Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1328/18.9T9VFX.G1
Relator: ANTÓNIO TEIXEIRA
Descritores: REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO
REQUISITOS
MAUS TRATOS
REJEIÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/27/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I - O requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente tem de conter, substancialmente, uma verdadeira acusação, de molde a possibilitar a realização da instrução, fixando os termos do debate e o exercício do contraditório, bem como a elaboração da decisão instrutória.
II - Cabem no conceito de inadmissibilidade legal da instrução realidades diversas, como a circunstância de o requerimento do assistente “não conformar uma verdadeira acusação”, não sendo o mesmo admissível se dele não constar a descrição da conduta típica (com os seus elementos objectivos e subjectivos) com a indicação das disposições legais violadas ou indicação do arguido, pois é o próprio procedimento que não pode prosseguir por falta dos pressupostos de objecto e de arguido.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

1. No âmbito do Inquérito nº 1328/18.9T9VFX, que correu termos pelo Departamento de Investigação e Acção Penal, Secção de Celorico de Basto, da Procuradoria da República da Comarca de Braga, foi proferido despacho de arquivamento, nos termos do disposto no Artº 277º, nº 2, do C.P.Penal, relativamente a factos participados por M. T. contra a sua irmã, E. F., os quais, em abstracto, seriam susceptíveis de configurar a prática de um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo Artº 205º, nºs. 1 e 4, al. b), por referência do Artº 202º, al. b), do Código Penal, de um crime de maus tratos, p. e p. pelo Artº 152º-A, do Código Penal, e de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo Artº 256º, nº 1, al. d), do Código Penal (cfr. fls. 388 / 393 Vº)
*
2. Notificado daquele despacho de arquivamento, o queixoso, solicitando a sua constituição como assistente, o que lhe foi deferido pelo despacho de 13/10/2020, exarado a fls. 434, veio requerer abertura da instrução, nos termos constantes de fls. 412 Vº / 418 Vº, que a seguir se transcrevem (1), na parte que ora interessa considerar, sustentando, a final, seja proferido despacho de pronúncia, por recolha de indícios suficientes contra a arguida quanto à prática dos crimes de maus tratos, p. e p. pelo Artº 152º-A, nº 1, de abuso de confiança gravada, p. e p. pelo Artº 205º, nºs. 1 e 4, aI. b), e de falsificação de documento, p e p. pelo Artº 256º, nº 1, do Código Penal:

“(...)
M. T., Assistente nos autos supra identificados, vem requerer a abertura de instrução, nos termos do art. 287°, n° 1 al. b) do C.P.P., nos termos e com os seguintes fundamentos:

I - DOS FACTOS


O Assistente apresentou queixa contra a Arguida por ter tomado conhecimento dos seguintes factos:

1. Que a sua mãe, a residir com a Arguida, não era devidamente alimentada e cuidada (alimentação à base de doces e fritos) pela Arguida, seja ao nível de medicação, seja ao nível de higiene (marcas na zona da fralda), e eram evidentes marcas corporais que o Assistente associou a maus tratos físicos (hematomas), ou falta de cuidado com a progenitora em não retirar a fralda com regularidade;
2. Tendo tomado conhecimento aquando da deslocação ao Hospital ..., onde a progenitora se encontrava, e pôde o Denunciante perceber a gravidade da situação, assim como as suas irmãs, uma vez que a mesma apresentava hematomas e marcas na zona da fralda, revelando ausência completa de cuidados básicos.
3. O Assistente tomou conhecimento, aquando da morte da sua mãe, que a mesma tinha outorgado um testamento, apesar de saber que a sua mãe já não se encontrava cm condições físicas e psicológicas nos últimos meses de vida,
4. Assim como sabia que era sua vontade não testar,
5. E, percebendo que a progenitora foi vítima de maus tratos, provavelmente sofrera pressão por parte da Arguida para testar a seu favor, contra a sua vontade e as suas condições de saúde.
6. Mais, o Assistente, após a morte da progenitora, percebera que a Arguida se apropriou, sem autorização dos outros herdeiros, de bens pertencentes à sua progenitora, cujo paradeiro se desconhece,
7. Dos quais fez menção na relação de bens apresentada no processo de Inventário, que confrontado com a Relação de Bens da Arguida, se percebe claramente que existem mais bens e que a Arguida os oculta - Cfr. Docs. nºs 1 e 2 que se protestam juntar e se dão por reproduzidos para todos os devidos e legais efeitos.
8. Nomeadamente, avultadas quantias de dinheiro, movimentado de contas bancárias e outras que a progenitora guardava em casa, peças em ouro, loiças antigas, cubas de vinho, e bens de olaria, alguns dos quais o Assistente tem fotografias e a certeza que tais bens existiam à data da morte da progenitora - Cfr. Doc. nº que se protesta juntar e se dá por reproduzido.
9. Mais, a Arguida manteve a última residência da mãe fechada, proibindo o acesso dos seus irmãos, e não indicando onde se encontravam os bens que os mesmos indicavam,
10. Nunca tendo referido que tais bens não existiam ou que, como vivia com a progenitora, que esta tinha dado aos mesmos algum destino (por venda, doação ou outro).
11. Assim como, sem se perceber a origem, foram celebrados negócios de aquisição de uma viatura automóvel (matrícula VA, marca Fiat, modelo Cubo) para a Arguida, e a construção de uma garagem, quando na área da sua residência se sabe, por familiares, amigos e vizinhos, que a Arguida não tem nem teve até à data qualquer rendimento que permitisse tais aquisições a pronto pagamento, como ocorreram.
12. Ainda neste âmbito, sabe o Assistente que o primo da Arguida, a quem a mesma pediu que lhe disponibilizasse uma habitação, J. F., comprou um imóvel, cuja propriedade ficou registada a favor da empresa de que é sócio, nomeadamente X - Engenharia, Lda., com sede na Rua ..., Edifício ..., nº ... Celorico de Basto
13. Pessoa com quem a Arguida tem muita proximidade, tendo inclusive pedido para habitar um imóvel a este pertencente.
14. A Arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente de que a sua conduta é ilícita e punível por lei, e ainda assim querendo e conformando-se com o efeito da sua conduta.

Ora, o Assistente não pode concordar com o despacho de arquivamento,

Porquanto,

No que respeita ao crime de maus tratos à progenitora do Assistente, o Ministério Público, apura que apesar de ser diabética, era-lhe dada comida à base de fritos,

O que foi confirmado pela Assistente Social, Dra. V. C..

Ora, não é apenas a falta de alimentos, a má alimentação para alguém que tem uma doença crónica pode também revestir uma forma de maus tratos, por contribui para o agravamento do seu estado de saúde.

Ademais, duas das testemunhas inquiridas, M. H. e R. T. confirmam não apenas que foram informadas no Hospital ... das "graves faltas de higiene e má alimentação", bem como da existência de hematomas e mazelas na zona da fralda.

Ainda que tenham as referidas testemunhas uma relação familiar com o Assistente, também têm com a Arguida, e sobretudo com a vítima!

Não tendo sido apurado o nome do médico que prestou esta informação, e quais os procedimentos tomados ou aconselhados à data.

Assim como, se confrontaram a Arguida com os factos, e qual a sua reacção, incluindo se a mesma foi chamada ao Hospital, para esclarecer a situação.
10º
Razão pela qual devem as testemunhas ser inquiridas em sede de instrução, assim como o médico assistente da vítima no Hospital ..., em acareação.
11º
Já no ao crime de abuso de confiança agravado, são igualmente evidentes os indícios recolhidos que deveriam ter culminado num despacho de acusação,
12º
Primeiramente, A. T. confirma ter detectado, na qualidade de cabeça de casal, a movimentação de 1.600,00€, desconhecendo o seu destino,
13º
Não tendo a Arguida apresentado qualquer justificação para o efeito.
14º
Por outro lado, embora as irmãs inquiridas não tenham presenciado os factos, a acusação não pode estar dependente da presença no momento, em flagrante delito,
15º
E, tendo as referidas irmãs confirmado alguns dos factos denunciados, revelam conhecer a existência dos bens,
16º
E reconhecem que os mesmos desapareceram, sem justificação da Arguida que habitava com a progenitora,
17º
Assim como reconhecem que era a Arguida a pessoa mais próxima e com acesso a tais bens,
18º
O que mais não é do que um conjunto de indícios suficientes para a acusação.
19º
Ademais, há testemunhas, como o Sr. J. P., que reconhece ter entregue a quantia de 6.000,00€, por empréstimo concedido pelos pais do Assistente, à Arguida, em frente à mãe que se encontrava viva, à data, e que tal valor não foi sequer relacionado no processo de inventário.
20º
Diga-se que também não foram verificadas as contas bancárias da Arguida, quanto a eventuais depósitos ou transferências feitas,
21º
O que se revela essencial à descoberta da verdade material.
22º
Ora, ainda que se revele que os valores levantados das contas bancárias possam ter sido para proveito da progenitora da Arguida e do Assistente, a verdade é que também pode não ter sido,
23º
E, nessa medida, pode a Arguida ter depositado em contas bancárias de que fosse ou seja ainda titular.
24º
Pouca utilidade terá apenas a movimentação das contas dos progenitores, se não for confrontada com a movimentação, no mesmo período, das contas bancárias da Arguida.
25º
Ainda neste âmbito, sabe o Assistente que o primo da Arguida, a quem a mesma pediu que lhe disponibilizasse uma habitação, J. F., comprou um imóvel, cuja propriedade ficou registada a favor da empresa de que é sócio, nomeadamente X - Engenharia, Lda., com sede na Rua ..., Edifício ..., nº ... Celorico de Basto
26º
Assim como a Arguida comprou, a pronto pagamento, e sem nunca ter trabalhado, um veículo a pronto pagamento, com a matrícula VA, marca Fiat, modelo Cubo, e construiu uma garagem anexa à sua habitação, negócios que foram realizados logo após a morte da progenitora, e o desaparecimento dos referidos valores monetários.
27º
Pelo que se requer que seja feita a pesquisa de imóveis pertencentes, ou que já tenham pertencido à referida sociedade, no período sub judice, e a forma de pagamento aquando da aquisição,
28º
Assim como quem outorgou a escritura pública de aquisição,
29º
E ainda, a notificação do registo comercial para envio aos autos da certidão comercial da empresa de que o filho da Arguida seja proprietário, para consolidação da prova documental,
30º
Finalmente, no que respeita ao crime de falsificação, é certo que a testemunha que confirma a vontade de a mãe da Arguida e do Assistente, poderia ter sido também questionada sobre as capacidades mentais, que implicam lucidez e entendimento, estavam perfeitamente asseguradas,
31º
Assim como ser realizada uma perícia à assinatura aposta no testamento, a fim de ser analisada a força probatória formal do mesmo,
32º
O que, na verdade não ocorrera, e não tendo sido esgotadas todas as possibilidades de recolha de indícios, para a descoberta da verdade material,
33º
É premente que a testemunha S. S. seja inquirida, e esclarecidas as questões relacionadas com as capacidades mentais, discernimento, e assinatura do documento junto aos autos,

II - DO DIREITO

34º
Conforme dispõem os arts. 286° e 287°, nº 1 al. b) nº do C.P.P., a fase de instrução via confirmar, ou não, o despacho de arquivamento ou de acusação proferido pelo douto Ministério Público.
35º
Sendo que, o Arguido tem uma verdadeira opção entre a Abertura de Instrução ou a Intervenção Hierárquica, conforme entendeu o Tribunal da Relação do Porto no seu Acórdão datado de 06.02.2013, disponível em www.dgsi.pt, "As opções facultativas da apresentação de requerimento de abertura de instrução (apreciado pelo Juiz de Instrução) ou da apresentação de requerimento a suscitar a intervenção hierárquica (apreciado pelo superior hierárquico do titular do inquérito) são modos de reacção alternativos (e não cumulativos, nem sucessivos) ao despacho de arquivamento do titular do inquérito, que protegem os direitos do assistente e asseguram o direito a um processo justo e equitativo". (negrito e sublinhado nossos)
36º
Ora, expôs o Assistente as razões de facto de tal discordância, c compete-lhe agora expor as razões de Direito,
Neste sentido,
37º
Conforme entendeu o Supremo Tribunal de Justiça, no seu Acórdão de 21.05.2003, disponível em www.dgsi.pt, “ I- Constituem indícios suficientes os elementos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, traduzidos em vestígios, suspeitas, presunções, sinais e indicações aptos para convencer que existe um crime e de que alguém determinado é responsável; II- Tais elementos, logicamente relacionados e conjugados, hão-de formar uma presunção da existência do facto e da responsabilidade do agente, criando a convicção de que, mantendo-se em julgamento, terão sérias probabilidades de conduzir a uma condenação." (negrito e sublinhado nossos).
38º
Ora, é evidente que a prova produzida nos presentes autos são claramente indicações da prática dos crimes de maus tratos (a confirmação de que a mãe do Assistente comia fritos, sendo diabética), de abuso de confiança qualificada (a existência de movimentos feitos nas contas bancárias, sem justificação), e de falsificação (quando apenas foi confirmada a vontade, e não as capacidades).
39º
Não é necessário, como parece o douto Ministério Público fazer crer, que as testemunhas presenciem os factos.
40º
Nem a acusação, nem o despacho de pronúncia equivalem a uma condenação da Arguida, permitindo que o processo prossiga até à fase de julgamento, para ser analisada a prova.
41º
Razão pela qual o Assistente considera que o Ministério Público encontrava-se nas condições legais para deduzir despacho de acusação pela prática dos crimes de maus tratos, abuso de confiança qualificada e falsificação de documento.
42º
Não podendo afastar-se os indícios suficientes pelos conflitos eventualmente existentes,
43º
Até porque tais conflitos podem estar no conhecimento que o Assistente, os familiares, os amigos têm do comportamento ilícito e culposo da Arguida.
44º
Razão pela qual o Assistente procura justiça nas denúncias que apresenta.
45º
Existindo indícios suficientes que preencham o elemento objectivo de cada crime, nomeadamente a Arguida tinha ao seu cuidado e guarda a mãe, de avançada idade e com problemas de saúde crónicos, e, ao não prestar cuidados básicos de alimentação, higiene e medicação, além dos hematomas que tinha, infligiu-lhe maus tratos físicos (crime de maus tratos); apropriação pela Arguida de bens que não lhe pertencem, bens móveis que incluem valores monetários de valor consideravelmente elevado (crime de abuso de confiança na forma agravada) e, quanto ao crime de falsificação (que pode apurar-se ser de coação), a falsificação da assinatura da mãe pela Arguida ou ter prestado, para constar, informações falsas como as capacidades da mãe para outorgar e assinar, e o elemento subjectivo, por a Arguida ter agido de forma livre, voluntária, e consciente da ilicitude e punibilidade pela lei de tais comportamentos, e ainda assim querendo e conformando-se com o efeito da sua conduta.
46º
Razão pela qual, recolhidos os indícios suficientes, deveria a Arguida ter sido acusada pela prática dos crimes de maus tratos, p.p. art. 152º-A, nº 1, de crime de abuso de confiança gravada, p.p. no art. 205º, ns. 1 e 4 al. b), e crime de falsificação de documento, p.p, no art. 256º, nº 1 do C.P.

III - DA PROVA
(...)”
*
3. Porém, tal requerimento de abertura de instrução (RAI) foi rejeitado pelo despacho de 13/10/2020, do Mmº Juiz de Instrução Criminal do Juízo de Instrução Criminal de Guimarães, Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, por inadmissibilidade legal, nos seguintes termos (transcrição):

“- Requerimento de abertura de instrução de 23/04/2020.

Inconformado com o despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público veio o assistente M. T. requerer a abertura da fase da instrução, no sentido de a final ser a arguida pronunciada pela prática de um crime de maus tratos, um crime de abuso de confiança agravado e um crime de falsificação de documento.

Vejamos, então, da admissibilidade de tal requerimento.
Conforme resulta da lei processual penal, a instrução, como fase intermédia entre o inquérito e o julgamento, «visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento» – artigo 286.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
Finda a instrução, o juiz deverá proferir despacho de pronúncia ou de não pronúncia, sendo certo que a opção por um ou por outro se relaciona com o facto de até ao encerramento da instrução se haver logrado ou não recolher indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança – artigos 308.º, n.º 1, e 283.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal.
Efectivamente, nesta fase não se visa alcançar a demonstração da realidade dos factos, mas tão-só indícios de que um crime foi eventualmente cometido por determinado arguido, sendo certo que a decisão a proferir no final desta fase não é uma decisão jurisdicional de mérito, mas sim uma decisão processual quanto à prossecução do processo até à fase do julgamento.
Deve, assim, o juiz de instrução compulsar e ponderar toda a prova recolhida, fazer um juízo de probabilidade sobre a condenação do arguido e, em consonância com esse juízo, remeter ou não a causa para a fase de julgamento.
No fundo, a fase de instrução permite que a actividade levada a cabo pelo Ministério Público durante a fase do inquérito possa ser controlada através de uma comprovação por via judicial, traduzindo-se essa possibilidade na consagração, no nosso sistema, da estrutura acusatória do processo penal, a qual encontra assento legal no artigo 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa.
Por isso, a actividade processual desenvolvida na instrução é materialmente judicial e não materialmente policial ou de averiguações (...)
Nos termos do disposto no artigo 287.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, podem requerer a abertura de instrução o arguido e o assistente, esclarecendo a lei quem pode constituir-se como assistente em processo penal.
Estatui o artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, referindo-se ao requerimento de abertura de instrução, que o mesmo deve conter «em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for o caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar», sendo certo que a tal requerimento, quando formulado pelo assistente, é aplicável «o disposto no artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c) (...)».
Quer isto dizer que o requerimento de abertura de instrução do assistente está sujeito ao formalismo da acusação, isto é, equipara-se-lhe (...).
Se assim é, podemos então concluir que, por força da conjugação do artigo 287.º, n.º 2, com o artigo 309.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, a instrução requerida pelo assistente, em caso de despacho de arquivamento do inquérito proferido pelo Ministério Público – aquele que aqui importa ter em conta –, não pode destinar-se à simples impugnação de tal despacho, sendo certo que tal exigência, formalismo e equiparação não se pode afirmar ou exigir ao requerimento formulado pelo arguido (cfr. artigo 287.º, n.º 2, in fine, a contrario sensu).
Pelas razões acima aludidas, no requerimento para abertura de instrução o assistente tem de indicar os factos concretos que, ao contrário do Ministério Público, considera indiciados ou que pretende vir a fazer indiciar no decurso da investigação requerida. O juiz, por seu turno, irá apurar se esses factos se indiciam ou não, proferindo ou não, em consonância, despacho de pronúncia.3
Isto significa, portanto, que o requerimento de abertura de instrução equivale, em tudo, à acusação, definindo e delimitando o objecto do processo a partir da sua apresentação; ele constitui, pois, substancialmente, uma acusação alternativa ao despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público (...).
Só assim se respeitará a estrutura acusatória que preside ao direito processual penal português, na medida em que «o juiz está substancial e formalmente limitado na pronúncia aos factos (...) que tenham sido descritos no requerimento do assistente e que este considera que deveriam ser objecto da acusação do Ministério Público.». (...).
Por outro lado, o Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre a questão da constitucionalidade da norma do artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c), do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de ser exigível, sob pena de rejeição, que constem expressamente do requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente os elementos mencionados nessas alíneas.

Citamos, a título meramente exemplificativo e por todos os Acórdãos proferidos relativamente a esta questão, a argumentação aduzida pelo Acórdão n.º 358/04 desse Tribunal, publicado na IIª Série do D.R. n.º 150, de 28 de Junho de 2004, págs. 9647/8:
«(...) A questão da constitucionalidade suscitada implica, pois, uma breve análise do estatuto processual do assistente.
O ofendido tem o direito de intervir no processo nos termos da lei (artigo 32º, n.º 7, da Constituição).
O assistente tem, em geral, no processo penal português, a posição de colaborador do Ministério Público (artigo 69º do Código de Processo Penal), a quem compete exercer a acção penal (artigo 219º, n.º 1, da Constituição).
Trata-se de uma solução que, por um lado, potência a eficácia da investigação, já que admite a participar no processo um sujeito envolvido no conflito social inerente à prática do crime (e, nesta medida, contribui para a boa aplicação do direito), e, por outro, é uma solução que cria condições de pacificação social, dado reconhecer o estatuto do sujeito processual à vítima do crime, que tem assim a possibilidade de intervir, através de actuação própria, na realização da justiça penal.
O estatuto do assistente encontra-se, genericamente, definido no artigo 69º do Código de Processo Penal. Integra esse estatuto a faculdade de requerer a abertura da instrução (artigo 287º do Código Penal).
O reconhecimento do assistente como sujeito processual, bem como o seu estatuto processual não despublicizam, no entanto, o processo penal. Com efeito, o processo penal tem essencialmente natureza pública, pois é ao Estado que cabe o exercício da acção penal (note-se que mesmo nos crimes particulares é o Ministério Público que dirige a investigação).
Por outro lado, cabe sublinhar que o processo penal português tem como vertente fundamental a tutela das garantias de defesa. Desse modo, o estatuto do assistente não é equiparável ao do arguido.
A apreciação da questão de constitucionalidade suscitada nos presentes autos remete, pois, para a ponderação dos valores e princípios, por vezes conflituantes, que conformam a estrutura processual bem como as várias soluções no plano infra constitucional.
O assistente, já se referiu, tem a faculdade de requerer a abertura da instrução. Tal faculdade, no caso concreto, foi exercida na sequência da prolação do despacho de arquivamento do inquérito pelo Ministério Público.
Esse requerimento consubstancia, materialmente, uma acusação, na medida em que por via dele é pretendida a sujeição do arguido a julgamento por factos geradores de responsabilidade criminal.
A estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia uma concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objecto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura da instrução.
Sendo a instrução uma fase facultativa, por via da qual se pretende a confirmação ou infirmação da decisão final do inquérito, o seu objecto tem de ser definido de um modo suficientemente rigoroso em ordem a permitir a organização da defesa.
Essa definição abrange, naturalmente, a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis.
Dada a posição do requerimento para abertura da instrução pelo assistente, existe, como se deixou mencionado, uma semelhança substancial entre tal requerimento e a acusação. Daí que o artigo 287º, nº 2, remeta para o artigo 283º, n.º 3, alíneas b) e c), ambos do Código de Processo Penal, ao prescrever os elementos que devem constar do requerimento para a abertura da instrução.
Assim, o assistente tem de fazer constar do requerimento para abertura da instrução todos os elementos mencionados nas alíneas referidas do n.º 3 do artigo 283º do Código de Processo Penal. Tal exigência decorre, como se deixou demonstrado, de princípios fundamentais do processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória. É, portanto, uma solução suficientemente justificada e, por isso, legitimada.
Será, porém, aceitável a exigência de que tal menção seja feita por remissão para elementos dos autos, ou pelo contrário, será inconstitucional, por violação do direito ao acesso aos tribunais, que seja vedada a possibilidade de tal indicação ser feita por remissão para elementos dos autos?
A resposta é negativa.
Com efeito, a exigência de rigor na delimitação do objecto do processo (recorde-se, num processo em que o Ministério Público não acusou), sendo uma concretização das garantias de defesa, não consubstancia uma limitação injustificada ou infundada do direito de acesso aos tribunais, pois tal direito não é incompatível com a consagração de ónus ou de deveres processuais que visam uma adequada e harmoniosa tramitação do processo.
De resto, a exigência feita agora ao assistente na elaboração do requerimento para abertura de instrução é a mesma que é feita ao Ministério Público no momento em que acusa.
Cabe também sublinhar que não é sustentável que o juiz de instrução criminal deva proceder à identificação dos factos a apurar, pois uma pretensão séria de submeter um determinado arguido a julgamento assenta necessariamente no conhecimento de uma base factual cuja narração não constitui encargo exagerado ou excessivo.
Verifica-se, em face do que se deixa dito, que a exigência de indicação expressa dos factos e das disposições legais aplicáveis no requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente não constitui uma limitação efectiva do acesso do direito e aos tribunais. Com efeito, o rigor na explicitação da fundamentação da pretensão exigido aos sujeitos processuais (que são assistidos por advogados) é condição do bom funcionamento dos próprios tribunais e, nessa medida, condição de um eficaz acesso ao direito.
Por último, não releva para o juízo de não inconstitucionalidade que se formula a circunstância de o artigo 391º-B do Código de Processo Penal (que contém a disciplina do processo abreviado) admitir a narração dos factos por remissão para o auto de notícia. Como refere o Ministério Público, no processo abreviado está em causa pequena criminal idade e só pode ter lugar quando existem provas simples e evidentes e, também, indícios claros da prática do crime. São essas circunstâncias que legitimam uma tramitação célere e desformalizada. No entanto, sempre se dirá que o estatuto do assistente não tem (nada o impõe) que se equiparar totalmente ao do Ministério Público. Não existe, pois, paralelismo entre a situação invocada e a dos autos, pelo que o argumento do recorrente não colhe.
Conclui-se, portanto, pela não inconstitucionalidade da norma em apreciação (...).».
*
Na posse destes considerandos, revertamos e vejamos do caso concreto.

Conforme supra referido, findo o inquérito, e depois de realizadas as diligências tidas por pertinentes, decidiu o Ministério Público proferir o despacho de arquivamento agora colocado em crise.
Inconformado com o despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público veio o assistente M. T. requerer a abertura da fase da instrução, no sentido de a final ser a arguida pronunciada pela prática de «um crime de maus tratos, um crime de abuso de confiança agravado e um crime de falsificação de documento» (sic).
Sucede que, lendo-se tal peça processual verifica-se que a mesma, salvo o devido respeito, pouco ou nada diz quanto aos factos em apreço nos autos, limitando-se, no essencial, a afirmar as razões da discordância com a decisão do Ministério Público e sugerir novas diligências de prova.
Com efeito, do requerimento de abertura da instrução em apreço constam alegações factuais genéricas, pouco ou nada concretizadas espácio-temporalmente e sem qualquer pormenorização dos eventos alegadamente consubstanciadores dos crimes imputados – cfr. artigos 1.º a 14.º do requerimento de abertura da instrução.
Tais factos são manifestamente insuficientes para o preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos daqueles tipos legais, sendo certo que, no demais, o requerimento de abertura da instrução limita-se a explanar as razões da discordância quanto ao sentido do despacho de encerramento do inquérito.
Por conseguinte, e dito agora de outra forma, da análise do requerimento de abertura da instrução constatamos que, e ao contrário daquilo a que estava obrigada, o assistente não fez a necessária inventariação factual equivalente a uma acusação pública, porquanto não enumerou de forma cabal, precisa, concreta e determinada os factos que pretende estarem indiciados, susceptíveis de integrarem a prática por um concreto indivíduo de um ilícito típico que permita a aplicação de uma pena. Ou seja, o assistente não elaborou um requerimento de abertura da instrução onde dê cumprimento às imposições legais supra referidas, nomeadamente no sentido de que se possa afirmar estarmos perante uma verdadeira acusação.
Relembra-se o que já foi dito sobre a exigência que, in casu, devia conter o requerimento da assistente não só para que o(s) arguido(s) possa(m), eventualmente, ser pronunciado(s) pelos factos nele descritos, mas também para que fiquem definitivamente assegurados os seus direitos de defesa e lhe(s) seja possível carrear para o processo os elementos de prova que entender(em) úteis (...).
Assim se respeitarão, então, os princípios basilares que subjazem ao processo penal: estrutura acusatória e delimitação ou vinculação temática do tribunal, em ordem a assegurar as garantias de defesa do(s) arguido(s) contra qualquer arbitrário alargamento do objecto do processo e a possibilitar-lhe(s) a preparação da defesa, no respeito pelo princípio do contraditório.
Como, aliás, se escreveu no Acórdão da Relação de Lisboa, de 20 de Maio de 1997 (in CJ, XXII, 3.º pág. 143), «o requerimento de abertura de instrução, no caso de arquivamento do processo pelo Ministério Público, é que define e limita o respectivo objecto do processo, a partir da sua formulação, constituindo, substancialmente, uma acusação alternativa. Assim, e além do mais, deverá dele constar a descrição dos factos que fundamentam a eventual aplicação de uma pena ao arguido e a indicação das disposições legais incriminadoras». Mais adiante ainda se anota: «não é ao juiz que compete compulsar os autos para fazer a enumeração e descrição dos factos que poderão indiciar o cometimento pelo arguido de um crime, pois, então, estar-se-ia a transferir para aquele o exercício da acção penal contra todos os princípios constitucionais e legais em vigor».
O não acatamento pelo assistente desta exigência torna-se depois insuprível: «face à indiscutível ausência no requerimento de abertura de instrução do necessário conteúdo fáctico», o despacho de pronúncia que, porventura, viesse a ser proferido na sua sequência «seria nulo» ou, até, «juridicamente inexistente».(...).
Com efeito, não contendo o requerimento de abertura da instrução o indispensável conteúdo fáctico e não respeitando o constante das várias alíneas do n.º 3 do artigo 283.º, do Código de Processo Penal, «não só se torna inexequível a instrução, ficando o juiz sem saber quais os factos que o assistente gostaria de ver julgados indiciados – e também o arguido, ficando inviabilizada a sua defesa –, como também, caso mesmo assim se prosseguisse a instrução, qualquer despacho de pronúncia que se proferisse na sua sequência sempre seria nulo nos termos do artigo 309.º do Código de Processo Penal», e, por isso, «inútil e proibido, tal como os actos eventualmente subsequentes». (...).
Também que, se o assistente requerer a abertura de instrução sem a indicação e enunciação do constante naquelas alíneas «a instrução será a todos os títulos inexequível».8
Em síntese, a instrução é inadmissível, por falta de objecto (artigo 287.º, n. º 3), impondo-se, pois, a rejeição do requerimento de abertura de instrução.
Donde que, a conclusão indubitável de que se o requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente, em caso de despacho de arquivamento formulado pelo Ministério Público, não obedecer aos requisitos contemplados no artigo 283.º, n.º 3 – aplicável nomeadamente por força da remissão operada pelo artigo 287.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal –, que a lei exige para a acusação pública, tal requerimento não pode deixar de considerar-se nulo (tal como sucede, aliás, com a acusação pública deduzida sem observância de tais requisitos).
Importa por fim referir que já perfilhamos, no seguimento de diversa Jurisprudência existente ao tempo, o entendimento de que nestas situações haveria lugar a despacho de aperfeiçoamento.
Sucede, porém, que tal questão ficou definitivamente esclarecida com a publicação do Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 7/2005, publicado no D.R. I Série-A nº 212, de 4 de Novembro de 2005, que fixou jurisprudência no sentido de não haver lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentando nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.
De referir que sendo a instrução uma fase facultativa, por via da qual se pretende a confirmação ou infirmação da decisão final do inquérito, o seu objecto tem de ser definido de um modo suficientemente rigoroso em ordem a permitir a organização da defesa.
A exigência de indicação expressa dos factos e das disposições legais aplicáveis no requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente não constitui uma limitação efectiva do acesso ao direito e aos tribunais.
Concluímos, assim, que o requerimento de abertura da instrução em apreço terá forçosamente de ser liminarmente rejeitado.
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Decisão.

Nestes termos, sem necessidade de ulteriores considerações e tendo em atenção tudo quanto acabo de deixar dito, decido rejeitar, por legalmente inadmissível, o requerimento de abertura da instrução em apreço.
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Nos termos do disposto no artigo 214.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, declaro extinta a medida de coacção de termo de identidade e residência aplicada à arguida.
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Custas a cargo do requerente, fixando-se a taxa de justiça em 1 UC, de acordo com o disposto nos artigos 515º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Penal, e 8º, nº 1, 2 e 9, do Regulamento das Custas Processuais, sem prejuízo da isenção de que beneficia.
*
Notifique e anote na pasta própria.
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Oportunamente proceda ao arquivamento dos autos.
(...)”.
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4. Inconformado com essa decisão judicial, o assistente dela veio interpor o presente recurso, nos termos constantes da peça processual que consta de fls. 451/456, cuja motivação é rematada pelas seguintes conclusões e petitório (transcrição):

“A. O presente Recurso tem por objecto o despacho proferido pelo Mmº Juiz de Instrução, que indeferiu o Requerimento de Abertura de Instrução apresentado pelo Assistente por inadmissibilidade legal de Instrução, nomeadamente por falta de objecto de instrução, conforme os artigos 287º, nº 2 e 303º do Código de Processo Penal.
B. Estabelece a lei, nomeadamente no seu artº 287º, nº 2 do CPP que o Requerimento de Abertura de Instrução não está sujeito a qualquer formalidade especial, devendo, no entanto conter as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como a indicação dos actos de instrução que pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos facto que de uns e outros, se espera provar.
C. Sendo certo que o Requerimento de Abertura de Instrução só pode ser trejeitado por extemporâneo, por incompetência do Juiz ou por inadmissibilidade legal da Instrução, conforme o disposto no art.º 287º do C.P.P.
D. No caso concreto, nenhuma destas situações ocorre, uma vez que o requerimento foi feito em tempo, não foi declarada incompetência do juiz, nem está ferido de qualquer inadmissibilidade legal.
E. O Assistente no seu Requerimento de Abertura de Instrução refere as razões quer de facto, quer de direito pelas quais não concorda com o despacho de não acusação e requer que sejam tomadas diligências e considerados meios de prova que ajudariam na descoberta da verdade material.
E. O Assistente alega que a Arguida agiu de forma livre e voluntária e com conhecimento da ilicitude dos seus actos, mas que mesmo assim, se conformou com os mesmo e obteve proveitos desses acto, alegando desde logo o elemento subjectivo.
G. De acordo com o art. 283º, nº 3, aI. b) por remissão do art. 287º, nº 2 do C.P.P., o R.A.I deve conter ”A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível o lugar, o tempo e a motivação da sua prática” (negrito e sublinhado nossos)
H. Ora, se o Assistente alegou apenas com referência à data da morte da progenitora, então é porque só consegue enquadrar no tempo os factos alegados com tal referência, desconhecendo outra.
I. Não sendo o enquadramento específico um requisito obrigatório, pela formulação legal e por ter entendido o legislador que tal não pode ser exigível ao Assistente sobretudo quando ainda está em tempo de requerer a produção de prova.
J. o Recorrente contextualiza os factos com referência à data da morte da progenitora, assim como utiliza ainda o tempo verbal do presente, e assim sendo dúvidas não pode existir que os factos estão a ser praticados pela Arguida, como a ocultação dos bens, tempo verbal que é suficiente para se entender o contexto temporal.
K. Neste sentido, os requisitos do art. 287º, e do artº 283º, nº 3 al. b) e c) por remissão daquele, encontram-se preenchidos, não sendo o Requerimento de Abertura de Instrução legalmente inadmissível, pelo que não deve ser aplicado o nº 3 do referido artigo, admitindo-se a abertura da fase de instrução.

Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exas, doutamente suprirão, deve revogar-se a decisão recorrida, substituindo-a por outra que admita a Abertura da Instrução, ordene a realização dos actos instrutórios requeridos, bem como o debate instrutório por forma aferir da pronúncia ou não pronúncia da arguida, e tudo o mais da lei.”.
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5. Admitido o recurso, e cumprido o estatuído no Artº 411º, nº 6, do C.P.Penal, apenas se apresentou a responder o Ministério Público, nos termos que constam de fls. 466/475, pugnando pela sua improcedência e pela manutenção da decisão recorrida.
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6. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto deste tribunal da Relação emitiu o douto e fundamentado parecer que consta de fls. 487/489 Vº, defendendo, igualmente, a improcedência do recurso.
6.1. Cumprido o disposto no Artº 417º, nº 2, do C.P.Penal (2), não foi apresentada qualquer resposta.
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7. Efectuado exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo, pois conhecer e decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

Como se sabe, é hoje pacífico o entendimento de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no Artº 410º, nº 2, do C.P.Penal (3).

Ora, no caso vertente, da leitura e análise das conclusões apresentadas pelo assistente/recorrente, a única questão que importa dirimir é a de saber se o requerimento de abertura de instrução contém a alegação de factos suficientes para preenchimento dos tipos legais dos crimes imputados à arguida.

Vejamos, pois.
Como prescreve o Artº 286º, nºs. 1 e 2, a instrução, que tem carácter facultativo, visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
A este propósito, sublinha Germano Marques da Silva (4) que, no nosso Código de Processo Penal, a fase de instrução foi estruturada com uma dupla finalidade: obter a comprovação jurisdicional dos pressupostos jurídico-factuais da acusação, por uma parte, e o controlo judicial da decisão processual do Ministério Público de acusar ou arquivar o inquérito, por outra.
Ora, dispõe o Artº 287º, nº 2, que o requerimento para abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que for caso disso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do nº 3 do artigo 283º.
Ou seja, sendo (a instrução) requerida pelo assistente, o respectivo requerimento deverá conter a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada - al. b) - e a indicação das disposições legais aplicáveis – al. c).
O que significa que, tendo-se abstido o Ministério Público de acusar (é este um pressuposto essencial para legitimar a intervenção do assistente), o requerimento de abertura da instrução apresentado por este tem de conter, substancialmente, uma verdadeira acusação, de molde a possibilitar a realização da instrução, fixando os termos do debate e o exercício do contraditório, bem como a elaboração da decisão instrutória (5).
Há que ter ainda em conta o disposto no Artº 303º, que vincula o juiz aos factos descritos no requerimento de abertura de instrução, prescrevendo o nº 3 desse preceito legal que uma alteração substancial dos factos descritos no requerimento de abertura de instrução não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de pronúncia no processo em curso, nem implica a extinção da instância.
Bem como o nº 3 do citado Artº 287º, que nos aponta as três causas de rejeição do requerimento de abertura de instrução: extemporaneidade; incompetência do juiz; ou inadmissibilidade legal da instrução.
Cabem no conceito de inadmissibilidade legal da instrução realidades diversas, como a circunstância de o requerimento do assistente “não conformar uma verdadeira acusação”, não sendo o mesmo admissível se dele não constar a descrição da conduta típica (com os seus elementos objectivos e subjectivos) com a indicação das disposições legais violadas ou indicação do arguido, pois é o próprio procedimento que não pode prosseguir por falta dos pressupostos de objecto e de arguido (6).
Cumpre referir, também, não se afigurar inconstitucional a norma em causa, do Artº 283º, nº 3, als. b) e c), quando interpretada no sentido de ser exigível, sob pena de rejeição, que constem expressamente do requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente os elementos mencionados nessas alíneas.

Entendimento esse que já foi expressamente afirmado pelo Tribunal Constitucional, no seu Acórdão nº 358/2004, de 19/05/2004 (7), também citado no despacho recorrido, no qual a propósito se expendeu:

“Dada a posição do requerimento para abertura da instrução pelo assistente, existe (...) uma semelhança substancial entre tal requerimento e a acusação. Daí que o artigo 287º, nº 2, remeta para o artigo 283º, nº 3, alíneas b) e c), ambos do Código de Processo Penal, ao prescrever os elementos que devem constar do requerimento para a abertura da instrução.
Assim, o assistente tem de fazer constar do requerimento para abertura da instrução todos os elementos mencionados nas alíneas referidas do nº 3 do artigo 283º do Código de Processo Penal. Tal exigência decorre (...) de princípios fundamentais do processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória. É, portanto, uma solução suficientemente justificada e, por isso, legitimada.
Será, porém, aceitável a exigência de que tal menção seja feita por remissão para elementos dos autos, ou pelo contrário, será inconstitucional, por violação do direito ao acesso aos tribunais, que seja vedada a possibilidade de tal indicação ser feita por remissão para elementos dos autos?
A resposta é negativa.
Com efeito, a exigência de rigor na delimitação do objecto do processo (recorde-se, num processo em que o Ministério Público não acusou), sendo uma concretização das garantias de defesa, não consubstancia uma limitação injustificada ou infundada do direito de acesso aos tribunais, pois tal direito não é incompatível com a consagração de ónus ou de deveres processuais que visam uma adequada e harmoniosa tramitação do processo.
De resto, a exigência feita agora ao assistente na elaboração do requerimento para abertura de instrução é a mesma que é feita ao Ministério Público no momento em que acusa.
Cabe também sublinhar que não é sustentável que o juiz de instrução criminal deva proceder à identificação dos factos a apurar, pois uma pretensão séria de submeter um determinado arguido a julgamento assenta necessariamente no conhecimento de uma base factual cuja narração não constitui encargo exagerado ou excessivo.
Verifica-se, em face do que se deixa dito, que a exigência de indicação expressa dos factos e das disposições legais aplicáveis no requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente não constitui uma limitação efectiva do acesso do direito e aos tribunais. Com efeito, o rigor na explicitação da fundamentação da pretensão exigido aos sujeitos processuais (que são assistidos por advogados) é condição do bom funcionamento dos próprios tribunais e, nessa medida, condição de um eficaz acesso ao direito.”.
Sufragando-se inteiramente este entendimento, poderá, no entanto, perguntar-se: perante um requerimento de abertura de instrução que não contenha tais elementos, ou que os contenha em termos deficientes, não deverá o juiz de instrução convidar o assistente a aperfeiçoar essa peça processual?
A resposta é negativa.
Na verdade, de acordo com o consignado no Acórdão de Fixação de Jurisprudência de nº 7/2005, de 12/05/2005, in DR I Série A, de 04/11/2005, “não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287º, nº 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido”.
Ali se expendendo que “o preenchimento das lacunas em processo penal pelo recurso ao processo civil, ao princípio da cooperação, conhece um intransponível limite: o da não harmonização das finalidades descritas quanto ao último ramo de direito àqueloutro, por força do artigo 4º do CPP.
Que (…) A falta de narração de factos na acusação conduz à sua nulidade e respectiva rejeição por ser de reputar manifestamente infundada, nos termos dos artigos 283º, nº 3, alínea b), e 311.º, n.ºs 2, alínea a), e 3, alínea b), do CPP. A manifesta analogia entre a acusação e o requerimento de instrução pelo assistente postularia, em termos de consequências endoprocessuais, já que se não prevê o convite à correcção de uma acusação estruturada de forma deficiente, quer factualmente quer por carência de indicação dos termos legais infringidos, dada a peremptoriedade da consequência legal desencadeada – o ser manifestamente infundada, igual proibição de convite à correcção do requerimento de instrução, que deve, identicamente, ser afastado.”.
Que (…) O convite à correcção encerraria, isso sim, uma injustificada e desmedida, por desproporcionada, compressão dos seus direitos fundamentais, em ofensa ao estatuído no artigo 18.º, n.ºs 2 e 3, da CRP, que importa não sancionar.”.
Que “Sem acusação formal o juiz está impedido (...) de pronunciar o arguido, por falta de uma condição de prosseguibilidade do processo, ligada à falta do seu objecto, e, mercê da estrutura acusatória em que repousa o processo penal, substituindo-se o juiz ao assistente no colmatar da falta de narração dos factos, enraizaria em si uma função deles indagatória, num certo pendor investigatório, que poderia ser acoimado de não isento, imparcial e objectivo, mais próprio de um tipo processual de feição inquisitória, já ultrapassado, consequenciando, como, com proficiência, salienta a ilustre procuradora-geral-adjunta neste Supremo Tribunal de Justiça, «uma necessária e desproporcionada diminuição das garantias de defesa do arguido», importando violação das regras dos artigos 18.º e 32.º, n.ºs 1 e 5, da CRP, colocando, ao fim e ao cabo, nas mãos do juiz o estatuto de acusado do arguido, deferindo-se-lhe, contra legem, a titularidade do exercício da acção penal.”.
E que “(…) O requerimento de abertura de instrução nenhuma similitude apresenta com a petição inicial em processo cível, em termos de merecer correcção, enfermando de deficiências, nos termos do artigo 508.º, n.º 1, alínea b), do CPC, por, se com aquela se introduz, inicia, o pleito em juízo, é com a queixa que se inicia o processo, cabendo ao requerimento de abertura de instrução uma exposição dos factos que, comprovados, com a maior probabilidade, tal como sucede com os vertidos na acusação, sugerem que o arguido, mais do que absolvido, será condenado, numa óptica de probabilidade em alto grau de razoabilidade, inconfundível com uma certeza absoluta, aquela excludente de as coisas terem acontecido de dada forma prevalente, em detrimento de outra”.
Também o Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre esta temática, designadamente através do Acórdão nº 175/2013, de 20/03/2013 (8), considerando “Não julgar inconstitucional a norma resultante do artigo 287º, nº 2, do Código de Processo Penal, com referência ao artigo 283º, nº 3, alíneas b) e c), do mesmo Código, segundo a qual não é admissível a formulação de um convite ao aperfeiçoamento do requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente e que não contenha o essencial da descrição dos factos imputados aos arguidos, delimitando o objecto fáctico da pretendida instrução”.
Do exposto, extrai-se claramente que, quando o requerimento do assistente para a abertura de instrução não narra os factos que integram um crime, ou não os narra de modo suficiente, não pode haver pronúncia, sob pena de violação dos Artºs. 303º, 283º, nº 3, als. b) e c), do C.P.Penal e 32º, nºs. 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa.
Na verdade, a pronunciar-se o arguido por factos que não constam do requerimento de abertura de instrução e que importam uma alteração substancial dos mesmos, tal configuraria também uma nulidade, prevista no Artº 309º, nº 1.
Finalmente, há que ter também em consideração a jurisprudência constante do Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 1/2015, de 20/11/2014, in DR I Série, nº 18, de 27/01/2005, segundo a qual “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358º do Código de Processo Penal.”.
Jurisprudência essa que vale, naturalmente, para o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, pois que este funciona como uma verdadeira acusação (cfr. Artº 303º, nº 3).
Isto posto, passemos à análise da concreta situação verificada nos presentes autos.
Como se viu, o Mmº JIC, através do despacho de 13/10/2020, ora impugnado, rejeitou o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente M. T. em virtude de, em síntese, o mesmo ser omisso na alegação factual decisiva ao preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos dos tipos de crime em causa (de maus tratos, p. e p. pelo Artº 152º-A, nº 1, de abuso de confiança gravada, p. e p. pelo Artº 205º, nºs. 1 e 4, aI. b), e de falsificação de documento, p e p. pelo Artº 256º, nº 1, do Código Penal) por aquele imputados à sua irmã e arguida E. F..
Entendimento que é questionado pelo assistente no recurso sub-judice, que em síntese sustenta que no seu RAI delimita devidamente e como o exigido legalmente o objecto da instrução requerida, e alega o preenchimento dos elementos dos tipos dos crimes supra mencionados.
Ora, para melhor dilucidarmos esta questão, teremos de, necessariamente, analisar sumariamente os elementos objectivos e subjectivos dos ilícitos criminais em causa, para, num segundo momento, decidirmos se a factualidade que a propósito a assistente alegou no seu RAI preenche, ou não, tais elementos.

Vejamos, então.

Sob a epígrafe “Maus tratos”, dispõe o Artº 152º-A, do Código Penal:
“1 - Quem, tendo ao seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direcção ou educação ou a trabalhar ao seu serviço, pessoa menor ou particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez, e:
a) Lhe infligir, de modo reiterado ou não, maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais, ou a tratar cruelmente;
b) A empregar em actividades perigosas, desumanas ou proibidas; ou
c) A sobrecarregar com trabalhos excessivos;
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
..)
(...)”.
Entre os bens jurídicos protegidos pela norma está a integridade física e psíquica de pessoa menor de 18 anos, ou de pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez.
O tipo objectivo consiste, pois, na prática de maus tratos físicos ou psíquicos à pessoa menor ou particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez, levados a cabo por quem tem estas ao seu cuidado, à sua guarda, ou sob a responsabilidade da sua direcção ou educação ou a trabalhar ao seu serviço.
Trata-se de um crime específico que, no caso de maus tratos físicos, não passa de um crime de ofensas à integridade física autonomizado em função daquela particular relação existente entre o agente e a vítima, havendo uma relação de concurso aparente entre os dois tipos de ilícito.
O sujeito passivo do crime em apreço só pode ser a pessoa que se encontra para com o agente na relação pressuposta no preceito incriminador.
O crime de maus tratos não pressupõe, já, uma reiteração das condutas, contentando-se o tipo, para se subsumir ao tipo criminal, uma só conduta “agressora“ que, pela sua gravidade, mereça esta especial tutela e punição.
Quanto ao elemento subjectivo do tipo de crime em análise, o mesmo exige o dolo em qualquer das suas modalidades, previstas no Artº 14º do Código Penal.
No entanto, como o crime em causa tanto pode ser um crime de resultado (como acontece no caso dos maus tratos físicos) como de perigo (casos descritos nas als. b) e c) do nº 1), o conteúdo do dolo é variável em função do tipo de conduta do agente, dividindo-se, conforme os casos, em dolo de resultado ou mero dolo de perigo.

A noção de dolo está prevista no Artº 14º do Código Penal, nos seguintes termos:
“1 - Age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção de o realizar.
2 - Age ainda com dolo quem representar a realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência necessária da sua conduta.
3 - Quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente actuar conformando-se com aquela realização.”.

O dolo é constituído por dois elementos essenciais: o intelectual e o emocional ou volitivo.
Tem-se por elemento intelectual o conhecimento por parte do agente de todos os elementos e circunstâncias do tipo legal do crime e na consciência de que esse facto é ilícito e a sua prática censurável.

Já o elemento emocional ou volitivo consiste na especial direcção da vontade do agente na realização do facto ilícito, sendo em função da diversidade de atitude que o dolo será directo, necessário ou eventual:

- No dolo directo o agente teve como fim, como intenção, a realização do facto criminoso (nº 1);
- No dolo necessário o agente, tendo porventura outro fim diferente, reconhece o facto criminoso como consequência necessária da sua conduta e, no entanto, não se abstém da sua prática (nº 2); e
- No dolo eventual o agente ao actuar conformou-se com a possível realização do facto criminoso como consequência da sua conduta (nº 3).

Quanto ao crime de “Abuso de confiança” está o mesmo previsto no Artº 205º do Código Penal, nos seguintes termos:

“1 - Quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel ou animal que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2 - A tentativa é punível.
3 - O procedimento criminal depende de queixa.
4 - Se a coisa ou o animal referidos no nº 1 forem:
a) De valor elevado, o agente é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias;
b) De valor consideravelmente elevado, o agente é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.
5. Se o agente tiver recebido a coisa ou o animal em depósito imposto por lei em razão de ofício, emprego ou profissão, ou na qualidade de tutor, curador ou depositário judicial, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.”.
O tipo de ilícito em causa acha-se sistematicamente inserido no capítulo dos “Crimes contra a propriedade” e, através dele, procurou o legislador proteger a propriedade que é o único bem tutelado pelo tipo legal em causa.

O crime de abuso de confiança exige, como elementos objectivos do tipo:

- a entrega e recebimento lícitos pelo arguido de coisa móvel ou animal alheios;
- por título não translativo da propriedade;
- a apropriação dessa coisa pelo agente;
- a ilegitimidade desta apropriação.

Como se extrai da citada norma legal, o crime de abuso de confiança consuma-se quando o agente, que recebe a coisa móvel ou o animal por título não translativo de propriedade para lhe dar determinado destino, dela se apropria, passando a agir animo domini. Devendo, porém, entender-se que a inversão do título da posse carece de ser demonstrada por actos objectivos, reveladores de que o agente já está a dispor da coisa como se sua fosse, como seja a recusa de restituição – cfr., neste sentido, Maia Gonçalves, in “Código Penal Português – Anotado e Comentado”, 14ª edição, pág. 653.
Na mesma esteira refere-se Figueiredo Dias, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, pág. 104, à apropriação enquanto elemento objectivo do crime de abuso de confiança, destacando: “Sob que forma deva concretamente manifestar-se a apropriação, é em definitivo indiferente: necessário é apenas que, como acima se disse, se revele por actos concludentes que o agente inverteu o título de posse e passou a comportar-se perante a coisa “como proprietário. (…) indispensável que através do acto ou actos de apropriação se tenha verificado uma deslocação da propriedade…”. Citando Cavaleiro de Ferreira: “o agente, que recebera a coisa uti alieno, passa em momento posterior a comportar-se relativamente a ela – naturalmente através de actos objectivamente idóneos e concludentes, nos termos gerais - uti dominus; é exactamente nesta realidade objectiva que se traduz a “inversão do título de posse ou detenção” e é nela que se traduz e se consuma a apropriação.”
Quanto ao elemento subjectivo do ilícito, torna-se necessária a verificação do dolo relativamente à totalidade dos elementos do tipo objectivo de ilícito, tratando-se, pois, nas palavras de Figueiredo Dias (ibidem, pág. 107), de “crime de congruência total”, sendo suficiente o dolo eventual.

Finalmente, o crime de “Falsificação ou contrafacção de documento” está previsto no Artº 256º, nº 1, do Código Penal, segundo o qual:
“Quem, com a intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime:
a) Fabricar ou elaborar documento falso, ou qualquer dos componentes destinados a corporizá-lo;
b) Falsificar ou alterar documento ou qualquer dos componentes que o integram;
c) Abusar da assinatura de outra pessoa para falsificar ou contrafazer documento;
d) Fizer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante;
e) Usar documento a que se referem as alíneas anteriores; ou
f) Por qualquer meio, facultar ou detiver documento falsificado ou contrafeito;
é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.”.

Prescrevendo o nº 3 do mesmo preceito legal que o agente é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos ou com pena de multa de 60 a 600 dias se os factos referidos no nº 1 disserem respeito a documento autêntico ou com igual força, a testamento cerrado, a vale do correio, a letra de câmbio, a cheque ou a outro documento comercial transmissível por endosso, ou a qualquer outro título de crédito não compreendido no artigo 267º.
O tipo delituoso da falsificação visa primacialmente assegurar a protecção da fé pública dos documentos, a genuinidade dos mesmos.
Tal ilícito criminal pressupõe, quanto ao elemento objectivo, que a conduta do agente integre uma das situações previstas nas alíneas a) a f) do nº 1, do Artº 256º e, quanto ao elemento subjectivo, constitui requisito essencial do delito a intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo. Isto é, não basta que o agente queira realizar e realize o acto de falsificação, sendo necessário que realize a conduta com dolo específico, ou seja, a particular intenção de causar prejuízo a outrem ou ao Estado ou de alcançar para si ou para terceiro um benefício ilegítimo (cfr. Ac. do S.T.J de 06/07/1988, in CJ XIII-IV-5) (9).
Como refere Helena Moniz, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, pág. 685, constituiu benefício ilegítimo toda a vantagem (patrimonial ou não patrimonial) que se obtenha através do acto de falsificação ou do acto de utilização do documento falsificado. O facto de o agente ter de actuar com esta específica intenção não significa que se pretenda proteger outro bem jurídico que não seja o da credibilidade no tráfico jurídico-probatório, não constituindo objecto de protecção o património, tão pouco a confiança no conteúdo dos documentos, mas apenas a segurança e credibilidade no tráfico jurídico, em especial no que respeita aos meios de prova, em particular a prova documental.
Ora, voltando ao caso vertente, há que averiguar desde logo se, face à alegação efectuada pelo assistente no seu requerimento de abertura de instrução, se mostram verificados todos os elementos constitutivos dos aludidos ilícitos criminais, como aquele preconiza.
Salvo o devido respeito, afigura-se-nos que a resposta é negativa.
Na verdade, transcorrendo o RAI apresentado pelo assistente, facilmente se constata que o mesmo, basicamente, se limita a tecer críticas ao despacho de arquivamento por banda do Ministério Público, a formular juízos de valor, a tecer considerações sobre a inadequação da conduta da arguida, e a requerer diligências de prova, não descrevendo, como se impunha, as actuações concretas da mesma arguida, sendo certo que nos poucos factos que objectivamente relata, fá-lo de uma forma totalmente genérica e insuficiente para preencher cabalmente os elementos objectivos de cada um dos imputados ilícitos criminais.
Ou seja, em vez de enveredar por aquele caminho, e como bem se refere no despacho recorrido, a assistente deveria ter enumerado “de forma cabal, precisa, concreta e determinada os factos que pretende estarem indiciados, susceptíveis de integrarem a prática por um concreto indivíduo de um ilícito típico que permita a aplicação de uma pena (...), pois que, só indiciariamente provados factos que permitam o preenchimento destes elementos é que se poderá afirmar a existência de um crime”.
E isso, claramente, não ocorreu na peça processual em causa.
Perpassando por todo o RAI, como assertivamente aduz o Exmo. Procurador-Geral Adjunto no seu douto parecer, “uma forma descritiva com imprecisões, considerações e comentários que não são juridicamente aceitáveis num libelo com as características que, inexoravelmente, deve evidenciar um requerimento de abertura de instrução, documento que, na indispensável parte de imputação, tem de ser uma narração enxuta dos factos, que enuncie em que consistiu, no concreto, a conduta da arguida, segundo a composição dos tipos legais de crime convocados”, o qual poderia considerar-se satisfatório se “vocacionado para veicular uma denúncia ou mesmo uma intervenção hierárquica”, mas nunca como requerimento de abertura de instrução.
Ademais, há que referir que o RAI apresentado pelo assistente também é manifestamente deficitário na descrição factual quanto aos elementos subjectivos dos ilícitos criminais em causa, já que se fica por uma genérica afirmação de actuação voluntária e consciente da arguida em relação a todos os crimes, indistintamente, sem atender às especificidades próprias de cada um deles, nos termos supra explanados, o que seria essencial e decisivo para a eventual punibilidade do comportamento da arguida.
Verifica-se, pois, uma clara omissão na alegação factual decisiva ao preenchimento dos elementos dos tipos de crime em causa, quer ao nível objectivo, quer ao nível subjectivo.
Não podendo o juiz de instrução, pelas razões jurídicas anteriormente aduzidas - mesmo que durante as diligências de instrução concluísse pela existência de indícios da prática por banda da arguida de um ou mais crimes - alterar ou criar por si a factualidade em falta, nem tampouco convidar a assistente a suprir as falhas detectadas.
Assim, sem necessidade de outras considerações, por despiciendas, não tendo sido violada nenhuma norma legal, nenhuma censura nos merece o despacho recorrido, que se confirma, improcedendo o recurso.

III. DISPOSITIVO

Por tudo o exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso interposto pela assistente M. T., confirmando-se, consequentemente, a decisão recorrida.

Custas pelo assistente, fixando-se em 4 UC a taxa de justiça, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia (Artº. 515º, nº 1, al. b), 1º, 2º, 3º, 8º, nº 9, do Reg. Custas Processuais, e Tabela III anexa ao mesmo).

(Acórdão elaborado pelo relator, e por ele integralmente revisto, com recurso a meios informáticos - Artº 94º, nº 2, do C.P.Penal)
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Guimarães, 27 de Setembro de 2021

António Teixeira (Juiz Desembargador Relator)
Paulo Correia Serafim (Juiz Desembargador Adjunto)


1. Todas as transcrições a seguir efectuadas estão em conformidade com o texto original, ressalvando-se a correcção de erros ou lapsos de escrita manifestos, da formatação do texto e da ortografia utilizada, da responsabilidade do relator.
2. Ao qual se reportam todas as disposições legais a seguir citadas, sem menção da respectiva origem.
3. Cfr., neste sentido, Germano Marques da Silva, in “Direito Processual Penal Português - Do Procedimento (Marcha do Processo)”, Vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 334 e sgts., e o Acórdão de fixação de jurisprudência do S.T.J. nº 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR, Série I-A, de 28/12/1995, em interpretação que ainda hoje mantém actualidade.
4. Ibidem, pág. 126.
5. Cfr., neste sentido, Germano Marques da Silva, ibidem, pág. 133 e sgts..
6. Germano Marques da Silva, ibidem, pág. 141/142.
7. Disponível in http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20040358.html.
8. Disponível in http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20130175.html.
9. No mesmo sentido, o Ac. da Relação do Porto, de 25/05/1988, in CJ XIII-III-251