Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
182/10.3TA VVD.G1
Relator: TERESA BALTAZAR
Descritores: CONSUMAÇÃO
APROPRIAÇÃO ILÍCITA POR ACESSÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/09/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO IMPROCEDENTE
Sumário: A apropriação típica do ilícito do artº 107º, nº 1 do RGIT, ocorre no momento em que a entidade empregadora deduz uma quantia da remuneração de um seu trabalhador, ou órgão social, com o propósito de a entregar à Segurança Social e não a entrega, invertendo título da posse dessa quantia, passando a dispor da mesma como se fosse sua, afectando-a a outra finalidade.
Decisão Texto Integral: - Tribunal recorrido:
Comarca de Braga – Vila Verde – Inst. Local – Secção Criminal – J1.
- Recorrente:
O arguido António A...
- Objecto do recurso:
No processo comum, com intervenção de Tribunal Singular n.º 182/10. 3TA VVD, da Comarca de Braga – Vila Verde – Inst. Local – Secção Criminal – J1, foi proferida sentença, nos autos de fls. 456 a 485, na qual, no essencial e que aqui importa, se decidiu o seguinte:
“IV. DISPOSITIVO
Nestes termos, tendo em atenção as considerações produzidas e as normas legais citadas, decide-se:
“I ) – EM SEDE DE ILÍCITOS CRIMINAIS:
a) Condenar o arguido António A.. pela prática, como autor material, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. pelo artigo 107.º n.º 1, por referência ao artigo 105.º, n.º 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 15 de Junho, na pena de 2 (dois) anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos, subordinada à condição de, no prazo de 3 anos, a contar o trânsito da presente sentença, demonstrar nos autos o pagamento das cotizações em causa nos autos e acréscimos legais.
b) Condenar a arguida “C… S.A.”, pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. pelo artigo 107.º n.º 1, por referência ao artigo 105.º, n.º 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 15 de Junho, na pena de 400 dias de multa, à taxa diária de €10,00 (dez euros), num total de €4.000,00 (quatro mil euros).
(…)
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II - ) NA PARTE CÍVEL:
1) Decide-se julgar procedente o pedido de indemnização civil formulado pelo INSTITUTO DE SEGURANÇA SOCIAL, I.P., e, consequentemente, condenar os demandados António A. e “C… S.A.”,a pagar à segurança social as cotizações vertidas nos pontos 3) e 4) dos factos provados, no valor global de €€155.551,30, bem como os juros de mora calculados sobre o capital enunciado em cada uma das prestações descritas nos pontos 3), 4) e 5) dos factos provados, calculados nos termos do artigo 16.º, do Decreto-Lei n.º411/91, de 17 de Outubro e artigo 3, do Decreto-Lei n.º73/99, de 16 de Março, desde o 15.º dia do mês seguinte a que respeitem, até integral e efectivo pagamento, sendo os vencidos até à data de 18-07-2013, no valor de €70.882,15. (…)”.
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Inconformado com a supra referida decisão o arguido António A.., dela interpôs recurso (cfr. fls. 491 a 502), terminando as suas motivações com as conclusões constantes de fls. 497 a 502, que aqui se dão integralmente como reproduzidas.
No essencial, no recurso, restrito á parte criminal, e apenas quanto a matéria de direito, suscitam-se as questões seguintes:
1- Entende o arguido que “na parte em que os salários não foram pagos aos trabalhadores e aos órgãos sociais não existe apropriação pelo que nessa parte não terá praticado qualquer crime” (cls. n.º 4 a fls. 498).
Refere que em seu entender tem que existir inversão do titulo de posse quanto ás prestações devidas para poder existir o crime que lhe foi imputado, tendo que ser as mesmas efectivamente deduzidas aos trabalhadores, acrescentando que no entanto os mencionados salários não estavam a ser pagos, pelo que ao valor devido deveria ser descontado o valor de €128 289.27;
2- Existe nulidade da sentença por falta pronúncia pois no caso a suspensão da execução da pena de prisão - condicionada ao pagamento da prestação tributária e legais acréscimos – reclama um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição por parte do condenado (Ac. Unif. de Jurisprudência n.º 8/2012, do STJ, de 12-9-2012); existindo défice instrutório por não ter sido solicitado relatório social;
3- Discorda “do tipo de pena que lhe foi aplicada” (cls. 3ª, fls. 498), que refere como excessiva, entendendo que deveria o tribunal ter-lhe aplicado apenas uma pena de multa.
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O recurso foi admitido por despacho constante a fls. 503 (2ª parte).
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O M. P. respondeu ao recurso, concluindo não merecer o mesmo provimento (cfr. fls. 514 a 516).
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O Ex.mº Procurador Geral Adjunto, nesta Relação no seu parecer (constante de fls. 526 a 530) conclui no mesmo sentido.

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Cumprido o disposto no artigo 417º, n.º 2, do C. P. Penal, veio o arguido António A.. apresentar a resposta constante de fls 533 e 534, que aqui se dá como integralmente reproduzida.

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Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos, prosseguiram os autos para conferência, na qual foi observado todo o formalismo legal.

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- Cumpre apreciar e decidir:
- A - É de começar por salientar que, para além das questões de conhecimento oficioso, são as conclusões do recurso que definem o seu objecto, nos termos do disposto no art. 412º, n.º 1, do C. P. Penal.
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- B - No essencial, no recurso, restrito á parte criminal, e apenas quanto a matéria de direito, suscitam-se as questões seguintes:
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1- Entende o arguido que “na parte em que os salários não foram pagos aos trabalhadores e aos órgãos sociais não existe apropriação pelo que nessa parte não terá praticado qualquer crime” (cls. n.º 4 a fls. 498).
Refere que em seu entender tem que existir inversão do titulo de posse quanto ás prestações devidas para poder existir o crime que lhe foi imputado, tendo que ser as mesmas efectivamente deduzidas aos trabalhadores, acrescentando que no entanto os mencionados salários não estavam a ser pagos, pelo que ao valor devido deveria ser descontado o valor de €128 289.27;
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2- Existe nulidade da sentença por falta pronúncia pois no caso a suspensão da execução da pena de prisão - condicionada ao pagamento da prestação tributária e legais acréscimos – reclama um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição por parte do condenado (Ac. Unif. de Jurisprudência n.º 8/2012, do STJ, de 12-9-2012); existindo défice instrutório por não ter sido solicitado relatório social;
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3- Discorda “do tipo de pena que lhe foi aplicada” (cls. 3ª, fls. 498), que refere como excessiva, entendendo que deveria o tribunal ter-lhe aplicado apenas uma pena de multa.
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- C - Matéria de facto dada como provada e não provada, na 1ª instância e sua motivação - cfr. fls. 457 a 466 (transcrição):
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“II.1 - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Com relevância para a boa decisão da causa, da prova produzida resultaram os seguintes:
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A.1) Factos Provados
1) A sociedade arguida, com o NIPC … e NISS …, iniciou a sua actividade com trabalhadores a seu cargo em Fevereiro de 2001 e tem por objecto empreitadas de construção civil, construção e reparação de edifícios, compra e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim.
2) Às datas infra descritas, o segundo arguido, na qualidade de gerente de direito e de facto da sociedade arguida, era o responsável pela sua administração, sendo quem contratava, despedia, dava ordens e orientações aos trabalhadores e assinava os documentos que a vinculavam.
3) Nos períodos a seguir discriminados o arguido António A.. agindo por si e em nome e no interesse da sociedade comercial “C… SA” procedeu à dedução sobre os salários pagos (ou a pagar) aos seus trabalhadores e aos membros dos órgãos sociais), dos seguintes montantes, a título de cotizações obrigatórias para a Segurança Social:










4) Todavia o arguido, agindo por si e em nome e no interesse da sociedade arguida, não procedeu à entrega dos montantes acima discriminados no prazo legalmente estipulado, isto é, até 15 dias do mês seguinte àquele a que respeitam, nem nos 90 dias subsequentes, nem nos 30 dias após a notificação para o pagamento voluntário efectuada a 02 de Maio de 2013, como lhe competia.
5) Assim, o arguido decidiu por si e em nome e no interesse da sociedade arguida não entregar tais quantias à Segurança Social e apropriar-se das mesmas, utilizando-as em benefício da sociedade que representava como se de coisa sua se tratasse, tendo perfeito conhecimento que as mesmas não lhe pertenciam e obtendo por tal forma uma vantagem patrimonial no valor de € 155.551,32 (cento e cinquenta e cinco mil, quinhentos e cinquenta e um euros e trinta e dois cêntimos).
6) O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e conscientemente, por si e em nome e no interesse da sociedade arguida, bem sabendo que as quantias que deduziu aos salários dos trabalhadores e aos órgãos sociais não lhe pertenciam e eram devidas aos cofres da Segurança Social e a esta deveriam ter sido entregues nos prazos legais e que, por esse motivo, incorria em responsabilidade criminal.
DO PIC de fls.370:
7) Além dos sobreditos, com referência à data de 18-07-2013, os juros vencidos sobre as cotizações referidas em 3) e 4) - ascendia a €70.882,15.

Mais se provou que:
8) O arguido Mimoso é casado (separado de facto - refere), tendo 3 filhos (com 11, 20 e 25 anos) – estudantes.
9) Gasta cerca de €300,00/mês na educação deles.
10) O arguido refere que trabalha … – na área da construção civil/por conta própria – auferindo cerca de €800,00 (mês).
11) Refere ainda que faz part-time na empresa … - ganhando à volta de €…/mês.
12) Assim, aufere rendimento não concretamente apurado, mas não inferior ao por si revelado.
13) Refere residir sozinho, em casa arrendada, no …, pagando €250,00 de renda.
14) Tem a 4ª classe de escolaridade.
15) Gasta em alimentação montantes não concretamente apurados e em despesa de saúde valor a rondar os €…/mês.
16) Conduz um Fiat Cinquecento do ano de ….
17) A sociedade arguida não tem presentemente actividade.
18) O arguido actuou no quadro de uma situação económica deficitária da empresa – para o que concorreu a existência de créditos sobre terceiros que não conseguiu cobrar.
19) Assim, a empresa tem créditos por receber no valor de €300.000,00 (trezentos mil euros), relativamente a obras realizadas em Portugal; e, relativamente a obras realizadas em França, em cerca de €1.000.000,00 (um milhão de euros).
20) Face à escassez de meios financeiros, o arguido optou por canalizar os meios existentes para o pagamento de salários e a fornecedores, em detrimento da liquidação dos valores em dívida nos autos.
21) O património que a sociedade detinha (v.g., veículos, terrenos e habitações) foi penhorado e vendido pelas Finanças para pagamento de dívidas fiscais.
22) Os arguidos não apresentam antecedentes criminais.
23) Com referência a …, a sociedade arguida apresenta um saldo de salários em atraso aos respectivos trabalhadores no valor de €100.089,36; a título de remunerações a órgãos sociais o valor de €28.199,91; num tal de €128.289,27.
24) O arguido optou por liquidar salários e pagar fornecedores com os valores não entregues.
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A). 2. Matéria de facto não provada
Que o arguido Mimoso tenha utilizando as quantias em causa em seu benefício (pessoal próprio, bem entendido).
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B). Motivação da decisão sobre a matéria de facto
O tribunal formou a sua convicção com base no conjunto da prova produzida em audiência de julgamento, e bem assim a prova documental junta aos autos, toda ela livre e criticamente apreciada de acordo com o seu valor legal probatório e as regras da experiência, nos termos do artigo 127º do Código de Processo Penal, nos seguintes termos.
Quanto aos factos dados como provados referentes ao objecto social da sociedade arguida, respectiva gerência de direito e de facto, e início de actividade, a convicção do tribunal repousa na consideração das certidões dimanadas pelo Registo Comercial de fls.4 e seg., reiteradas a fls.35 e seg., o teor da certidão permanente de fls.183 e seg., e nas declarações do arguido António A. que chamou a si a gestão de direito e de facto exclusiva da sociedade.
No que tange ao apuramento dos valores em dívida, ponderaram-se os mapas com a identificação das cotizações em falta de fls.8 e seg., reiterados a fls.24 e seg., a fls.47 e seg., a fls.55 e seg., a listagem de conta corrente de contribuinte de fls.27 e seg., o teor do extracto de remunerações de fls.81 e seg., e os mapas discriminativos de cotizações em dívida de fls.165 e seg., e ainda os mapas reiterados a fls.315 e seg., e a fls.352 e seg..
Relativamente aos juros de mora das cotizações em apreço, ponderou-se o teor do cálculo de juros de mora de fls.375 e seg..
Ponderou-se ainda o depoimento da testemunha SÓNIA M., técnica superior ISS
Com efeito, a testemunha SÓNIA M., prestando um depoimento isento, objectivo, e bem fundado na análise nos documentos que coligiu e que se mostram patenteados nos autos, mormente nos sobreditos mapas e extractos de remunerações, atestou dos valores em dívida.
De resto, valoraram-se ainda as declarações do arguido, que admitiu não ter liquidado os valores em causa, não se rebelando contra a bondade do saldo em dívida.
Com efeito, as declarações do arguido foram, no essencial, confessórias (v.g., confessando que não entregou as quantias em causa e que sabia que tinha que as entregar – revelando que até chegou a fazer acordos com a Segurança Social nesse sentido.)
Procurou apenas sustentar que afectou os valores em dívida ao pagamento de salários e a fornecedores, devido às dificuldades de tesouraria, mormente em função do não pagamento de elevados valores por parte de clientes (nos valores dados como provados).
Referiu ainda que ficou a dever salários a trabalhadores relativamente aos períodos em causa, não sabendo no entanto precisar valores seguros. Acabou por alvitrar (por estimativa) cerca de €50.000,00 (não menos) – não sabendo sequer enquadrar temporalmente o não pagamento de salários e as suas remunerações – admitindo que registou salários em atrasos relativamente a todos os anos em causa.
Sobre esta matéria, o depoimento da TOC infra referida e os elementos por esta juntos permitem plasmas no nível de salários e remunerações não pagas.
Valorou-se ainda o testemunho de MARCO A. ex. trabalhador da “C…SA” até Julho de 2008, que, no essencial, corroborou se forma espontânea a existência de salários em atraso – (no valor de €3.000,00 – no seu caso).
Confirmou, pois, além do mais, que a empresa apresentava dificuldades económicas, já desde 2004 – confirmando atrasos no pagamento de salários (apontando ainda casos, para além do seu, de trabalhadores que saíram da empresa com salários por liquidar).
Ponderou-se ainda o testemunho de CARLOS F., ex. funcionário da sociedade arguida (FEV2005 até SET2008), o qual, depondo igualmente de forma natural e espontânea, corroborou o quadro de dificuldades da empresa, que se reflectia (entre o mais) na existência de salários em atraso; bem como a existência de créditos por cobrar (referiu mais de um milhão de euros de clientes de …).
Teve-se em conta igualmente o testemunho de JOAQUIM M., ex.TOC da empresa (até finais de 2006), que, depondo de forma isenta, atestou das dificuldades financeiras, os atrasos no pagamento de salários e a fornecedores.
Atestou ainda que as folhas de férias eram comunicadas à Segurança Social em função quer os salários efectivamente pagos quer os salários que não eram pagos a tempo e horas.
Confirmou que o valor da conta com pessoal – que reflecte os salários por liquidar – era fidedigna, posto que feita em função da indicação da sociedade e atestada em função do compulso dos documentos registados na contabilidade (maxime recibos de vencimento).
Ponderou-se igualmente o depoimento de AURORA C., toc da sociedade arguida desde 2007 a 2009, que, depondo de forma absolutamente espontânea e objectiva, atestou da existência dos valores em dívida respeitante a salários e à administração – em conformidade com o teor dos extractos de conta que juntou em audiência (patenteados nos autos a fls.451 a fls.452).
De resto, no que toca às notificações a que alude a alínea b), do n.º4, do artigo 105.º, do RGIT, valeu o teor de fls.345.
Tocantemente às condições da empresa e às condições económicas e sociais do arguido, e respectiva integração familiar, valeu o teor das suas próprias declarações [embora com muitas reservas – que deram origem à técnica não muito correcta do ponto de vista técnico jurídico de plasmar, em parte, o que o arguido disse (à falta de melhor prova)].
Com efeito, impõe-se realçar que as declarações do arguido no que tange às suas condições de vida, em muitos pontos (mormente quanto à natureza da real actividade actual do arguido), não mereceram credibilidade. Não é de facto credível que, após a cessação da actividade da empresa arguida, tenha sido a esposa a criar uma nova empresa do mesmo sector, aparentemente à margem do arguido António, e, mesmo pretensamente separada de facto do arguido, tenha dado emprego ao mesmo.
Quer dizer, sendo ambos casados, de repente o arguido transforma-se numa espécie de “rapaz dos pregos” da sociedade criada pela sua esposa!!!
Não faz sentido.
Pelo que, permanecendo na penumbra muitos dos aspectos conexos com a real actividade profissional do arguido e dos seus rendimentos (aspectos relativamente aos quais consideramos inócuo um eventual relatório social dada a informalidade deste tipo de situações), convenceu-se o Tribunal de que, pelo menos, o arguido apresenta rendimentos nunca inferiores aos por si declarados.
No que toca à ausência de antecedentes criminais, o tribunal baseou-se nos CRC de fls.377 e 416.
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O rol de factos dados como não provados é tributário da ausência de prova a esse respeito.”.
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- Quanto às questões suscitadas:

No essencial, no recurso, restrito á parte criminal, e apenas quanto a matéria de direito, suscitam-se as questões seguintes:
1- Entende o arguido que “na parte em que os salários não foram pagos aos trabalhadores e aos órgãos sociais não existe apropriação pelo que nessa parte não terá praticado qualquer crime” (cls. n.º 4 a fls. 498).
Refere que em seu entender tem que existir inversão do titulo de posse quanto ás prestações devidas para poder existir o crime que lhe foi imputado, tendo que ser as mesmas efectivamente deduzidas aos trabalhadores, acrescentando que no entanto os mencionados salários não estavam a ser pagos, pelo que ao valor devido deveria ser descontado o valor de €128 289.27.
Desde já se refere que, no principal, concordamos como o mencionado pelo M. P. pouco mais havendo a acrescentar ao que e bem já foi referido a respeito destas questões.
Sendo que não se concordacom a leitura do Recorrente relativamente ao desenho típico do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. pelo art. 107.°, n.º 1 do R.G.I.T., quando a nosso ver lhe introduz um pressuposto típico inexistente.
Considera o Recorrente que resultando provado no facto 23 da matéria de facto que com "referência a 31-07-2009, a sociedade arguida apresenta um saldo de salários em atraso aos respectivos trabalhadores no valor de 100.089,36; a título de remunerações a órgãos sociais o valor de €28.199,91; num tal de €128.289,22", então o crime não se pode verificar por se não dar a inversão do título de posse.
Está, salvo o devido respeito, equivocado.
Assim, tratando-se este de um "crime omissivo puro, consuma-se com a não entrega dolosa, no tempo devido, à segurança social, das contribuições deduzidas pela entidade empregadora dos salários dos seus trabalhadores e corpos sociais", sendo que a "apropriação típica do crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, ocorre quando a entidade empregadora deduz uma quantia da remuneração de um seu trabalhador, ou órgão social, com a finalidade de a entregar à Segurança Social e não a entrega, invertendo título da posse dessa quantia, passando a dispor da mesma como se fosse sua, afectando-a a outra finalidade" - Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 20/03/2012, Proc. n.o 5209/04.5TDLSB.Ll-5 (acessível in www.dgsi.pt).
Por outro lado, quer isso significar que não "é imprescindível a efectiva 'apreensão' material das quantias pelo recorrente para que o tipo criminal se preencha" - Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 20/04/2009”, (… por nós relatado).
“Com efeito, os co-arguidos efectuaram as operações materiais, de ordem contabilística, tendentes ao pagamento das contribuições devidas à Segurança Social sem todavia acompanharem as respectivas declarações dos meios de pagamento, razão pela qual o crime se verifica.
Se igualmente não pagaram os salários aos trabalhadores, isso é questão que aos trabalhadores interessará na sede própria; todavia, calcularam as contribuições com base nos salários devidamente processados, e inscreveram-nas na contabilidade nas rubricas próprias que se não confundem com a dos salários.
Ora, o Recorrente aqui tentou efectuar um paralelismo errado com o crime de abuso de confiança fiscal, confundindo duas dimensões: tipicamente no processamento do I.V.A., é atendível a jurisprudência que a nosso ver correctamente impõe não ser punível a conduta de quem não entregou o montante do I.V.A. aos cofres do Estado porque, responsável pela liquidação deste imposto na operação tributável que conduz, também não recebeu o total do montante (com o imposto) do cliente; aqui, diferentemente, não há qualquer paralelismo fáctico, tratando-se de operações materiais e contabilísticas diversas, e não dependendo directamente a liquidação do valor devido ao Estado da conduta de um terceiro.
Considerou-o acertadamente o Tribunal a quo, que citou jurisprudência concordante, e assim que "a possibilidade de entrega à segurança social dos descontos efetuados não é elemento constitutivo do crime p. e p. pelo art. 107.º do RGIT, do mesmo modo que a impossibilidade de pagamento da prestação tributária não é causa de Justificação ou de exclusão da culpa (. . .). Ora, o agente apropria-se das quotizações retidas aos salários dos trabalhadores no momento em que, devendo entregá-las à Segurança Social, o não faz. A apropriação pode, assim, traduzir-se na simples fruição ou na disposição pelo devedor de cada uma das prestações deduzidas ou retidas com obrigação de as entregar ao credor. O certo é que o ilícito se consubstancia na utilização desses valores para fim diverso, seja ele qual for" - Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 20-03-2012, relatado por ANTÓNIO JOÃO LATAS, disponível no site www.dgsi.pt.
Procedendo nesta parte o recurso estaria aberta a porta à possibilidade de ultrapassar a proibição ínsita na previsão incriminatória. Bastaria pois que os agentes da infracção não pagassem os salários para que se não desse praticado este crime, em última análise externalizando as suas consequências com a despesa social, o que para além de todos os argumentos utilizados redundaria num resultado absurdo ...” (fls. 511 a 513).
Pelo que não assiste razão ao recorrente neste ponto.

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2- Refere o recorrente que existe nulidade da sentença por falta de pronúncia pois no caso a suspensão da execução da pena de prisão - condicionada ao pagamento da prestação tributária e legais acréscimos – reclama um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição por parte do condenado (Ac. Unif. de Jurisprudência n.º 8/2012, do STJ, de 12-9-2012); existindo défice instrutório por não ter sido solicitado relatório social.
Desde já se refere que entendemos não existir esta invocada nulidade da sentença.
Diz o arguido que não foi efectuado um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação da condição que lhe foi fixada - suspensão da execução da pena de prisão - condicionada ao pagamento da prestação tributária e legais acréscimos - como exige o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência de 12 de Setembro de 2012, (publ. no D.R. 1ª série, de 24 de Outubro de 2012).
Deixou claro o Tribunal recorrido as reservas que a situação patrimonial do arguido, nos moldes em que este a entendeu referir, levantava.
Como acima se mencionou o recurso é apenas atinente á matéria de direito, sendo que ficou provado o seguinte:
8) O arguido António A. é casado (separado de facto - refere), tendo 3 filhos …estudantes.
9) Gasta cerca de €…/mês na educação deles.
10) O arguido refere que trabalha … na área da construção civil/por conta própria – auferindo cerca de €… (mês).
11) Refere ainda que faz part-time na empresa….
12) Assim, aufere rendimento não concretamente apurado, mas não inferior ao por si revelado.
13) Refere residir sozinho, em casa arrendada, no …, pagando €250,00 de renda.
14) Tem a 4ª classe de escolaridade.
15) Gasta em alimentação montantes não concretamente apurados e em despesa de saúde valor a rondar os €…/mês.
16) Conduz um Fiat Cinquecento do ano de ….
17) A sociedade arguida não tem presentemente actividade.
18) O arguido actuou no quadro de uma situação económica deficitária da empresa – para o que concorreu a existência de créditos sobre terceiros que não conseguiu cobrar.
19) Assim, a empresa tem créditos por receber no valor de €300.000,00 (trezentos mil euros), relativamente a obras realizadas em Portugal; e, relativamente a obras realizadas em França, em cerca de €1.000.000,00 (um milhão de euros).”.
Como bem refere o M. P. “Estes factos não foram impugnados, pelo que mesmo que não tivesse ficado explícito o entendimento do Tribunal a quo, nunca este recurso, que não cumpre o ónus quanto à impugnação da matéria de facto, poderia obter qualquer provimento.
Ainda que assim não fosse, não alcançou o Recorrente o juízo do julgador, que de forma clara, directa, assertiva, fundamentou os motivos pelos quais escolheu a pena, a sua medida, e depois condicionou a suspensão da pena de prisão ao pagamento das prestações tributárias?
Evidentemente, o Recorrente alcançou tais argumentos, e mais não pretende na prática do que a total impunidade em face da prática de actos criminalmente censuráveis.
Estranha-se ainda assim o apelo feito à necessidade de elaboração de relatório social por parte do Recorrente.
Se o Recorrente presta as contraditórias declarações que a respeito da sua condição sócio-económico prestou, o que pretende, se não um mero formalismo dilatório, com a elaboração e junção de um relatório social que mais não faria que reflectir iguais ou semelhantes declarações produzidas porém em contexto diverso? (fls. 510 e 511).
Não obstante se revelarem relativamente óbvios os motivos subjacentes à jurisprudência fixada no que tange à exigência da formulação do juízo de prognose positiva quanto à capacidade de o arguido satisfazer as prestações contributivas de que depende a suspensão da execução da pena, cabe não olvidar que essa exigência, porque atinente a factos futuros e incertos e, em grande medida, dependentes da vontade, iniciativa e empreendimento do agente do crime, só poderá ser observada através da ponderação de indícios, de indicadores de prognose com um recorte de nível inferior à comprovação, tanto mais que o ulterior incumprimento não tem consequências automáticas em sede de revogação da suspensão - cfr. arts. 55.º e 56.º do Código Penal. (fls. 527 v.º).
Pelo que também neste ponto entendemos não assistir razão ao Recorrente.
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3- Discorda “do tipo de pena que lhe foi aplicada” (cls. 3ª, fls. 498), que refere como excessiva, entendendo que deveria o tribunal ter-lhe aplicado apenas uma pena de multa.
Estipula o art. 70º do C. Penal que se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
O artº 71º do Cód. Penal indica os critérios para a escolha da medida da pena, estatuindo que esta deve fazer-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, tendo em vista a protecção dos bens jurídicos e a reintegração daquele (artº 40º nº1 do C.P.).
E no seu nº 2 manda atender àquelas circunstâncias que não fazendo parte do tipo, depuserem a favor ou contra o agente, indicando, a título exemplificativo, algumas delas nas várias alíneas.
A medida concreta da pena tem que ser determinada sempre conjugando os factores culpa e prevenção, estando o primeiro ligado a uma vertente pessoal do crime e o segundo à necessidade sentida pela sociedade na punição do caso concreto.
Quanto à culpa, ela irá não só fundamentar como também limitar a pena. Esta será estabelecida com base na intensidade ou grau de culpa e a sua medida não poderá ultrapassá-la. Estará sempre limitada, no seu máximo, por ela.
Segundo Figueiredo Dias Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, pág.286, na fixação da pena terá que estar sempre presente a ideia de prevenção, não de “prevenção em sentido amplo, como finalidade global de toda a política criminal, ou seja, como conjunto dos meios e estratégias preventivos da luta contra o crime” mas prevenção significando, “por um lado, prevenção geral, e, por outro lado, prevenção especial, com a conotação específica que estes termos assumem na discussão sobre as finalidades da punição”.
Assim, a pena deve ser fixada de forma a que contribua para a reinserção social do agente e não prejudique a sua posição social mais do que o absolutamente inevitável e, por outro lado, neutralize os efeitos do crime como exemplo negativo para a sociedade e simultaneamente contribua para fortalecer a consciência jurídica da comunidade sem deixar de ter em consideração o que foi afectado com o delito e suas consequências.

Ora, também aqui concordamos com o referido pelo M. P. quando refere “(…) não assistir qualquer razão ao Recorrente ao pretender ser condenado em pena de multa.
Andou bem o Tribunal a quo quando na página 20 considerou que "de uma forma decisiva, conquanto estejamos perante um arguido que, do ponto de vista social, familiar e profissional surge como plenamente integrado, cremos que o montante global já elevado das prestações em causa - mais de €… - coloca as fasquias da prevenção geral e especial num patamar elevado", e que por isso "assume-se como indispensável aplicar uma pena privativa da liberdade ao arguido, pois esta espécie de pena configura-se como a única que se mostra capaz de restaurar e tutelar as expectativas jurídicas da comunidade na manutenção da vigência da norma infringida e proporcionando a indispensável defesa do ordenamento jurídico jurídico. ".
Os elementos enunciados no n.º 2 do art. 71.° do Código Penal configuram módulos de vinculação do julgador, na medida em que deles faz uso para optar pela medida mais adequada às finalidades ético-preventivas da pena. Todavia, como muito bem vislumbrou o Supremo Tribunal de Justiça, se "para o efeito de determinação da medida concreta da pena que vai aplicar, o juiz serve-se do critério geral contido no art. 71.º do CP, estando vinculado ao critério ali estabelecido ", uma vez "acatados e respeitados os critérios de determinação concreta da medida da pena, há uma margem de actuação do julgador dificilmente sindicável (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 14-07-2010 (proc. n.º 364/09.0GESLV.E1.S1). Aquele espaço de discricionariedade do julgador resulta, com naturalidade, de configurar-se a pena abstracta entre um limite mínimo e um limite máximo (Para que assim não fosse, teria o legislador que prever penas fixas para cada tipo legal de crime, como sabemos ter sido já o caso, por influência do Iluminismo, por exemplo, no direito penal sancionatório saído da Revolução Francesa, o que contenderia com o princípio da culpa e com o princípio da igualdade - cfr. Jorge de Figueiredo Dias, "Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime", Reimpressão, Coimbra Editora, 2005, página 186 e 193.). No mesmo aresto concluiu-se que "a determinação concreta há-de resultar de a adaptar a cada caso concreto, liberdade que o julgador deve usar com prudência e equilíbrio, dentro dos cânones jurisprudenciais e da experiência, no exercício do que verdadeiramente é a arte de julgar".
Ancorado nas elevadas necessidades de prevenção geral, num país onde a criminalidade tributária é ainda um espaço normal de exercício de muitas actividades económicas, atento o valor elevado aqui em causa, decidiu oportuna e correctamente o Tribunal a quo ao optar pela pena de prisão.” (fls. 513 e 514).
A adoção alternativa da pena de multa, pela sua expressão incomensuravelmente mais escassa, quando estão em causa valores contributivos expressivos, como é o caso, desfigura clara e gravemente as finalidades da punição, quase se podendo exclamar que os infratores podem "cumprir" a sanção pecuniária aplicada com uma pequena parte do montante das contribuições em falta, esvaindo-se, por esta via, todo o edifício punitivo previsto para a delinquência tributária” (fls. 528 v.º).
Os crimes contra a segurança social vêm conhecendo uma preocupante proliferação cogumelar, dir-se-ia uma quase banalização, diante da qual alguma tibieza sancionatória, também involuntariamente promovida pelo muito impulsionado privilegiamento de soluções processuais de simplificação e consenso e pelos, muito frequentes, recortes de novas exigências de delimitação negativa de punibilidade, não auguram nada de bom.
Por isso, como escreveu Anabela Rodrigues (Contríbuto para a fundamentação de um discurso punitivo em matéria fiscal, DPEE, textos doutrinários, VaI. li, p. 484): a pena de prisão é, em abstracto, a pena mais adequada por ser a única capaz de responder às necessidades de promover a consciência ética fiscal.( ... )
E acrescenta que importa fazer "sentir aos agentes do crime económico e fiscal que abusam da confiança que neles é depositada, que os seus comportamentos ilícitos típicos são crimes e não simples irregularidades. E isso consegue-se de modo particularmente adequado e eficaz com as penas de prisão. "
Lapidares são as considerações que ficaram expressas do Acórdão do STJ de 21-12­-2006 - ainda sem a caudalosa recorrência do fenómeno que hoje nos confronta - em que asseverou: "A reacção penal não se compadece com a adopção de penas simbólicas que perpetuam um sentimento de impunidade, ou pecuniárias, pois não levam à interiorização, por parte do agente, da responsabilidade pelo acto danoso, subestimando-o. "(sublinhado nosso)
Ou no aresto do mesmo Tribunal, de 21-04-04, que assenta que nem uma luva ao caso que nos ocupa: "Tratando-se de quantias já com alguma expressão, a imposição directa de uma pena de multa que se reflecte monetariamente numa pequena parcela do montante total em dívida, pode contribuir, ainda mais, para "um amolecimento da consciência colectiva do dever de cumprimento das obrigações fiscais”( Proc. n.º 259/04 - 3.a Secção – Proc. n.º 06P2946, disponível em www.dgsi.pt/jstj.” (fls. 528 e 528 v.º).
Sendo que a pena aplicada ao recorrente se mostra adequada e proporcionada ao caso vertente, não excede a medida da culpa respectiva, cumpre os fins das penas, mormente a prevenção geral e especial e não deixa de prosseguir a almejada reintegração social do arguido, pelo que se mostra correcta e justa, face aos critérios legais, mormente dos artºs 40º, 71º e 72º do C. Penal.
Entendemos, pois, que também neste ponto não assiste razão ao recorrente.
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Deve, pois, o recurso ser julgado improcedente.

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- Decisão:
- Pelo exposto, decide-se nesta Relação em julgar o recurso como improcedente, mantendo-se a sentença proferida nos autos.
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Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.
Notifique / D. N.
(Texto processado em computador e revisto pela primeira signatária – artº 94º, nº 2 do CPP – Proc n.º 182/10.3TA VVD.G1).
Guimarães, 09 de Julho de 2015