Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
140/10.8GAPTL.G2
Relator: FERNANDO MONTERROSO
Descritores: CRIME DE DANO
DANO QUALIFICADO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/17/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: I – O dano é um crime doloso, sendo bastante o dolo eventual. No caso de dano “simples” o agente tem de saber ou representar (conformando-se com o resultado) que a sua ação sacrifica coisa alheia. Já no dano qualificado tem também de ter conhecimento de todos os elementos ou circunstâncias que determinam a qualificação.
II – Não constando da acusação que o arguido sabia (ou representou, conformando-se com tal hipótese) que o caminho que destruiu era destinado ao uso e utilidade públicos, não pode o julgamento levar a mais do que à condenação pelo crime de dano “simples”.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
No 2º Juízo do Tribunal Judicial de Ponte de Lima, em processo comum com intervenção do tribunal singular (Proc. nº 140/10.8GAPTL), foi proferida sentença que condenou o arguido Valentim C..., como autor material de um crime de dano qualificado p. e p. pelos artigos 212° n° 1 e 213 nº 1 al c) 206 todos do C. Penal, na pena de 70 (setenta) dias de multa à taxa diária de 8.00 € (oito euros ), o que dá a multa global de 560€ (quinhentos e sessenta euros) ou, subsidiariamente, 46 (quarenta e seis) dias de prisão.

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O arguido Valentim C... interpôs recurso desta sentença, suscitando as seguintes questões:

- impugna a decisão sobre a matéria de facto, visando, alterada esta, ser absolvido;

- alega que não se verificam os elementos do tipo de crime por que foi condenado;

- atuou em situação de erro sobre a ilicitude do facto;

- questiona a pena concreta aplicada; e

- foi violada a proibição de reformatio in pejus.


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Respondendo, o magistrado do Ministério Público defendeu a improcedência do recurso.

Nesta instância, a sra. procuradora-geral adjunta emitiu parecer no sentido de ser anulada a sentença recorrida, reenviando-se o processo para novo julgamento a fim de serem apuradas as condições pessoais, profissionais e económicas do arguido.

Cumpriu-se o disposto no art. 417 nº 2 do CPP.

Colhidos os vistos cumpre decidir.


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Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos (transcrição):
a) No Lugar de Trelães existe um caminho, aquele fotografado a fis. 7 e 8, caminho este que segue contíguo ao prédio rústico pertença de Emília do Céu, mulher do arguido, descrito na Conservatória sob o n" 189 e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 3783 0.
b) Tal caminho, que bordeja pelo sul o referido prédio, apresenta-se bem marcado e delimitado, sendo utilizado desde tempos imemoriais pelas gentes, nomeadamente pelas de Fornelos, que por lá passavam nos seus afazeres e lazer, desde logo para aceder a propriedades agrícolas, a pé, conduzindo animais para pasto, dirigindo carros tirados por animais, tripulando tractores, na convicção, que era a de toda a comunidade, de que o faziam por direito, sem que jamais houvesse qualquer oposição de quem quer que fosse, pelo menos nos últimos 100 anos, nomeadamente das pessoas que antes da Emília do Céu foram donas e/ou possuidoras do prédio supra descrito em a).
c) No dia 10 de Fevereiro de 2010, o arguido, pretendendo juntar o dito caminho ao terreno da sua mulher, supra descrito, com uma máquina escavadora atulhou-o com pedras numa das extremidades e abriu valas profundas no leito do mesmo.
d) Como consequência directa e necessária da referida conduta, ficou o referido caminho inacessível e intransitável, assim se impedindo, como pretendido pelo arguido, que por ele se processasse qualquer movimento de pessoas e veículos.
e) Agiu o arguido com o intuito concretizado de tomar imprestável para o fim a que se destinava o referido caminho, impedindo o acesso ao mesmo e que por ele se processasse qualquer movimento de pessoas e veículos; mais agiu sem permissão da junta de freguesia, entidade que administra o caminho pertença de toda a comunidade.
f) Sabia não lhe pertencer o dito caminho.
g) Agiu de forma livre, voluntária e consciente, sabendo proibidas as suas condutas
h) À data do julgamento o arguido repôs toda a situação existente do estado anterior à prática do dano, com resulta do conteúdo da última ata do julgamento.
i) O arguido confessou em parte os factos.
j) O arguido é primário, está socialmente integrado e está familiarmente enquadrado.
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FUNDAMENTAÇÃO
Suscita-se a questão prévia da legitimidade do Ministério Público, face à desistência de queixa apresentada pelo presidente da Junta de Freguesia de Fornelos na audiência de julgamento realizada em 14 de Novembro de 2011 (ata de fls. 155 e ss).
Vejamos:
O arguido foi acusado e condenado pela autoria de um crime de dano qualificado p. e p. pelos arts. 212 e 213 nº 1 al. c) do Cod. Penal.
A circunstância qualificativa consiste em a coisa danificada ser “destinada ao uso e utilidade públicos”.
O dano é um crime doloso, embora seja bastante o dolo eventual. No caso de dano “simples” o agente tem de saber ou representar (conformando-se com o resultado) que a sua ação sacrifica coisa alheia. Já no dano qualificado tem também de ter conhecimento de todos os elementos ou circunstâncias que determinam a qualificação. No caso da qualificativa do art. 213 nº 1 al. c) do Cod. Penal tem de representar que a coisa é destinada ao uso e utilidade públicos – v. Conimbricense Tomo II, pags. 249 e 250.
Não se provando factos que permitam afirmar que o dolo também abrangeu a circunstância qualificativa, não pode o agente ser punido por mais do que pelo crime de dano simples do art. 212 do Cod. Penal – obra citada, tomo II, pag. 250.
Pois bem, dos factos provados, que reproduzem os da acusação, resulta inquestionável que o caminho danificado pelo arguido se destinava a uso público. Mas não consta que o arguido conhecia tal fim de destino de uso público, ou que representou tal hipótese. Também não resulta de forma inelutável da configuração do caminho que o mesmo era público. Há caminhos idênticos de utilidade meramente particular, como os de servidão, por exemplo.
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Sob pena de violação da estrutura acusatória do processo criminal (art. 32 nº5 da CRP), para a condenação pelo crime de dano qualificado em causa, tinha de constar da acusação a alegação de que a arguido sabia (ou representou, conformando-se com tal hipótese) que o caminho era destinado ao uso e utilidade públicos. E não apenas, como consta da acusação, que o arguido “sabia não lhe pertencer o dito caminho” (cfr. fls. 77).

A “intenção” com que o arguido atua constitui matéria de facto, que tem de constar da acusação, sob pena de esta decair. Trata-se de um facto do foro psicológico, mas “facto”. Os factos deste tipo são, muitas vezes, indemonstráveis de forma naturalística, mas o tribunal pode considerá-los provados, através de outros que com eles normalmente se ligam.
Ora a acusação nenhum facto contêm tendente a enquadrar o referido requisito do dolo do dano qualificado.
Não se argumente, em sentido contrário, que tal intenção resulta implícita do conjunto dos factos e do comportamento do arguido.

Não deve ser confundida a exigência de alegação de todos os factos que integram o tipo de crime com a prova dos mesmos. Por exemplo, o modo como uma bofetada foi desferida pode inculcar a certeza de que houve intenção de ofender corporalmente. Porém, isso não dispensa a alegação (na acusação) dos factos que integram o dolo.
A circunstância do dolo poder ser provado (e, portanto, inferir-se) com recurso a presunções naturais ou com recurso às regras da vida não significa que fica prescindida a respetiva alegação dos factos que o integram – cfr. a tal propósito Figueiredo Dias, “Ónus de alegar e de provar em processo penal”, RLJ, 105º, nº 3473, 1972, p. 128, «uma coisa é a presunção, de iure ou iuris tantum, do dolo, absolutamente inadmissível (...) em qualquer terreno do direito penal moderno; outra coisa completamente diferente – e, esta sim, aceitável – seria a necessidade de o juiz comprovar a existência do dolo através de presunções naturais (não jurídicas) ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral ou às chamadas máximas da vida e regras da experiência».

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Pelas razões expostas, a acusação nunca poderia levar a mais do que à condenação pelo crime de dano “simples” do art. 212 nº 1 do Cod. Penal.
Tal crime tem natureza semi-pública, dependendo de queixa (art. 212 nº 3 do Cod. Penal).
Conforme se vê de fls. 155 e 156 (ata da audiência realizada em 14-11-2011) e da gravação da audiência, o Presidente da Junta de Fornelos, que apresentara a queixa, declarou desistir da mesma.
O arguido já declarara que não se opunha a uma eventual desistência de queixa – fls. 68.
Resta, pois, homologar a desistência, declarando extinto o procedimento criminal contra o arguido.
A extinção do procedimento criminal prejudica o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso.

DECISÃO
Os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães declaram extinto o procedimento criminal contra o arguido Valentim C....
Sem custas.