Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
636/13.0PBGMR.G1
Relator: ANTÓNIO CONDESSO
Descritores: FURTO
TENTATIVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/17/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIAL PROVIMENTO
Sumário: I – Para a consumação do crime de furto não é necessário que o agente detenha a coisa de forma pacífica e segura, mas exige-se um mínimo plausível de fruição das suas utilidades.
II – Há mera tentativa de crime de furto quando o arguido foi surpreendido pelas autoridades policiais, que o encontraram escondido debaixo dum balcão de atendimento ao público, após ter retirado de uma das gavetas desse balcão um envelope com a quantia de € 485,00, que colocou nas cuecas.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães

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I- Relatório

Juliano F... foi condenado pela prática, como reincidente, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo artigo 204°, nº2, al. e) CP, na pena de 2 anos e 10 meses de prisão efectiva.

Inconformado recorre o arguido suscitando, em síntese, as seguintes questões:

- qualificação jurídica dos factos (mera tentativa);

- não verificação da reincidência;

- medida da pena e respectiva suspensão.

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O Ministério Público junto do tribunal recorrido respondeu ao recurso, pugnando pela respectiva improcedência.

Nesta Relação, o Exº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no mesmo sentido.

Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

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II- Fundamentação

A) Factos provados

a) No dia 15 de Junho de 2013, no período compreendido entre as 01h00 e a 01h40m, o arguido Juliano F... dirigiu-se à clínica dentária "A...R...", sita na Alameda A, S. Paio, Guimarães, com o propósito de aí entrar e de se apoderar dos objetos e valores que lhe viessem a interessar.

b) Em execução deste seu propósito, o arguido apoiando-se na caixa de ar condicionado trepou o muro de vedação do logradouro do prédio onde está instalada a clínica e, de seguida, já no terraço do prédio, acedeu a uma das portas exteriores das traseiras do edifício, que logrou abrir forçando a fechadura, tendo, desta forma, penetrado no interior das instalações da clínica.

c) No interior do imóvel, o arguido percorreu várias salas e remexeu móveis e gavetas em busca de bens e valores.

d) Chegado à sala de receção, o arguido abriu a gaveta do balcão de atendimento ao público, de onde retirou um envelope com a quantia de € 485,00 (quatrocentos e oitenta e cinco euros), em notas, propriedade de João R..., que o arguido colocou nas cuecas, junto ao seu corpo, dele se apropriando.

e) Quando o arguido se preparava para abandonar as instalações da clínica, foi surpreendido pelas autoridades policiais, que o encontraram escondido por debaixo do balcão da receção e o detiveram.

f) O arguido agiu da forma supra descrita com o intuito concretizado de entrar num espaço fechado da forma como o fez e de fazer sua a quantia de 485,00€ (quatrocentos e oitenta e cinco euros), bem sabendo que esta não lhe pertencia e que agia contra a vontade do legítimo proprietário.

g) O arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente, não obstante saber que a sua conduta era proibida e punida por lei.

h) O arguido foi condenado na pena de 10 meses de prisão, suspensa na sua execução, por sentença transitada em julgado em 06/12/2004, pela prática em 09/10/2002, de um crime de roubo, p. p. pelo artigo 210° do Código Penal e, por decisão transitada em julgado em 17/10/2006, a suspensão da pena de prisão foi revogada.

i) O arguido foi condenado na pena de 8 meses de prisão, por acórdão transitado em julgado em 27/07/2007, pela prática em 08/06/2004, de um crime de furto qualificado, p. p. pelo artigo 203°, nº1 e 204°, nº2, aI. e) do Código Penal.

j) O arguido foi condenado na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, por acórdão transitado em julgado em 21/09/2009, pela prática em 28/08/2004, de um crime de furto qualificado, p. p. pelo disposto nos artigos 203°, nº1, 204°, nº1 e nº2, aI. e), do Código Penal.

k) O arguido foi condenado na pena de 6 anos de prisão, por acórdão transitado em julgado em 25/03/2010, pela prática entre 31/05/2004 e 08/11/2004 de 14 crimes de furto qualificado, p.p. pelos artigos 203°, nº11 e 204°, nº2, aI. e) do Código Penal; 1 crime de furto qualificado na forma tentada, p. p. pelos artigos 203°, nº1 e 204°, nº2, aI. e) e 22°, 23° do Código Penal; 3 crimes de furto simples, p.p. pelo artigo 203°, nº1 do Código Penal; 3 crimes de roubo, p. p. pelo artigo 201°, nº1 do Código Penal e 2 crimes de roubo qualificado, p.p. pelo artigo 210°, nº1 e 2, aI. f) do Código Penal.

I) Por acórdão cumulatório, foi o arguido condenado na pena única de 6 anos e 6 meses de prisão, tendo sido libertado em 23/04/2012.

m) Tais condenações sofridas pelo arguido, bem como o facto de ter cumprido penas de prisão, não constituíram suficiente prevenção contra a prática de outros crimes, já que, apesar das mesmas, o arguido não se absteve de praticar os factos supra descritos, demonstrando, desta forma, uma clara indiferença ao aviso de que lhe deveriam ter servido as anteriores condenações.

n) Dá-se aqui por reproduzido, para além do já referido, o teor do seu certificado de registo criminal de fls. 218 a 227.

o) O processo de desenvolvimento de Juliano F..., que é o mais velho de 3 irmãos, decorreu no contexto do seu agregado familiar de origem, em ambiente avaliado como estruturado e funcional, e com condições económicas, embora modestas, capazes de suprir as necessidades da família.

Ingressou no sistema educativo na idade regulamentar, sem evidenciar dificuldades de maior na aprendizagem ou na interação com os diversos interlocutores da comunidade escolar. Contudo, na frequência do 2° ciclo do ensino básico passou a registar desmotivação pelas atividades académicas, acabando por abandonar a escola sem concluir o 6° ano de escolaridade.

Iniciou o seu percurso laboral com cerca de 15 anos de idade, trabalhando com o pai, o qual à data exercia atividade como estofador de automóveis, por conta própria. Posteriormente, trabalhou, aproximadamente um ano, numa loja de mobiliário e eletrodomésticos, mantendo durante esse mesmo período um percurso regular.

Envolveu-se no consumo de estupefacientes aos 14 anos de idade, comportamento que evoluiu rapidamente para a dependência, constituindo-se fator de desestruturação aos níveis pessoal, familiar e profissional. A partir de então, protagonizou comportamentos desviantes que determinaram o contacto com o sistema de administração da justiça penal, por crimes contra o património.

No seu percurso de toxicodependência, efetuou algumas tentativas de tratamento, nomeadamente no CRI de Guimarães, e no "Projeto Homem"- promovido pela Fundação Cupertino de Miranda - em Braga, em regime de internamento, contudo sem lograr alcançar a superação consolidada desta problemática.

Aquando da prática dos factos constantes na acusação, e próximo da determinação da prisão preventiva à ordem dos presentes autos, em Julho do corrente ano, o arguido permanecia integrado no seu núcleo familiar de origem desde o termo da anterior pena de prisão em 23/04/2013.

Em Maio, logrou inserir-se profissionalmente numa empresa do sector têxtil, sedeada em Pencelo, Guimarães, com o apoio de uma tia que aí trabalha, e, paralelamente, evidenciava uma situação de controlo da problemática aditiva.

Contudo, ao fim de cerca de um ano recaiu no consumo de tóxicos, que o próprio justifica com a sua dificuldade em gerir o período subsequente à anterior reclusão que conheceu, considerando que à data foi excessivo e muito jovem, o que acarretou consequências.

Ainda efetuou uma tentativa de tratamento na Clínica Dr. Nuno S..., em Arões, Fafe, porém, acabou por desistir pouco tempo depois, pelo que à data da presente reclusão o seu comportamento era condicionado por esta problemática, encontrando-se nomeadamente em situação de inatividade laboral.

Na sequência da sua detenção, a família mantém uma atitude apoiante, consubstanciada em visitas regulares e disponibilidade para uma vez mais o reintegrar no agregado.

A subsistência do agregado é assegurada com o subsídio de desemprego auferido pela mãe, cerca de 400 euros mensais, a qual neste momento possui um projeto em curso para a promoção do autoemprego. O irmão, com 20 anos de idade, encontra-se desempregado, e a irmã, com 15 anos, é estudante.

Consideram que através de uma gestão rigorosa dos recursos disponíveis, e com o apoio das irmãs da progenitora, conseguem fazer face às necessidades de subsistência.

Os pais encontram-se presentemente divorciados, situando-se o apoio do pai essencialmente no plano afetivo, visitando-o no estabelecimento prisional.

Profissionalmente, a família verbaliza a possibilidade daquele voltar a trabalhar na empresa têxtil onde exerceu funções, para o que a entidade patronal estará recetiva.

No meio social de residência, e onde decorreu o seu processo de socialização, zona histórica da cidade de Guimarães, não são conhecidos obstáculos à sua reintegração comunitária.

Em meio prisional o arguido tem mantido comportamento formalmente adequado ao ordenamento institucional.

Encontra-se sem desenvolver qualquer atividade de carácter laboral, escolar ou formativa, afirmando que optou por aguardar o desfecho do presente processo. Evidencia deste modo uma atitude acomodada, uma vez que poderia gerir o seu quotidiano de forma útil, procurando desenvolver atividades que potenciassem as suas competências pessoais, nomeadamente escolares, dado que tem apenas o 5° ano de escolaridade, ou preservando hábitos e rotinas de trabalho.

Relativamente à questão da toxicodependência diz-se abstinente, considerando desnecessária intervenção terapêutica em meio prisional, que não vê como eficaz.

Relativamente aos factos constantes na acusação percebe o seu significado e relevância penal, tendo paralelamente uma atitude desculpabilizante relativamente ao seu trajeto criminal, que tende a justificar com a problemática da toxicodependência enquanto fator que constrange e mitiga a sua capacidade crítica em determinados momentos.

Do ponto de vista familiar, a sua reclusão centra-se essencialmente ao nível afetivo, uma vez que à data o mesmo não constituía um elemento participativo na salvaguarda das necessidades do agregado, e a família mantém uma atitude apoiante consubstanciada nas visitas em meio prisional e disponibilidade para o acolher.

p) O arguido declarou aceitar submeter-se a tratamento, como condição para uma eventual suspensão da pena de prisão a aplicar.

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B) Factos Não Provados

Inexistem.

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C) Motivação de Facto

a) A prova da matéria da acusação decorreu da confissão integral e sem reservas do arguido. De igual forma, nas suas declarações, prestou esclarecimentos respeitantes à sua situação pessoal e percurso de vida.

b) A prova dos seus antecedentes criminais e medida das condenações sofridas decorreu da análise do seu certificado de registo criminal de fls. 218 a 227,

c) Foi analisado e tido em conta o relatório social de fls. 275 a 278, cujo teor foi conjugado com o depoimento da testemunha de defesa Maria Pereira - mãe do arguido -, relevando este, sobretudo, para realçar o apoio de que o arguido é alvo pelos membros do seu agregado familiar.

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Conforme é sabido, as conclusões do recurso delimitam o âmbito do seu conhecimento e destinam-se a habilitar o tribunal superior a conhecer as razões pessoais de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida (arts. 402º., 403º. e 412º., nº.1, todos do Código de Processo Penal e Ac. do STJ de 19-6-1996, BMJ nº.458, pág. 98), devendo conter, por isso, um resumo claro e preciso das questões desenvolvidas no corpo da motivação que o recorrente pretende ver submetidas à apreciação do tribunal superior, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente, por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º., nº. 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. Ac. do Plenário das Secções do STJ, de 19/10/1995, D.R., I – A Série, de 28/12/1995).

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Apreciando

1- Da qualificação jurídica dos factos (crime consumado ou mera tentativa)

Defende o recorrente que os factos apurados consubstanciam somente um crime de furto qualificado na forma tentada, ao contrário do acórdão recorrido onde se entendeu que o crime se encontra consumado, escrevendo-se, entre o mais, o seguinte sobre a matéria:

“…Escreve-se no Comentário Conimbricense ao Código Penal que «é de importância primordial definir os critérios normativos que nos serão capazes de ajudar a determinar o quando da consumação. Por outras palavras: em que momento é que, com a certeza jurídico-penalmente relevante, se pode afirmar que crime de furto se consumou?

A doutrina, sobretudo italiana, no que se refere a este específico problema individualiza quatro momentos típicos para uma possível consumação: a contrectatio (o tocar a coisa de outrem); a amotio (a remoção do lugar no qual se encontra); a ablatio (a transferência para fora da esfera de domínio do sujeito passivo); e a illatio (a conservação em lugar seguro). Fácil é de perceber, no entanto, que, quer a contrectatio, quer a illatio são critérios normativos hoje considerados, de todo em todo, inoperatórios, porquanto naquela nem sequer é pensável a subtração e na última, só para se dar um exemplo, não se contempla o caso do infrator que no próprio lugar do crime consome a coisa subtraída.

De sorte que a apreciação desta questão (...) pode, de um ponto de vista doutrinal, circunscrever-se à afirmação de que o furto se consuma quando a coisa entra, de uma maneira minimamente estável, no domínio de facto do agente da infração. No entanto, aquilo que se lança como critério de diferenciação tem, se bem se vê, dois momentos que urge diferenciar.

O primeiro: a) é a entrada de coisa alheia na esfera de domínio de facto do agente da infração que, obviamente, pressupõe como prioridade lógica a saída da coisa da esfera de domínio do sujeito passivo.

E o segundo: b) liga-se, indissoluvelmente, ao decurso de tempo considerado necessário para que se julgue consumada a infração. Infração que, como bem se sabe, entra no campo dos chamados crimes de consumação instantânea (...). Aqui - contrariamente, por exemplo, aos crimes permanentes - o momento da consumação opera-se de uma maneira instantânea.

O agente da infração tem, já o vimos, de atuar com intenção de apropriação e, para além disso, tem ainda de subtrair a coisa da esfera do domínio real de terceiro, passando, justamente, esse preciso domínio para o âmbito da sua própria esfera pessoal (em certo sentido ablatio). Isto é: para haver consumação formal - momento a partir do qual já se não pode desencadear o direito de legítima defesa - não basta que o sujeito passivo se veja privado do domínio de facto sobre a coisa, é ainda imprescindível que o agente da infração tenha adquirido um pleno e autónomo domínio sobre a coisa.

Resta-nos ainda trabalhar o segundo elemento. Vale por dizer, com a apropriação, com o efetivo e real domínio de facto sobre a coisa está o crime de furto consumado (consumação formal ou perfeição). Sem dúvida. Mas que tipo de domínio de facto se exige? Basta o instantâneo domínio de facto ou devemos, ao menos, exigir um mínimo plausível de fruição das utilidades da coisa? Cremos que o critério justo se deve buscar, justamente, na segunda proposição avançada.

Julgamos não ser suficiente o instantâneo domínio de facto sobre a coisa, porquanto é isso um critério que faria, incorretamente, coincidir ou fazer sobrepor subtração com domínio de facto (ou até com o apossamento /apropriação), o que traria consequências desastrosas sobretudo para a desistência da tentativa e para o arrependimento ativo.

De sorte que se nos afigure irrecusável aceitar que tem de haver um mínimo de tempo que permita dizer que um efetivo domínio de facto sobre a coisa é levado a cabo pelo agente. No entanto, estamos longe de defender que o domínio de facto se tenha de operar em pleno sossego ou em estado de tranquilidade, como parece advogar alguma da nossa jurisprudência (BMJ, 321, 316) …

Em recente Acórdão de 08/05/2013, o Tribunal da Relação do Porto tratou a matéria de forma que se reputa exemplar:

«Neste ilícito o que está em causa é a tutela do direito de propriedade, consubstanciada no direito de gozo, fruição e de disposição sobre a generalidade das coisas móveis, ainda que exista uma situação de mera posse ou de detenção em nome de outrem por parte do visado, ou então e caso se prefira a disponibilidade de fruição das utilidades da coisa com um mínimo de representação.

A sua ação típica central, a qual está descrita no seu tipo-base e nos dá a noção legal de furto, corresponde à subtração de coisa móvel alheia.

Esta ação de subtração deve ser entendida num duplo sentido, ou seja, enquanto privação da disponibilidade da coisa por parte do sujeito passivo (i), seguindo-se concomitantemente um novo "empossamento" por parte do sujeito ativo (ii), passando este a ter agora um novo domínio de facto em relação ao bem subtraído.

E esse novo domínio terá que ser factual, muito embora tanto possa ter uma incidência mais próxima (brevi manus) ou então mais distante, mas ainda de disponibilidade (longa manus). Daí que ocorra a consumação de um crime de furto quando a conduta do agente tipifica todos os elementos do respetivo tipo legal, independentemente daquele ter atingido ou não os seus propósitos com a realização de tal ilícito. Basta, por isso, a sua mera consumação formal através da respetiva ação típica, em contraponto com a sua consumação material ou terminação.

Por sua vez e como resulta do artigo 22.°, nº 1 do Código Penal "Há tentativa quando o agente praticar atos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se", precisando-se no seu nº 2 o que são atos de execução. Assim, já haverá crime tentado ou tentativa propriamente dita quando se está perante a realização parcial do correspondente crime, indo-se, no entanto, para além do respetivo ato preparatório. A propósito do crime de furto têm surgido várias conceitualizações para se precisar ou destrinçar a consumação da tentativa, que vão desde a "teoria da contretação" (contrectatio), em que basta pegar ou tocar na coisa, passando quer pela "teoria da apreensão", onde é necessário que a coisa seja colocada sob o controle de facto e exclusivo do novo detentor, quer pela "teoria da ablação" (ablatio), em que é essencial tirar ou levar essa coisa da zona ou local do domínio do anterior detentor, até se chegar à "teoria da ilação" (illatio), segundo a qual é necessário que a coisa seja transferida ou recolhida de modo pacífico na esfera de domínio do novo detentor.

A jurisprudência tem, de um modo generalizado e persistente, excluído categoricamente aquela primeira posição, surgindo no entanto dividida entre os demais posicionamentos, o que dá para ver que a solução desta controvérsia está longe de ser pacífica.

A propósito chegou-se a sustentar que "Não é necessária à consumação do crime de furto que o agente tenha o objeto furtado em pleno sossego ou em estado de tranquilidade, pelo que o arguido que chegou a apropriar-se dos objetos subtraídos colocando-os dentro de um saco e que depois foi interpelado por agentes da autoridade, comete um crime de furto na forma consumada", ainda que esteja no interior do estabelecimento, mas com os objetos já dentro de um saco'', mesmo que essa loja estivesse aberta ao público nessa ocasião.

Mas também se seguiu uma posição mais exigente, ao decidir-se que "Não há consumação quando o objeto do furto não entra na esfera patrimonial do agente ou de terceiro, embora aquele tenha atuado com intenção de apropriação e chegue a deslocá-Ia do local onde se encontra", assentando que só há consumação quando o objeto subtraído chega a estar na posse do agente em pleno sossego ou em estado de tranquilidade".

A meio caminho entre um e outro destes posicionamentos temos aqueles segundo os quais "O crime de furto consuma-se quando o agente tira ou subtrai a coisa da posse do respetivo dono ou detentor, contra a vontade deste, e a coloca na sua própria posse, substituindo-se ao poder de facto sob o qual ela se encontrava”, precisando-se que "comete um crime de furto, na forma tentada, o agente que entra numa ourivesaria, se apodera de vários objetos que retira de cima e do interior do balcão e os mete num saco que levava, mas, em virtude de se ter apercebido da presença de agentes da GNR, deixou ficar o saco junto ao balcão, dirigindo-se para a saída, onde foi detido" .

A propósito cremos que esta última corrente jurisprudencial é aquela que mais se aproxima da caracterização da subtração como um ato de desapossamento e em que, consequentemente, passa a existir um novo domínio factual, de modo que ocorrerá a consumação de um crime de furto, quando o agente passa a ter, direta ou indiretamente, a disponibilidade da coisa subtraída.

Assim, não basta tocar na coisa ou mesmo o seu apoderamento material sem disponibilidade, em virtude do agente ter sido surpreendido in fragante. E isto mesmo que o agente consiga fugir, desde que seja desde logo perseguido, mantendo-se essa perseguição ininterrupta e de modo que o mesmo não tenha a disponibilidade efetiva, ainda que momentânea, dos objetos de que se pretende apropriar.

Para melhor precisar este entendimento, consideramos que se a perseguição tem lugar depois de descoberto o furto, ainda que passados alguns momentos, mas o agente sempre teve a possibilidade de dispor, ainda que hipoteticamente dispor, do que foi por si subtraído, então existe consumação, mas se aquela perseguição se inicia no preciso momento em que aquele se apodera de tais bens, então já haverá tentativa.»

No caso em apreço, apurou-se que chegado à sala de receção, o arguido abriu a gaveta do balcão de atendimento ao público, de onde retirou um envelope com a quantia de € 485,00 (quatrocentos e oitenta e cinco euros), em notas, propriedade de João R..., que o arguido colocou nas cuecas, junto ao seu corpo.

E que quando o arguido se preparava para abandonar as instalações da clínica, foi surpreendido pelas autoridades policiais, que o encontraram escondido por debaixo do balcão da receção e o detiveram.

No caso tratava-se de € 485,00 em notas do BCE. Trata-se de um bem absolutamente fungível, que o arguido poderia ter acondicionado, por exemplo, juntamente com outras quantias que trouxesse consigo.

Podia, por outro lado, ter ocultado esta quantia em local onde, regressando ao dito consultório no dia seguinte, daí a pudesse retirar com toda a tranquilidade e sem levantar quaisquer suspeitas. Ou, em caso de uma revista pessoal menos rigorosa, poderiam até nunca ter sido detetadas tais notas escondidas nas suas cuecas.

Podia, finalmente, ter destruído as notas bancárias em apreço ao aperceber-se da chegada da autoridade policial.

Por tudo isto, considerando as circunstâncias do caso e a natureza da coisa, julga-se que o agente teve um efetivo domínio de facto da coisa subtraída, decorrendo um lapso de tempo em que, efetivamente, teve domínio de facto sobre a mesma.

Conclui-se, portanto, que no caso em apreço o crime de furto se consumou...”.

Apreciando, começará por dizer-se que, não obstante a peça recorrida tenha citado doutrina e jurisprudência correctas, afirmando até que o Ac. Rel. Porto de 8-5-2103 trata a matéria de forma exemplar, o que é certo é que ao descer ao caso concreto que lhe incumbia analisar fez tábua rasa das citações efectuadas e concluiu por forma exactamente ao contrário do decidido no dito acórdão que, em situação relativamente semelhante à dos presentes autos, entendeu estar perante mera tentativa da prática do crime de furto.

De facto a maioria da jurisprudência e da doutrina actuais vêm entendendo, tal qual escreveu José de Faria Costa, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, pág. 50, que:

“… Vale por dizer, com a apropriação, com o efectivo e real domínio de facto sobre a coisa está o crime de furto consumado (consumação formal ou perfeição). Sem dúvida. Mas que tipo de domínio de facto se exige? Basta o instantâneo domínio de facto ou devemos, ao menos, exigir um mínimo plausível de fruição das utilidades da coisa? Cremos que o critério justo se deve buscar, justamente, na segunda proposição avançada.

Julgamos não ser suficiente o instantâneo domínio de facto sobre a coisa, porquanto é isso um critério que faria, incorrectamente, coincidir ou fazer sobrepor subtracção com domínio de facto (ou até com o apossamento /apropriação), o que traria consequências desastrosas sobretudo para a desistência da tentativa e para o arrependimento activo…

De sorte que se nos afigure irrecusável aceitar que tem de haver um mínimo de tempo que permita dizer que um efectivo domínio de facto sobre a coisa é levado a cabo pelo agente. No entanto, estamos longe de defender que o domínio de facto se tenha de operar em pleno sossego ou em estado de tranquilidade …”.

Assim, por exemplo, no já referido Ac. Rel. Porto de 8-5-2103, pr. 830/12.0 GCSTS.P1, rel. Joaquim Gomes, in www.dgsi.pt escreveu-se o seguinte:

“I- Há consumação do crime de furto quando o agente passa a ter, directa ou indirectamente, a disponibilidade da coisa subtraída.

II - Configura um caso de tentativa a atuação do agente que, no interior de um estabelecimento comercial, se apodera de peças de roupa, retira-lhes o alarme, dissimula-as junto da roupa que envergava e de seguida dirige-se para o exterior da loja sem se deslocar à caixa registadora e sem efectuar o pagamento.

Assim, não basta tocar na coisa ou mesmo o seu apoderamento material sem disponibilidade, em virtude do agente ter sido surpreendido in fragante. E isto mesmo que o agente consiga fugir, desde que seja desde logo perseguido, mantendo-se essa perseguição ininterrupta e de modo que o mesmo não tenha a disponibilidade efectiva, ainda que momentânea, dos objectos de que se pretende apropriar. Para melhor precisar este entendimento, consideramos que se a perseguição tem lugar depois de descoberto o furto, ainda que passados alguns momentos, mas o agente sempre teve a possibilidade de dispor, ainda que hipoteticamente dispor, do que foi por si subtraído, então existe consumação, mas se aquela perseguição se inicia no preciso momento em que aquele se apodera de tais bens, então já haverá tentativa.

No caso em apreço, temos apenas demonstrado que o arguido “retirou dos expositores que nela se encontravam três camisas e uma parka, no valor global de € 120,00” (a), “Na posse de tais produtos, o arguido logrou retirar, por meios não concretamente apurados os alarmes que nelas se encontravam apostos, após o que as escondeu dissimulando-as na roupa que envergava” (b), “Seguidamente dirigiu-se para o exterior da loja sem se deslocar previamente à caixa registadora e sem efectuar o pagamento do preço respectivo e devido por tais produtos, pertencentes à sociedade ofendida” (c). Assim, não consta em nenhum momento dos factos provados onde é que o arguido foi precisamente surpreendido com os objectos em causa, sendo certo que essa “brecha” factual já vinha da acusação, como se pode constatar de fls. 51-52. Porém, do tempo verbal “dirigiu-se”, conjugado com a expressão “para o exterior” podemos certamente dar como assente, com toda a segurança e no mínimo do que é possível presumir a partir de indícios seguros e convicentes, que o arguido não chegou a atingir o exterior da loja ou quanto muito foi logo após a caixa registadora que o mesmo foi interceptado. A ser assim, podemos concluir que o arguido não chegou a consumar o crime de furto pelo qual foi sentenciado, mas apenas realizou a tentativa de o efectuar…”

A mesma orientação foi perfilhada igualmente no Ac. Rel. Porto de 11-3-2009, pr. 691/06.9 GAVNG, rel. Mª Carmo Silva Dias:

“… vejamos então se estamos perante um crime tentado ou um crime consumado p. e p. no art. 203 nº 1 do CP (norma esta que também não foi alterada pela citada Lei nº 59/2007).

Como sabido, são elementos constitutivos do crime de furto (art. 203 nº 1 do CP), a subtracção de coisa móvel alheia (tipo objectivo) e a intenção ilegítima de apropriação (tipo subjectivo).

A subtracção não se esgota com a mera apreensão da coisa alheia (pode mesmo não haver apreensão para que ela se verifique), sendo essencial que o agente a subtraia da posse ou disponibilidade alheia e a coloque à sua disposição ou à disposição de terceiro.

Segundo Faria Costa José de Faria Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, pp. 43 e 44., “a subtracção traduz-se em uma conduta que faz com que a coisa saia do domínio de facto do precedente detentor ou possuidor. Implica, por consequência, a eliminação do domínio de facto que outrem detinha sobre a coisa. (…) A subtracção caracteriza-se, assim e sobretudo, pela finalidade prosseguida, a qual consiste no fazer entrar no domínio de facto do agente da infracção as utilidades da coisa que estavam anteriormente no sujeito que a detinha.”

Para a consumação do crime de furto tem-se entendido que é suficiente, por exemplo, a transferência da disponibilidade da coisa do seu titular (aqui do respectivo proprietário) para o agente (neste caso implicando desapossamento do proprietário e sua integração no património do agente), não sendo necessário que este último detenha a coisa de forma pacífica ou em tranquilidade ou sossego.

Ou seja: não é necessário a conservação da posse da coisa, em poder do agente, de forma segura (illatio), para que se considere verificada a consumação do crime de furto Neste sentido, entre outros, Ac. do STJ de 16/10/2008, proferido no processo nº 08P221 (relatado por Arménio Sottomayor), consultado em www.dgsi.pt..

Realizados todos os elementos constitutivos do tipo ocorre a consumação formal do crime de furto, ficando este assim perfeito, não sendo necessário que simultaneamente ocorra a sua consumação material, podendo esta, enquanto fase ulterior, ocorrer posteriormente.

Daí que, consideremos suficiente a consumação formal do furto (o que supõe o preenchimento dos elementos constitutivos do tipo legal, sendo imprescindível – como diz Faria Costa – que “o agente da infracção tenha adquirido um pleno e autónomo domínio sobre a coisa” Faria Costa, ob. cit., pp. 49 e 50.

Ver Ac. do STJ de 27/3/2003, proferido no processo nº 03P361 (relatado por Simas Santos), citando variada jurisprudência., entendendo-se que o domínio do facto pelo agente exige (como diz o mesmo Autor) “um mínimo plausível de fruição das utilidades da coisa”.

Porém, isso não significa que se tenha de quantificar ou “medir” esse tempo mínimo (embora, por regra, seja de exigir um mínimo de estabilidade ou uma “tendencial estabilidade”), sendo certo que também não bastará a mera instantaneidade

… Daí resulta que, quando retirou a dita carteira (e respectivo conteúdo) e abandonou o local com a mesma em seu poder, a arguida por um lado fez com que o respectivo proprietário ficasse sem o domínio de facto sobre essa coisa que lhe pertencia e, por outro lado, ela própria lançou “sobre a coisa um novo poder de facto”, sabendo-se que agiu com a intenção de fazer sua aquela coisa alheia (tendo conhecimento que a dita carteira que fez sua não lhe pertencia e que estava a actuar contra a vontade e sem autorização do dono).

Se a arguida tivesse sido surpreendida antes de abandonar o local onde se encontrava o C… e onde consumou a subtracção, poder-se-ia colocar a questão de o crime de furto cometido ser tentado.

Mas, neste caso não é isso o que sucede: a arguida foi posteriormente interceptada, já noutro local, quando estava na ponta do comboio, estando este já perto da estação da Granja.

Ou seja: já existia “um efectivo domínio de facto” sobre a carteira levada pela arguida, que até já abandonara o local da subtracção.

Isto significa que houve um “tempo mínimo” que decorreu, ainda que não quantificável (mas que implicou todo um processo, desde que abandonou o local onde consumou a subtracção, se dirigiu para a ponta do comboio e ali permaneceu, sempre com a carteira em seu poder, até ser interceptada), que permite concluir que o furto se consumou…”.

Descendo de novo à análise do presente caso, os factos relevantes para a ponderação da questão são os seguintes:

d) Chegado à sala de recepção, o arguido abriu a gaveta do balcão de atendimento ao público, de onde retirou um envelope com a quantia de € 485,00 (quatrocentos e oitenta e cinco euros), em notas, propriedade de João R..., que o arguido colocou nas cuecas, junto ao seu corpo, dele se apropriando.

e) Quando o arguido se preparava para abandonar as instalações da clínica, foi surpreendido pelas autoridades policiais, que o encontraram escondido por debaixo do balcão da recepção e o detiveram.

E perante eles torna-se evidente, salva melhor opinião, que nos encontramos perante uma mera tentativa da prática do crime em causa.

De facto, como bem se elucida acima, para termos a subtracção como verificada e o crime consumado não basta tocar na coisa ou mesmo o seu apoderamento material sem disponibilidade, em virtude do agente ter sido surpreendido em flagrante, não se evidenciando in casu aquele mínimo plausível de fruição das utilidades da coisa, nem qualquer mínimo de tempo que permita dizer que um efectivo domínio de facto sobre a coisa é levado a cabo pelo agente.

Repare-se que o arguido, tal qual a factologia nos aparece descrita, retirou o dinheiro do envelope, escondeu-o nas cuecas e já não conseguiu sequer abandonar as instalações, sendo surpreendido de imediato no próprio local pelos agentes da autoridade, afigurando-se-nos, por isso mesmo, perfeitamente irrelevantes e ilógicas as ponderações em que se estriba a peça recorrida para concluir pela consumação, desde logo porque lê nos factos apurados algo que dos mesmos não consta, ou seja, que o arguido teria tido tempo para tomar diversas atitudes.

Depois porque ao referir-se que “o arguido poderia ter acondicionado, por exemplo, juntamente com outras quantias que trouxesse consigo” mais não se estaria que em situação paralela à do sujeito que vestiu peças de roupa furtadas juntamente com as suas, sendo apanhado à saída da loja (mera tentativa).

Já quando se refere que “Podia, por outro lado, ter ocultado esta quantia em local onde, regressando ao dito consultório no dia seguinte, daí a pudesse retirar com toda a tranquilidade e sem levantar quaisquer suspeitas” esquece-se que, neste caso, só no dia seguinte seria consumado o crime com a retirada da quantia em causa daquele local, como bem observa o recorrente.

Relembra-se, a propósito, o que se escreveu - como bem invoca o recorrente - no Ac. Rel. Porto de 16-5-2012, pr. 5017/10.4TAMTS.P1, rel. Artur Oliveira, disponível em www.dgsi.pt:

“… Faz, por isso, todo o sentido focar a questão na (in)disponibilidade de fruição da coisa por parte do seu detentor, de tal forma que se considere que só com a sua transferência para fora da esfera de domínio do fruidor se consuma a prática do crime. É essa perda da possibilidade de domínio de facto sobre a coisa que justifica a consideração da consumação do crime. Quem remove o bem, ou o oculta (domínio instantâneo) mas o mantém na área de intervenção e de fiscalização do anterior fruidor, ainda não consumou o crime: a todo o momento pode verificar-se a desistência da acção ou uma intervenção no quadro da legítima defesa. Só quando o agente logra vencer essa barreira espaço-temporal e coloca a coisa fora do alcance imediato do anterior fruidor - o que significa que, inversamente, passa ele a ter um efectivo domínio de facto sobre a coisa, podendo usufruir dela ainda que sem uma absoluta tranquilidade e sossego - então, sim, o crime é consumado…”.

Daí que se entenda que no presente caso o arguido não chegou a consumar o crime de furto, procedendo por conseguinte o recurso no tocante a esta questão.

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Já por outro lado, mostra-se destituída de qualquer fundamento a pretensão de especial atenuação da pena nos termos do disposto no art. 206º, nº2 CP, como resultado da pretensa devolução integral e imediata do montante objecto do furto, sem qualquer dano efectivo para a vítima.

Manifestamente o recorrente confunde o que não é confundível. A devolução ou restituição consiste num acto próprio (da iniciativa) do agente que no presente caso jamais se verificou. O que se observa é coisa bem diferente; a recuperação do dinheiro pelos agentes de autoridade à revelia da vontade e da intenção do arguido.

Escreve a propósito, Figueiredo Dias in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, pág. 119:

"... torna-se indiscutível que a restituição ou reparação não pode deixar de ser da iniciativa do agente, por mais facticamente condicionada que ela tenha sido; assistindo por isso óbvia razão à nossa jurisprudência quando decidiu que ela não existia em princípio se a entrega fosse fruto de apreensão judicial ou equivalente…”.

Acresce que tão pouco pode falar-se de ausência de danos para a vítima pois não consta que o arguido tenha reposto a caixa de ar condicionado em que se apoiou e a fechadura violada nas condições em que se encontravam à priori.

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2- Reincidência

Estribando-se, entre o mais, no Ac. Rel. Guimarães de 18-3-2013, pr. 626/11.7 PCBRG.G1, rel. Cruz Bucho, invoca o recorrente que:

- A mera referência a que as condenações anteriores não serviram de suficiente advertência contra o crime não possibilita a verificação, de facto, do pressuposto material da reincidência, a qual apenas resultará da apreciação de toda a factualidade inerente à situação concreta, elencando-se reflexos cabais da insensibilidade do arguido à condenação e à pena, pois apenas nesse caso se justifica o acréscimo de censura que implica a especial agravação da pena aplicável.

- O certificado de registo criminal não permite concluir pela verificação do pressuposto da reincidência, devendo os autos ser instruídos com as respectivas certidões condenatórias, para ser possível ao julgador estruturar um juízo de comparação efectiva entre os factos que sustentaram a nova condenação e os que haviam justificado as anteriores, uma vez que apenas a íntima conexão entre os crimes praticados poderá justificar tal enquadramento jurídico-penal.

Vejamos

Na peça recorrida escreveu-se basicamente o seguinte sobre esta matéria:

“…Ocorrem, no caso, todos os pressupostos formais da reincidência:

a) a prática de crime doloso;

b) a condenação do arguido em pena de prisão de duração superior a 6 meses;

c) a condenação, com trânsito em julgado, em pena de prisão efetiva superior a 6 meses por outro crime doloso;

d) a não "prescrição" da reincidência.

Ocorre, ainda, o pressuposto material da reincidência:

a) o agente for de censurar por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime.

Pelo que fica dito, verifica-se que o arguido deve ser punido como reincidente, nos termos do artigo 75°, nº1 e 2, pelo que a pena ao mesmo aplicável será agravada, nos termos do artigo 76°…”.

Se é tendencialmente correcto o que afirma o recorrente, não deixa de ser verdade que no presente caso se verificam todos os pressupostos da reincidência.

Na verdade o mero CRC não permite em regra concluir pela verificação do pressuposto material da reincidência mas no presente caso tão pouco seria exigível a junção da totalidade das certidões condenatórias. Repare-se que o arguido com 26 anos à data da prática do crime dos presentes autos e tendo cumprido anteriormente mais de 6 anos de prisão, já foi condenado por dezenas de crimes contra o património (6 roubos e cerca de 20 furtos qualificados, simples ou meramente tentados).

Daí que a conjugação da totalidade da factologia apurada com o conteúdo da certidão do acórdão cumulatório referido em l) dos factos apurados (constante de fls. 86 a 103 dos autos) no qual são descritos com alguma minúcia os modos de actuação do arguido, datas, locais e quantias de que se apoderou relativamente aos 25 crimes ali englobados, acrescidos das conclusões do exame de psiquiatria forense (fls.268) onde se escreveu que (o examinado possui as competências necessárias para assumir a voluntariedade, intencionalidade e responsabilidade pelo seu comportamento, encontrando-se perfeitamente capaz de avaliar a ilicitude dos actos por si praticados e de se determinar de acordo com essa avaliação) e do teor do relatório social de fls. 275 a 278, sejam na presente situação mais que suficientes para se concluir pela inequívoca verificação do pressuposto material da situação de reincidência em causa.

Nesta sede subcreve-se, por isso, o que refere o Ex. PGA no respectivo parecer:

“… O segundo apontamento tem a ver com a reincidência. Os seus pressupostos verificam-se. Retenha-se o que se sumariou no acórdão do STJ de 05/02/2009, proc. 08P3629, sendo seu relator o conselheiro Rodrigues da Costa:

I -A lei - art. 75º do CP , exige dois pressupostos para a verificação da reincidência:

- a) o cometimento de um crime doloso que deva ser punido com prisão efectiva superior a 6 meses, depois de ter sido condenado, por decisão transitada em julgado, em pena de prisão efectiva superior a 6 meses por outro crime doloso;- b) o agente dever ser censurado por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime.

II - O primeiro pressuposto é de ordem formal, enquanto que o segundo é de natureza material, tal como sucede com os pressupostos da suspensão da execução da pena.

III -Não basta que o agente tenha cometido um crime doloso a seguir a outro crime doloso, nas circunstâncias acima referidas, embora tal constitua um pressuposto necessário: é ainda necessário que o agente deva ser censurado por as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime.

Para além do constante no crc do arguido recorrente do qual decorre o preenchimento do pressuposto formal, o que ficou consignado na sentença sobre o seu percurso vital após o cumprimento efectivo duma pena de prisão - vd. fls. 295 verso, evidencia o necessário pressuposto material, a incapacidade notória do arguido em manter uma vida em conformidade com o direito após a sua restituição à liberdade a 23/04/2012…”.

Improcede, por conseguinte, esta parcela do recurso.

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3- Medida da pena e respectiva suspensão

Verificados os requisitos legalmente previstos para que se entenda praticado um crime de furto qualificado, na forma tentada, em situação de reincidência, p. e p. pelos artigos 22º, 23º, 75º, 76º e 204°, nº 2, alínea e), com referência ao disposto no artigo 202°, alínea d), todos do Código Penal, impõe-se revogar a peça recorrida nesta sede e condenar o arguido em consonância com tal distinta qualificação jurídica da factologia apurada nos autos.

A pena abstracta cominada para o tipo de crime aqui em causa é de 40 dias até 5 anos e 4 meses de prisão.

É sabido que a medida da pena há-de, primordialmente, ser dada por considerações de prevenção geral positiva, isto é, prevenção enquanto necessidade de tutela dos bens jurídicos que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma infringida, que fornece uma “moldura de prevenção”, ou seja, um “quantum” de pena que varia entre um ponto óptimo e o ponto ainda comunitariamente suportável de medida da tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias e onde, portanto, a medida da pena pode ainda situar-se até atingir o limiar mínimo, abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar.

A culpa - juízo de apreciação, de valoração, que enuncia o que as coisas valem aos olhos da consciência e o que deve ser do ponto de vista da validade lógica e da moral ou do direito, conforme se expendeu no Ac. do STJ de 10-4-1996 (in CJ, Acds. do STJ, Ano IV, tomo II, pág. 168) - constitui o limite inultrapassável da medida da pena, funcionando assim como limite também das considerações preventivas (limite máximo), ligada ao princípio de respeito pela dignidade da pessoa do agente.

Dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva - entre o ponto óptimo e o ponto ainda comunitariamente suportável - podem e devem actuar pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo eles que vão determinar, em último termo, a medida da pena.

No presente caso as razões de prevenção geral são elevadas, sendo ainda mais vincadas as de prevenção especial (sendo o arguido possuidor de antecedentes criminais nos termos já anteriormente abordados), o dolo é directo, a ilicitude mediana (atento o desvalor do resultado de € 485,00), o arguido demonstra uma manifesta falta de consciencialização relativamente à ilicitude do respectivo comportamento e completa ausência de um projeto de vida estruturado, é toxicodependente há largos anos, encontra-se em situação de inactividade profissional, a confissão dos factos é pouco relevante no contexto de detenção em flagrante com concomitante recuperação da quantia em dinheiro de que se apoderara.

Tudo ponderado, afigura-se-nos adequada ao caso a pena de 2 anos de prisão.

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Reclama, finalmente, o recorrente a suspensão da pena de prisão.

Apreciemos

Dispõe o artigo 50º., nº.1, do Código Penal que “o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.

Como é sabido, não são considerações de culpa que interferem na decisão que agora nos ocupa, mas apenas razões ligadas às finalidades preventivas da punição, sejam as de prevenção geral positiva ou de integração, sejam as de prevenção especial de socialização, estas acentuadamente tidas em conta no instituto em análise, desde que satisfeitas as exigências de prevenção geral, ligadas à necessidade de correspondência às expectativas da comunidade na manutenção da validade das normas violadas.

A finalidade político-criminal que a lei visa com o instituto da suspensão é clara: o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes, e não qualquer correcção ou melhora das concepções daquele sobre a vida e o mundo. Decisivo é aqui o “conteúdo mínimo” da ideia de socialização, traduzida na prevenção da reincidência” (cfr. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português: Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Editorial Notícias, págs. 343 e 344).

Como bem esclarece este ilustre professor (ob. citada, pág. 344) “apesar da conclusão do tribunal por um prognóstico favorável - à luz, consequentemente, de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização -, a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem as necessidades de reprovação e prevenção do crime (...). Estão aqui em questão não quaisquer considerações de culpa, mas exclusivamente considerações de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Só por estas exigências se limita - mas por elas se limita sempre - o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto ora em análise”.

Por outro lado, é conveniente esclarecer que o que está em causa no instituto da suspensão da execução da pena não é qualquer “certeza”, mas a esperança fundada de que a socialização em liberdade possa ser conseguida. O tribunal deve correr risco “prudencial” (fundado e calculado) sobre a manutenção do agente em liberdade.

Existindo, porém, razões sérias para pôr em causa a capacidade do agente de não repetir crimes, se for deixado em liberdade, o juízo de prognose deve ser desfavorável e a suspensão negada (cfr. Figueiredo Dias, ob. citada, págs. 344 e 345).

No referido juízo de prognose, há que ter em conta a personalidade do arguido, as suas condições de vida, a conduta anterior e posterior ao facto punível e as circunstâncias deste mesmo facto.

No caso concreto, a factologia apurada evidencia que o arguido revela uma completa ausência de consciencialização relativamente aos factos praticados e à respectiva situação, tendo cometido dezenas de crimes contra o património nos parcos anos (3-4) que viveu em liberdade após completar 16 anos de idade, a que acrescem as respectivas condições de vida (não tem hábitos de trabalho, vem desaproveitando sistematicamente o respectivo apoio familiar, sendo toxicodependente há largos anos), tudo de molde a impossibilitar um juízo de prognose positiva relativamente ao respectivo comportamento futuro, no sentido de que a simples ameaça da pena seja adequada e suficiente para realizar as finalidades da punição.

Acresce ainda, no caso destes autos, oporem-se igualmente à suspensão da execução da pena de prisão critérios ou fins de prevenção geral onde militam os sentimentos de confiança dos cidadãos nas instituições jurídico-penais.

Ou seja, no presente caso perante a factologia apurada, as prementes exigências de prevenção geral e, sobretudo, de prevenção especial, não é seguramente possível concluir (com seriedade) que a propugnada suspensão da pena, ainda que subordinada ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, acautelasse devidamente as finalidades da punição.

Daí que não seja possível formular um juízo de prognose favorável ao mesmo.

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III- Decisão

Nos termos expostos acordam os Juízes desta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães, em conceder parcial provimento ao recurso, revogando a peça recorrida e condenando o arguido Juliano F... pela prática, como reincidente, de um crime de furto qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22º, 23º, 75º, 76º e 204°, nº2, al. e), todos do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão.

Sem custas.