta é vocacionada para o caso da concorrência desleal vista neste prisma -“tout court”-, ou apenas para os casos de violação de direitos privativos da propriedade industrial, como “infra” de delimitará, se uma acresce à outra –cfr. Ac. da Rel. de Lisboa de 27/2/2014, dgsi.pt) porque tal extravasa o âmbito deste recurso.
Quanto à matéria em questão, alegada pelos requerentes, e para que não subsistam dúvidas, como se cita no Ac. da Rel. do Porto de 21/02/2018 (dgsi.pt, relator, Drº João Proença), citando o STJ num Acórdão de 24/02/2012, “Pode haver acto de concorrência desleal sem haver violação de direitos privativos da propriedade industrial (e vice-versa), tratando-se de institutos distintos na medida em que através dos direitos privativos da propriedade industrial se procura proteger uma utilização exclusiva de determinados bens imateriais (v.g. direito à marca), enquanto que através da repressão da concorrência desleal se pretende estabelecer deveres recíprocos entre os vários agentes económicos.". E os direitos que subjazeram à criação do Tribunal da Propriedade Intelectual foram aqueles direitos absolutos – erga omnes -, de estrutura semelhante ao direito de propriedade regulado no Código Civil (art.º 1302.º ss.), mas que, ao invés de coisas corpóreas, móveis ou imóveis, incidem sobre determinados bens imateriais (invenções e patentes, modelos de utilidade, modelos e desenhos industriais, marcas, nomes e insígnias de estabelecimentos e logótipos). A prática de actos de concorrência desleal, quando não relacionada com a violação de direitos dessa natureza, apesar de abrangida pela noção genérica do art. 317º do Código da Propriedade Industrial (DL.36/2003, de 5 de Março), não cabe no âmbito da competência material do Tribunal da Propriedade Intelectual, vocacionado apenas para a tutela dos direitos privativos da propriedade industrial.”- cfr. artº. 111º da Lei nº. 62/2013.

Por tudo o exposto caímos na norma (residual) da competência (genérica por contraposição a especializada) no caso e face ao valor atribuído à providência (€ 35.000,00) dos juízos locais cíveis territorialmente competentes (artº. 130º da Lei nº. 62/2013, e artº. 117º, nº. 1, c), do mesmo “a contrario”).
Assim, conclui-se pela incompetência absoluta (porque material) do Juízo de Comércio de Viana do Castelo.

Pelo que deve proceder o presente recurso.
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V DISPOSITIVO.

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso procedente e, em consequência, conceder provimento à apelação e revogar o despacho recorrido, julgando incompetente em razão da matéria o Juízo de Comércio de Viana do Castelo e consequentemente absolvem-se os requeridos da instância, com as legais consequências.
Custas do recurso pelos recorridos.
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Guimarães, 23 de janeiro de 2020.
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Os Juízes Desembargadores
Relator: Lígia Paula Ferreira Sousa Santos Venade
1º Adjunto: Jorge dos Santos
2º Adjunto: Heitor Pereira Carvalho Gonçalves

(A presente peça processual tem assinaturas eletrónicas)