Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1701/04-1
Relator: ESPINHEIRA BALTAR
Descritores: DIREITO DE PERSONALIDADE
PROVAS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/24/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: 1 – O direito à imagem e da reserva da vida privada, consagrados constitucionalmente como direitos de personalidade nos artigos 25 e 26 da CRP, e regulados nos artigos 70, 79 e 80 do C.Civil, não são violados pelo uso de cassetes de vídeo, em julgamento, quando as imagens tenham sido filmadas sem consentimento e em lugar de acesso ao público, e usadas para fins da descoberta da verdade material.
Decisão Texto Integral: Acordam em Conferência na Secção Cível da Relação de Guimarães

"A", residente na ..., Viana do Castelo, propôs acção com forma sumária contra "B", com sede na ..., Viana do Castelo, pedindo, em via principal a anulabilidade dum contrato de compra e venda celebrado entre ambos, relativamente a uma viatura automóvel, e, em consequência, a restituir-lhe o preço, a pagar-lhe uma indemnização emergente da imobilização e por danos morais, e subsidiariamente, a condenação da ré a reparar-lhe as anomalias existentes na viatura, e a pagar-lhe as indemnizações peticionadas nos pontos c) e d).

Fundamenta os pedidos no facto de ter celebrado um contrato de compra e venda duma viatura automóvel, que, dez meses depois, apresentou anomalias que o impedem de circular, e que existiam à data da celebração do contrato e que a ré conhecia ou devia conhecer.

A ré contestou, alegando, em síntese, que as anomalias não existiam à data da celebração do contrato e foram provocadas pela condução imprimida pelo autor.

E, além disso, a viatura não se encontra imobilizada, sendo utilizada com regularidade pelo autor.

Junta prova documental e protesta juntar uma gravação vídeo.

Na audiência de discussão e julgamento o mandatário do autor opôs-se à junção da gravação vídeo, porque está ultrapassado o prazo para apresentar prova, e além disso, como foi adquirida sem autorização, viola o disposto no artigo 26 do CRP, pelo que não pode ser utilizada como meio de prova.

A ré, por ordem do juiz, refere que a gravação pretende fazer prova do que consta do artigo 40 da contestação, mais concretamente, que o autor tem uma condução agressiva, força o veículo, e de forma reflexa, que o veículo circulava à data da contestação.

O julgador admitiu a apresentação da gravação e a sua exibição em juízo, com a intervenção apenas dos mandatários das partes.

Inconformado com o decidido, o autor interpôs recurso de agravo formulando as seguintes conclusões:

1.º Salvo o devido respeito, o despacho recorrido merece censura.
2.º O propósito de carrear provas para o processo não pode excluir a ilicitude da gravação, recolha e reprodução de imagens por particulares sem o conhecimento e consentimento do visado.
3.º O despacho recorrido admite a prova com violação dos artigos 70.º, 79º e 80.º do Código Civil, ou seja, com violação do direito à imagem e à reserva sobre a intimidade da vida privada legalmente protegidos.
4.º Viola ainda o artigo 70º do mesmo diploma legal, por impedir a adequada protecção daqueles direitos.
5.º A conduta da Ré é passível de responsabilidade civil nos termos dos artigos 70º e 483º do Código Civil, e responsabilidade penal, ao abrigo do artigo 199º n.º 2 do Código Penal.
6.º A recolha videográfica nestes termos, seria sempre punível, porquanto a sua ilicitude não está excluída pela ordem jurídica na sua totalidade, cfr. artigo 3º1, n.º 1 e n.º 2 do Código Penal.
7.º A possibilidade de prova por reprodução cinematográfica, nos termos do artigo 527º do Código de Processo Civil pressupõe também, lógica e necessariamente, a licitude na obtenção da imagem.
8.º Só em casos absolutamente excepcionais, como por exemplo os previstos no DL 231/98, de 22 de Julho, o ordenamento jurídico permite a colheita de imagens por vídeo-gravação nos termos em que foram.
9.º Por todo o exposto, estamos perante provas ilegais e nulas, por violação, entre / outros, dos artigos 70º, 79º e 80º do Código Civil, e como tal não poderão ser admitidas enquanto meios de prova.
10.º O despacho recorrido é também inconstitucional por violação do artigo 26º, ao permitir e admitir a prova com violação dos direitos neste consagrados.
11.º A violação estende-se ainda ao artigo n.º 1 da CRP, pois esta é também e sobretudo uma questão de dignidade humana, da pessoa filmada sem o seu consentimento.
12.º O visionamento da gravação poderia expor o Autor a outros juízos de valor em detrimento da sua integridade moral, pelo que se viola também o artigo 25º da Constituição da República Portuguesa.
13.º O douto despacho recorrido viola ainda o artigo 12º da Declaração Europeia dos Direitos do Homem, ao permitir a prova obtida com ingerência ilícita e abusiva na vida privada do Autor.
14.º Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam entidades públicas e privadas.
l5.º Foi pela Ré violado o artigo 18º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, bem como, o despacho recorrido enferma também de inconstitucionalidade por permitir a prova obtida com violação deste preceito.
16.º O despacho recorrido adopta-se uma posição, que em última instância faria perigar a efectiva vigência dos direitos fundamentais em análise, esvaziando-os, in casu, no seu conteúdo.
17.º Deste modo, há pois uma violação da ordem constitucional porquanto, por desrespeito do preceituado nos artigos 18º, n.º 1, 25º, n.º 1 e 26º da Constituição da República Portuguesa, e há uma nulidade nos termos dos artigos 70º, 79º e 80º do Código Civil.
Pelo que o despacho recorrido deve ser revogado e substituído por um outro que declare a inadmissibilidade da prova, com consequente desentranhamento da gravação e a sua destruição.

Houve contra alegações que pugnaram pelo decidido, alegando, em síntese, que não está em causa a pessoa do autor, mas a viatura, e além disso, os interesses da justiça, justificam a exibição nos termos do artigo 79 n.º 2 do C.Civil.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.
Para efeitos do recurso têm relevância os factos acima relatados, que damos como assentes.

Das conclusões, ressalta a seguinte questão:

É ilícita a prova a apresentar e exibir pela agravada, na medida em que a fita magnética revela a imagem do agravante, em situações da sua vida privada, sem o seu consentimento, violando o seu direito de personalidade, consubstanciado no direito à imagem e reserva da vida privada, que têm foros de constitucionalidade nos artigos 25 e 26 da CRP, e consagrados nos artigos 70, 79 e 80 do C.Civil.

Levanta-se o problema da violação de direitos de personalidade consagrados constitucionalmente, e expressos e regulados na legislação ordinária.

Os direitos de personalidade têm como ponto central o homem na sua vertente global - plano físico, psíquico, moral e social. São direitos que abrangem a pessoa em si, enquanto sujeito de direitos, nos seus vários modos de ser. Estes direitos são absolutos, inatos e irrenunciáveis. O seu objecto são os bens que emanam da personalidade global do homem, que se reflectem na sua integridade física, na vida, identidade pessoal, liberdade, imagem, reserva da vida privada etc.

No caso em apreço, estão em causa o direito à imagem e reserva da vida privada, tutelados constitucionalmente no artigo 25 e 26 da CRP e especificados no artigo 79 e 80 do C. Civil, com referência ao princípio geral do artigo 70 n.º1 do mesmo diploma legal.

O direito à imagem é a concretização da identidade pessoal, na vertente física e da reserva da vida privada. Cada pessoa é um ser único no plano físico, psíquico moral e social. E tem direito a manter a sua identidade como forma de se diferenciar dos outros. Daí que não possam ser alterados, modificados os elementos da sua identificação, em todos os seus aspectos.

No plano da imagem, tutela-se a não divulgação da identidade física, por meios fotográficos, através da exposição, reprodução e comércio, sem consentimento da pessoa visada ( artigo 79 n.º 1 do C.Civil). O que quer dizer que é possível fotografar a pessoa, adquirir a sua imagem física, através deste meio, sem o seu consentimento. Apenas está vedada a exposição, reprodução e comercialização da imagem sem autorização.

Além disso, mesmo sem o seu consentimento, pode ser usada, exibida a imagem, quando interesses ou valores o justifiquem, como os da justiça – artigo 79 n.º 2 do C.Civil. Neste caso, a ilicitude é justificada, pelo que o seu uso torna-se legítimo. É um limite ao próprio direito de personalidade, imposto por interesses juridicamente mais relevantes, desde que não ponha em causa a ordem pública e os bons costumes, ou seja, a dignidade da pessoa humana.

Por sua vez, a reserva da vida privada, como expressão da personalidade moral, traduz-se na esfera onde o homem se pode recolher para pensar, meditar, restabelecer energias, exprimir os seus sentimentos, sem ser incomodado. É o espaço que se pode considerar privado, só dele, e que só deve ser acedido por outrem, com o seu consentimento.

Porém, este espaço, ou esfera da sua vida, também tem limites, conforme as circunstâncias do caso, como o refere o artigo 80 n.º 2 do C.Civil. O homem, como ser social, não pode viver isolado, e tem de se confrontar com outros valores conflituantes. Daí que existam limites imanentes a este direito de personalidade, como sejam os acontecimentos da vida comum a qualquer pessoa, as actividades relacionadas com a vida pública, e as restrições legais, impostas por interesses de ordem pública.

Aqui deverão ser ponderados os interesses em causa segundo um critério de privacidade, conjugado com a dignidade humana, em que ressalta o resguardo e o sigilo.

Confrontando estes princípios com a situação concreta em questão, é de concluir que estamos perante um meio de prova de natureza cinematográfica, que visa provar que a viatura do autor estava a circular na altura da entrada em juízo da contestação, e que era conduzida com agressividade, com esforço, de molde a convencer que as anomalias que o autor apontou, se desencadearam por este comportamento.

O que está em causa é a viatura e não o seu condutor. O que se pretende visualizar é a forma como se apresenta a viatura, e não o seu condutor. Este será visto de maneira reflexa, ou seja, como elemento acessório, na medida em que se encontra no seu interior e o põe em movimento. Mas não se pretende analisar o seu comportamento enquanto condutor, enquanto pessoa, mas antes as anomalias do veículo.

Assim se pode concluir que não estão em causa, directamente, os direitos de personalidade invocados pelo agravante, pois o objecto da prova é a viatura e não a pessoa do seu condutor.

Mesmo que se entenda que, de forma reflexa, se põe em causa o direito à imagem do agravante, uma vez que não deu autorização à filmagem, o certo é que, neste caso, a filmagem é lícita porque não contraria o disposto no artigo 79 n.º 1 do C.Civil. Pois só a divulgação, com reprodução ou comercialização é que necessita de autorização e não a sua posse.

Além disso, segundo parece transparecer dos autos, a filmagem foi feita na via pública, ou em lugares de acesso ao público, em que qualquer pessoa pode frequentar, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 79 n.º 2 do C.Civil, não necessita de consentimento. Assim teremos de concluir que a filmagem foi efectuada em público, onde não merece tutela o direito à imagem, como concretização do direito à identidade pessoal, na vertente física.

Além disso, face a este circunstancialismo, também não poderemos dizer que viola a reserva da vida privada. Na verdade, o agravante, no momento da filmagem, não se encontra na situação de privacidade, que não pudesse ser acedida por outras pessoas. Pois estava exposto a qualquer olhar do público, que de forma natural, se apercebia da sua presença na viatura.

Em face do exposto, é de concluir que não foram violados os direitos de personalidade enunciados pelo agravante. E, justifica-se a exibição da filmagem no tribunal, por razões de justiça, consubstanciadas no princípio da verdade material. Além disso, o acesso à exibição está limitado ao juiz e aos mandatários das partes, que estão sujeitos ao sigilo, consagrado no segredo profissional, pelo que a sua divulgação não ultrapassa os fins específicos da justiça. Daí que esteja legitimada a sua exibição para os fins pretendidos. ( Conferir – Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora, 1995, pag. 102, 103, 243 a 256, 316 a 352)

Decisão

Pelo exposto, acordam os juizes da Relação em negar provimento ao recurso.

Custas a cargo do agravante.