Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5311/17.3T8BRG.G1
Relator: FÁTIMA FURTADO
Descritores: RAI
REJEIÇÃO
OMISSÃO DE FACTOS
DANO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/19/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) Do requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente devem constar, além do mais, a narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança e as disposições legais aplicáveis.

II) Não bastando a mera possibilidade de dedução da qualificação jurídica dos factos narrados.

III) A omissão das disposições legais aplicáveis determina a inadmissibilidade legal da instrução, sem lugar a convite ao aperfeiçoamento do requerimento.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães.
(Secção penal)

Relatora: Fátima Furtado; adjunta: Laura Maurício.

I. RELATÓRIO

No processo de instrução nº 5311/17.3T8BRG, do juízo de instrução criminal de Braga, juiz 1, da comarca de Braga, em que é arguido F. S., com os demais sinais dos autos, foi, em 26 de outubro de 2017, proferido despacho de rejeição, por inadmissibilidade legal, do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente A. S..
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Inconformado, o assistente A. S. interpôs recurso, apresentando a competente motivação, que remata com as seguintes conclusões:

A. «Vem o Recorrente interpor recurso da douta decisão do tribunal a quo, que rejeitou o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo Recorrente por inadmissibilidade legal de acordo com o n.º 2 e 3 do artigo 283.º CPP.
B. A motivação deve-se ao facto de o Recorrente não ter, alegadamente, inexistir, no requerimento de abertura de instrução, o elemento subjetivo do ilícito imputado.
C. Ora, não se vislumbra a pertinência da decisão do tribunal a quo uma vez que a fundamentação da falta de elementos utilizada pelo mesmo para rejeitar o requerimento de abertura de instrução na verdade se encontra plasmada no requerimento.
D. Com efeito o requerimento de abertura de instrução deduzido, contém: a súmula das razões de facto e de direito de discordância relativamente à não acusação do Arguido (vide artigos 18.º a 34.º do requerimento de abertura de instrução); a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo (rol de testemunhas a inquirir em sede de instrução); a indicação dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito; a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança inclusive em termos de lugar e tempo da sua prática (vide artigos 18.º a 34.° do requerimento de abertura de instrução); a indicação das disposições legais aplicáveis (vide artigo 24º do requerimento de abertura de instrução)
E. Demonstrando-se, assim, que os argumentos apresentados no despacho de rejeição do requerimento de abertura de instrução não merecem acolhimento, devendo o mesma ser aceite uma vez que se o Assistente, aqui Recorrente, tem legitimidade e apresentou em tempo.»
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O recurso foi admitido para este Tribunal da Relação de Guimarães por despacho datado de 23 de novembro de 2017.
O Ministério Público junto do Tribunal a quo respondeu, pugnando pelo não provimento do recurso.
Nesta Relação, a Ex.ma Senhora Procuradora-Geral adjunta proferiu douto parecer, igualmente no sentido da improcedência do recurso.
Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, na sequência do que o assistente apresentou resposta, reafirmando os argumentos invocados no recurso.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

Conforme é jurisprudência assente, o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respetiva motivação, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer(1).
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1. Questão a decidir

Face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, a questão a decidir é a de saber se é admissível o requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente A. S..
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2. A decisão recorrida tem o seguinte teor:

«Requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente A. S. a fls. 14 e ss.:

Nos termos do artigo 286.º, n.º1 do Código de Processo Penal, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
A instrução pode ser requerida pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, quanto a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação (artigo 287.º, n.º1, alínea b) do Código de Processo Penal).
No requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente, este terá de indicar não só as razões de facto e de direito de discordância relativamente ao despacho de arquivamento do Ministério Público, mas também os actos de instrução que pretende que sejam levados a cabo, os meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e os factos que, através de uns e outros, pretende provar.
Ao requerimento de abertura de instrução do assistente é ainda aplicável o disposto no artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c) do Código de Processo Penal (artigo 287.º, n.º 2 do Código de Processo Penal) ou seja, deve conter a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada e a indicação das disposições legais aplicáveis. A inobservância destes requisitos implica a nulidade da acusação (artigo 287.º, n.º 3 do Código de Processo Penal).
Assim, no requerimento de abertura de instrução o assistente terá, desde logo, de descrever os factos concretos que pretende imputar ao arguido.
Não descrevendo o assistente, de forma completa, os factos que pretende imputar ao arguido, qualquer descrição que se venha a fazer numa eventual pronúncia implica necessariamente uma alteração substancial do requerimento, ferida pois de nulidade nos termos do artigo 309.º do Código de Processo Penal (Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 24-11-93, CJ, T5/ 61 e do Tribunal da Relação de Lisboa de 09-02-00, CJ, T 1/153).
Perante o arquivamento determinado pelo Ministério Público e de acordo com o artigo 287.º do Código de Processo Penal, o requerimento para abertura da instrução formulado pelo assistente constituirá uma “acusação alternativa”, que deve descrever os factos que fundamentam a eventual aplicação de uma pena ao(s) arguido(s), definindo e delimitando assim o objecto do processo.
Atenta a estrutura acusatória do processo penal, o requerimento de abertura de instrução não pode limitar-se à simples impugnação do despacho de arquivamento, para o que o meio adequado é a reclamação hierárquica.
Descendo ao caso.
Consideramos que o RAI em apreciação o assistente invoca circunstâncias objetivas do tipo de crime (artigo 18º e 20º do RAI) e apenas parcialmente, o elemento subjetivo do tipo de crime de dano (artigo 33º do RAI). Na verdade, embora impute os factos a título de dolo eventual, não verte qualquer facto relativo à consciência da ilicitude.
A noção de dolo (Ac. R. Lisboa de 11/12/2008, REL. Telo Lucas, www.dgsi.pt) “é-nos dada pelo art. 14.° n.º 1, do Código Penal, segundo o qual age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção de o realizar.
Segundo o Professor Germano Marques da Silva, in Direito Penal Português, vol. II, pág. 162, pode definir-se o dolo como a vontade consciente de praticar um facto que preenche um tipo de crime, constando a vontade dolosa de dois momentos: a) a representação ou visão antecipada do facto que preenche um tipo de crime (elemento intelectual ou cognoscitivo); e b) a resolução, seguida de um esforço do querer dirigido à realização do facto representado (elemento volitivo).
Ainda segundo o mesmo Professor, na obra citada, não basta o conhecimento de que o facto preenche um tipo de crime, sendo necessária a própria consciência da ilicitude, pois nos expressos termos do art. 16.º do Código Penal, a falta de consciência da ilicitude exclui o dolo. No mesmo sentido aponta o Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal, Parte Geral, tomo I, págs. 332 e 333.
Segundo aquele Professor a doutrina hoje dominante conceitualiza o dolo, na sua formulação mais geral, como o conhecimento e vontade de realização do tipo objetivo de ilícito, sendo o conhecimento o momento intelectual e a vontade o momento volitivo de realização do facto.
Acerca do momento intelectual do dolo do tipo, escreveu aquele Professor na obra e local citados: "Do que neste elemento verdadeiramente e antes de tudo se trata é da necessidade, para que o dolo do tipo se afirme, que o agente conheça, saiba, represente correctamente ou tenha consciência (...) das circunstâncias do facto (...) que preenche um tipo objectivo de ilícito (art. 16.º - 1). A razão desta exigência deve ser vista à luz da função que este elemento desempenha: o que com ele se pretende é que, ao actuar, o agente conheça tudo quanto é necessário a uma correcta orientação da sua consciência ética para o desvalor jurídico que concretamente se liga à acção intentada, para o seu carácter ilícito; porque tudo isso é indispensável para se poder afirmar que o agente detém, ao nível da consciência intencional ou psicológica, o conhecimento necessário para que a sua consciência ética, ou dos valores, se ponha e resolva correctamente o problema da ilicitude do comportamento. Só quando a totalidade dos elementos do facto estão presentes na consciência psicológica do agente se poderá vir a afirmar que ele se decidiu pela prática do ilícito e deve responder por uma atitude contrária ou indiferente ao bem jurídico lesado pela conduta. Por isso, numa palavra, o conhecimento da realização do tipo objectivo de ilícito constitui o sucedâneo indispensável para que nele se possa ancorar uma culpa dolosa e a punição do agente a esse título. Com a consequência de que sempre que o agente não represente, ou represente erradamente, um qualquer dos elementos do tipo de ilícito objectivo o dolo terá, desde logo, de ser negado (...). Fala-se a este respeito, com razão, de um princípio de congruência entre o tipo objectivo e o tipo subjectivo de ilícito doloso. "
Para o Professor Germano Marques da Silva, na obra citada, "A exigência de que a consciência da ilicitude faça parte do dolo resulta do art. 16.º, pois aí se dispõe que o erro sobre elementos de facto ou de direito ou sobre proibições cujo conhecimento for indispensável para que o agente possa tomar consciência da ilicitude exclui o dolo, o que significa que a consciência da ilicitude é também elemento do dolo, pois se faltar o dolo é excluído ".
Nos termos do art. 283.° n.º 3, al. b), do C. P. Penal, a acusação contém, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.
Os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança são aqueles que preenchem os elementos objectivos e subjectivo do tipo de ilícito, no caso, do crime de dano.
Só assim se fixará, de forma definitiva e inequívoca (já para não dizer, ainda, adequada), o objecto do processo (na sua dimensão objectiva e subjectiva) a que a actividade cognitiva do tribunal irá estar vinculada em sede de julgamento, e se protegerão, concomitantemente, os direitos de defesa do arguido (sobre tudo isto, vd. FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, vol. I, págs. 144-145).
Face ao que até agora foi dito, é manifesto que o RAI não contém o elemento subjectivo do tipo de crime imputado ao arguido.
Com efeito, nada nela se diz quanto à consciência do arguido de praticar um facto que preenche um tipo de crime.
Temos para nós que o elemento subjectivo não pode resultar como extrapolação e efeito lógico do conjunto dos factos objectivos que são imputados ao arguido na acusação da assistente. É que, como se refere no acórdão da Relação de Guimarães de 7 de Abril de 2003, CJ,Ano XXVIII, tomo 2, pág. 292, que tem por objecto uma questão muito semelhante a esta, no nosso direito ninguém sustenta a existência de presunções de dolo.
Entendemos assim que não é admissível a ideia de um "dolus in re ipsa", ou seja a presunção do dolo resultante da simples materialidade de uma infracção, isto sem embargo de se poder operar a comprovação do dolo pelo recurso a presunções legais, coisa bem diferente, mesmo porque, salvo os casos de confissão por parte do agente de um crime, a prova do dolo tem de se inferir do conjunto da prova produzida na audiência de julgamento e, nomeadamente, de presunções legais.
Deste modo, face à posição por nós defendida, ainda que todos os factos constantes do RAI viessem a ser provados na audiência de julgamento, sempre o resultado teria de ser a absolvição do arguido.
Falta, por conseguinte, um elemento do tipo de infracção criminal, o que equivale a concluir pela inexistência da imputação de factos que consubstanciem, nos termos legais, crime.
Recentemente, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2015 - Diário da República n.º 18/2015, Série I de 2015-01-27 fixou a seguinte jurisprudência: «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.»
Ora, a falta de consciência da ilicitude é um facto cuja falta no libelo acusatório (do RAI) não pode ser suprida pelo mecanismo do artigo 351º do CPP, senão veja-se a mais recente jurisprudência do Tribunal da Relação de Coimbra Acórdão de 03/02/2016, (Proc. 2572/10.2TALRA.C2, REL. VASQUES OSÓRIO, www.dgsi.pt:

I - A consciência da ilicitude é momento constitutivo do dolo (não do tipo de ilícito mas do tipo de culpa), o seu momento emocional, sendo, portanto, uma exigência da atuação dolosa do agente na realização do tipo.
II - A jurisprudência fixada [Acórdão Uniformizador nº 1/2015 de 27 de Janeiro (in DR, 1ª Série, nº 18, de 27 de Janeiro de 2015)] não tem exclusivamente por objeto a falta absoluta, na acusação, da descrição do tipo subjetivo do crime imputado.
III - O aditamento feito em audiência de julgamento pelo tribunal recorrido, da expressão «Os arguidos sabiam que a sua conduta era proibida e punida por lei penal» não se traduz numa alteração inócua e despicienda, mera reprodução de bordão acolhido pela prática judiciária, sem qualquer valor funcional, antes dá plena satisfação à necessidade ‘prática’ de remediar uma deficiente descrição [por omissão de elemento essencial] do tipo subjetivo de ilícito levada ao despacho de pronúncia [e que já ocorria no requerimento para abertura da instrução] – (sublinhado nosso).
IV - O Acórdão Uniformizador nº 1/2015 veio fixar o sentido oposto a tal entendimento [recurso ao mecanismo do art. 358º, nº 1 do C. Processo Penal], impedindo o recurso ao dito mecanismo para integrar a deficiente descrição, por omissão narrativa, do tipo subjetivo do crime imputado, onde se inclui a consciência da ilicitude e determinando, consequentemente, que a deficiente ou incompleta definição do tipo subjetivo de ilícito conduza, necessariamente, à absolvição.
Em conclusão do sobredito, (conclui o mencionado Aresto) a jurisprudência fixada pelo Acórdão Uniformizador nº 1/2015 é aplicável à questão sub judice, o que significa que, por força dela, não pode efectuado o aditamento à matéria de facto a provar, integrando na mesma o facto, «O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.», desde logo porque tal elemento estava já omisso no RAI, o que é precisamente o caso dos presentes autos.
A inexistência na acusação deste elemento do tipo subjectivo do ilícito imputado, impede a definição da conduta do arguido inserta no RAI, como conduta típica, ilícita e culposa, portanto, como crime.
Não havendo crime, o douto RAI está votado ao insucesso.
Acresce que, nestes casos, é insustentável a prolação de um despacho de aperfeiçoamento, sob pena de haver lugar a uma prorrogação do prazo legal para requerer a abertura da instrução inadmissível em processo penal fora do caso previsto no art. 107.º, nº 6, do Código de Processo Penal.
Isso mesmo resulta inequivocamente do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2005, publicado no Diário da República n.º 212, I Série A, de 4 de Novembro de 2005 que, fixando jurisprudência nesta matéria determinou que: “Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.” e para cujos fundamentos se remete.
Nesta conformidade, por inadmissibilidade legal, atenta a falta de delimitação do objecto da instrução, ao abrigo do disposto nos art.ºs 287.º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Penal, e 32.º, n.ºs 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa, rejeito o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente A. S. fls. 14 e ss.
Custas pelo assistente com taxa de justiça que fixo em 2 UC, - arts. 515º nº 1 al. a) do CPP e 8º nº 9 do RCP -, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário concedido.
Notifique.»
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3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

O assistente A. S. interpôs o presente recurso com o intuito de ver revogado o despacho que rejeitou o requerimento de abertura da instrução por si formulado, no qual, reagindo ao despacho de arquivamento do Ministério Público, considera haver indícios suficientes de que F. S. praticou um crime de dano.
Defende o recorrente que esse seu requerimento de abertura de instrução obedece às exigências das disposições conjugadas dos artigos 287.º, n.º 2, e 283.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, pelo que não deveria ter sido rejeitado.

Vejamos.
A instrução é uma fase processual que visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, com vista a submeter ou não a causa a julgamento, com base em critérios de legalidade (cfr. artigo 286º, nº 1, do Código de Processo Penal).
Podendo ser requerida «pelo arguido, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público ou o assistente, em caso de procedimento dependente de acusação particular, tiverem deduzido acusação; ou pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação» (artigo 287º, nº 1, als. a) e b) do Código de Processo Penal).
No presente caso, é inquestionável ser na qualidade de assistente que o recorrente apresentou o requerimento de abertura da instrução, pretendendo reagir a um despacho de arquivamento do Ministério Público.
Como tal, o requerimento de abertura dessa fase processual tem de corresponder à dedução da acusação, como prescrevem os artigos 287.º, n.º 2, e 283.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
De tal ordem que a decisão instrutória que vier a ser proferida no final da fase da instrução só pode recair sobre os factos descritos no requerimento para a respetiva abertura.
O requerimento de abertura da instrução tem pois de proceder à delimitação clara do objeto do processo, em obediência ao princípio da vinculação temática, corolário do princípio do acusatório, que impede que o tribunal tome a iniciativa de investigar e decidir para além do que lhe é solicitado. Ao mesmo tempo que, por essa via, se consegue também efetivar o princípio do contraditório, bem como o respeito pelas garantias de defesa do arguido, que só assim pode saber de que factos tem de se defender e em função deles delinear a sua estratégia de defesa (cf. artigo 32º, nº 1 e nº 5, da Constituição da República Portuguesa).
Revertendo novamente ao caso em apreço, da leitura do requerimento de abertura da instrução formulado pelo recorrente logo ressalta – para além de tudo o mais – uma total omissão das disposições legais aplicáveis, ou seja da norma incriminadora, que em momento algum é identificada.
Sendo a responsabilidade do arguido aludida apenas por referência à prática de «crime de dano», o que para além de não ser a mesma coisa, é manifestamente insuficiente para o efeito.
Efetivamente, os artigos 283.º, n.º 3, als. b) e c) e 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, contêm a exigência legal de indicação expressa no requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente, a par dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, também das disposições legais aplicáveis.
Não bastando, assim, a mera possibilidade de dedução da qualificação jurídica dos factos narrados, sob pena da total inutilidade daquela alínea c) do n.º 3 do artigo 283.º.
Acresce, no caso, que o requerimento de abertura da instrução também não contém qualquer menção concreta à natureza alheia do veículo danificado (2), não obstante tal constituir um dos elementos objetivos típicos do crime de dano, seja ele o dano simples, previsto e punível pelo artigo 212.º, n.º 1 do Código Penal; o dano qualificado, previsto e punível pelo artigo 213.º do mesmo diploma; ou o dano com violência previsto e punível pelo artigo 214.º, também do Código Penal. O que, só por si, afasta a tipicidade da conduta do arguido nele descrita, prejudicando o conhecimento da suficiência, ou não, da narração de factos integradores do elemento subjetivo da infração. Posto que o conhecimento deste último pressupõe, naturalmente, a suficiência da narração de factos integradores dos respetivos elementos objetivos.
Certo é que o requerimento de abertura de instrução não delimita o objeto do processo, por falta de indicação das disposições legais aplicáveis e insuficiência dos factos narrados para sustentarem a aplicação de uma pena ou medida de segurança, nunca podendo por isso conduzir, à luz dos princípios básicos constitucionais do acusatório e do contraditório, à pronúncia do arguido.
A instrução é pois legalmente inadmissível, nos termos do disposto no artigo 287.º, n.º 3 do Código de Processo Penal.
Estando definitivamente afastada a possibilidade de convite ao aperfeiçoamento do requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente e omisso na narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido, como é jurisprudência fixada pelo acórdão uniformizador do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/2005, de 12.05.2015, D.R 212, série I, de 04.11.2015.
Solução que, quanto a nós, se deve estender também à omissão das disposições legais aplicáveis no requerimento de abertura da instrução do assistente (3), em que se identificam precisamente os mesmos fundamentos para a impossibilidade de aperfeiçoamento, relacionados com a própria estrutura acusatória do processo penal, de imposição constitucional (artigo 32.º n.º 5 da Constituição da República Portuguesa), como bem decorre do seguinte excerto, retirado do acórdão uniformizador de jurisprudência supra citado:
«Integrando o requerimento de instrução razões de perseguibilidade penal, aquele requerimento contém uma verdadeira acusação; não há lugar a uma nova acusação; o requerimento funciona como acusação em alternativa, respeitando-se, assim, «formal e materialmente a acusatoriedade do processo», delimitando e condicionando a actividade de investigação do juiz e a decisão de pronúncia ou não pronúncia - cf. Professor Germano Marques da Silva, op. cit., p. 125.
A falta de narração de factos na acusação conduzem à sua nulidade e respectiva rejeição por ser de reputar manifestamente infundada, nos termos dos artigos 283.º, n.º 3, alínea b), e 311.º, n.os 2, alínea a), e 3, alínea b), do CPP.
A manifesta analogia entre a acusação e o requerimento de instrução pelo assistente postularia, em termos de consequências endoprocessuais, já que se não prevê o convite à correcção de uma acusação estruturada de forma deficiente, quer factualmente quer por carência de indicação dos termos legais infringidos, dada a peremptoriedade da consequência legal desencadeada: o ser manifestamente infundada igual proibição de convite à correcção do requerimento de instrução, que deve, identicamente, ser afastado.»
Assim, e embora não exatamente pelas mesmas razões, não nos merece reparo a rejeição do requerimento de abertura de instrução, por inadmissibilidade legal, feita no despacho recorrido.
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III. DECISÃO

Pelo exposto, acordam as juízas deste Tribunal da Relação de Guimarães, em não conceder provimento ao recurso interposto pelo assistente A. S..
Vai o recorrente condenado em custas, fixando-se em 4 (quatro) Ucs a taxa de justiça.
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Guimarães, 19 de março de 2018
(Elaborado e revisto pela relatora)

Fátima Furtado
Laura Maurício


1. Cf. artigo 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, v.
2. Embora nele se reconheça até, mas apenas em abstrato, que um dos elementos típicos do crime de dano é precisamente a «natureza alheia da coisa» (cfr. ponto 22 do requerimento).
3. Cfr., neste sentido, entre outros, o ac. do TRC de 27.04.2016, proc. 59/14.3TASBG.C1, disponível em www.dgsi.pt.