Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2690/12.2TBGMR-B.G1
Relator: FERNANDO FERNANDES FREITAS
Descritores: INSOLVÊNCIA
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
CONTRATO DE TRABALHO
SÓCIO GERENTE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/13/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I – São elementos do contrato de trabalho a subordinação económica, que se concretiza pelo pagamento do trabalho, e a subordinação jurídica, que se manifesta pelo poder que a entidade empregadora tem de dar ordens e instruções para a execução do trabalho, as quais são vinculativas para o trabalhador, subordinação esta que distingue o contrato de trabalho dos contratos afins, designadamente o de prestação de serviços e o de mandato.
II – Em princípio, é incompatível a cumulação na mesma pessoa das posições jurídicas emergentes do contrato de trabalho e da qualidade de sócio- gerente de uma sociedade por quotas. Só assim não será se se provar existir uma relação de subordinação entre o sócio-gerente e a sociedade comercial.
III – Não estando provada nos autos a relação de subordinação, atendendo ao carácter de efectividade das funções de gerência, tem-se por cessada a relação laboral no momento de aquisição das quotas, em que o agora sócio, ex-trabalhador, passou a ter as funções de gerente, visto ter terminado aí a subordinação jurídica dele à sociedade comercial.
IV - Não subsistindo a relação laboral à data da declaração de insolvência forçoso é concluir não ter o sócio-gerente direito à indemnização, “pela cessação do contrato de trabalho” decorrentemente da declaração de insolvência e do encerramento definitivo do estabelecimento comercial, assim como dos proporcionais dos subsídios de férias e de Natal.
V – Improcede, por isso, a reclamação daqueles “créditos” apresentada pelo sócio-gerente da Insolvente no processo para declaração de insolvência desta.
Decisão Texto Integral: - ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES –

A) RELATÓRIO
I.- Nestes autos de verificação de créditos, que correm seus termos por apenso ao processo especial para declaração de insolvência de “J… & Cª., Ldª.”, apresentada a relação dos créditos reconhecidos e não reconhecidos, a que alude o artº. 129º., do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), impugnaram-na R… e Outros, na parte em que lhes não foi reconhecido o montante que reclamaram.
Aquele, dizendo-se trabalhador da Insolvente, reclamou créditos no montante de € 14.186,25, e não lhe foram reconhecidos os valores de: € 11.640 reclamado a título de indemnização por antiguidade, e € 731,25 dos proporcionais de férias e subsídios de férias e de Natal.
O Sr. Administrador da Insolvência respondeu às impugnações e a Comissão de Credores emitiu parecer, nos termos do artº. 135º., do CIRE.
Procedeu-se ao julgamento que culminou com a prolação de douta sentença que reconheceu e graduou os créditos reclamados.
No que se refere àquele R…, julgou a reclamação totalmente improcedente porquanto tendo, embora, sido trabalhador da Insolvente, com a categoria profissional de “Empregado de Balcão de 2ª.” desde pelo menos 01/01/1996 até 17/06/2010, adquiriu as quotas daquela sociedade comercial e passou a exercer, desde então e ininterruptamente, as funções de gerente, com o que fez cessar o contrato de trabalho.
Inconformado com esta decisão traz o referido Reclamante o presente recurso, pretendendo vêla revogada e substituída por outra que lhe reconheça a totalidade dos créditos que reclamou.
Não foram apresentadas contra-alegações.
O recurso foi recebido como de apelação com efeito devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
*
II.- O Apelante funda o recurso nas seguintes conclusões:
1ª - Recorre-se pelo presente da sentença de verificação e graduação dos créditos proferida a 11 de Setembro de 2013 no decurso do processo especial de Insolvência n.º 2690/12.2TBGMR-B, pelo 3° Juízo Cível do Tribunal Judicial de Guimarães, a qual julgou a impugnação judicial da lista de credores reconhecidos pelo Administrador de Insolvência, deduzida pelo apelante, como totalmente improcedente.
2ª - Entendeu aquele tribunal não reconhecer a pretensão deduzida naquela impugnação, qual seja o reconhecimento de um crédito no montante: parcial correspondente a um mês e meio de retribuição base por cada ano completo de antiguidade, no montante de € 11.640,00, porquanto a mesma sempre dependeria, desde logo, de "ter ficado demonstrado que à data da cessação das suas funções o reclamante tinha com a insolvente um contrato de trabalho talqualmente o define o art. o 11.º do CT, onde avultam as características da direcção e autoridade por parte da pessoa a quem o trabalho é prestado".
3ª - Pugnou aquela decisão pela tese de que a indemnização por antiguidade apenas é devida nos casos em que a cessação do contrato de trabalho não é imputável ao trabalhador, pelo que "quando é o trabalhador quem, voluntariamente, sem justa causa, põe livremente fim ao seu contrato, nenhum género de compensação é devida", ou seja, como o apelante, alegadamente, não terá demonstrado que a cessação do contrato em 17.06.2010 foi por facto não imputável a si, mas nessa mesma data, conjuntamente com a sua esposa, adquiriu as quotas da insolvente e passou a assumir as funções de gerente da sociedade J… & C.ª Lda., logo, terá sido por acto voluntário do apelante que cessou aquele vínculo laboral.
4ª - Do catálogo taxativo constante no art.º 340.°, do C. T., resultam como causas de extinção do contrato de trabalho: a caducidade, a revogação o despedimento por facto imputável ao trabalhador, o despedimento colectivo, o despedimento por extinção do posto de trabalho, o despedimento por inadaptação, a resolução pelo trabalhador e a denúncia do trabalhador. In casu, nenhuma das referidas causas de extinção do contrato de trabalho se verificou.
5ª - Pelo que o mesmo terá produzido efeitos, pelo menos até que encerrado definitivamente o estabelecimento comercial em causa e uma vez corridos os trâmites legais do processo de insolvência.
6ª - Não existe qualquer acordo de vontades entre empregador e trabalhador para fazer cessar o contrato de trabalho por revogação, nos termos do disposto no art.° 349.°, n.º 1, do C.T., o qual não pode ser tácito mas, de forma diversa, nos termos do disposto no número 2 do mesmo artigo, expresso, com a solenidade ínsita na redução daquele a documento assinado por ambas as partes, devendo dele constar a data de celebração do acordo e o início da produção dos seus efeitos, designadamente para efeitos da fixação da compensação pecuniária global, de acordo com o número do art.º 349.°, n.º 5, do mesmo código, a qual no caso concreto também nunca chegou a equacionar-se, desde logo porque não era essa a vontade das partes, entidade empregadora e apelante.
7ª - Não se pode simplesmente presumir que o exercício de funções de gerência, implicitamente configura um acordo de revogação entre empregador e trabalhador, como causa de extinção do contrato de trabalho que os vinculou durante cerca de 10 anos, principalmente quando aquela não importa a concreta e efectiva cessação das funções inicialmente exercidas pelo apelante, ou sequer a sua alteração, como trabalhador por conta de outrem, neste caso, como empregado de balcão, função que o apelante manteve-se a exercer até ocorrer o real facto extintivo da relação laboral - a declaração de insolvência e consequente encerramento definitivo do estabelecimento comercial, nos termos dos números 1 e 2, do artigo 347.°, do C.T.
8ª - Apenas com o encerramento do estabelecimento comercial em causa, ocorreu a extinção do vínculo laboral, e consequentemente, apenas nesse momento, se impunha a reclamação e o consequente pagamento dos créditos laborais peticionados, entre eles, a compensação reclamada por despedimento por facto não imputável ao apelante.
9ª - Não entende ou mesmo consente o apelante o que determinou a inversão do ónus da prova propugnada pela decisão recorrida, quando considera que foi por acto voluntário daquele que cessou o vínculo laboral, porquanto o apelante não terá demonstrado que a cessação do contrato em 17.06.2010 ocorreu por facto não imputável a si, inexistindo qualquer presunção que sustente tal conclusão.
10ª - Ainda que assim não se entenda, considerando-se que terá sido um acto voluntário, ou seja, imputável ao apelante que determinou o início do exercício das funções de gerência, de tal facto conhecido não se poderá retirar ou extrair, conforme faz a decisão recorrida, o facto desconhecido de que foi a vontade daquele que determinou a cessação do contrato de trabalho por conta de outrem.
11ª - Pelo que nunca ocorreu a cessação do contrato de trabalho, nem de facto nem de direito, nos termos alegados.
*
Como resulta do disposto nos artos. 660º., nº. 2, ex vi do nº. 2 do artº. 713º.; 684º., nº. 3; 685º.-A, nos. 1 a 3, e 685º.-C, nº. 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil (C.P.C.), (artos. 608º., nº. 2, ex vi do artº. 663º., nº. 2; 635º., nº. 4; 639º., nos. 1 a 3; 641º., nº. 2, alínea b), todos do novo Código de Processo Civil (NCPC)), sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.
De acordo com as conclusões a questão essencial a considerar é a de saber se se extingue ou não o contrato de trabalho quando o trabalhador, pela aquisição das quotas da empresa, adquire a posição de sócio-gerente.
*
B) FUNDAMENTAÇÃO
III.- No que importa ao presente recurso, cumpre ter presentes os seguintes factos, que o Tribunal a quo julgou provados:
a) A insolvente é uma sociedade por quotas que se dedicava à indústria de pastelaria e afins, tendo sido registada junto da Conservatória do Registo Comercial em 01.06.l979 (certidão a fls. 21 ss dos autos principais);
b) Por sentença datada de 20.07.2013, a fls. 91ss dos autos principais, já transitada, foi declarada a sua insolvência, nela tendo sido fixado um prazo de 30 dias para reclamação de créditos (fls. 91ss dos autos principais);
c) Foram apreendidos para a massa insolvente os móveis melhor descritos a fls. 3ss do apenso C;
d) O reclamante R… encontrou-se ao serviço da insolvente desde pelo menos 01.01.1996 para sob as suas ordens, direcção e fiscalização, até 17.06.2010, mediante retribuição que se fixava em Junho de 2010 nos €475, prestar trabalho correspondente à categoria profissional de Empregado de Balcão de 2.ª; a partir de 17.06.2010 e até Junho de 2012 foi sócio da insolvente, conjuntamente com a esposa, e membro do órgão estatutário da insolvente, desempenhando as funções de gerente (doc. fls. 16, 21 ss e 117 e certidão a fls. 21 ss dos autos principais).
*
Julgou ainda o Tribunal a quo não provado que:
a) O reclamante R… tenha, sob as ordens, direcção e fiscalização da insolvente, entre 17.06.2010 e 11.06.2012, prestado trabalho correspondente à categoria profissional de Empregado de Balcão de 2.ª;
b) A insolvente tenha procedido ao pagamento aos credores R…, (… …) das férias, subsídio de férias e subsídio de Natal proporcionais ao trabalho prestado no ano de 2012.
*
IV.- No processo de insolvência, como processo de execução universal que é, vigora o princípio par conditio creditorum - os credores estão todos em pé de igualdade perante o devedor – cfr. artº. 604º., nº. 1, do Código Civil (C.C.).
A lei pode criar desvios a este princípio, consagrando privilégios creditórios pelos quais estabelece um relação de preferência no pagamento dos créditos.
Uma das excepções, ou desvios, àquele princípio é a que consta do artº. 333º., do Código do Trabalho (C.T.) que concede o privilégio mobiliário geral e o privilégio imobiliário especial sobre bem imóvel do empregador no qual o trabalhador presta a sua actividade “aos créditos do trabalhador emergentes do contrato de trabalho”.
O contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa singular se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade a outra ou outras pessoas, no âmbito de organização e sob a autoridade destas – cfr. artº. 11º., do C.T. que reproduz, com ligeiras alterações, o artº. 1152º., do CC.
São, pois, elementos do contrato de trabalho a subordinação económica, que se concretiza pelo pagamento do trabalho, e a subordinação jurídica, que se manifesta pelo poder que a entidade empregadora tem de dar ordens e instruções para a execução do trabalho, as quais são vinculativas para o trabalhador.
A subordinação jurídica, com a qual está relacionado o poder disciplinar, constitui o elemento fulcral do contrato de trabalho, o que o distingue dos contratos afins, designadamente o de prestação de serviços e o de mandato.
Se relativamente ao sócio não gerente de uma sociedade por quotas não se suscitam dúvidas quanto à possibilidade da existência de um vínculo laboral entre um e outra, apresentando-se aquele como trabalhador desta, já no que se refere ao sócio-gerente há os que entendem haver incompatibilidade da cumulação na mesma pessoa das posições jurídicas emergentes do contrato de trabalho e da qualidade de sócio-gerente e os que defendem existir compatibilidade entre essas posições jurídicas desde que haja uma relação de subordinação entre o sócio-gerente e a sociedade por quotas – cfr., dentre outros, o Ac. do S.T.J. de 29/09/1999, in C.J., Acs. do S.T.J., ano VII, Tomo III-1999, págs. 248-251, cujo texto integral pode ser consultado in www.dgsi.pt – Processo 98S364 (Consº. José Mesquita), com referências jurisprudenciais num e noutro sentido, e perfilha a segunda tese. Perfilharam ainda esta tese, além dos ali mencionados, os Acs. do mesmo Alto Tribunal de 12/06/2003, in Acórdãos Doutrinais, nº. 506, págs. 334 sgs; de 07/07/89, na mesma publicação nº. 335º., págs. 1432 sgs.,;; e, finalmente, de 30/09/2004, Procº. 03S2053 (Consº. Vitor Mesquita), in www.dgsi.pt; e, ainda os Acs. da Rel. de Lisboa de 13/07/1988, in C.J., ano XIII – 1988, Tomo 4, págs. 150-151, e da Rel. do Porto de 24/01/2005, Procº. 0414989, (Desemb. Machado da Silva), in www.dgsi.pt..
Aceitando-se, assim, que um sócio-gerente de uma sociedade comercial por quotas possa ser simultaneamente seu trabalhador a compatibilidade entre estas posições jurídicas fica dependente da prova da existência de uma relação de subordinação jurídica do sócio-gerente, pois o exercício da gerência pode ser de tal modo condicionado (designadamente por um sócio-gerente maioritário) que os poderes que são próprios da entidade patronal não sejam verdadeiramente partilhados.
Na situação sub judicio o Apelante, que foi, de facto, trabalhador da Insolvente durante cerca de catorze anos e meio, adquiriu, juntamente com a esposa, todas as quotas do capital social dela, e passaram ambos desde então a ser os seus únicos sócios-gerentes.
O Apelante não alegou (e por isso, para os autos, não se pode conceber) que, no dia a dia da gerência da empresa estava subordinado, restringido na sua acção, pelo “mando” da esposa, a outra sócia-gerente, ou seja, que era esta quem dava as ordens e as instruções para a execução do trabalho. A experiência comum faz-nos antes presumir que sendo um homem da “arte” era ele quem exercia os poderes próprios da entidade patronal.
Temos assim de concluir pela incompatibilidade absoluta da cumulação simultânea, na pessoa do Apelante, das posições jurídicas emergentes do contrato de trabalho e da qualidade de sócio-gerente da Insolvente.
E atendendo ao carácter de efectividade desta qualidade de sócio-gerente, já que, salvo o diversamente estipulado no contrato de sociedade, as funções de gerente subsistem enquanto não terminarem por destituição ou renúncia, sendo que como a sociedade tinha apenas dois sócios o Apelante não sequer podia ser destituído das funções de gerência pela outra sócia – cfr. artos. 256º. e 257º., nº. 5, do Cód. das Sociedades Comerciais -, tem-se por cessada a relação laboral no momento em que adquiriu as quotas e passou a ter as funções de gerente, por ter terminado aí a subordinação jurídica do Apelante à Insolvente (situação, afinal, com contornos semelhantes, v.g., à do contrato de arrendamento que se extingue com a aquisição do arrendado pelo arrendatário).
Não subsistindo a relação laboral à data da declaração de insolvência forçoso é concluir não ter o Apelante direito à indemnização, que reclama, pela cessação do contrato de trabalho decorrentemente da declaração de insolvência da devedora e, é de crer, do encerramento definitivo do estabelecimento comercial (declaração de insolvência que, de resto, não se poderá alhear totalmente da administração do próprio Apelante).
Também pelos motivos acima expostos não tem o Apelante direito a receber os reclamados proporcionais das férias e subsídios de férias e de Natal até por tampouco ter alegado que lhe eram pagos na remuneração correspondente às suas funções de sócio-gerente (artº. 255º., do Cód. das Sociedades Comerciais).
Do exposto se conclui improceder totalmente o presente recurso devendo, consequentemente, manter-se, ainda que com fundamentos diferentes, a douta decisão impugnada.
*
C)DECISÃO
Considerando tudo quanto vem de ser exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar totalmente improcedente este recurso de apelação, e, por isso, manter a decisão impugnada.
Custas pelo Apelante.
Guimarães, 13/Fevº./2014
(escrito em computador e revisto)
Fernando Fernandes Freitas
Purificação Carvalho
Espinheira Baltar