Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1072/13.3TBBCHV-A.G1
Relator: HELENA MELO
Descritores: CHEQUE
ACÇÃO CAMBIÁRIA
PRESCRIÇÃO
TÍTULO EXECUTIVO
DOCUMENTO PARTICULAR
ÓNUS DA PROVA
COMERCIANTE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/30/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: 1. Extinta a obrigação cartular incorporada na letra, livrança ou cheque, estes mantêm a sua natureza de título executivo, enquanto documento particular assinado pelo devedor, desde que neles se mencione a causa da relação jurídica subjacente ou que tal causa de pedir seja invocada no requerimento executivo, podendo ser impugnada pelo executado na oposição que vier a deduzir e desde que a obrigação a que se reporta não resulte de um negócio jurídico formal, tendo em consideração o regime de reconhecimento de dívida previsto no artº 458º do CC e a autonomia do título executivo em face da obrigação exequenda.
2. . Do disposto do artº 458º do CC resulta uma presunção de causa (presunção da existência de uma relação negocial ou extra negocial) e a inversão do ónus da prova da existência da relação fundamental.
3. . Incumbe ao devedor provar a falta de causa da obrigação inscrita no título.
4. . O facto de alguém ser representante de uma sociedade, ainda que, no exercício da actividade comercial que esta desenvolve, não lhe atribui a qualidade de comerciante, pois que não exerce o comércio em nome próprio, mas sim em proveito da sociedade.
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Guimarães:

I - Relatório
Vieram os executados AA e mulher BB deduzir os presentes embargos alegando, em síntese, que a obrigação cautelar se encontra extinta por prescrição; que nada devem ao exequente e entre eles nunca houve negócios, pelo que inexiste qualquer relação causal subjacente ao dito cheque; que o cheque não pode valer como título executivo, porquanto não contém reconhecimento de qualquer dívida, sendo que devedor era a sociedade representada do ora executado que sempre actuou junto do exequente, não em nome e interesse próprio mas em representação e na qualidade de sócio-gerente daquela sociedade, que ficou obrigada ao pagamento das mercadorias; que o executado emitiu e sacou o cheque como garantia do pagamento da dívida assinalada no requerimento executivo, sendo um cheque pessoal; que a dívida foi paga pela representada do executado mas o exequente nunca devolveu o cheque dado à execução; que a interveniente não é responsável por qualquer pagamento da invocada dívida da sociedade sendo que não assinou nem interveio de qualquer forma na emissão do cheque dado à execução, pelo que este não lhe pode ser oponível como título de crédito; que o cheque dado à execução não constitui título de crédito porque não reúne todos os pressupostos, para tanto, exigidos pela alínea c), do nº1, do artigo 46° do CPC e, para além disso, a invocada dívida não foi contraída pelo Executado no exercício do comércio, nem em proveito comum do casal, pelo que não é comum, nem é comunicável à executada.
Concluíram pela procedência dos embargos com todas as consequências.
*
O Exequente apresentou contestação alegando, em síntese, que o cheque dado à execução vale como título executivo porque, apesar da relação cambiária se encontrar prescrita, o Exequente invocou no requerimento executivo a relação subjacente, valendo o mesmo como quirógrafo.
Mais alega que o exequente forneceu mercadoria à sociedade da qual o executado AA era sócio gerente, tendo o executado assumido a obrigação de pagar tal dívida, emitindo para seu pagamento o cheque dado à execução.
Concluiu pela improcedência da oposição mediante embargos.
Procedeu-se a julgamento e a final foi proferida sentença que julgou procedentes os embargos e julgou, em consequência, extinta a execução.
O exequente não se conformou e interpôs o presente recurso, onde em síntese, formulou as seguintes conclusões:
“i.) Em 05/11/2013, o recorrente veio instaurar a competente acção executiva contra o executado, ora recorrido. porquanto,
ii.) Aquele, no exercício da sua actividade, forneceu a este, na qualidade de sócio gerente da sociedade “CC, Lda.”, mercadorias tituladas pelas facturas devidamente discriminadas, porque constantes da conta corrente do cliente, e que totalizam a quantia de 7.812,76€ (sete mil oitocentos e doze euros e setenta e seis cêntimos).
iii.) Para pagamento daquela quantia, o recorrido entregou ao recorrente o cheque n.º 8682429336, datado de 06/03/1995 e emitido sob o BBVA, no exacto valor da quantia em dívida, ou seja, no valor de 7.812,76€ (sete mil oitocentos e doze euros e setenta e seis cêntimos).
iv.) Não obstante as vária interpelações orais e escritas, por parte do recorrente e as diversas promessas de pagamento pelo recorrido feitas ao longo dos anos, a verdade é que este nunca pagou àquele a quantia em causa nos autos, motivo pelo qual o recorrente viu-se compelido a lançar mão da acção executiva.
v.) Em 03/02/2014, veio o recorrido deduzir embargos de executado, alegando, em síntese, que: - a obrigação cambiária encontra-se extinta por prescrição; - o executado nada deve ao exequente e entre eles nunca houve negócios, pelo que inexiste qualquer relação causal subjacente ao dito cheque; - o cheque não pode valer como título executivo, porquanto não contém reconhecimento de qualquer dívida, sendo que o devedor era a sociedade representada do ora executado que sempre actuou junto do exequente, não em nome e interesse próprio mas em representação e na qualidade de sócio-gerente daquela sociedade, que ficou obrigada ao pagamento das mercadorias; - o executado emitiu e sacou o cheque como garantia do pagamento da dívida assinalada no requerimento executivo, sendo um cheque pessoal; - a dívida foi paga pela representada do executado mas o exequente nunca devolveu o cheque aqui dado à execução; - a interveniente não é responsável por qualquer pagamento da invocada dívida da sociedade sendo que não assinou nem interveio de qualquer forma na emissão do cheque dado à execução, pelo que este não lhe pode ser oponível como título de crédito; - o cheque dado à execução não constitui título de crédito porque não reúne todos os pressupostos, para tanto, exigidos pela al. c), do n.º 1 do art.º 46.º do CPC e, para além disso, a invocada dívida não foi contraída pelo executado no exercício do comércio, nem em proveito comum do casal, nem é comunicável à interveniente, cônjuge do executado.
vi.) Em 17/03/2014, o recorrente apresentou contestação, alegando, em síntese, que: - o cheque dado à execução vale como título executivo porque, apesar da relação cambiária se encontrar prescrita, o exequente invocou no requerimento executivo a relação subjacente, valendo o mesmo como quirografo; e, - o exequente forneceu mercadoria à sociedade da qual o executado AA era sócio gerente e, até à presente data, o pagamento do cheque não foi efectuado por quem quer que seja, sendo certo que os embargantes foram interpelados para o efeito.
vii.) Realizada a audiência de julgamento, veio a ser proferida douta sentença, segundo a qual: “(…) o exequente alegou a relação subjacente à emissão do cheque. No entanto, e salvo o devido respeito, não logrou demonstrar a existência da relação subjacente. Na verdade, ao exequente não basta alegar factos, cumpre-lhe também demonstrá-los em juízo, o que não fez.” (sublinhados nossos)
viii.) Acrescenta ainda a douta sentença que: “assim ficamos sem saber que mercadorias foram fornecidas, as quantidades, o preço das mesmas, não se conseguindo vislumbrar como é que o ilustre mandatário do exequente conseguiu toda essa informação relativamente as facturas alegadas no requerimento executivo uma vez que, quando foi notificado para efectuar a sua junção aos autos, veio alegar que o exequente já não possuia as facturas desde 1997 por não as ter guardado!” (sublinhados nossos).
ix.) Mais refere a douta sentença que, “assim sendo, não tendo o exequente logrado demonstrar a relação subjacente, despiciendo se torna a questão do pagamento do cheque, a qual competia provar ao embargante AA, que também não logrou demonstrá-la, bem como nos dispensamos de apreciar a questão do proveito comum do casal e da comunicabilidade da dívida invocada pelos embargantes (art. 608.º, n.º 2, 1.ª parte do CPC)”
x.) Por fim refere a douta sentença recorrida que “(…) de acordo com a repartição do ónus da prova, cabia ao exequente demonstrar a relação subjacente para poder invocar o cheque em causa nos autos como título executivo, o que não logrou fazer pelo que contra ele se há-de decidir esta questão (…).”
xi.) Conclui, julgando procedentes os presentes embargos e, em consequência, extinta a execução a que estão apensos. Ora,
Xii.) Salvo sempre o devido respeito que nos merece, não pode o recorrente anuir em tal fundamentação. Senão vejamos,
Xiii.) Além dos requisitos de preenchimento, previstos no art.º 1.º da lei uniforme dos cheques (LUCH), constituem requisitos de exequibilidade do cheque, enquanto documento cambiário, segundo dispõe o art.º 40.º da mesma lei uniforme: a) a apresentação do cheque a pagamento em tempo útil, e, b) a verificação da recusa de pagamento.
Xiv.) Resulta da matéria de facto provada que o título dado á execução, foi apresentado a pagamento.
Xv.) Todavia, de acordo com o art.º 52.º da LUCH, prescrevem no prazo de seis meses, a acção do portador contra os endossantes, contra o sacador ou demais co-obrigados, a contar do termo do prazo de apresentação e a acção de um dos co-obrigados no pagamento de um cheque contra os demais, a contar do dia em que tenha pago o cheque ou em que tenha sido demandado.
Xvi.) Deste modo, o cheque dado à execução encontra-se prescrito, no que à obrigação cambiária diz respeito.
Xvii.) No entanto, poderá a acção executiva prosseguir com o cheque enquanto quirógrafo, na medida em que prescrita a acção cartular ou cambiária, o cheque conserva a sua eficácia como documento particular à margem da obrigação cambial, valendo como quirógrafo duma obrigação não cambiária, cuja relação subjacente se encontra alegada e justificada.
Xviii.) Acresce que, a assinatura do cheque, importa a promessa de uma prestação ou o reconhecimento de uma dívida, nos termos do disposto no art.º 458.º, n.º 1 do Código Civil. Senão vejamos,
Xix.) Nos termos do disposto na al. c) do art.º 46.º CPC, são títulos executivos, os “documentos particulares, assinados pelos devedores, que importem a constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias cujo montante seja determinado ou determinável…”.
Xx.) Como supra alegado, o cheque foi emitido à ordem do exequente como forma de pagamento das mercadorias fornecidas ao executado, o qual de acordo com a matéria de facto dada como provada actuou sempre na qualidade de sócio gerente e representante legal da sociedade “CC, Lda.”
Xxi.) Assim, a relação subjacente à emissão do cheque consiste na transmissão obrigacional que ancora a pretensão deduzida contra o executado.
Porquanto,
Xxii.) O executado emitiu a favor do exequente o cheque que foi entregue a este, cheque esse no exacto valor do montante em dívida, desse modo ordenando ao banco sacado que procedesse ao pagamento à exequente desse montante.
Xxiii.) Deste modo, a emissão e entrega do cheque ao exequente traduz uma declaração negocial tácita, de sentido inequívoco: o executado quis pagar a dívida contraída pela sociedade de que era sócio gerente.
Xxiv.) O que se compreende, na medida em que na qualidade de sócio gerente da sociedade “CC, Lda.”, o executado é subsidiariamente responsável pelas dívidas daquela sociedade, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 78.º do Código das Sociedades Comerciais.
Xxv.) Ademais, emissão e entrega do cheque constitui um mandato puro e simples para pagar uma determinada quantia.
Xxvi.) O cheque, na situação concreta, vale como o facto que, com toda a probabilidade, revela a manifestação de vontade de pagar a dívida, para efeitos do n.º 1 do art.º 217.º CC.
Xxvii.) A assunção de dívida não está sujeita a formalismo especial e, consequentemente, tanto pode operar-se mediante declaração expressa do assuntor, como de factos que “de onde claramente se deduza a intenção de terceiro de se responsabilizar por dívida alheia.” (neste sentido vide, entre outros, ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 18/04/2006, Cons. João Camilo; e, ac. Tribunal da Relação de Lisboa de 12/10/2010, Desemb. Gouveia de Barros).
Xxviii.) Assim sendo, temos que o cheque em apreço constitui título executivo, por dois motivos.
Xxix.) Em primeiro lugar, porque "prescrita a obrigação cambiária ou a acção de letra, livrança ou cheque, sempre esses títulos são providos de eficácia executiva relativamente à obrigação causal como qualquer outro documento particular, assinado pelo devedor, que importe a constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias(...)" (ac. Rc,23.05.2000, proc. 680/2000); ou seja,
Xxx.) O cheque, ainda que prescrito, continua a constituir título executivo, enquadrável na previsão da alínea c), do n.º 1 do art.º 46.º CPC, desde que o exequente invoque a relação subjacente à sua emissão, como assim fez o recorrente no requerimento executivo.
Xxxi.) "I - os cheques dos autos são títulos à ordem, porque neles indicam o nome do beneficiário (o tomador dos cheques) a ordem de pagamento dada ao estabelecimento bancário (o sacado) onde deveria existir uma provisão de fundos constituida pelo emitente dos cheques (o sacador). São validamente considerados como títulos executivos. II - prescrita a acção cartular ou cambiária, os cheques conservam a eficácia como documentos particulares à margem da obrigação cambial. Valerão como quirógrafos duma obrigação não cambiária, i. é como títulos ou escritos comprovativos de qualquer obrigação de natureza diferente. III - sendo um escrito particular assinado pelo devedor, podem ser considerados títulos executivos para efeitos do art.º 46º do CPC, desde que constituam ou certifiquem a existência da obrigação de pagamento de quantia determinada ou determinável. IV - a prescrição da obrigação cambiária não afecta a obrigação que a determinou, não implicando, por isso, a extinção da obrigação subjacente ou causal que subsistirá. V - a discussão da relação subjacente dependerá da sua invocação no requerimento inicial da acção executiva como causa de pedir. VI - nas execuções a causa de pedir não é o próprio título executivo, mas antes, e de acordo com o art.º 498º nº 4 do CPC., os factos constitutivos da obrigação exequenda reflectidos, porém, no título. VII - assim, pese embora o decurso do prazo de prescrição da acção cambiária, os cheques ajuízados - valendo agora na base de escritos particulares recognitivos ou confessórios de obrigação - continuam a valer como título executivo." (ac. Rc, 29.05.2001, proc. 01612) (negritos nossos).
Xxxii.) Em segundo lugar, a expressão “reconhecimento de obrigações pecuniárias”, ínsita no art.º 46.º, n.º 1, al. c) CPC, tanto abrange as obrigações pecuniárias próprias como as alheias; sendo que,
Xxxiii.) No caso em concreto, tendo o executado emitido um cheque, a fim de ser entregue, integralmente preenchido (com excepção da data, cfr. Se viu em audiência de discussão e julgamento) para pagamento do fornecimento de mercadorias, feito pelo exequente à sociedade CC Lda. De que o executado era sócio gerente, tem de valorar-se tal conduta como coassunção de dívida, para os efeitos do art.º 595.º do Código Civil.
Xxxiv.) Neste sentido, salvo o devido respeito que nos merece o douto tribunal a quo, andou este mal ao fundamentar a sentença recorrida, afirmando que:
“ou seja, o exequente alegou a relação subjacente à emissão do cheque.
No entanto, salvo o devido respeito, não logrou demonstrar a existência da relação subjacente.
Na verdade, ao exequente não basta alegar factos, cumpre-lhe também demonstrá-los em juízo, o que não fez.”
Xxxv.) E andou mal o douto tribunal, salvo sempre o devido respeito, porque perante a existência de um documento particular assinado pelo devedor, ainda que não se invoque a respectiva causa, presume-se a mesma, cabendo ao devedor a prova do contrário.
Xxxvi.) Aliás, é o douto tribunal a quo, que na sentença recorrida invoca, e neste aspecto bem, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Maio de 1999, onde se pode ler: “(…) a ordem de pagamento dada ao banco e concretizada no cheque implica, em principio, um reconhecimento unilateral de dívida. Iii – é ao devedor que, nos termos do art.º 458.º do código civil, incumbe a prova da inexistência ou da cessação da respectiva causa.”. (negritos nossos)
Xxxvii.) A extinta obrigação cartular incorporada no cheque, mantém a sua natureza de título executivo, por se tratar de documento particular, assinado pelo devedor, desde que neles se mencione a causa da relação jurídica subjacente ou que tal causa de pedir seja invocada no requerimento executivo e, independentemente da invocação da relação subjacente, por o título implicar o reconhecimento unilateral de uma dívida.
Xxxviii.) É que a emissão de um cheque, para além de traduzir uma ordem de pagamento, constitui também o reconhecimento de uma obrigação pecuniária, convocando a aplicação do art.º 458.º do CC.
Xxxix.) Daqui resulta estar o credor dispensado da alegação da relação subjacente, significando que perante a mera existência do documento particular, ainda que não se invoque a respectiva causa, presume-se a mesma, cabendo ao devedor a prova do contrário – inversão do ónus da prova (neste sentido, vide P.Lima/A.Varela. Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª ed., pág. 439; António Geraldes, títulos executivos, Themis ano iv, n.º 7, pág. 62, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25/09/07, acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11/01/2007, de 07/10/2008, disponíveis em www.dgsi.pt).
Xl.) Pois bem, o exequente/recorrente pode não ter conseguido proceder à junção das facturas que originaram a dívida em apreço, nos presentes autos.
Xli.) No entanto, o executado/recorrido também não logrou provar documentalmente ou testemunhalmente, como se verá infra, o pagamento da dívida em apreço.
Xlii.) Por todo o exposto, andou ainda mal o tribunal a quo ao afirmar que:
“assim, ficamos sem saber que mercadorias foram fornecidas, as quantidades, o preço das mesmas, não se conseguindo vislumbrar como é que o ilustre mandatário do exequente conseguiu toda essa informação relativamente às
Facturas alegadas no requerimento executivo uma vez que quando foi notificado para efectuar a sua junção aos autos, veio alegar que o exequente já não possui as facturas desde 1997 por não as ter guardado!
Xliii.) Desde logo, cumpre-nos dizer que, o ilustre mandatário do exequente não tem poderes de adivinhação, pelo que, apesar de não estar na posse das facturas em apreço, o exequente forneceu a conta-corrente do executado, onde constam os números e datas de emissão e vencimento das mesmas, bem como os respectivos montantes.
Xliv.) De qualquer das formas, conforme supra exposto, o que está em causa nos presentes autos não são as mercadorias fornecidas, as quantidades, o preço das mesmas, mas antes o valor em dívida, constante do documento particular dado à execução. Porquanto,
Xlv.) Nunca foi colocado em crise, pelo executado, ora recorrido, os fornecimentos de mercadorias efectuados, bem como o valor total em dívida, ou seja, nunca o executado colocou em crise a relação subjacente, que aliás resulta dos pontos 2.), 3.) E 4.) Da matéria de facto provada.
Xlvi.) O que o executado/recorrido coloca em crise é a falta de pagamento dessa mesma dívida, mas como vimos supra, competia-lhe fazer prova de que pagou.
Xlvii.) No entanto, nem documentalmente, nem da prova testemunhal produzida em audiência de julgamento resulta provado que o executado/recorrido tenha procedido ao pagamento da quantia em dívida ao exequente/recorrente.
Vejamos,
Xlviii.) A prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, pressupunha decisão diversa da proferida pelo tribunal a quo. Senão vejamos,
Xlix.) Desde logo, importa atentar nas declarações prestadas, sob juramento, do embargante, ora recorrido, AA.
L.) As declarações de parte do embargante são, salvo o devido respeito, inconsistentes e muito pouco credíveis, sempre baseadas em “penso”, “acho”, “não me recordo”, “não consigo precisar”, mas o curioso é que esta falta de memória apenas acontece relativamente a alguns factos; pois,
Li.) O embargante só se lembra que pagou ao embargado, ora recorrente,
Lii.) Já o “quando”, “como” e “onde”, não se recorda! Pasme-se!
Liii.) Falta de memória essa que foi notada pelo próprio douto tribunal a quo.
Liv.) (reproduz os depoimentos prestados)
Lv.) Não podemos, pois, deixar de fazer notar a pouca valia em termos de
Declarações prestadas pelo embargante, manifestando uma absoluta e quase palpável dificuldade em responder objectivamente ao que lhe era perguntado, pois “não fazia ideia” ou “não se recordava”.
Lvi.) O embargante/recorrido não logrou convencer o embargado/recorrente e desconhece-se como terá convencido o tribunal a quo, tendo em conta as apontadas vicissitudes das suas declarações defensivas e pré-concebidas.
Lvii.) Contrariamente, nas declarações de parte efectuadas pelo embargado/recorrente, este explicou ao douto tribunal a quo, de forma espontânea, directa, credível e isenta a relação comercial que manteve ao longo dos anos com o embargante, o modo como este se começou a atrasar nos pagamentos, o motivo pelo qual foi emitido o cheque em causa nos presentes autos e a razão pela qual o mesmo foi apresentado a pagamento.
Lviii.) No que respeita ao depoimento da testemunha José Jorge, sempre se dirá que o seu depoimento pouco terá contribuído para o esclarecimento da verdade dos factos.
Lix.) Aliás encontram-se algumas incongruências entre o depoimento desta testemunha e as declarações de parte do embargante AA.
Lxvi.) Por outro lado, refere a testemunha José Jorge que emprestou dinheiro ao embargante/recorrido, por duas vezes, uma primeira tranche de vinte mil contos, aquando da reunião tida no Natal, alegadamente “para as necessidades”, e, posteriormente, uma segunda tranche de mais dez mil contos, “para ele resolver os assuntos dele” (vide depoimento supra transcrito)
Lxvii.) Ademais, não podemos deixar de estranhar o facto de o negócio do embargante nunca ter corrido de feição, é o próprio quem diz nas suas declarações de parte, que aquilo “nunca deu lucro”,
Lxviii.) Conjugado com o facto do embargante nem sequer conseguir sustentar o seu agregado familiar e, no entanto, haver alguém que lhe coloca trinta mil contos nas mãos!
Lxix.) Já a testemunha Clara, irmã do embargante, foi igualmente pouco esclarecedora e não logrou igualmente convencer o embargado/recorrente.
Lxx.) Trata-se no fundo de um depoimento pouco espontâneo, pouco claro e até mesmo pré-concebido. Senão vejamos,
Lxxi.) Por um lado, estamos perante uma família que se reúne para discutir e tentar resolver os problemas referentes às dívidas do embargante.
Lxxii.) Significa isto que, a questão em apreço assume relevância, do ponto de vista familiar.
Lxxiii.) No entanto a testemunha Clara, não tem bem presente o que aconteceu à empresa do irmão.
Lxxiv.)
Lxxvii.).
Lxxviii.) Finalmente, inquirida pela Mma. Juíza de Direito, verificou-se uma vez mais que a testemunha Clara pouco ou nada sabe sobre os factos, dando a conhecer ao tribunal apenas aquilo que ouviu dizer, desconhecendo se a dívida em causa nos presentes autos se encontra paga.
Lxxix.) Ora, da prova testemunhal efectivamente produzida em audiência de discussão e julgamento, resulta, quando muito, que o senhor Jorge terá emprestado dinheiro ao embargante/recorrido, não que este usou aquele dinheiro, ainda que parcialmente, para pagar ao embargado/recorrente.
Lxxx.) Mais, a testemunha clara reis, irmã do embargante/recorrido, apenas sabe o que ouviu dizer a este, pois vivendo em Viana do Castelo, não acompanhou, nem testemunhou o pagamento das dívidas, desconhecendo in totum se a dívida em causa nos presentes autos foi ou não paga ao embargado/recorrente. Ou seja,
Lxxxi.) O embargante/recorrido não logrou provar que pagou a dívida exequenda.
Lxxxii.) Assim como não logrou provar que a dívida contraída no exercício do comércio, não o tivesse sido em proveito comum do casal. Senão vejamos,
Lxxxiii.) Os comerciantes, no exercício e por causa da sua actividade, procedem à aquisição de bens e serviços, contraem empréstimos e praticam toda uma série de actos que são susceptíveis de originar dívidas.
Lxxxiv.) Nos termos do disposto no art.º 1691.º, n.º 1, al. D) do código civil, consideram-se dívidas comuns do casal, as contraídas por qualquer dos cônjuges no exercício do comércio, salvo se provarem que não foram contraídas em proveito comum do casal, ou se vigorar o regime de separação de bens.
Lxxxv.) Daqui resulta, desde logo, que se o regime de bens for o da separação de bens, o cônjuge do comerciante não pode ser responsabilizado pelas dívidas contraídas por aquele para o exercício do seu comércio.
Lxxxvi.) Fora do regime de separação de bens, a dívida é da responsabilidade de ambos os cônjuges se a mesma, contraída na constância do matrimónio pelo cônjuge administrador, o tenha sido em proveito comum do casal [al. c) do n.º1 do art.º 1691.º do código civil].
Lxxxvii.) O proveito comum do casal não se presume, excepto nos casos em que a lei o declarar (n.º 3 do art.º 1691.º código civil).
Lxxxviii.) O problema é que, nesta questão da presunção sobre o proveito comum, dispõe o art.º 15.º do código comercial que "as dívidas comerciais do cônjuge comerciante presumem-se contraídas no exercício do seu comércio", ou seja, constitui um dos casos expressos em que a lei presume o proveito comum do casal.
Lxxxix.) Desta forma, para afastar tal presunção, o cônjuge do comerciante devedor tem que provar que a dívida, embora comercial, não tenha derivado do comércio do devedor ou então demonstrar que a dívida, apesar de ter surgido no exercício do comércio do devedor, não foi contraída em proveito comum do casal.
Xc.) Neste sentido decidiu o tribunal da relação do porto (acórdão de 24.03.2003, proc. 0252692): "pretendendo o cônjuge não comerciante e que não beneficie do regime de separação de bens obstar à sua responsabilização pelo pagamento da dívida, contraída pelo outro cônjuge no exercício do comércio, terá de alegar e provar que a dívida assim contraída não o foi em proveito comum do casal".
Xci.) No sentido de considerar afastada a presunção, a Relação de Coimbra, por acórdão datado de 09/11/1999 (in BMJ, 491, p. 334), decidiu precisamente que: "a dívida proveniente de aquisição de azeite contraída no exercício do comércio pelo marido entre Janeiro e Fevereiro de 1995 é, em princípio, da responsabilidade de ambos os cônjuges, casados em regime de comunhão de adquiridos. Sê-lo-á, porém, da exclusiva responsabilidade do marido, se se provar que o casal esteve separado de facto desde finais de 1994, data a partir da qual aquele deixou de contribuir para o sustento, quer da mulher, quer da filha do casal". Isto é, neste caso, o cônjuge provou que não beneficiou (não teve proveito) da dívida que tinha sido contraída pelo marido, razão por que ficou excluída de qualquer responsabilidade pela mesma.
Xcii.) O objectivo das normas citadas, permitindo a comunicabilidade da dívida ao cônjuge do comerciante, é o da tutela do comércio, na medida em que, alargando-se o âmbito da garantia patrimonial concedida aos credores daqueles que exercem o comércio, se lhes facilita a obtenção de crédito e se favorecem as actividades mercantis; sendo que,
Xciii.) O sacrifício imposto ao cônjuge e família do comerciante não é arbitrário, por se entender que, em princípio, a dívida terá sido contraída no interesse do casal, com vista a granjear proveitos a aplicar em benefício da família ou em benefício comum.
Xciv.) No entanto, não é simples a configuração da responsabilidade acima mencionada, porque importa que a dívida seja comercial e que tenha sido contraída por cônjuge comerciante. Ora,
Xcv.) São dívidas comerciais apenas as que resultam de actos de comércio, os quais se reconduzem aos "especialmente regulados" no Código Comercial e a "todos os contratos e obrigações dos comerciantes que não forem de natureza exclusivamente civil, se o contrário do próprio acto não resultar (art.º 2.º do código comercial).
Xcvi.) É certo, contudo que neste caso funciona uma outra presunção, isto é, que em regra, os actos dos comerciantes relacionam-se com a sua actividade comercial e são, por isso, comerciais (cfr. Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, i, p. 83 e Vaz Serra, RLJ, 110, p. 145).
Xcvii.) Temos assim que, as dívidas comerciais de qualquer dos cônjuges, desde que comerciante, presumem-se realizadas no exercício da sua actividade comercial (art. 15.º do CCom); e,
Xcviii.) Desde que presuntivamente realizadas no exercício do comércio do devedor, presumem-se contraídas em proveito comum do casal (art. 1691.º, n.º 1, al. d), 1.ª parte, do CC).
Xcix.) O cônjuge não comerciante, para se furtar à comunicabilidade da dívida comercial do cônjuge comerciante, terá de combater tais presunções, provando, primeiro, que a dívida do cônjuge comerciante não foi contraída no exercício do seu comércio e, subsidiariamente, que, embora contraída no exercício do comércio do cônjuge comerciante, ela não foi contraída em proveito comum do casal.
C.) O proveito comum do casal não é mera questão de facto, mas antes uma questão mista ou complexa, de facto e de direito, pelo que a mera alegação de que a dívida não foi contraída em proveito comum do casal deverá extrair-se
Dos factos materiais que a suportam, não constituindo em si mesma a alegação de um facto material.
Ci.) A compra e venda de mercadorias no exercício da actividade comercial constitui um acto de comércio.
Cii.) Ora, resulta da prova produzida em audiência de julgamento que os embargantes, ora recorridos não lograram fazer prova que afastasse a presunção do proveito comum do casal, muito pelo contrário (vide depoimento da testemunha clara reis, supra transcrito).
Ciii.) Logo, a presunção não foi afastada, pelo que a dívida contraída no exercício do comércio, tem de considerar-se necessariamente contraída em proveito comum do casal.
Civ.) Dispõe o n.º 5, do art.º 607.º, do CPC Que, “o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto;(.)”.
Cv.) “o que está na base do princípio é a libertação do juiz das regras severas e inexoráveis da prova legal sem que entretanto se queira atribuir-lhe o poder arbitrário de julgar os factos sem prova ou contra a prova; o sistema da prova livre não exclui, antes pressupõe a observância das regras de experiência e critérios da lógica.”, cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11/03/2010, proc.n.º 949/05.4TBOVR-A1-8, relator Bruto da Costa.
Cvi.) “entendemos, com a jurisprudência maioritária, que o princípio da prova livre ou prova moral deve ser associado a uma discricionariedade do juiz na apreciação probatória mas apenas no sentido de o não vincular – como regra geral e como princípio metodológico – a uma valoração probatória pré definida, porque apenas nisso é livre. Mas não exime o juiz da busca da verdade através dos métodos epistemológicos aceites. E o método epistemológico, por excelência, aceite na busca da verdade dos factos é a razão. Ou seja, a livre convicção é, hoje, uma concepção racional de livre convicção na busca da verdade factual, com dois corolários: 1 – regra geral o juiz aprecia livremente – não sujeito a valoração tabelada – toda a prova produzida; 2 – através do uso da razão para demonstrar a verdade dos factos.”, cfr., acórdão do tribunal da relação de évora, de 21/06/2011, proc.º n.º 1273/08.6pcstb-a.e1.
Cvii.) Refere ainda o douto acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 21/06/2011, proc.º n.º 1273/08.6PCSTB-A, que: “a liberdade do juiz na apreciação da prova é uma "liberdade para a objectividade – não aquela que permita uma «intime conviction» meramente intuitiva, mas aquela que se concede e assume em ordem a fazer triunfar a verdade objectiva, uma verdade que se comunique e imponha aos outros" (castanheira neves, “sumários de processo criminal”, 1967-68, p. 50). Só com a exposição clara e indubitável da razão, das regras de experiência social comprovada e das presunções probatórias racionalmente fundadas é possível aos sujeitos processuais e ao tribunal superior o exame do processo lógico ou racional que subjaz à motivação pela via do recurso, sem prejuízo de se aceitar que a experiência de vida do juiz e as formas de percepção, por este, da prova produzida – desde que clarificadas e racionalmente expostas - devam ser aceites.”
Cviii.) Resulta assim que, o princípio da livre apreciação da prova, atribui ao juiz a liberdade de apreciar e valorar a prova produzida em julgamento, salvo quando a própria lei afasta esse princípio.
Cix.) Nos termos do art.º 396.º do CC, “a força probatória dos depoimentos das testemunhas é apreciada livremente pelo tribunal.”; pelo que,
Cx.) No âmbito da prova testemunhal produzida, o tribunal tem a liberdade de avaliar e valorizar as declarações das testemunhas, de acordo com um raciocínio lógico, alcançável pelo homem médio, e segundo critérios racionais e objectivos, de razoabilidade, avaliando a sua credibilidade e importância para a prova dos factos em julgamento.
Cxi.) Daqui resulta que, o tribunal a quo, salvo o devido respeito que nos merece, andou mal ao proferir a douta sentença que proferiu; pois,
Cxii.) A livre apreciação da prova produzida, mediante os critérios racionais e objectivos de razoabilidade, avaliando a credibilidade e importância das testemunhas, impunha decisão diversa da proferida; pelo que,
Cxiii.) Foi violado o princípio da livre apreciação da prova. Ora,
Cxiv.) Tendo sido provada a relação subjacente, como aliás resulta dos pontos 1.) A 4.) Da matéria de facto considerada provada, e não logrando o recorrido provar o pagamento da dívida, como refere e bem a douta sentença recorrida, quando refere que “(…) os embargantes não lograram provar que o valor do cheque tivesse sido pago por quem quer que seja pois não foi junto qualquer documento comprovativo do pagamento nem nenhuma testemunha inquirida em audiência referiu ter assistido ao mesmo.”; e,
Cxv.) Tendo resultado provado que “o executado contraiu matrimónio com BB, no regime da comunhão de adquiridos” (vide ponto 8 da matéria de facto provada), sendo que,
Cxvi.) Refere a douta sentença recorrida que “no que concerne ao proveito comum do casal também nenhuma prova convincente foi feita nesta matéria (…)”; então,
Cxvii.) A decisão proferida devia ter sido no sentido de condenar os recorridos no pagamento da quantia em dívida ao recorrente.
Cxviii.) A sentença recorrida, mostra-se, assim, nula, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 615.º, n.º 1, als. c) e d) do CPC,
Cxix.) Chegando mesmo a ser contraditória entre si, quando refere que “no que concerne ao proveito comum do casal também nenhuma prova convincente foi feita nesta matéria pois o tribunal convenceu-se, face ao depoimento da testemunha Clara (irmã do executado AA) que, efectivamente, o casal fazia vidas separadas, sendo a BB que suportava, com o seu vencimento de professora e como explicadora, todas as despesas domésticas e o sustento do casal e respectivo filho, nunca tendo beneficiado com a actividade que era levada a cabo pelo executado, sendo certo que o referido negócio só trouxe problemas ao casal que vive, há mais de 10 anos, em países diferentes (ela em Portugal, e ele em Inglaterra).”; pois,
Cxx.) Se, por um lado, no que concerne ao proveito comum do casal também nenhuma prova convincente foi feita nesta matéria,
Cxxi.) A verdade é que o testemunho de Clara logrou convencer o tribunal, ainda que não tenha sido produzida prova convincente. Pasme-se!
Cxxii.) Mas a douta sentença é ainda contraditória com a própria prova produzida em audiência de julgamento, pois resulta evidente do depoimento da testemunha clara rei, supra transcrito, que a sua razão de ciência quanto aos factos é apenas a que resulta do que ouviu dizer ao irmão; pois,
Cxxiii.) É a própria testemunha que quando inquirida pela Mma. Juíza de Direito (vide depoimento gravado dos 21min.24seg. aos 22min.40seg.), refere que, por não se encontrar a residir em Chaves à data dos factos, não pode afirmar que apenas fosse a recorrida a contribuir para as despesas comuns do casal e, consequentemente, que esta não tivesse tido qualquer proveito da actividade comercial exercida pelo recorrido AA.
Termos em que, nos melhores de direito e sempre com o mui douto suprimento de v. Exas., deverá ser admitido o presente recurso de apelação e consequentemente revogada a douta sentença recorrida, ordenando-se a sua substituição por outra que condene os recorridos no pagamento da quantia exequenda, considerando que, a dívida foi contraída no proveito comum do casal.”
A parte contrária contra alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

II – Objecto do recurso

Considerando que:

. O objecto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações dos recorrentes, estando vedado a este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso; e,

. Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu acto, em princípio delimitado pelo conteúdo do acto recorrido,

as questões a decidir são as seguintes:

. se a sentença recorrida é nula;

. se a matéria de facto deve ser alterada;

. se deve ser alterada a decisão de mérito, o que passa por apreciar sobre qual das partes recai o ónus da prova da causa ou da falta de causa do negócio jurídico e do proveito comum do casal.

III – Fundamentação

Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:

1) O Exequente, na qualidade de armeiro dedicava-se, na década de 90, ao comércio de armas e munições.

2)A sociedade comercial CC Lda., registada na 6ª Conservatória do Registo Comercial de Valpaços, com o NIPC 502154993, com o código de acesso 3536-1248-1344, dedicava-se à comercialização e venda de artigos de caça, pesca e desportos, sendo o Executado sócio gerente daquela.

3) No exercício da sua actividade comercial, o Exequente forneceu à dita sociedade mercadorias.
4) Para pagamento de mercadorias, o Executado emitiu o cheque n.º 8682429336, emitido sobre o Banco Bilbao Vizcaya, com data de emissão de 06/03/1995, no valor de 1.566.318$00 (um milhão quinhentos e sessenta e seis mil trezentos e dezoito escudos), o equivalente a 7.812,76€ (sete mil oitocentos e doze euros e setenta e seis), o qual foi dado à execução como título executivo.
5) O cheque foi apresentado a pagamento em dois momentos distintos, tendo sido em ambas as ocasiões devolvido e carimbado por falta de provisão, em 09/03/1995 e 23.03.1995.
6) O Exequente endereçou ao Executado, para a Rua Passos Manuel, em Valpaços, morada da sociedade CC, Lda., uma carta registada com aviso de recepção, datada de 30/09/2013, tendo esta sido devolvida com a menção de "desconhecido" (em 03/10/2013).
7) O Exequente enviou ao executado uma carta registada com aviso de recepção, datada de 16/1 0/20 13, tendo esta sido recepcionada em 21/10/2013, por "BB" (cônjuge do Executado).
8) O Executado contraiu matrimónio com BB, no regime de comunhão de adquiridos.
9) A acção executiva foi instaurada em 05 de Novembro de 2013.
10) O cheque dado à execução é um cheque pessoal do executado.
11) Nas relações com o Exequente, o Executado actuou sempre na qualidade de sócio-gerente e representante legal da sociedade CC, Lda.

Da nulidade da sentença – artº 615º nº1 alíneas c) e d) do CPC
Alega o apelante que a sentença é nula porque deveria ter condenado os recorridos no pagamento da quantia em dívida ao recorrente e não o fez, julgando a oposição procedente.
Ora o erro de julgamento não é causa de nulidade da sentença. O erro de julgamento pode conduzir à revogação da decisão, mas não implica a nulidade da sentença.
Não procede assim a nulidade invocada.

Da pretendida alteração da matéria de facto
Nos termos do nº 1 do artº 662º do CPC “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
O recorrente que pretende impugnar a matéria de facto, está obrigado ao cumprimento de determinados ónus impostos pelo artº 640º do CPC, devendo especificar sob pena de rejeição (alíneas a) a c) do nº 1 do artº 640º do CPC):
. os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
. os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
. a decisão que no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
E quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes (alínea a) do nº 2 do artº 640º do CPC).
Na alínea XLVIII)das conclusões o apelante vem alegar que a prova produzida em audiência de discussão e julgamento pressupunha decisão diversa da proferida pelo tribunal a quo e, a partir da conclusão XLIX até à conclusão LXXX, o apelante pronuncia-se sobre as declarações e depoimentos prestados e transcreve parte dos mesmos, concluindo na conclusão LXXXI que o embargante/recorrido não logrou provar que pagou a dívida exequenda e na conclusão LXXXII invoca também que os embargantes não lograram provar que a dívida contraída no exercício do comércio não foi contraída em proveito comum do casal.
Se bem que seja manifesto no recurso interposto que o apelante não concorda com o juízo sobre a prova efectuado pelo tribunal a quo, o apelante nunca refere em momento algum quais os factos que não foram dados como provados que o tribunal deveria ter dado como não provados e/ou os que deu como não provados que deveria ter dado como provados.
E não deu cumprimento ao disposto no artº do 640º do CPC, porque não o poderia dar, nos termos em que o apelante discorda da decisão. O apelante entende que não se provou que o embargante tenha pago a dívida exequenda e que não se provou que a dívida não tivesse sido contraída em proveito comum do casal, mas o tribunal a quo também entendeu do mesmo modo. Basta ler o elenco dos factos dados como provados na sentença para se constatar que o tribunal não deu como provado o pagamento nem deu como provados factos de onde se pudesse concluir que a dívida foi contraída em proveito comum do casal. O apelante, com o devido respeito, confunde erro na apreciação da matéria de facto com erro de julgamento na distribuição do ónus da prova. O que está em causa nos autos não é uma deficiente apreciação da prova produzida em julgamento, mas sim um eventual erro na distribuição do ónus da prova, questão que, aliás, o apelante também coloca.
Rejeita-se, consequentemente, a impugnação da matéria de facto.

Do Direito
Nos casos em que o direito com base na relação cambiária se encontra prescrito, discute-se, se ainda assim, o título apresentado à execução pode valer como título como título executivo, face ao que dispõe a alínea c) do nº 1 do artigo 46º do Código de Processo Civil.
A resposta não é unânime.

Para uns, extinta a obrigação cambiária, o título já não pode valer como título executivo. O portador terá que instaurar acção declarativa para ver previamente reconhecido o seu direito e só após instaurar execução, em caso de não pagamento voluntário. Para os defensores deste entendimento as alterações processuais introduzidas pela reforma de 1995 não tiveram por fim alterar o regime consagrado na Lei Uniforme do Cheque ou na Lei Uniforme sobre Letras e Livranças nem modificar os requisitos de exequibilidade desses títulos Acs. de 29.02.00, CJ/STJ 2000, I, 124, de 16.10.01, CJ/STJ 2001, III, 89, de 20.11.03, CJ/STJ 2003, III, 154, Acs. R.P. 25.01.2001, CJ 2001, I, 192 e Ac. R.L. de 26.02.2004 (Pº 1090/2004-8), este acessível na Internet no sítio www.dgsi.pt, sítio onde poderão ser consultados todos os acórdãos que venham a ser citados sem menção de outra fonte. .

Para outros, considerando que a referida reforma processual ampliou os títulos executivos, extinta a obrigação cartular incorporada na letra, livrança ou cheque, estes mantêm a sua natureza de título executivo, enquanto documento particular assinado pelo devedor, desde que neles se mencione a causa da relação jurídica subjacente ou que tal causa de pedir seja invocada no requerimento executivo, podendo ser impugnada pelo executado na oposição que vier a deduzir e desde que a obrigação a que se reporta não resulte de um negócio jurídico formal, tendo em consideração o regime de reconhecimento de dívida previsto no artº 458º do CC e a autonomia do título executivo em face da obrigação exequenda Acs. do STJ de 18.01.01, CJ/STJ 2001, I, 71, de 29.01.02, CJ/STJ 2002, I, 64, de 16.12.04, CJ/STJ 2004, III, 153, e ainda Acs. STJ de 30.10.03 (Pº P03B3056), 19.01.2004 (Pº 03ª3881), e Ac. R.L. de 14.04.2005 (Pº 2070/2005-6); Acs. R.P. de 26.10.2004 (Pº JTRP 00037288) e de 13.02.2007 (Pº JTRP00040049) e Ac. R. C. de 26.06.2007 (Pº 2432/05.9TBPMS.C1). . Do disposto do artº 458º do CC resulta uma presunção de causa (presunção da existência de uma relação negocial ou extra negocial) e a inversão do ónus da prova da existência da relação fundamental.

A 2º posição é maioritária.

Outros defendem que não obstante considerarem que o título prescrito pode constituir título executivo, desde que alegada a relação fundamental, ainda que o cheque tenha por causa um empréstimo que é nulo por falta de forma, valerá ainda como título executivo relativamente ao montante a restituir por efeito da nulidade Conforme se defende no Ac. do TRG de 27.10.2011, proferido no proc. nº 98/08 e Acs. do TRP de 4.10.2001, proferido no proc. nº 371/07 e de 28.10.2010, proferido no proc. nº 1186/09.

.

Existe ainda uma posição que entende que não é necessário a invocação da relação subjacente nem no título nem no requerimento executivo, baseando-se no artº 458º do CC Ac. STJ de 11.05.1999, CJ/STJ 1999, II, 88, Ac. R.L. de 27.06.2002, CJ 2002, III, 121 e Ac. R.C. de 12.06.2007 (Pº 22/06.8TBSVV.A.C1), Ac. do TRP de 08-07-2004, proc. 0433578, acessível no mesmo sítio da Internet. Neste mesmo sentido se pronunciou António Santos Abrantes Geraldes, Títulos Executivos, Revista “Themis”, ano IV – Nº 7 (2003), 60-65., bastando que o título seja à ordem e nos encontremos no domínio das relações imediatas, caso contrário, não se poderá afirmar que o devedor reconheceu uma dívida perante o credor.

Temos para nós que um cheque prescrito ainda pode ser considerado título executivo, tal como se considerou na sentença recorrida e que o apelante não pôs em causa.

Nos casos em que o cheque vale como quirógrafo da obrigação subjacente, não se trata de um negócio abstracto, antes com presunção de causa em que ocorre inversão do ónus da prova (artº 458º do CC). O legislador parte do princípio e bem, que se alguém reconhece uma dívida, como acontece quando alguém subscreve um cheque dando ordem de pagamento a outrém, presume-se que este negócio tem uma causa, dispensando o credor de provar a relação subjacente. Quem tem que provar que não há causa para o reconhecimento de dívida é o devedor.

A presunção não tem aplicação no domínio da decisão de facto, mas vai colocar-se num momento posterior – o da aplicação do direito aos factos.

No caso provou-se que o cheque foi emitido para o pagamento de mercadorias fornecidas pelo exequente à sociedade CC, Lda. pelo que se provou existir uma causa para a emissão do cheque (ponto 4 dos factos assentes). Nada impedia que o executado assumisse pessoalmente o pagamento de uma dívida da sociedade de que era sócio-gerente (designadamente por esta não dispôr de fundos), assunção de dívida concretizada através da emissão de um cheque emitido por si enquanto pessoa singular, sacado sobre uma conta de que era titular. Mas ainda que se entendesse que os factos provados são insuficientes, por não concretizarem que mercadorias se destinavam a pagar, quando não se provam os factos relativos à relação subjacente, contra quem deve ser decidida a acção/oposição?

Nos casos em que não se apuraram factos relativos à causa do título de crédito, ou seja atinentes à relação fundamental, a oposição tem que ser decidida contra a parte onerada com o ónus da prova que é o devedor, uma vez que a causa do reconhecimento de dívida se presume.

No caso, não tendo o executado logrado provar a falta de causa, significa que a oposição tem que ser julgada improcedente, pelo que se impõe a revogação da decisão. A prova da relação subjacente não era facto constitutivo do direito do exequente, como entendeu a Mma.Juíza a quo. A relação fundamental presume-se. Era aos apelados que incumbia provar a falta de causa da relação subjacente, por força do disposto no nº 1 do artº 458º do CC, o que não fizeram, pois que alegaram que a dívida se encontrava paga, mas não lograram provar tais factos.

Relativamente ao proveito comum do casal:

Apurou-se apenas que o opoente era sócio gerente da sociedade CC, Lda., mas pelo facto de exercer a gerência e ser sócio de uma sociedade comercial de responsabilidade limitada não decorre para o opoente a qualidade de comerciante Cfr. se defende no Ac. do TRL de 25.10.2012, proferido no proc. 2991/10.. O facto de alguém ser representante de uma sociedade, ainda que, no exercício da actividade comercial que esta desenvolve, não lhe atribui a qualidade de comerciante, pois que não exerce o comércio em nome próprio, mas sim em proveito da sociedade.

Assim, não se aplica ao caso o disposto na alínea d) do nº1 artº 1691º do CC em que para afastar a comunicabilidade da dívida, há que provar que a dívida não foi contraída em proveito comum do casal, prova essa que não foi feita.

E não se tendo provado quaisquer factos que permitam a subsunção do caso às demais alíneas do nº 1 do artº1691º do CC, a dívida não pode ser considerada da responsabilidade de ambos os cônjuges, pois que não se provou que a dívida tivesse sido assumida por um dos cônjuges com o consentimento do outro, nem que tivesse sido contraída para ocorrer aos encargos da vida familiar, nem se provou que tivesse sido contraída pelo cônjuge administrador em proveito comum do casal. São requisitos típicos de comunicabilidade das dívidas de um dos cônjuges ao outro, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo1691º do Código Civil, cumulativamente: que a dívida tenha sido contraída na constância do matrimónio; pelo cônjuge administrador dentro dos seus poderes de administração; e em proveito comum do casal. Os factos integradores desses requisitos legais de comunicabilidade são constitutivos do direito do credor demandante, ao qual incumbe, por consequência, o respectivo ónus probatório, conforme o n.º 1 do artigo 342º do Código Civil, tanto mais, quando a lei declara no mesmo plano explicitamente que o requisito do proveito comum não se presume (n.º 3 do artigo 1691º). O proveito comum do casal é um conceito jurídico, cuja integração e verificação depende da prova de factos demonstrativos de que a destinação da dívida em questão, era para a satisfação de interesses comuns do casal.

Impõe-se, assim, a procedência parcial da apelação.

Sumário:

. Extinta a obrigação cartular incorporada na letra, livrança ou cheque, estes mantêm a sua natureza de título executivo, enquanto documento particular assinado pelo devedor, desde que neles se mencione a causa da relação jurídica subjacente ou que tal causa de pedir seja invocada no requerimento executivo, podendo ser impugnada pelo executado na oposição que vier a deduzir e desde que a obrigação a que se reporta não resulte de um negócio jurídico formal, tendo em consideração o regime de reconhecimento de dívida previsto no artº 458º do CC e a autonomia do título executivo em face da obrigação exequenda.

. Do disposto do artº 458º do CC resulta uma presunção de causa (presunção da existência de uma relação negocial ou extra negocial) e a inversão do ónus da prova da existência da relação fundamental.

. Incumbe ao devedor provar a falta de causa da obrigação inscrita no título.

. O facto de alguém ser representante de uma sociedade, ainda que, no exercício da actividade comercial que esta desenvolve, não lhe atribui a qualidade de comerciante, pois que não exerce o comércio em nome próprio, mas sim em proveito da sociedade.

IV – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal em julgar parcialmente procedente a apelação e em revogar a sentença recorrida, julgando parcialmente procedente a apelação, prosseguindo a execução contra o executado.

Custas pelo apelante e pelo apelado AA, fixando-se em 50% para cada.

Guimarães, 30 de Abril de 2015

Helena Melo

Heitor Gonçalves

Manso Rainho